Consultor Jurídico

STF suspende ação de juiz contra advogada por desacato

26 de setembro de 2005, 19h01

Por Leonardo Fuhrmann

imprimir

O ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu uma liminar que suspendeu a ação criminal contra a advogada Alessandra Silva Tamer Soares, acusada pelo juiz da 4ª Vara Criminal Central de São Paulo de desacato. A tramitação da ação penal, pela decisão, ficará suspensa até o julgamento de mérito do Habeas Corpus.

Alessandra discutiu com o juiz nos corredores do fórum depois que ele determinou que fossem extraídas cópias dos autos para apuração do crime de falso testemunho por parte das testemunhas e uma suposta participação da advogada na coação destas testemunhas.

Segundo o termo circunstanciado, a advogada teria dito ao juiz que ele “estava brincando com as pessoas” e que ela “iria procurar o lado dela em defesa de seus interesses”. O pedido de Habeas Corpus havia sido negado pela 2ª Turma do Colégio Recursal Criminal do Estado de São Paulo.

Para o ministro, a jurisprudência daquela corte é clara no sentido de que “o elemento subjetivo do desacato é a vontade livre e consciente de agir com a finalidade de desprestigiar a função pública do ofendido”.

Na defesa da advogada, a Secção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil alegou que apesar das expressões depreciativas que foram usadas por Alessandra, tais termos só “demonstraram a revolta e indignação momentânea da advogada em razão da injusta acusação de participação em supostos crimes de coação no curso do processo ou falso testemunho”.

Segundo o advogado Renato Martins, nomeado pela OAB-SP para defender Alessandra, o problema aconteceu porque as testemunhas não reconheceram em juízo os acusados de participar de um assalto. Os réus haviam sido reconhecidos pelas testemunhas na polícia.

Leia a integra da inicial do pedido de Habeas Corpus

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Presidente do Egrégio Colégio Recursal Criminal da Capital,

Ordem dos Advogados do Brasil Secção São Paulo, neste ato representada pelos advogados Claudia Maria Soncini Bernasconi, Renato Marques Martins e Otávio Margonari Russo, devidamente qualificados nas procurações anexas, respeitosamente vem à presença deste Egrégio Colégio Recursal, com fulcro no art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição Federal da República e nos artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal, impetrar ação de

habeas-corpus

com pedido de liminar, em favor de Alessandra Silva Tamer Soares, advogada regularmente inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil Secção São Paulo sob o nº 204.569, ilegalmente coagida nos autos do procedimento criminal nº 050.04.070609-5, cujo trâmite se dá perante o Juizado Especial Criminal da Capital, conforme demonstrar-se-á a seguir.

Dos fatos.

A paciente é advogada e como tal defendeu o réu Eduardo dos Santos Rodrigues, acusado de tentativa de roubo nos autos da ação penal nº 050.04.003446-1, cujo trâmite se deu perante o meritíssimo Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca da Capital.

Este habeas corpus não tem como escopo a tentativa de roubo apurada naqueles autos.

Entretanto, já decidiu o egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, nos autos da Apelação nº 266.001, cujo voto é da lavra do eminente Desembargador Jarbas Mazzoni que, é “mister que se tenha em conta as circunstâncias que o levaram a proferir as expressões tidas como ofensivas.”[1]

Assim, imperioso historiar, mesmo que sucintamente, aqueles acontecimentos ¾ posto que indissociáveis do suposto desacato do qual é injustamente acusada a paciente ¾, de forma a permitir ao julgador uma melhor compreensão da tese jurídica que ora se quer ver acolhida. Pois veja-se.

Em síntese, consta daqueles autos que o réu Eduardo, juntamente com o adolescente Rodrigo, teriam subtraído um veículo Kombi da vítima Valdomiro Pereira Lima Neto, a qual realizava consertos na rede elétrica juntamente com as testemunhas Daniel José de Souza, Daniel Moreira Cavalheiro e Fábio de Souza Ferreira.


Acionada a polícia, momentos depois da subtração, teria o réu Eduardo sido preso, juntamente com o menor Rodrigo, em posse da res furtiva, ocasião em que o inimputável teria realizado disparo de arma de fogo contra os policiais.

Na fase extrajudicial, vítima e testemunhas reconheceram “sem sombra de dúvidas” Eduardo e Rodrigo como os autores do crime.

O réu Eduardo já no flagrante nega os fatos, apresentando versão de que teria sido contratado pelo menor para retirar o motor do veículo furtado, vez que mecânico de profissão. O réu Eduardo ainda sustenta em seu interrogatório extrajudicial, que teria sido apontado pelos policiais como o autor do roubo em razão de já ter passagem pela polícia. Tal versão foi confirmada pelo inimputável ainda e já no flagrante.

Contudo, em juízo, vítima e testemunhas de acusação não só não reconheceram o réu Eduardo como sendo o autor do crime como negaram veementemente tivessem-no reconhecido na Delegacia de Polícia, absolutamente ao contrário do quanto constante de seus depoimentos no Auto de Prisão em Flagrante.

Em síntese, vítima e testemunhas disseram ter procurado não olhar para o rosto dos assaltantes, de certo por medo. Disseram que na delegacia dois presos de cabeça baixa foram apresentados como os autores do crime, mas que não tinham certeza suficiente para o reconhecimento. De qualquer forma, a autoridade policial preparou um “modelo” de depoimento para todos, os quais foram assinados sem a devida leitura.

Há registro de incidente na audiência. Uma das testemunhas, primeiro ouvida equivocadamente como vítima, foi vista conversando com uma pessoa do lado fora da sala de audiências. Como tal pessoa era cunhada do réu, acusação e magistrado decidiram ouvir de novo tal pessoa, desta vez como testemunha, ocasião em que ratificou que não reconhecia o réu Eduardo como o autor do crime, ao contrário do que havia constado na fase extrajudicial.

Ao sentenciar aquele processo, o Magistrado determinou a extração de cópias e remessa à Delegacia de Polícia para instauração de inquérito policial visando a apuração dos crimes de coação no curso do processo e falso testemunho eventualmente praticados pela vítima e testemunhas, “sem prejuízo de ser apurada a eventual participação ou não da advogada Dra. Alessandra Silva Tamer Soares, OAB/SP nº 204.569, na prática dos apontados ilícitos, além de outros que possam ser verificados no curso das investigações.” g.n..

A advogada e ora paciente dirigiu-se ao respectivo cartório para tomar ciência da respeitável Sentença. Foi surpreendida com a determinação judicial de que fosse investigada em inquérito policial pela prática dos crimes de coação no curso do processo e falso testemunho, o que lhe causou revolta e indignação ante a injustiça da medida.

Transtornada, perturbada ao deparar-se com a injusta acusação de prática de crimes, a paciente encontrou o Magistrado no corredor do fórum, momento em que manifestou sua indignação, dizendo ao juiz que ele “estava brincando com a vida das pessoas na sua sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

Tal manifestação fora entendida pelo magistrado como desrespeitosa à sua função, dando azo à lavratura de Termo Circunstanciado por desacato objeto deste writ, nos seguintes moldes:

“Às 14:30 horas, do dia 22 de setembro de 2004, eu me encontrava exercendo as minhas funções como magistrado junto à 4ª Vara Criminal Central da Capital, quando me retirei para me dirigir até o setor de armas e objetos apreendidos do DIPO, quando tive a minha atenção despertada pela advogada de nome Alessandra Silva Tamer Soares, OAB/SP nº 204.569, a qual se dizia inconformada com uma sentença minha, onde determinei que se extraíssem cópias para a apuração de eventual crime de falso testemunho por parte de testemunhas e eventual participação da advogada. Na oportunidade, tentei acalmar a parte, mas ela alterou o seu tom de voz e, no meio do corredor, onde havia várias pessoas passando, passou a fazer críticas contra a minha pessoa, dizendo que eu estava ‘brincando com as pessoas’ na minha sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses. Em face do tom de voz desrespeitoso e do local em que o fato ocorreu, ou seja, nos corredores do Fórum, mandei que a advogada parasse, pois do contrário iria dar voz de prisão a ela. A patrona disse que se eu a estava prendendo eu estava cometendo um abuso de autoridade, momento em que dei voz de prisão e solicitei o concurso de policiais militares que atuavam na segurança interna do Fórum. na presença dos policiais, a patrona voltou a repetir a frase desrespeitosa de que eu estava brincando com as pessoas através da minha sentença. A advogada foi convidada até minha sala…”, g.n..


Eis a síntese necessária dos fatos.

Do direito.

Do Cabimento/ Da análise de prova em habeas corpus

Inicialmente, cumpre colacionar aresto do Supremo Tribunal Federal avalizando o habeas corpus como meio idôneo para a verificação da ocorrência específica de crime de desacato, quando a análise puder se fundar nos fatos narrados na própria denúncia:

“No habeas corpus não se torna possível o exame aprofundado de provas para que se possa verificar a inexistência de justa causa para a ação penal. Entretanto, é possível, ante os próprios termos da peça acusatória, examinar-se se nela se contém a exposição de fatos que possam constituir crime.”[2]

Mutatis mutandis, no presente caso deve ser feito o mesmo com o Termo Circunstanciado acima transcrito, lavrado pela douta autoridade vítima, no qual consta que a paciente teria dito ao magistrado vítima que ele “estaria brincando com a vida das pessoas na sua sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

Pois bem. Não agiu a paciente nem com o dolo nem com o ânimo calmo exigidos para a configuração do delito, conforme se vê da remansosa jurisprudência abaixo colacionada.

O desacato tem como elemento subjetivo o dolo específico consistente na intenção ultrajante, no propósito de depreciar, vexar, desprestigiar a função pública do ofendido.

Para Magalhães Noronha: “Não existe desacato sem a intenção de ofender ou desprestigiar a função. … não constitui o crime a crítica ou censura justa, conquanto incisiva. Não comete o crime quem, embora de modo enérgico, mas não ultrajante, diz a funcionário que, agindo daquela maneira, ele está errado. Condizem perfeitamente com os interesses sociais e com as finalidades da própria administração, a fiscalização e crítica do indivíduo e da coletividade.”[3]

É comum testemunhas retratarem-se em Juízo, onde encontram ou pelo menos deveriam encontrar a autoridade garantidora do magistrado, longe da pressão coercitiva ¾ quando não torturadora ¾ da polícia e ante ao contraditório exercido pela defesa e acusação.

Não é porque o magistrado suspeita da ocorrência de falso testemunho que, necessariamente, a advogada militante nos autos participou de tal crime. Não havendo nenhum mínimo elemento sequer apontando o envolvimento da causídica nos supostos fatos, falta justa causa para sua submissão a inquérito policial, sendo, portanto, tal determinação, ilícita.

Assim, a manifestação de sua indignação contra a injusta acusação feita pelo magistrado revela contornos de uma legítima defesa da honra pessoal e profissional da advogada. Não revelam, de nenhuma forma, intenção de desprestigiar o cargo.

Mesmo que se possa tomar as expressões feitas pela paciente como depreciativas, posto que esta teria dito que o magistrado estaria “brincando” com a vida das pessoas na sua sentença, não eram dotadas da intenção de ofender o cargo em questão, apenas demonstraram a revolta e indignação momentânea da advogada em razão da injusta acusação de participação em supostos crimes de coação no curso do processo ou falso testemunho.

E mesmo admitindo-se que a paciente tenha se pronunciado de forma contundente, exsurge nítido que sua única intenção era repelir a injusta acusação de prática de crimes feita contra ela pelo magistrado.


A absoluta falta de dolo fica clara quando a paciente declara “que iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

Nélson Hungria: “Do mesmo modo deve ser considerada uma censura justa, embora em têrmos enérgicos ou repassados de certa acritude (pôsto que não injuriosos ou em altos brados). Outrossim, não haverá crime quando o funcionário tenha dado causa ao ultraje, de modo que êste se apresente como uma repulsa justificada, tal como no caso de resistência à execução de ordens ilegais ou executadas com desnecessária violência.”[4]

Nesse sentido, a jurisprudência é pacífica:

Indispensável à caracterização de desacato o propósito do agente de desprestigiar, ofender, afrontar ou melindrar a autoridade pública. Assim não se vislumbra o delito em justa manifestação de desagrado do agente, ante atitude imponderada e ilegal do ofendido.” TJSP – AC – Rel. Celso Lomongi in RJTJSP 126/474.

O agente que se utiliza de expressões depreciativas, mas sem que em sua atitude se encontre o dolo de desacatar, não pratica o crime do art. 331 do CP, pois necessária seria a intenção de ultrajar, humilhar ou denegrir a imagem de policiais enquanto exercem a função pública” TACRIM-SP – 13ª C. – AC 1.012.853 – Rel. Teixeira de Freitas – j. 30.7.1996.

Há, por outro lado, que se trazer à baila o estado emocional em que se encontrava a paciente quando teve notícia das acusações feitas pelo magistrado na sentença:

“Após tomar conhecimento da sentença, procurei por duas vezes tentar falar com o magistrado em sua sala, mas foi alegado pela auxiliar judiciária que não era possível, visto que o juiz estava em audiência. Posteriormente, encontrei o magistrado junto ao elevador no corredor do Fórum, e lá disse que manifestava naquele momento a minha indignação com relação à sentença em que ele condenou meu cliente e mandou extrair cópias para apurar através de inquérito policial eventual crime de falso testemunho praticado por algumas testemunhas, bem como eventual participação da patrona. Nesse momento eu estava muito nervosa, já chorando, e disse que na sentença o Juiz estaria brincando com a vida das pessoas. … Finalmente, quero que conste que estive sempre muito nervosa durante todo o ato, chorando e transtornada. …”.

Ninguém há de negar que a injusta determinação para que uma advogada seja submetida às agruras de uma investigação policial tem o condão de mexer com o estado emocional do profissional, ainda mais quando tal determinação é desprovida de qualquer elemento que possa fundamentá-la, sendo, portanto, absolutamente ilegal.

Destarte, é de se reconhecer que, ante à inolvidável ofensa praticada contra a honra da profissional advogada, compreensível que a paciente, a qual encontrava-se em estado emocional abalado, tenha manifestado ao douto Magistrado seu inconformismo, sua revolta, sua defesa ao dizer que este “estava brincando com a vida das pessoas na sua sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

Boissonade, citado por Galdino Siqueira: “É preciso que a intenção de ofender seja certa: a vivacidade, a cólera, a falta de educação, a embriaguez, podem fazer pronunciar palavras mal soantes, sem intenção de injuriar.”[5], g.n..

Trata-se exatamente do caso dos autos. Nesse sentido também uníssona a jurisprudência:

“Se o agente, ao proferir palavra malsonante, apenas dá mostra de vivacidade de temperamento e, mesmo, incontinência de linguagem, ou simples falta de controle emocional, não se pode reconhecer em sua conduta o dolo específico do desacato.” TJSP – AC – Rel. Camargo Sampaio in RT 542/338.


“Não se pode enxergar o ânimo de desacatar na atitude de quem, sob forte carga de nervosismo e exaltação, profere palavras ofensivas contra a autoridade policial” TJSP – AC – Rel Camargo Sampaio in RT 526/356.

“O crime de desacato exige a intenção de amesquinhar o funcionário público, mediante a peculiar motivação de desprestigiá-lo enquanto tal, visando a quebra da dignidade de seu cargo. Paciente que se encontra fora de si, transtornado, não age com a peculiar motivação identificadora do dolo, atípico o fato a ele imputado.” TACRIM-SP – HC – Rel. Marrey Neto – RJD 3/185.

“Para a configuração do crime de desacato, é de rigor o dolo específico, isto é, a vontade de ultrajar e de desprestigiar a função pública exercida pelo ofendido, não bastando para tanto a mera enunciação de palavras ofensivas, produtos de desabafo ou de revolta momentânea”[6]

Merecedor de integral transcrição é o venerando acórdão do egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, em caso análogo envolvendo advogado:

“Cuida-se de uma lamentável incidente havido na Vara Distrital de Vila Maria, envolvendo a apelada, advogada postulante em causa própria numa ação cível, que tinha curso perante o resp. Juízo da 1ª Vara e o nobre Magistrado Titular da Vara – Dr. José Gastão Santos.

Os antecedentes do caso podem ser assim compendiados: há anos, tramitava pela Vara um feito cível do interesse da recorrida. O Juiz Titular da Vara a havia assumido há pouco tempo e não tivera nenhuma responsabilidade pelo moroso andamento do processo.

Mas a ré, desanimada com o andar lento da ação, fez uma reclamação, ao que consta verbal, perante o MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria, pedindo providências.

E o Magistrado que a atendeu na Corregedoria comunicou-se com a vítima, dando-lhe conta da reclamação e solicitando, inclusive, que fizesse andar o referido processo, dentro do possível.

As coisas estavam nesse pé: de um lado, a advogada, agastada com o andamento lento de sua ação; de outro e com bastante razão o nobre Magistrado que, não tendo nenhuma responsabilidade pelo atraso, viu-se reclamado perante a Corregedoria da Justiça.

No dia dos fatos, a advogada foi despachar com o Juiz. Esperou o término ou intervalo de uma audiência e levou sua petição a despacho.

Houve troca de palavras, posto que gentis, contendo certo ressentimento entre a causídica e o Magistrado. Este chegou a lhe indagar o porquê da reclamação à Corregedoria, quando se a interessada conversasse com ele, a questão poderia ser solucionada de modo mais adequado.

Ao cabo daquele diálogo, que não chegou a ser inamistoso, mas trazia em si grande carga de agastamento, o Dr. Juiz de Direito pediu à ré que exibisse sua Carteira de Advogado, com a inscrição da OAB.

A apelada, revirando as vestes, disse que havia deixado sua identidade profissional no Cartório, isto é, lá embaixo…. e saiu. Ao fazê-lo, teria dito se não havia necessidade de exibir o seu CIC, RG e atestado de vacina….

Lobrigou, em tais expressões, o nobre Magistrado o delito de ‘desacato’ e requisitou à Polícia a instauração de inquérito policial.

Os fatos vêm bem descritos e a prova converge a confirmá-los.


A questão que se põe é saber se, com o uso de tais expressões, teria a ré desacatado o nobre Magistrado.

Eis a indagação a que a resp. sentença deu resposta negativa.

omissis

A ofensa, para constituir desacato, é preciso que redunde (quer por palavra ou ato) em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário (NELSON HUNGRIA, ‘Comentários ao Código Penal’, vol. 9/421).

Mas, para que se tipifique o delito é mister a presença do elemento subjetivo, isto é, a intenção ultrajante (dolo específico), propósito de depreciar ou vexar.

Na apreciação do caso posto em julgamento não se vê a intenção, o propósito da ré em ultrajar o Magistrado.

Não teve a acusada o intuito de vexar ou desprestigiar a figura respeitável do nobre Magistrado.

Teve, isso sim, um gesto de desabafo, talvez revelador de seu estado de espírito e de suas condições pessoais.

A acusada é viúva e, com certeza, se formou já meio idosa. As dificuldades no exercício da respeitável profissão de advogado são inúmeras e isso não é segredo para ninguém.

Desaprumou-se a acusada. Talvez tenha sido desapurada, demonstrando falta de elegância.

Ás vezes há um falso conceito de que a incivilidade, a rudeza, o desaire por parte do causídico é símbolo de coragem ou independência.

A coragem é coisa muito diversa. Ser combativo, é não ter medo de agradar, mas sem ser preciso ser ofensivo. A independência da nobre classe dos advogados, por todos louvada, não se traduz em gestos de inconveniência.

Mas, ainda que se tenha que aquelas expressões da acusada pudessem revelar um mal entender sobre como deveria agir, não tiveram suas palavras, malsonantes, por certo, o objetivo de ferir a dignidade do Magistrado.

Enfim, um ato impensado, de inopino, de desabafo.

Desafogou, isso sim, a ré, com aquelas palavras, um contido sufoco de tantos e tantos contratempos.

O ofendido, à evidência, não era e nunca foi responsável pelos percalços da ré, mas a conduta da recorrida há de ser examinada dentro de um contexto, não sendo razoável vê-lo apenas sobre a ocorrência, examinada em si, como ato isolado.

Enfim, repisando, faltou, na conduta da ré, para a tipificação do delito de desacato, o elemento subjetivo.

Não basta, por certo, a vontade livre e conscientemente de proferir palavra, ainda que num exame mais rigoroso, injuriosa. Impõe-se a presença daquele elemento subjetivo do tipo referente ao especial fim de agir (com a finalidade de desprestigiar a função pública do ofendido).

A ré não teve essa intenção.

Já se decidiu (RT, vol. 531/312), por acórdãos do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo não configurar desacato um desabafo momentâneo, ou o proferido em momento de exaltação e nervosismo. (RT, vol. 526/357).

O resp. parecer da d. Procuradoria Geral da Justiça, opinando pela manutenção da resp. sentença, observou: ‘é preciso que a intenção seja certa …’.

A bem lançada sentença do ilustre Dr. Fábio Amaral Vieira merece subsistir.


Nega-se provimento.” [7]

Isso posto é o presente habeas corpus para requerer dignem-se vossas Excelências determinar o trancamento do procedimento criminal instaurado contra a paciente pelo crime de desacato por falta de justa causa.

Da medida liminar.

A fumaça do bom direito encontra-se demonstrada pelos argumentos acima expostos. Demonstrou-se, com apoio na mais consentânea doutrina e balizada jurisprudência que não há justa causa para que a paciente seja submetida à perseguição criminal.

A natural demora até o julgamento final do habeas corpus obrigará a paciente submeter-se à perseguição criminal, ensejando a concessão de medida liminar apenas e tão somente para sustar o curso do procedimento até julgamento final do writ.

Do pedido.

Isso posto, requer, ao final, dignem-se vossas Excelências conceder esta ordem de habeas corpus para determinar o trancamento do procedimento criminal instaurado contra a paciente por suposta prática de crime de desacato.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 11 de março de 2005.

Claudia M. S. Bernasconi — OAB/SP nº 126.497

Renato M. Martins — OAB/SP nº 145.976

Otávio M. Russo — OAB/SP nº195.101

Notas


[1] in JTACrSP 73/331.

[2] RHC 66.686-8-SP-j.4.10.88, Rel. Min. Aldir Passarinho – DJU 26.10.90 in RT 668/361,g.n..

[3] E. Magalhães Noronha in Direito Penal, SP, Saraiva, 1888-1992, p. 310-311, g.n.

[4] Autor citado in Comentários ao CP, art. 331, p. 425/426, g.n..

[5] Autor citado in Cod. penal, v. 2, p. 125.

[6] TACrSP Ap 319.117, JUTACRIM, Lex, vol. 75/342.

[7] JTACrSP 71, págs 268/269