Fraude atípica

STJ nega recurso dos irmãos Cravinhos contra fraude processual

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3 de abril de 2006, 18h52

O ministro Nilson Naves, do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao pedido de Agravo de Instrumento apresentado pelos irmãos Christian e Daniel Cravinhos contra sua pronúncia pelo crime de fraude processual. Os Cravinhos são réus confessos de, em companhia de Suzanne von Richthofen, terem assassinado os pais de Suzanne/

A incriminação por fraude processual [Código Penal, artigo 347 – “Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito”] se deu por terem, com a co-ré Suzanne von Richthofen, simulado a ocorrência de crime de latrocínio na residência dos pais de Suzanne.

Os irmãos alegam que “a tipicidade do crime determinado no artigo 347, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, não pode ser imputada aos recorrentes”, uma vez que “as modificações feitas pelos réus foram ineficazes e bem perceptíveis”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que não seria possível excluir o crime de fraude nessa fase processual em razão da atipicidade, porque a simulação não foi óbvia, levando a polícia, inicialmente, a tratar do caso como sendo latrocínio. Ou seja, a alteração da cena do crime produzida pelos acusados era apta a enganar. E que a análise de fundo do crime será feita pelos jurados no momento processual adequado.

Contra a decisão, tanto os Cravinhos quanto Suzanne interpuseram recurso especial, que não foi admitido. Da nova decisão, eles apresentaram o Agravo de Instrumento ao STJ, visando à apreciação pelo Tribunal Superior do cabimento do recurso especial.

O ministro Nilson Naves também entendeu não ser cabível a apreciação das alegações de atipicidade do crime de fraude, em razão de as modificações efetuadas serem ineficazes e bem perceptíveis. Para ele, a questão envolveria reexame de provas, o que não é permitido na instância especial.

Além disso, o ministro considerou que a atipicidade da conduta deve ser manifesta para permitir o afastamento da acusação na fase de pronúncia: “Havendo dúvida sobre a situação de fato, há de prevalecer, aqui, o princípio do ‘in dubio pro societate’, pois, por força do texto constitucional, é o Tribunal do Júri o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, cabendo a esse órgão dizer da configuração ou não daqueles delitos e dos que a eles forem conexos.”

“É indiferente que a conduta produza efetivamente algum resultado. A idoneidade da fraude e o fim ilícito em perspectiva são bastantes para que seja alcançada a consumação do delito”, completou o ministro Nilson Naves.

Ag 746459

Leia a íntegra da decisão

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 746.459 – SP (2006/0031837-1)

RELATOR : MINISTRO NILSON NAVES

AGRAVANTE : CHRISTIAN CRAVINHOS DE PAULA E SILVA

ADVOGADO : ADIB GERALDO JABUR E OUTROS

AGRAVANTE : DANIEL CRAVINHOS DE PAULA E SILVA

AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

AGRAVADO : MIGUEL ABDALLA NETO – ASSISTENTE DE

ACUSAÇÃO

ADVOGADO : ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO

DECISÃO

A 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por

maioria, negou provimento aos recursos em sentido estrito interpostos pelos réus contra a decisão de pronúncia. Do voto vencido, colho os seguintes trechos:

“Todavia, a meu ver, deve ser afastado o delito de fraude processual. Trata-se de infração subsidiária que na hipótese ocorreu logo após a prática dos crimes com o único propósito de não revelar quem eram seus autores. A simulação montada na residência para fazer crer que se tratasse de latrocínio, logo no primeiro momento já despertou dúvidas que levaram a polícia a tratar Suzane como objeto de investigações, ouvindo-a inúmeras vezes, sendo certo que o policial militar que atendeu a ocorrência, ouvido a fls. 141/144, relatou que percebeu estranha reação por parte da mesma e de Daniel ao tomarem ciência de que as vítimas haviam morrido, sendo certo que ‘as crianças não entraram em pânico, não quiseram entrar em casa, não questionaram o ocorrido (o porquê e o como), a menina mostrou sinal de lágrimas bem após o recebimento da notícia, cerca de meia hora; que o depoente exerce a função de policial militar há 6 anos na rua e nunca viu esse tipo de reação vindo de familiares em caso de homicídio’. A simulação da ocorrência de latrocínio foi ineficaz por todas as contradições apresentadas, e não seria cabível o delito de fraude processual em sede de investigação policial iniciante, pois é certo que o autor do delito não precisa deixar sua identificação após a prática do mesmo, sendo ônus da polícia e da Justiça Pública apurar quem é o criminoso.

Anota Guilherme de Souza Nucci:

‘121. Ressalva que inclui o inquérito: admitindo, expressamente, que a inovação possa ocorrer antes mesmo de ter início o processo penal, o tipo acolhe a possibilidade de a conduta dar-se durante a fase de investigação policial. Evidentemente, para concretização típica, torna-se indispensável aguardar o desfecho do inquérito, pois a inovação artificiosa há de produzir efeito em futuro processo penal’.


123. Autodefesa do acusado: cremos fazer parte do direito de autodefesa do réu a inovação de certas coisas (como a modificação das características da arma utilizada para o homicídio, por exemplo, para não ser apreendida), de determinados lugares (a arrumação da casa, lavando-se manchas de sangue, após o cometimento do delito) ou de pessoas (buscar alterar a própria feição para não ser reconhecido) ‘ (Código Penal Comentado, 3ª edição, RT, 2003, SP, pág. 930/931).”

À vista do voto vencido, foram opostos embargos infringentes, os quais foram rejeitados. Eis a fundamentação do acórdão: “Relembre-se, por necessário, que a demanda ainda se encontra na fase de pronúncia, onde o foco da acusação, à luz do disposto pelo artigo 408 do Código de Processo Penal, centra-se apenas na materialidade delitiva e nos indícios de autoria, que, no caso em exame, não são objetos de qualquer controvérsia.

São fundadas as suspeitas de que o local dos crimes foi inovado, principalmente o escritório da moradia das vítimas, conforme revelam as fotografias de fls. 558/563, tudo com vistas, segundo a versão apresentada pela embargante Suzane, a simular a ocorrência de um crime de natureza patrimonial.

Não é o caso, de outra parte, renovada a vênia, da pronta exclusão do crime previsto pelo artigo 347, parágrafo único, do Código Penal, por atipicidade da conduta dos embargantes.

Para essa exclusão, conforme entendimento que predomina sobre o tema, imperioso que o embuste empregado pelos embargantes fosse facilmente perceptível, ou seja, desmascarado de imediato por aqueles incumbidos pela investigação acerca da autoria dos crimes contra a vida.

A polícia, de início, tratou o caso como sendo latrocínio, conforme se observa do Boletim de Ocorrência de fls. 10/13, sendo lançada essa rotulação na autuação do inquérito instaurado (fls. 07), a qual, posteriormente, foi substituída por ‘duplo homicídio doloso’.

Ademais, o crime, ao menos por alguns dias, foi tratado como latrocínio, já que a conclusão de delito contra a vida somente veio à tona com a confissão policial dos embargantes.

Em tese, como já registrado, a alteração introduzida pelos embargantes no local do crime era apta a enganar, tanto é que não foi desvendada de plano pela polícia. Entretanto, a questão deverá ser apreciada com a necessária profundidade pelos jurados, uma vez que eventuais dúvidas existentes acerca da configuração ou não do referido delito, nesta fase procedimental, devem ser resolvidas, como é sabido, em prol da sociedade.”

Daí tanto os ora agravantes como a co-ré, Suzane Louise Von Richthofen, interpuseram recurso especial. Alegaram os irmãos Christian e Daniel Cravinhos de Paula e Silva, em seu recurso, que “a tipicidade do crime determinado no art. 347, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, não pode ser imputada aos recorrentes”, uma vez que “as modificações feitas pelos réus foram ineficazes e bem perceptíveis”.

Os recursos não foram admitidos na origem, mas apenas os

irmãos Cravinhos agravaram de referida decisão. A irresignação, porém, não merece prosperar.

É de ver que, inicialmente, as investigações policiais voltaram-se para a apuração do crime de latrocínio, o que demonstra, ao menos em princípio, que as alterações no cenário do crime tinham a capacidade de enganar.

Além disso, a doutrina penal é unânime em afirmar que, por se

tratar de crime formal, basta que a inovação artificiosa se complete e que ela seja apta a induzir alguém em erro. Contudo, para que o crime se consume, é indiferente que a conduta produza efetivamente algum resultado. A idoneidade da fraude e o fim ilícito em perspectiva são bastantes para que seja alcançada a consumação do delito. De mais a mais, a decisão de pronúncia não pode afastar o crime imputado aos réus pela acusação, salvo se for manifestamente atípica a conduta. Havendo dúvida sobre a situação de fato, há de prevalecer, aqui, o princípio do in dubio pro societate, pois, por força do texto constitucional, é o Tribunal do Júri o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, cabendo a esse órgão dizer da configuração ou não daqueles delitos e dos que a eles forem conexos. Aliás, conforme bem ressaltado pelo Presidente da Seção Criminal do Tribunal local, “verifica-se o interesse dos recorrentes quanto ao reexame da prova, o que é inadmissível na esfera extraordinária.

Nesse passo, cabe reproduzir a Súmula 07 do STJ: ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial'”. Nesse sentido também se firmou a jurisprudência do Superior Tribunal; confiram-se, a propósito, os seguintes julgados:

“3. Não se faz necessário um juízo de certeza na fase de pronúncia, onde serão admitidas todas as acusações que tenham ao menos probabilidade de procedência, bastando apenas restar caracterizada a existência de indícios suficientes de autoria, a teor do disposto no art. 408 do Código de Processo Penal.


4. De qualquer forma, in casu, a verificação quanto à insuficiência dos indícios de autoria implicaria, necessariamente, no reexame da matéria fático-probatória constante dos autos, o que, como é sabido, afigura-se impossível na via estreita do recurso especial, a teor do disposto no verbete sumular n.º 7 deste Tribunal Superior.

5. Recursos especiais não conhecidos.” (REsp-704.938, Ministra Laurita Vaz, DJ de 2.5.05.)

“Processual Penal. Recurso especial. Homicídio doloso. Absolvição

sumária.

I – Na fase de pronúncia, reconhecida a materialidade do delito, qualquer questionamento ou ambigüidade faz incidir a regra do brocardo in dúbio pro societate .

II – As justificativas só podem ser admitidas, no iudicium accusationis , quando evidentes e inquestionáveis. Reconhecidos aspectos essenciais polêmicos, no próprio voto do acórdão atacado (adotado por maioria), a absolvição combatida se apresenta inadequada ao disposto nos arts. 408 e 411 do CPP. (Precedentes).

Recurso provido.” (REsp-485.775, Ministro Felix Fischer, DJ de 20.10.03.)

“Processual Penal. Pronúncia. Absolvição sumária. Reexame de provas.

Súmula 7-STJ.

1. Aferir se há, no caso concreto, aprofundado exame das provas, para concluir se resta violado o art. 408 do CPP e dar, em conseqüência, validade ao brocardo in dubio pro societate , é tarefa que demanda incursão na seara fático-probatória, não condizente com a via especial, a teor do verbete sumular nº 7-STJ, vedando, inclusive, na espécie, a verificação da incidência das hipóteses previstas no art. 411 do CPP.

3. Recurso não conhecido.” (REsp-225.376, Ministro Fernando Gonçalves, DJ de 25.11.02.)

“Processual Penal. Alegação de nulidade do acórdão. Substituição de desembargador por juiz de direito substituto de segundo grau. Possibilidade. Sentença de pronúncia. Limites. Incursão no mérito da acusação. Nulidade. Pretensão de absolvição sumária. Questão de fato. Súmula n. 07/STJ.

Segundo a moldura legal do art. 408, do Código de Processo Penal, a sentença de pronúncia consubstancia mero juízo de admissibilidade da acusação, em que se exige apenas o convencimento da prova material do crime e da presença de indícios de autoria, sendo descabida que se demonstre nesse édito judicial, de modo incontroverso, quem seja o autor do delito.

Nos crimes dolosos contra a vida, o juízo de certeza sobre a autoria, imprescindível apenas para a condenação, é da competência exclusiva do Tribunal do Júri, seu juízo natural, sendo vedado ao juízo singular, ao proferir a sentença de pronúncia, fazer longas incursões sobre a prova da autoria, susceptíveis de influenciar o corpo de jurados, sendo certo que nessa fase do processo despreza-se a clássica idéia do in dubio pro reo, sobrelevando o princípio do in dubio pro societate .

As alegações de que o réu agiu sob a excludente de ilicitude da legítima defesa, sendo inexistente o animus necandi , situam-se fora do alcance do recurso especial, que não se presta para reexame de provas, como consolidado no entendimento expresso na Súmula nº 07/STJ.

Recurso especial não conhecido.” (REsp-310.936, Ministro Vicente Leal,DJ de 28.10.02.) Ante o exposto, nego provimento ao agravo.

Publique-se.

Brasília, 30 de março de 2006.

Ministro Nilson Naves

Relator

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