Assédio moral

Empresa é condenada por chamar secretária de burra

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4 de abril de 2006, 11h01

Numa relação de emprego, é normal que o empregado tenha seu direito à intimidade limitado pelo empregador. Mas não se pode admitir que esta limitação atinja a dignidade humana. Com este entendimento, a Justiça do trabalho condenou a fabricante de motos Kasinski, de São Paulo, a indenizar por assédio moral, uma empregada chamada pelo seu chefe de burra, idiota e incompetente. A indenização foi fixada em R$ 42 mil.

A decisão é da 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo). Cabe recurso.

A trabalhadora, que era secretária da fabricante de motocicletas ingressou com ação na 15ª Vara do Trabalho de São Paulo. Alegou que foi ofendida pelo chefe e as agressões verbais só pararam quando ela começou a chorar. Testemunhas afirmaram que viram a trabalhadora ser chamada de burra, idiota e incompetente.

Para se defender, a Kasinski negou as acusações da ex-empregada e apresentou uma testemunha, que trabalhava em local diferente, e, por isso, não presenciou os fatos.

A primeira instância acolheu o pedido da secretária e condenou a empresa a pagar indenização de R$ 42 mil. A fabricante e a trabalhadora recorreram ao TRT paulista. A empresa para reduzir o valor da reparação para R$ 2 mil e a secretaria para que a quantia fosse aumentada.

O juiz Valdir Florindo, relator do recurso, considerou que “não se discute que o empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. O que é inadmissível, contudo, é que a ação do empregador se amplie de maneira a ferir a dignidade da pessoa humana”.

“Foi exatamente o que ocorreu (…). A recorrente passou a submeter a empregada a situações de constrangimento e evidente discriminação, praticando ilícitos que atingem sua dignidade”, observou o relator.

A decisão da 6ª Turma foi unânime. Os juízes acompanharam o voto do relator e mantiveram a indenização por danos morais no valor de R$ 42 mil.

RO 01163.2004.015.02.00-0

Leia a íntegra da decisão

PROCESSO N°: 01163.2004.015.02.00-0 6 ª TURMA

RECURSO ORDINÁRIO

1ª RECORRENTE: KASINSKI FABRICADORA DE VEÍCULOS LTDA.

2ª RECORRENTE: MARCELA MARTINI DEL PICCHIA

RECORRIDAS: AS MESMAS

15ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO

EMENTA: DESRESPEITO AOS VALORES DA EMINENTE DIGNIDADE HUMANA. DANO MORAL CONFIGURADO.

É salutar que, na vida em sociedade, e na relação de emprego a questão não é diferente, estamos sujeitos a sofrer ou causar danos, sejam eles de ordem moral ou material, e nem por isso estamos imunes à devida reparação, hoje elevada à estatura constitucional.

Por seu turno, o trabalho e o lucro são preocupações de todos. Contudo, deve haver a prioridade da pessoa humana sobre o capital, sob pena de se desestimular a promoção humana de todos os que trabalharam e colaboraram para a eficiência do sucesso empresarial.

Ora, a dignidade humana é um bem juridicamente tutelado, que deve ser preservado e que deve prevalecer em detrimento dos interesses de maus empregadores. O que é preciso o empregador conciliar, é seu legítimo interesse em defesa do patrimônio, ao lado do indispensável respeito à dignidade do trabalhador.

Não se discute que o empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. O que é inadmissível, contudo, é que a ação do empregador se amplie de maneira a ferir a dignidade da pessoa humana.

Foi exatamente o que ocorreu nos autos em epígrafe, onde a reclamada passou a submeter a empregada a situações de constrangimento e evidente discriminação, praticando ilícitos que atingem sua dignidade.

As atitudes descritas nos autos revelam notória ofensa à personalidade da reclamante, seus sentimentos, sua honra, enfim, bens que integram a estrutura da personalidade do homem. E, por tais razões, há que ser mantida a condenação imposta pela sentença ora guerreada.

RELATÓRIO

Pedidos discriminados às fls. 03/18 e contestados às fls. 84/113.

A ação foi julgada procedente em parte às fls. 169/175. Declaratórios acolhidos parcialmente à fl. 186.


A reclamada interpõe recurso ordinário às fls. 188/199 aduzindo que a autora exercia cargo de confiança e não faz jus às horas extras. Pretende, ainda, a reforma do julgado no que concerne ao dano moral ou, sucessivamente, seja o mesmo rearbitrado em R$ 2.000,00.

Preparo às fls. 200/202.

A reclamante também recorre ordinariamente às fls. 203/217 argüindo, preliminarmente, cerceamento de defesa e prestação jurisdicional incompleta. No mérito, requer a majoração da indenização deferida a título de assédio moral, bem como pretende o reconhecimento do acúmulo de funções, horas extras, multa do artigo 477 Consolidado, integração do aviso prévio para efeito de anotação da CTPS, assistência judiciária e aplicação dos instrumentos normativos juntados à prefacial.

Contra-razões apresentadas pela reclamada às fls. 221/229 e pela reclamante às fls. 232/242.

O Ministério Público do Trabalho teve vista dos autos.

É o relatório, em síntese.

V O T O

1. Conheço de ambos os recursos ordinários, eis que presentes os pressupostos legais.

Em face das preliminares argüidas, o apelo da autora será primeiramente analisado. Frise-se, a propósito, que ao contrário do aduzido em contra-razões pela empresa, não há falar em intempestividade do apelo ordinário da empregada, já que a notificação de fl. 187, publicada no DOE em data de 23 de novembro de 2.004, abriu novo prazo para propositura do remédio processual interposto às fls. 203/218.

2. RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMANTE:

2.1 Cerceamento de defesa:

As questões acerca do exercício de cargo de confiança, bem como as concernentes ao labor extraordinário foram devidamente resolvidas por meio da prova oral, não havendo necessidade da juntada de outros documentos. Rejeito a presente preliminar.

2.2 Prestação jurisdicional incompleta:

Todas as matérias argüidas na prefacial e na peça contestatória foram devidamente enfrentadas pelo MM Juízo de origem. Eventual equívoco na análise do conjunto probatório enseja sua reforma, não sua nulidade. Rejeito.

2.3 Dano moral. Arbitramento:

A questão será apreciada juntamente com o apelo ordinário da ré.

2.4 Acúmulo de funções:

As funções descritas pela autora em depoimento pessoal (fl. 77), não evidenciam qualquer acúmulo de funções, mas apenas misteres próprios de secretária, para os quais a recorrente foi devidamente contratada. Nada a reformar.

2.5 Convenções Coletivas:

Nos termos da cláusula "B" do contrato de fl. 60, infere-se que a recorrida tem por objeto social a indústria, a fabricação, o comércio, importação e exportação de veículos, tais como : motocicletas, motonetas, ciclomotores, triciclos, quadriciclos e similares, bem como de peças, acessórios e a prestação de serviços em assistência técnica.

E, portanto, a mesma encontra-se representada pelo Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos no Estado de São Paulo. Mantenho.

2.6 Horas extras e noturnas:

A ausência de juntada de cartões de ponto, in casu, se justifica em face da alegação de cargo de confiança e, portanto, não tem o condão de ensejar o reconhecimento da jornada de trabalho declinada na prefacial.

As testemunhas ouvidas em juízo não laboravam de maneira ininterrupta com a recorrente e não comprovaram sobrelabor além daquele já reconhecido pela decisão de primeiro grau. Nego provimento.

2.7 Multa do artigo 477 Consolidado:

O documento de fl. 128 comprova que a ré efetuou o pagamento das verbas rescisórias, no importe de R$ 9.551,52, em data de 20 de fevereiro de 2.004. Pouco importa que referida transferência bancária tenha sido efetuada após o expediente bancário, às 16h23min, pois a dispensa se deu em 11 de fevereiro e, portanto, o dies a quo para a quitação do pagamento em apreço foi em 21 de fevereiro de 2.004.

Mantenho o indeferimento.

2.8 Anotação da CTPS. Integração do aviso prévio:

O aviso prévio, ainda que indenizado, integra o contrato de trabalho do empregado para todos os efeitos legais, a teor do disposto no § 1º do artigo 487 Consolidado. O mesmo raciocínio é válido para a anotação da CTPS, entendimento esse, aliás, que encontra respaldo na Orientação Jurisprudencial nº 82, da SDI-1, do C. TST. Reformo.


2.9 Justiça gratuita:

A empregada não foi condenada ao pagamento de qualquer encargo processual. Prejudicado o apelo, no particular.

3. RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA:

3.1 Cargo de confiança:

A ré aduziu em defesa e reitera em razões recursais, que a empregada estava inserida na exceção disposta no inciso II do artigo 62 Consolidado e que jamais esteve adstrita a qualquer controle de horário. Sem razão.

A incidência do empregado no inciso II do artigo em comento pressupõe que o mesmo tenha amplos poderes de mando e gestão, representando o empregador perante terceiros, gozando, portanto, de ampla liberdade de atuação, desde que seu salário seja superior em 40% ao seu salário base.

A recorrida, entretanto, jamais exerceu qualquer cargo de fidúcia, mas apenas serviços burocráticos de secretária de diretoria.

Nenhuma das testemunhas ouvidas em juízo comprovou que a reclamante dirigia a prestação de serviços de seus subordinados, tampouco que negociava diretamente com clientes e fornecedores acerca de preços, descontos, formas de pagamento… etc (fl. 95)

Evidente, portanto, que a empresa não se desvencilhou de seu encargo probatório, estando o julgado ora guerreado, no particular, em total consonância com os elementos trazidos a juízo no decorrer da instrução processual. Nego provimento.

3.2 Horas extras:

À fl. 171, o juízo de origem considerou que a recorrida elasteceu sua jornada de trabalho até por volta de 19h00 ou 21h00, com base nos depoimentos da primeira e segunda testemunhas. Reconheceu, ainda, que por duas ocasiões, em outubro de 2.003, houve sobrelabor até às 21h00/22h30min, em face da participação da autora em Feira de Automóvel.

Referidos fatos estão comprovados às fls. 79/80, sendo certo que as razões recursais não têm o condão de infirmar a prova oral colhida em audiência. Mantenho a condenação.

3.3 Dano moral:

A primeira testemunha da recorrida esclareceu à fl. 79 que nas vezes em que compareceu à reclamada em reuniões, foram feitos comentários sobre a reclamante no sentido de que a mesma era burra, idiota, incompetente que não sabe fazer nada certo, isto tanto na ausência da reclamante como tanto quando ela ingressava na sala; que os comentários foram feitos na presença do depoente, dos clientes, e advogada; que isto chegou a causar mal estar na reunião…; que quando o sr Kasinsky fez referência à depoente como burra, incompetente, idiota, se referia expressamente a dona Marcela…, que os comentários foram de repente razão pela qual o depoente ficou surpreso.

A segunda testemunha, também ouvida em juízo a convite da empregada, disse às fls. 79/80 que na primeira visita ao stand da Kasinsky a depoente viu o Sr Kasinsky saindo de sua sala no stand gritando no nome da reclamante, que a reclamante pediu licença e o sr Kasinsky começou a discutir com ela e a chamou de incompetente e algo assim, que foi uma situação constrangedora…; que a depoente retornou no dia seguinte para fazer como a reclamante estava, vez que no dia anterior havia chorado dada a circunstância

Já a única testemunha da recorrente laborou em espaço físico diferente da reclamante (fl. 80), e, portanto, não era presencial dos fatos.

Ora, nos moldes preconizados pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, são invioláveis o direito à liberdade e à igualdade, sendo assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, bem como o direito à indenização por dano moral, material ou a imagem.

É salutar que, na vida em sociedade, e na relação de emprego a questão não é diferente, estamos sujeitos a sofrer ou causar danos, sejam eles de ordem moral ou material, e nem por isso estamos imunes à devida reparação, hoje elevada à estatura constitucional.

Por seu turno, o trabalho e o lucro são preocupações de todos. Contudo, deve haver a prioridade da pessoa humana sobre o capital, sob pena de se desestimular a promoção humana de todos os que trabalharam e colaboraram para a eficiência do sucesso empresarial.

Ora, a dignidade humana é um bem juridicamente tutelado, que deve ser preservado e que deve prevalecer em detrimento dos interesses de maus empregadores. O que é preciso o empregador conciliar, é seu legítimo interesse em defesa do patrimônio, ao lado do indispensável respeito à dignidade do trabalhador.

Não se discute que o empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. O que é inadmissível, contudo, é que a ação do empregador se amplie de maneira a ferir a dignidade da pessoa humana.

Foi exatamente o que ocorreu nos autos em epígrafe, onde a recorrente passou a submeter a empregada a situações de constrangimento e evidente discriminação, praticando ilícitos que atingem sua dignidade.

As atitudes descritas nos autos revelam notória ofensa à personalidade da reclamante, seus sentimentos, sua honra, enfim, bens que integram a estrutura da personalidade do homem. E, por tais razões, há que ser mantida a condenação imposta pela sentença ora guerreada.

Por fim, reputo razoável o valor arbitrado pelo MM Juízo de origem – equivalente a dez salários da trabalhadora (R$ 42.420,00) – já que objetiva compensar o sofrimento e angústia evidentes, como revelados, mas em especial servir de sanção à reclamada para que não volte a praticar ilicitudes do gênero.

Nada a reformar.

C O N C L U S Ã O

Posto isso, rejeito as preliminares argüidas pelas partes e admito ambos os apelos. Nego provimento ao recurso ordinário da reclamada e dou provimento parcial ao recurso ordinário da reclamante para determinar que a ré retifique a CTPS da empregada, no prazo de dez dias contados do trânsito em julgado, integrando o aviso prévio indenizado como tempo de serviço, nos termos da fundamentação.

Mantenho o valor da condenação arbitrado pelo MM Juízo de origem.

É como voto.

VALDIR FLORINDO

Juiz Relator

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