Abusos do poder

Permitir livre acesso do Fisco a dados bancários é voltar à barbárie

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5 de abril de 2006, 13h25

O fisco federal divulgou que estaria intimando cerca de duas mil pessoas para prestar esclarecimentos sobre seus gastos com cartões de crédito, muito superiores aos rendimentos que declararam, o que seria um indício de sonegação fiscal.

Desde julho de 2003, as administradoras de cartão de crédito estão obrigadas a informar gastos que ultrapassem R$ 5 mil por mês para pessoas físicas ou R$ 10 mil para pessoas jurídicas.

Embora o fisco esteja amparado na Lei Complementar 105 de 2001 e as administradoras devam dar essas informações, não é legítimo o lançamento de tributo que venha a se basear exclusivamente nos valores das faturas, pois isso poderá gerar erros grosseiros de tributação.

O fisco não pode partir da premissa de que o valor da fatura do cartão de crédito seja correspondente a um rendimento tributável do contribuinte.

A maioria das administradoras de cartões concede a seus associados créditos diversos que podem, inclusive, ser utilizados para o pagamento de faturas de outros cartões, bem como pagamentos diversos feitos por meio do serviço de compensação inter-bancária.

Os cartões de crédito há muito tempo já não representam pura e simplesmente um instrumento de compra de mercadorias ou serviços, mas funcionam também como meio de pagamento. Tal fato não pode ser ignorado pelo fisco, pois haverá muitos casos em que boa parte da fatura vai se referir a pagamentos que não significam aquisição de bens, mercadorias ou serviços.

Ao pretender usar as informações das administradoras para cobrar imposto que imagina ter sido sonegado, o fisco poderá cometer muitas injustiças, além de fazer lançamentos baseados em meros indícios ou presunções.

A jurisprudência é ampla no sentido de que não se pode lançar tributo baseado apenas em indícios ou presunções. O antigo Tribunal Federal de Recursos já decidiu no sentido de que:

“Processo Fiscal — Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida.” (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança nº 65.941 in “Resenha Tributária” nº 8)

“Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição, é nulo, pois não se pode presumir a fraude que, necessariamente, deverá ser demonstrada” (Tribunal Federal de Recursos, Apelação Civil nº 24.955 em Diário da Justiça da União,9/5/69).

Assim, caso o fisco, verificando as despesas havidas com cartões de crédito, entenda ter havido rendimento tributável não declarado, deverá fazer prova inequívoca da existência desses rendimentos. Se fizer o lançamento com base apenas no valor das faturas, sem examinar detalhadamente a natureza desses gastos, estará fazendo lançamento por presunção, o que a lei não permite.

Há situações em que o portador do cartão de crédito usa-o para pagar despesas de terceiros, destes recebendo o reembolso posteriormente. Também é comum que pequenos empresários utilizem o seu cartão de pessoa física para fazer pagamentos devidos pela sua empresa. Nessas duas hipóteses, estamos diante do uso absolutamente legal do cartão como instrumento de crédito.

Nas duas hipóteses, a pessoa física não teve qualquer rendimento que correspondesse ao valor da fatura do cartão. No entanto, sob a ótica do fisco, estaria tendo uma “despesa” e, conseqüentemente, um rendimento tributável.

Portanto, essa forma de fiscalização poderá causar muita injustiça e cometer muitos erros. O fisco certamente obteria mais resultados concretos fiscalizando as empresas diretamente, por meio de uma fiscalização externa mais eficiente.

O anúncio dessa operação fiscal está, portanto, parecendo mais uma estratégia de pressão psicológica sobre os contribuintes, para os quais o fisco federal pretende criar dificuldades cada vez maiores. Não nos parece que seus resultados práticos venham a compensar o esforço desenvolvido.

Outra questão que também merece séria reflexão é a que se relaciona com o acesso que autoridades fiscais querem ter sobre as contas bancárias dos contribuintes.

Embora o sigilo não seja absoluto, como a Justiça vem decidindo, a Lei Complementar 105 não concedeu a fisco nenhum direito de “bisbilhotar” contas bancárias. A lei é clara no sentido de que poderá o fisco ter acesso a essas contas quando houver indícios de determinados crimes ali especificados. Um desses crimes é o de “sonegação fiscal” ou “contra a ordem tributária”.

Não nos parece sensato, todavia, imaginar que qualquer fiscal possa decidir quando há indícios de crime, até porque a grande maioria deles não tem formação jurídica. Quem pode, validamente, examinar o caso concreto para apurar se há ou não indício de crime é o membro do Poder Judiciário. Assim, o fisco poderá, com base nos indícios de que dispuser, solicitar a “quebra” do sigilo bancário das pessoas, que será ou não autorizada pelo Judiciário.

Há entendimentos, contudo, no sentido de que a LC 105 autoriza o Fisco a diretamente ter acesso às contas bancárias, o que se nos afigura como muito perigoso, com essas informações podendo ser utilizadas sem as devidas cautelas legais.

As associações de juizes, inclusive a dos juizes federais, manifestaram-se no sentido de que a quebra de sigilo de seus associados deva ser informada aos mesmos. Tal fato teria origem em violações ilícitas das contas de alguns magistrados.

Pensamos, todavia, que a quebra de sigilo deva ser notificada a qualquer cidadão, não só aos juizes. Afinal, ainda está em vigor o inciso I do artigo 5º da Constituição, que diz que somos todos iguais.

Infelizmente, muitos juizes federais vêm referendando a ação do fisco quando instados a julgar Mandados de Segurança impetrados por cidadãos comuns ou empresas privadas.

Ao darem à LC 105 uma interpretação “elástica”, aceitando a curiosa “tese” de que qualquer fiscal sabe quando há indícios de crimes, os magistrados dão força aos abusos do fisco, ignorando o princípio da presunção da inocência.

Esperamos que agora, atingidos pelo mesmo abuso, tais julgadores alterem sua posição, retornando à observância dos direitos e das garantias individuais, para que só sejam quebrados sigilos em situações especiais. Afinal, a pimenta já não está ardendo apenas nos olhos dos outros.

Permitir que o fisco tenha acesso indiscriminado a cartões de crédito e a contas bancárias, sem que isso esteja sujeito ao controle do Judiciário, é retornar à barbárie.

O juiz federal Heraldo Garcia Vitta, da 2a Vara da Justiça Federal de Bauru (SP), ao conceder liminar em Mandado de Segurança sobre o mesmo assunto, afirmou: “a possibilidade de o fisco poder acessar os dados bancários dos administrados seria o retorno ao Estado policialesco, em virtude do qual todos estaríamos submetidos à vontade do administrador”.

Também não parece legal a exigência, feita por agentes fiscais, de que se proceda ao fornecimento de extratos bancários ou faturas de cartões de crédito para que eles possam apurar eventual sonegação. Ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Nesse sentido é a doutrina corrente. Ada Pellegrini Grinover, citada por Celso Bastos em Comentários à Constituição Brasileira de 1988 (Saraiva, S.Paulo, 2º volume, pág. 296) ensina que: “O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem”.

De igual forma, o professor Hugo de Brito Machado, em trabalho publicado no jornal Síntese, afirma: “o contribuinte não tem o dever de prestar informações ao fisco, que possam servir como prova do cometimento de crime contra a ordem tributária, ou qualquer outro. A não ser assim, ter-se-ia violado o princípio da isonomia, posto que aos autores de quaisquer crimes, por mais hediondos que sejam seus cometimentos, sempre é assegurado pela Constituição o direito ao silêncio, vale dizer, o direito de não se auto-incriminarem. O contribuinte não há de ser tratado diferentemente”.

Miguel Reale Júnior (ex-ministro da Justiça e atual professor da USP) e Heloísa Estellite (diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), em trabalho publicado no jornal Valor Econômico de 15 de janeiro de 2003, também ensinam:“Embora o fisco tenha direito a examinar livros e documentos e a solicitar da empresa as informações necessárias à regularidade da arrecadação tributária, o correspondente dever do contribuinte de atender a estas solicitações encontra-se limitado pelo direito constitucional a não colaborar na produção de provas contra si mesmo, direito esse que vale em face dos agentes fiscais”.

Assim, é indispensável que o Judiciário examine com muito cuidado os casos de quebra de sigilo bancário ou intimações relacionadas com cartões de crédito, para que não avalizem procedimentos ilícitos praticados pelo Fisco. A Lei Complementar 105, como é óbvio, não pode ser interpretada de forma ampla, ao arrepio dos princípios constitucionais que lhe são superiores.

Não podemos, em nome de uma suporta preservação dos direitos do fisco, ignorar os princípios básicos da nossa Carta Magna. Por mais relevante que possa ser o interesse do fisco e mesmo o do suposto “interesse público”, não podemos nos esquecer que, acima de qualquer norma ou interesse, prevalecem os princípios constitucionais em vigor.

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