Lição pedagógica

A Lei de Arbitragem não pode ser reduzida à inutilidade

Autor

  • Selma Ferreira Lemes

    é advogada mestre em Direito Internacional e doutora em Integração da América Latina pela USP professora e coordenadora do Curso de Arbitragem do FGVLaw.

5 de abril de 2006, 7h00

Desde a década de 1960, a participação do Estado na economia é sentida por meio da sociedade de economia mista, cujo escopo é desenvolver atividade econômica (Decretos-Leis 200/67 e 900/69), independentemente de se referir a um serviço público ou não. A sociedade de economia mista deve ser criada por lei, na forma de sociedade por ações. É conceituada como pessoa jurídica de direito privado e a atividade que exerce será sempre econômica (core business). A União, os estados e os municípios podem constituí-la.

A participação de capital público faz com que a sociedade de economia mista seja auditada pelo Tribunal de Contas, bem como, em determinadas ocasiões, pode praticar atos afeitos à área administrativa, mas não, evidentemente, quando atua como um particular na atividade de exploração de atividade econômica para a qual foi constituída. Neste caso, pratica mero ato negocial e, portanto, não se trata de ato administrativo (ato de autoridade).

Estas noções básicas e específicas são imprescindíveis para afastar as generalizações que se efetuam em torno do tema, em especial na seara arbitral. É freqüente verificar a inclusão de cláusulas compromissórias em contratos firmados por sociedades de economia mista, entre elas, as que atuam na área de energia elétrica. Esta atividade é desenvolvida também por pessoas jurídicas eminentemente privadas, sem nenhum elo com o Estado. A energia elétrica é uma mercadoria e a transação efetuada por meio de contrato de compra e venda constitui atividade econômica.

Todavia, quando surge controvérsia em torno de contrato firmado e ao instaurar a arbitragem (ou mesmo antes dela), é comum a sociedade de economia mista negar vigência à cláusula compromissória com o intuito de afastar a arbitragem, valendo-se de argumentos inconsistentes, tais como que não poderia submeter-se à arbitragem pelo fato de integrar a administração pública indireta; que a matéria é de direito indisponível (serviço público concedido); que envolve interesse público, etc..

Assim agindo, além de violar o inafastável princípio jurídico da boa-fé e seus consectários, como o da confiança legítima e do venire contra factum proprium (ninguém pode se eximir de uma obrigação assumida invocando sua própria falha) que permeiam todas as relações jurídicas, em especial, as advindas da administração pública direta e indireta, é inconcebível admitir que a sociedade de economia mista não cumpra o assumido, haja vista a lei de arbitragem determinar que a cláusula compromissória tem efeito vinculante e afasta a submissão da controvérsia ao Judiciário. Note-se que, em fase prévia ou conjunta à arbitragem, o Judiciário atua na função de apoio à arbitragem, em contraste com a função de revisão e, se for o caso, após a sentença arbitral expedida.

Com efeito, a jurisprudência que vem se consolidando na área admiravelmente, explicitando e ratificando os conceitos e princípios da lei de arbitragem, além de exarar, como no caso a baixo citado, verdadeira lição pedagógica. Neste sentido é de relevo salientar a decisão advinda do Tribunal de Justiça do Paraná (Agravo de Instrumento 174.874-9/02 –2, Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba), proferida em abril de 2005 sobre questão envolvendo sociedade de economia mista distribuidora de energia elétrica que, ao firmar contratos de compra e venda de energia elétrica de empresa privada, estabeleceu a arbitragem como forma de solução de conflitos deles advindos. Porém, surgidas controvérsias referentes aos pagamentos correspondentes, foram instauradas arbitragens. Mas se insurgiu a sociedade de economia mista quanto à discussão da controvérsia em sede arbitral, alegando que a matéria em tela seria indisponível.

Esta questão, no direito da arbitragem, é conceituada como arbitrabilidade objetiva, pois se refere à disponibilidade de direitos patrimoniais (artigo 1º in fine da Lei 9.307/96). A sociedade de economia mista, quando atua na compra e venda de energia elétrica, está praticando atividade puramente comercial, desprovida de qualquer reflexo no direito administrativo.

Foi neste sentido que o ilustre juiz Fernando César Zeni afirmou que energia elétrica é mercadoria e, portanto, direito disponível (Lei 10.488/04, artigo 4º parágrafos 5º e 7º). Destarte, a questão é econômica e não pública, sendo perfeitamente válida a cláusula compromissória. Ademais, a sociedade de economia mista sujeita-se às regras de mercado e à legislação contratual civil.

Saliente-se que a sociedade de economia mista não poderia, sob o manto da indisponibilidade do interesse público (por integrar a administração pública indireta), eximir-se do que legalmente firmara (pacta sunt servanda). Não há possibilidade sequer de anular administrativamente contratos que regulam relações da administração em caráter privado (“não pode a administração anular atos realizados sob o império do direito privado” – TAPR , Ap. C. 247.646-0, 7. CC, j. 11.02.04).

No caso referido e para obstaculizar as demandas arbitrais, valeu-se a sociedade de economia mista, indiretamente, de expediente em ação popular, obtendo liminar, que fora cassada por decisão em Agravo de Instrumento proposto pela empresa privada. Este julgado determina a preservação dos institutos jurídicos do direito da arbitragem em face dos demais dispositivos de direito material e processual. Em especial, entre outros, aduzindo que compete ao tribunal arbitral avaliar sua própria competência (artigo 8).

Além disso, o ilustre juiz, demonstrando sensibilidade e conhecimento, exara maravilhosa lição pedagógica ao aduzir: “por isso, afirmo que as alegações da [sociedade de economia mista] não são maduras, mas sim, inconvenientes, e visam, em última análise, impedir, por via oblíqua (a propalada ação popular), alterar todo o regime jurídico instituído pela Lei 9.307. Seria muito conveniente eleger um árbitro, pagar por isso (com dinheiro público, frise-se) e depois, de maneira simplória, por meio das ações judiciais, alegar que o direito discutido na arbitragem é indisponível (compra e venda ?!?!?) e, portanto, não pode prosseguir. Simplesmente ininteligível”.

Note-se, ademais, que a confirmação jurisprudencial em reconhecer definitivamente a capacidade da administração publica direta e indireta em firmar a convenção de arbitragem em contratos com particulares alinha-se com os contratos de concessão de serviços públicos da época imperial; no precedente denominado caso Lage; no caso de saneamento básico julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal em 1999; no famoso caso Lloyd Brasileiro v. Ivarans Rederi, sendo o extinto Lloyd uma empresa de economia mista; a Compagás, no Estado do Paraná etc.

Mas a lição pedagógica que fica deste acórdão, que já se inscreve como um leading case para os casos em que as sociedades de economia mista e a administração pública firmam contratos com cláusula de arbitragem é que “não se pode permitir que por vias oblíquas a Lei de Arbitragem seja reduzida à inutilidade”. E mais. Sua função pedagógica vale como uma advertência aos que pretendem obstaculizar o regular e irreversível papel que a arbitragem desempenha como forma de acesso à Justiça, no despertar do século XXI.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!