Homenagem a Baleeiro

A política é a conquista do poder a serviço do bem comum

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22 de setembro de 2005, 19h51

A credulidade dos humildes é propensa a acreditar mais fàcilmente em quem lhes promete o impossível, o irrealizável sem fadigas do que naqueles que lhes explicam que as realizações governamentais estão adstritas às limitações do possível e ao preço de programas de rígida austeridade”.

As palavras acima, se proferidas no dias atuais, reclamariam aplausos ao seu autor. Imaginá-las ditas na década de 50 torna-as bem mais contundentes. Foi esta a sensação que pairou sobre o plenário do Supremo Tribunal Federal, hoje, quando o ministro Celso de Mello fez seu discurso em homenagem aos cem anos de nascimento do ministro Aliomar Baleeiro.

Ao chamar a atenção para as palavras de Baleeiro, Celso de Mello destacou: “Esta cerimônia, senhor presidente, considerada a significativa concreção deste momento especial, revela-se impregnada de um sentido mais profundo do que o da mera relembrança burocrática da figura daquele cuja memória se homenageia.”

Celso de Mello lembrou, em várias passagens, a defesa de homenageado em relação a difíceis momentos políticos vividos pelo Brasil – o que remeteu, de forma inevitável aos dias atuais.

“A política é a conquista do poder a serviço do bem comum. Logo, fica excluída a gula do poder para gozo próprio, ou de sua família ou classe. Se ao político, no interesse comum, é defeso o emprego de meios imorais, por mais digno que seja o fim coletivo a alcançar-se, que nome terá quem, sob a capa da política, esconde apenas o apetite depravado de usufruir as vantagens do poder, monopolizando-o, degradando-o a instrumento de opressão e abastardamento de seu país? Esse é apenas o delinqüente da política. Será tratado como tal se malograr-se o crime”, citou Celso.

Outro momento em que se demonstrou a atualidade de Aliomar Baleeiro diz respeito á construção de mitos: “O drama do Brasil em nossos dias reside na persistência ou restauração de certos mitos, que, nascidos e alimentados por longa e dispendiosa propaganda às custas dos cofres públicos, obliteraram o senso de julgamento das massas”.

Celso de Mello recordou, ainda, a intransigente defesa das liberdades feita pelo homenageado. Em especial, quando da apreensão de 231 mil exemplares da revista Realidade, em razão de um suposto conteúdo pornográfico.

“A independência do Ministro Aliomar Baleeiro, como juiz desta Corte Suprema, revelou-se fundamental, em tempos sombrios e em momentos de liberdades declinantes, na luta pela preservação dos direitos básicos das pessoas e dos cidadãos, como se registrou no episódio da arbitrária apreensão, pelo Poder Público, sob alegação de pornografia e obscenidade, de 231.680 exemplares da revista ‘Realidade’, quando, em memorável julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em 1968, no qual se discutia a questão da obscenidade e da pornografia, o Ministro Alimoar concedeu mandado de segurança para ordenar a imediata liberação da revista”, lembrou Celso.

O discurso fez referências ao trabalho de Baleeiro como parlamentar e trouxe vários testemunhos de contemporâneos do ministro falecido a seu respeito, como o de Josaph Marinho: “Forrado dessas idéias, o Ministro advindo das lutas da vida pública realçou sempre o papel político do Supremo Tribunal Federal. Não pretendia, evidentemente, envolvê-lo nas divergências partidárias, ou no apoio ou na oposição aos governos. Visava a assegurar-lhe a posição eminente, que deve ter, no mecanismo do regime. ‘É que nestes tribunais supremos, – como disse João Mangabeira na saudação a Herculano de Freitas – não raro se deve aliar num julgamento o critério do Juiz com a visão do estadista, a lógica do magistrado com o descortino do político”.

Leia a íntegra do discurso do ministro Celso de Mello

O Supremo Tribunal Federal, uma vez mais, cumpre, com fiel observância de uma tradição que lhe vem dos primeiros dias, o solene ritual imposto pela justa necessidade de celebrar e de homenagear a memória de um eminente Magistrado, membro integrante desta Corte, cujo primeiro centenário de nascimento constitui a razão de ser desta cerimônia.


Esta cerimônia, Senhor Presidente, considerada a significativa concreção deste momento especial, revela-se impregnada de um sentido mais profundo do que o da mera relembrança burocrática da figura daquele cuja memória se homenageia.

É que esta reunião plenária assume um significado mais denso, que exterioriza, na expressividade dos atos que solenizam este encontro, de que co-participam Magistrados, membros do Ministério Público e Advogados, o reconhecimento e a homenagem que a Suprema Corte do Brasil presta à figura do saudoso Ministro ALIOMAR DE ANDRADE BALEEIRO, que, aqui, como em todas as outras funções que exerceu, serviu, ao seu país, com dignidade, competência, talento e probidade.

Este momento, portanto, é pleno de significações. E porque assim o é, pretendo, Senhor Presidente, para além de algumas breves considerações de ordem pessoal, recordar o Ministro ALIOMAR BALEEIRO em suas próprias palavras, ouvindo, ainda, as opiniões de seus contemporâneos, para que, assim, possamos ter a visão concreta da pessoa integral que foi essa exemplar figura de homem público.

Lembro-me, Senhor Presidente, que foi numa certa manhã de inverno de 1968, quando era eu ainda estudante de Direito, na velha e sempre nova Academia de São Paulo, na histórica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que tive em mãos um livro extremamente precioso escrito pelo Ministro ALIOMAR BALEEIRO sobre o Supremo Tribunal Federal.

Recordo-me, ainda, com muita nitidez, das palavras com que o Ministro ALIOMAR BALEEIRO justificou a razão de ser dessa obra intitulada “O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido”.

Disse ele, Senhor Presidente, na introdução desse livro:

Dos longes do passado remoto, ligo o Supremo Tribunal Federal às reminiscências de meus 13 anos de idade, na Bahia. Minha velha cidade entrara em ebulição com a campanha presidencial de RUI BARBOSA e de EPITÁCIO PESSOA, em 1919. Tombaram gravemente feridos à bala, num comício, MEDEIROS NETTO e SIMÕES FILHO. PEDRO LAGO escapou, mas sofreu violências outras dos sicários. As vítimas eram amigos políticos e pessoais de meu pai e de meu avô. O meu irmão mais velho, ainda estudante de Direito, trabalhava no jornal oposicionista, alvo das ameaças policiais. Tudo isso aqueceu a atmosfera em nossa casa. Aliás, a Bahia tôda ardia em febre partidária. Para os ruistas, tratava-se dum apostolado cívico e não duma querela de facções.

Temia-se pela vida do próprio RUI quando viesse a fim de pronunciar a conferência anunciada para breve. Suspeitava-se também do govêrno da República, porque afrontosamente mandara a fôrça federal desagravar a bandeira do edifício dos Correios, sob pretexto de que recebera ultraje dos partidários do candidato baiano.

Nesse clima eletrizado, caiu como um raio a notícia de que o Supremo Tribunal Federal concedera a RUI e seus correligionários ordem de ‘habeas corpus’, para que se pudessem locomover, e reunir em comício. Notou-se logo a mudança de atitude da polícia local, que, murcha, abandonou a atitude de provocação. RUI desembarcou dum navio e o povo exigiu que o carro fôsse puxado à mão, ladeiras acima, cêrca de 10 km, até o bairro da Graça, em meio ao maior delírio da massa, que já presenciei. Assisti à saudação que lhe dirigiu, em nome da Bahia, no meio ao trajeto, o velho CARNEIRO RIBEIRO, de barbas brancas ao vento.

Não se via um soldado, nem um guarda civil nas ruas. Se um seabrista tentava provocar incidentes, logo alguém intervinha para ‘não perdermos a razão no Supremo Tribunal’. A população prêsa da exaltação partidária mais viva manteve a maior rigorosa ordem, durante dias sem policiamento, a despeito das expansões emocionais.

Ouvi, sem perder uma palavra, ao lado de meu pai, no Politeama baiano, a longa conferência do maior dos brasileiros, interrompida, de minuto a minuto, por tempestades de aplausos. Logo, nos primeiros momentos, Rui entoou um hino ao Supremo Tribunal, que possibilitara a todos o exercício do direito de reunião pacífica naquele momento. Rompeu um côro ensurdecedor de vivas à Côrte egrégia. Foi assim que tomei consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão de sentinela das liberdades públicas, vinculando-o a imagens imperecíveis na minha memória. E também na minha saudade.


Tais palavras, Senhor Presidente, mostram a reverência e a veneração que o Ministro ALIOMAR BALEEIRO sempre dedicou a esta Suprema Corte, nela reconhecendo, como parlamentar, como professor de Direito, como constituinte e como magistrado, o caráter de uma Instituição essencialmente republicana, fiel depositária do altíssimo mandato constitucional que lhe foi atribuído pelos Fundadores da República, que confiaram, a este Tribunal, a condição eminente de guardião da autoridade, de protetor da intangibilidade e de garante da supremacia da Lei Fundamental.

Eis, também em sua pessoal recordação, Senhor Presidente, a imagem que ALIOMAR BALEEIRO sempre guardou desta veneranda Instituição da República:

O Supremo, porém, que admiro e exalto, é o tribunal máximo da liberdade, da honra de cada homem e de cada mulher neste país. É o Supremo Tribunal Federal concebido como o idearam os fundadores do regime federativo, como cúpula e constituinte permanente, que dá sentido novo e fecundo à Constituição, permitindo a sua longevidade e exercendo benfazejamente obra contínua de aperfeiçoamento e ampliação da Carta Magna.

ALIOMAR BALEEIRO, Senhor Presidente, ao referir-se à Suprema Corte, costumava relembrar as vicissitudes, os percalços e os desafios que o Supremo Tribunal Federal enfrentou ao longo da primeira década republicana, que foi um “período tormentoso e difícil de tomada de consciência”, pelo próprio Supremo, da alta missão constitucional de que se achava investido:

A história do Supremo, nessa fase agônica e sobressaltada, confunde-se com a própria história política nacional. (…).

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(…) Mas, dentro de pouco tempo, o Supremo Tribunal imbuiu-se de sua missão e aos poucos, tenazmente, constituiu-se realmente o guardião do templo das liberdades ameaçadas.

As limitações da autoridade no estado de sítio, as imunidades dos parlamentares nesse período, a liberdade de imprensa, o conteúdo da anistia, a garantia das patentes dos militares e outras conquistas jurídicas ficaram assentadas nestes 10 anos dramáticos e ensangüentados de nossa história.

É por essa razão, Senhor Presidente, que é preciso rememorar, nas palavras de seus contemporâneos, o perfil do Ministro ALIOMAR BALEEIRO, delineado, com talento, pelo eminente e saudoso Professor JOSAPHAT MARINHO, quando se pronunciou, nesta Corte, em nome dos Advogados brasileiros, por ocasião da aposentadoria desse grande Juiz cuja memória é hoje reverenciada por este Tribunal:

Forrado dessas idéias, o Ministro advindo das lutas da vida pública realçou sempre o papel político do Supremo Tribunal Federal. Não pretendia, evidentemente, envolvê-lo nas divergências partidárias, ou no apoio ou na oposição aos governos. Visava a assegurar-lhe a posição eminente, que deve ter, no mecanismo do regime. ‘É que nestes tribunais supremos, – como disse João Mangabeira na saudação a Herculano de Freitas – não raro se deve aliar num julgamento o critério do Juiz com a visão do estadista, a lógica do magistrado com o descortino do político.’

Para tanto, esforçava-se por um conjunto de procedimentos e diretrizes. Buscava interpretar os princípios constitucionais e legais além dos limites estreitos de sua letra, de modo que não fossem malferidos pela violência pretensiosa do poder político ou do poder econômico, ou por erros, subterfúgios e sofismas, de autoridades e particulares. Admitia ou suscitava a exceção de inconstitucionalidade, não questionada nas instâncias ordinárias. Suprindo deficiências processuais, dava seu testemunho sobre fatos e práticas, para não se aprisionar aos autos contra sua consciência. Quando necessário à definição da verdade discutida, analisava as comoções políticas e sociais, passadas e presentes.


Guardando fidelidade a essas concepções, reconheceu, e o Tribunal aceitou, a inconstitucionalidade do Decreto- -lei nº 322, de 1967, que regulou matéria concernente a locações, com fundamento na segurança nacional. Esclareceu, então, que ‘o conceito de ‘segurança nacional’ não é indefinido e vago’: ‘envolve toda a matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, sobrevivência e paz do país, suas instituições e valores materiais ou morais contra ameaças externas e internas, sejam elas atuais e imediatas ou ainda em estado potencial próximo ou remoto’. E acrescentou: ‘Repugna à Constituição que, nesse conceito de ‘segurança nacional’, seja incluído assunto miúdo de Direito Privado, que apenas joga com interesses também miúdos e privados de particulares, como a purgação da mora nas locações contratadas com negociantes’: Delimitou, pois, com fundamentos sólidos e sóbrios, o que começava a extravasar dos contornos constitucionais.

Noutro processo, fixou a justa dimensão do princípio da livre manifestação de pensamento e de convicção política ou filosófica, absolvendo do crime de propaganda subversiva um estudante de sociologia, que ministrara aulas gratuitas de economia política, num sindicato. ‘Nas nações policiadas e civilizadas – frisou em seu voto – não é crime ser intelectualmente marxista, discutir Marx ou encampar o que ele pensou e escreveu, tanto na parte certa, quanto na parte hoje reconhecida como errônea, do ponto de vista exclusivamente teórico’. Era a confirmação solene e sábia de que não há delito de opinião, no direito nacional.

Ao apreciar o problema de publicações obscenas e pornográficas, em processo de mandado de segurança originário de apreensão da revista ‘Realidade’, seu voto, que se tornou vitorioso, é de impressionante objetividade e erudição. Mostrou como tais conceitos variam no tempo e no espaço, citando exemplos da literatura ou da arte no mundo e mencionando especialmente a jurisprudência americana. E, deferindo a garantia, concluiu que, ‘à falta de conceito legal do que é pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes, a autoridade deverá guiar-se pela consciência do homem médio de seu tempo, perscrutando os propósitos dos autores do material suspeito, notadamente a ausência, neles, de qualquer valor literário, artístico, educacional ou científico, que o redima de seus aspectos mais crus e chocantes’.

Dentro dessa mesma linha de raciocínio, considerava que não era possível julgar os fatos, para defini-los como crimes, sem examinar o clima psicológico dominante na sociedade, sobretudo por efeito de agitações políticas. Daí o espírito de compreensão com que julgou o Padre Hélio Soares do Amaral, acusado de subversão em virtude de críticas feitas num sermão, em 1969, no momento de brusca transformação no quadro institucional brasileiro.

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Permanentemente vigilante nesse domínio, condenava mesmo o excesso decorrente da interpretação judiciária falha, ou abusiva. ‘Quando, – acentuou num voto – na apreciação dos fatos, o Tribunal comete um absurdo lógico, na realidade está violando direitos.’ Não admitia, em conseqüência, que o critério subjetivo do Juiz anulasse o comando e a finalidade da lei.

Também não concordava com restrições ao direito de defesa, nos processos penais, por alegação de falta ou deficiência de recursos destinados ao aparelho judiciário. Houve caso em que se verificou a falta de publicação de um edital porque o Juízo não dispunha da verba de doze cruzeiros. O Ministro indignado fez esta observação: ‘Uma sociedade que não pode gastar 12 cruzeiros, para assegurar uma garantia constitucional, deve suportar os criminosos que ela engendra.’

Essa amplitude de pensamento é que o conduzia a destacar sempre o poder político da alta Corte. Refletia a ilustração a serviço da liberdade, na ordem disciplinada por normas permanentes e impessoais.

Depois de revelar o vigor com que o Ministro ALIOMAR BALEEIRO debatia, neste Tribunal, as controvérsias jurídicas submetidas a seu julgamento e de destacar, na pessoa desse grande Juiz, a “figura acatada do combatente imparcial, zeloso da normalidade da ordem jurídico-política e dos direitos de todos os cidadãos”, o eminente Professor JOSAPHAT MARINHO concluía as suas reflexões com uma observação digna da atuação de ALIOMAR no Supremo Tribunal Federal e que representa verdadeiro paradigma a ser observado por todos os magistrados no desempenho de seu ofício jurisdicional: “Assumiu e exerceu o papel de Juiz com notável independência e isenção. Só não abdicou de pensar livremente”.


Essa independência do Ministro ALIOMAR BALEEIRO, como juiz desta Corte Suprema, revelou-se fundamental, em tempos sombrios e em momentos de liberdades declinantes, na luta pela preservação dos direitos básicos das pessoas e dos cidadãos, como se registrou no episódio da arbitrária apreensão, pelo Poder Público, sob alegação de pornografia e obscenidade, de 231.680 exemplares da revista “Realidade”, quando, em memorável julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em 1968, no qual se discutia a questão da obscenidade e da pornografia, o Ministro ALIOMAR concedeu mandado de segurança para ordenar a imediata liberação da revista, havendo ressaltado, então, em sua luminosa decisão, os seguintes aspectos (RTJ 47/787, 790-796):

Mas o conceito de ‘obsceno’, ‘imoral’, ‘contrário aos bons costumes’ é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. (…).

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As Ordenações Filipinas submetiam a uma passeata com símbolos de irrisão na cabeça o marido condescendente e mandavam queimar o sodomita, para que não restasse memória do ‘vício nefando’. Na passagem do século, Oscar Wilde sofreu pena de cadeia por êsse motivo, enquanto, quase na mesma época, nada padeceram, na França, Marcel Proust, André Gide e outros.

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A ‘fornicatio simplex’ já foi crime sujeito a penas cruéis nos tribunais eclesiásticos e a avó do grande Abraham Lincoln se viu perseguida por êsse comportamento ainda no fim do século XVIII. Seria mandado para um hospício de alienados o juiz que apreendesse, hoje, ‘Madame Bovary’ ou denunciasse Flaubert, mas êste, há um século, foi a julgamento.

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A Justiça federal norte-americana cancelou a proibição de ‘Lady Chatterely’s Lover’ ser transportado nas malas do correio (U.S. Southern District Court) e, já agora, a justiça britânica removeu a medida administrativa segundo a qual essa obra de D. H. Lawrence, considerada das maiores dêste século, só poderia ser impressa e vendida na Inglaterra com expurgo de certos trechos havidos como eróticos. Comparado com os romances de Henry Miller, traduzidos no Brasil e expostos em tôdas as livrarias, o de Lawrence poderia ser obra para ‘jeunes filles’ em conventos.

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Por outro lado, os problemas de sexo, que são, em geral, o tabu dos censores, fazem objeto da investigação científica de várias universidades, inclusive do ponto de vista psicológico e psiquiátrico das obras literárias e artísticas que tomam por motivo. (…).

Note-se que um dos fundamentos da apreensão foi ter ‘Realidade’ promovido e publicado um inquérito sôbre o procedimento sexual de certo grupo de mulheres brasileiras, em amostragem de 1.200 delas, exatamente o que, em vulto maior, fizeram os dois relatórios Kinsey, resumidos em várias revistas de larga circulação mundial.

Ninguém ignora que, em tôdas as capitais civilizadas, são publicadas revistas restritas e voltadas ao erotismo, com a tolerância das autoridades. Humberto de Campos, da Academia Brasileira de Letras, sob pseudônimo notório de Conselheiro XX, não só publicava diàriamente nos jornais crônicas picarescas, mas fundou e dirigiu há cêrca de 40 ou 50 anos, ‘A Maçã’, revista no gênero daquelas.


Mas o importante, do ponto de vista dêstes autos, é que revistas insuspeitas de comércio de torpezas – revistas de circulação mundial e que versam os mais graves temas da atualidade, como o ‘Time’ -, em quase tôdas as suas edições tratam de sexo, erotismo, contraconcepção, a pílula (…).

Por que, então, a atitude discriminatória contra a ‘Realidade’? Até que ponto, outros interêsses, outras considerações, outros preconceitos ideológicos podem ter açulado uma repressão a que foram poupadas outras revistas com os mesmos pecados?

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Entendo que há direito líquido e certo de alguém expor e defender livremente seu pensamento, respondendo pelos abusos que cometer. O cidadão pode dizer e publicar o que pensa sôbre o nudismo, a igualdade de sexos, a defesa jurídica e social da mãe solteira, a educação sexual, o divórcio, o comunismo, o anarquismo, a existência de Deus, a historicidade de Cristo, a pílula anticoncepcional e não sei quantos temas de nosso tempo, alguns dos quais foram de todos os tempos.

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Concluindo, pervaguei a vista pelo exemplar de ‘Realidade’ anexo aos autos – o que foi objeto da apreensão – e não lhe atribuo o caráter de publicação obscena, imoral, sórdida ou contrária aos bons costumes. (…).

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Reconhecendo direito líquido e certo postergado pelo v. acórdão recorrido, dou provimento ao recurso (…).

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Os juízes dos tempos de nossos avós e pais, ao que eu saiba, não apreenderam nunca ‘A Carne’, de Júlio Ribeiro, hoje um clássico. Mostraram com isso compreensão acima de qualquer farisaísmo ou pressão religiosa. Não há motivo para imitarmos o puritanismo da autoridade postal dos Estados Unidos, que proibiu o tráfego de cópias coloridas da ‘Maya desnuda’, de Goya, pintada no mais católico, preconceituoso e clerical dos países. Seria o mesmo que um ‘cache-sexe’ no ‘David’ de Miguel Ângelo.

Igual preocupação com a integridade das liberdades públicas, Senhor Presidente, foi também externada pelo Ministro ALIOMAR BALEEIRO, em julgamento que o Supremo Tribunal Federal realizou, no período da ditadura militar, em processo penal instaurado por alegada transgressão à Lei de Segurança Nacional, no qual se imputava, ao recorrente, participação, ao lado de outros jovens, na tentativa de reorganização do Partido Comunista e de fundação de grupamentos clandestinos (RTJ 66/334, 335-336):

No interrogatório perante o Auditor e o Ministério Público, em 4.3.70 (…), o Recorrente repudia sua confissão, descrevendo as várias e repetidas torturas a que teria sido submetido (choques: nu, amarrado em cadeira de zinco conectada à corrente elétrica; torções dos membros e batidas contra as grades do cárcere; banho com as roupas sem outras para trocar; sevícias, etc.).

Outro acusado refere tratamento parecido, embora com menos luxo de pormenores (…).

Pelo noticiário dos jornais, denúncias de Bispos, como do Esquadrão da Morte, processo contra o Delegado Fleury, policial Muriel, etc., etc., sou cético a respeito de confissões extraídas de portas fechadas, quase sempre na calada da noite, sem assistência de advogados, apesar de decorridas 24 horas da prisão.

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Vinte séculos de civilização não bastaram para tornar a polícia uma instituição policiada, parecendo que o crime dos malfeitores contagia fatalmente o caráter dos agentes que a Nação paga para contê-los e corrigi-los.

A confissão policial do Recorrente é longa e permeada de pormenores, sem que se esboce o menor gesto de instinto de defesa, sempre encontradiço nas palavras dos acusados. Há como que um masoquismo de auto-acusação muito suspeito. O confitente quer expiar o crime, dando às autoridades todas as armas, sem guardar nenhuma.

O acórdão consubstanciador desse julgamento porta expressiva ementa, que assim foi redigida, no ponto, pelo Ministro ALIOMAR BALEEIRO, Relator da causa (RTJ 66/334):

Segurança Nacional – Crime do art. 36, do Dl. 314, de 1967.

I. As confissões policiais na calada da noite, sem assistência de advogado, sobretudo quando muito minuciosas e incriminadoras, sem que se esboce o instinto de defesa do confitente, devem ser recebidas com reservas, mormente em fases de conturbação aguda da política. (…).

O eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO, que foi, na República, o 21º Presidente do Supremo Tribunal Federal (1971/1973), pertence a uma brilhante geração composta por parlamentares que, com a sua notável experiência, só fizeram enriquecer, de modo digno, a trajetória institucional desta Corte Suprema, dando-lhe singular projeção em seu processo histórico e transmitindo-lhe o legado de seu saber, de sua prudência, de sua autoridade moral, de sua respeitabilidade pessoal e de suas virtudes cívicas, demonstrando, com tais atributos, os valores que devem orientar aqueles incumbidos de servir à causa pública.

Esse aspecto da vida de ALIOMAR BALEEIRO, que foi um conspícuo integrante da “Banda de música” da extinta UDN, põe em destaque um dos traços que compõem o perfil institucional desta Suprema Corte, cujos quadros foram integrados, na República, desde o seu início e ao longo de sua existência, por vultos eminentes do Parlamento Nacional, dos quais, para restringir-me apenas aos que não mais se acham entre nós, relembro as figuras notáveis de ALBERTO TORRES, ANDRÉ CAVALCANTI, CARLOS MAXIMILIANO, ELOY DA ROCHA, EPITÁCIO PESSOA, JOÃO BARBALHO, JOÃO LUIZ ALVES, ADAUCTO LÚCIO CARDOSO, BILAC PINTO, PRADO KELLY, UBALDINO DO AMARAL, HERCULANO DE FREITAS e PLÍNIO CASADO, dentre tantos os que já mais estão vivos.

Tal circunstância representa a clara atestação do alto significado que assume, para a história do Supremo Tribunal Federal, a participação, em sua composição, de parlamentares dignos, conscientes da alta responsabilidade que lhes é atribuída e do papel decisivo que podem desempenhar na consolidação das instituições nacionais, na preservação da integridade do processo democrático e na superação dos conflitos constitucionais que tão graves conseqüências podem ocasionar à vida política do Estado e da República.

É importante rememorar, bem por isso, Senhor Presidente, as palavras que o próprio ALIOMAR BALEEIRO proferiu, na Câmara dos Deputados, em seu discurso de despedida da vida parlamentar, quando demonstrou possuir perfeita consciência dos graves desafios que o esperavam deste lado da Praça dos Três Poderes, no Supremo Tribunal Federal:

Não ignoro as responsabilidades, os riscos, os tremendos ônus que me aguardarão no outro Poder, dos três que integram a soberania nacional. A êsses sacerdotes amigos digo que recebo as suas bênçãos e peço as suas orações. Que elas me ajudem, porque meu desejo é ser naquela Casa da soberania nacional um homem digno desta Câmara, um homem digno dos deputados que por 130 anos por ela tenham passado.

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Lembrava eu que, penetrando amanhã no Supremo Tribunal Federal, quero levar para lá o espírito de honra, o espírito de dignidade, o espírito de nobreza, o patriotismo, a grandeza moral desta Casa, no presente e no passado. Não me orgulho de nada na minha vida pública mais do que de ter pertencido ao Parlamento do meu País durante 20 anos. Muitas vêzes, no Palácio Tiradentes, eu olhava os murais decorados por aquêles artistas do comêço do Século, e ali, contemplando as esfinges daqueles que eu poderia chamar os pais da Pátria, tive a oportunidade de comentar que todos êles passaram por esta Câmara dos Deputados. De 1823 até hoje, as figuras máximas da Nação, aquêles que a construíram: aquêles que a receberam da Colônia e transformaram o estado absoluto num estado de direito; aquêles que dilataram ainda o território nacional até os confins do Acre; aquêles que implantaram e preservaram o espírito de liberdade nas nossas instituições; aquêles que defenderam a perenidade da Pátria em tôdas as vicissitudes, todos êles foram dos nossos, aquêles que modelaram a tradição sob a qual vivemos (…).

LUÍS VIANA FILHO, por sua vez, ao relembrar a figura de um “amigo de toda a vida”, ressaltou os atributos, que, tão bem personificados por ALIOMAR BALEEIRO, devem qualificar o magistrado no exercício independente de suas altas funções.

Ao se referir à corajosa independência de ALIOMAR BALEEIRO, enquanto Ministro do Supremo Tribunal Federal, durante um conturbado período de nossa vida político-institucional, dele traçou uma imagem poderosa e vívida (“Perfis Parlamentares”, vol. 36, 1994, Câmara dos Deputados):

Nenhuma conveniência lhe calava a voz. Quando presidente do Supremo Tribunal, no auge do autoritarismo militar, Baleeiro, na solenidade de um Encontro dos Tribunais de Alçada, não se escusou de proclamar ser o Brasil o único país ocidental onde a Justiça tinha a sua independência negada pelo AI-5, que chamou a espada de Dâmocles sobre a cabeça dos juizes brasileiros. Na ocasião foi um deus-nos-acuda, tanto o País se desabituara a ouvir essas verdades. Para ele não era uma bravata, mas apenas um dever. Um dever que cumpriria integralmente. Mas, tudo tinha um preço, por vezes alto. Não demorou Baleeiro receber do jornalista Rui Mesquita, diretor de ‘O Estado de S. Paulo’, esta comunicação:

‘Comunico-vos que, por decisão da censura federal e até segunda ordem, ‘O Estado de S. Paulo’ e o ‘Jornal da Tarde’ foram proibidos de publicar toda e qualquer notícia que mencione o nome de V. Exa., bem como comentários, artigos, editoriais ou notícia de qualquer espécie a respeito de manifestações de qualquer natureza que V. Exa. tenha feito ou venha a fazer’.

Era o ingresso no index governamental. (…). Como sempre, não se dobrava.

Habitualmente, a entrada é mais festejada do que a saída. Baleeiro, entretanto, colheria mais louvores, justamente no momento em que deixava o Tribunal. No Senado, com alguma emoção, ouvi o Senador Paulo Brossard fazer-lhe o elogio. Era uma síntese do pensamento da Nação sobre o grande deputado e maior ministro:

‘Altivo, bravo e generoso’ – afirmou Brossard – ‘com ampla capacidade de admirar os seus semelhantes, bem como compreender as fraquezas humanas; trabalhador tenaz, lecionando, proferindo conferências e escrevendo livros que logo se tornavam clássicos, manteve sempre em dia o imenso trabalho que lhe pesava aos ombros; mais amigo da justiça que das formalidades, por vezes quebrava os imemoriais estilos das cortes, para proferir com graça e sabor novo os seus votos em que temperava o saber jurídico com os subsídios da economia, as lições da História, os ensinamentos da ciência política; sempre fiel à liberdade, sem subterfúgios nem meias palavras, a serviço da liberdade e da justiça, soube pôr os opulentos recursos da sua variada cultura e a autoridade de longa, limpa e coerente vida pública’.


Podia ter parado aí. Mas Brossard desejou completar o retrato, lembrando também o parlamentar:

‘O que fora no magistério e especialmente na Câmara, veio a ser no Supremo Tribunal Federal. No magistério, o ofício se desempenha quase em segredo; na Câmara, porém, é à luz da grande publicidade que o mandato se exerce. Não demorou muito e Aliomar Baleeiro conquistava lugar definitivo no Parlamento, passando a figurar entre os grandes parlamentares brasileiros de todos os tempos. Não se escreverá a história desse parlamento, tantas vezes injuriado, tantas vezes agredido, ignorando-se o seu nome; da mesma forma não se escreverá a história do Supremo Tribunal sem que o seu nome figure entre os maiores juízes, em todos os tempos’.

Infatigável, ele, nos dez anos em que permaneceu na Suprema Corte, teve permanente preocupação de se manter, não direi à altura, mas na trincheira que os fundadores da República confiaram aos juízes aos quais cabe interpretar, aplicar e defender a Constituição. Baleeiro era dos que acreditavam que, para sobreviver, a Constituição devia renovar-se. E algumas vezes ele logrou mudar a jurisprudência, abrindo novas clareiras na vida jurídica do País. Realmente ‘poucos de seus membros’ – e valho-me aqui do Ministro Xavier de Albuquerque – ‘terão chegado ao Supremo Tribunal Federal com tão ampla visão de seu papel no desempenho fisiológico do organismo político nacional. Conhecedor profundo do paradigma original – a Suprema Corte americana, de que domina a história, o mecanismo, a jurisprudência -, sempre interessou-se largamente pelo mais alto tribunal brasileiro e, em geral, pelo Poder judiciário.’

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(…) Estimulado pela amizade de Bilac Pinto, que desejava vê-lo renascer pelo trabalho. Baleeiro, nos anos derradeiros, se dedicou quase inteiramente à ‘Revista Forense’. Gostava dos assuntos editoriais. Continuaria também a redigir pareceres jurídicos, pois o obstinado operário dizia precisar ganhar a vida. E à atividade do jurista reunia-se a do jornalista, que mantivera com a mesma bravura, escrevendo para a ‘Folha de S. Paulo’. Já fechada a sua botica política, conforme dizia num tom de desalento, lutava pela restauração da liberdade, que tinha como o bem fundamental. De quando em quando, a censura, numa involuntária homenagem ao combatente, vetava-lhe os artigos.

Nunca é demais relembrar, Senhor Presidente, a importância que o Ministro ALIOMAR BALEEIRO, fosse na condição de magistrado ou na de professor ou parlamentar, sempre atribuiu à seriedade, à impessoalidade, à probidade e à honestidade que devem pautar – enquanto signos luminosos de uma constelação de valores que os governantes devem permanentemente respeitar – a ação e o comportamento dos que desempenham qualquer função pública em nosso País, tecendo considerações valiosas a propósito das relações entre a ética e a política, entre o exercício do poder e o respeito à coisa pública (“A Política e a Mocidade”, 2ª ed., 1957, Progresso):

A política é a conquista do poder a serviço do bem comum. Logo, fica excluída a gula do poder para gôzo próprio, ou de sua família ou classe.

Se ao político, no interêsse comum, é defeso o emprego de meios imorais, por mais digno que seja o fim coletivo a alcançar-se, que nome terá quem, sob a capa da política, esconde apenas o apetite depravado de usufruir as vantagens do poder, monopolizando-o, degradando-o a instrumento de opressão e abastardamento de seu país?

Êsse é apenas o delinqüente da política. Será tratado como tal se malograr-se o crime. (…).


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Se a transigência no secundário é, muitas vêzes, condição da possibilidade do precípuo e essencial, não se concebe, entretanto, político, digno dêsse nome, que possúa apenas alvos de segunda ordem em almoeda a cada instante. Dizer-se de um político que não tem convicções é, pois, a mais áspera das injúrias. (…).

Adivinhar quem irá ganhar a partida e colocar-se logo ao pé dêle. Essa máxima digna de Sancho Pança, ou de qualquer homem apenas de pança, atingiu em nosso país, à perfeição inaudita de não se procurar adivinhar quem vence: adere-se, desacanhadamente a quem venceu. É menos arriscado. Isso não é política, mas apenas famulagem.

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O drama do Brasil em nossos dias reside na persistência ou restauração de certos mitos, que, nascidos e alimentados por longa e dispendiosa propaganda às custas dos cofres públicos, obliteraram o senso de julgamento das massas.

Estas tendem a acreditar nos homens providenciais e insubstituíveis. Acreditam que o penoso, anônimo e cotidiano esfôrço de todos, para o levantamento e o engrandecimento da nação, poderá ser substituído pela varinha mágica dos que, como prestidigitadores de feira, são apresentados ou se apresentam como capazes de prodígios.

A credulidade dos humildes é propensa a acreditar mais fàcilmente em quem lhes promete o impossível, o irrealizável sem fadigas do que naqueles que lhes explicam que as realizações governamentais estão adstritas às limitações do possível e ao preço de programas de rígida austeridade.

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Êstes episódios de nosso tempo devem ser colocados claramente aos olhos do ingênuo povo. Que êle escolha de ânimo seguro e espírito informado se prefere ser a massa de basbaques diante dos funâmbulos e pelotiqueiros de feira, que a querem para prêsa de sua astuta rapina, ou se opta por formar orgânicamente um povo consciente, sabedor do que quer, até onde póde querer e se se dispõe a ser o realizador refletido e realista de suas altas aspirações e legítimos interêsses.

Se preferir o lenga-lengariar dos impostores, não se espante de pagar preços astronômicos, receber salários parcos, suportar violências policiais, ver seu dinheiro esbanjado pelos gozadores do Tesouro, e vegetar na miséria, enquanto as mais audazes especulações multiplicam as fortunas dos novos ricos da inflação e da corrução ao calor gostoso do poder.

Se optar por maior educação da mocidade, amplas oportunidades para todos sem distinções de raça, classe, região, ou credo político e religioso, melhores estradas, abundância, segurança jurídica e liberdade, – disponha-se aos sacrifícios e ouça a palavra dos que falam no tom duro e não se julgam predestinados, milagreiros nem messias insubstituíveis, mas homens como todos os homens, iguais aos seus concidadãos.

Os povos não se corrigem ràpidamente e nisso, como em quase tudo, o tempo é fator precioso das transformações sólidas e duradouras.

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A política se elevará moralmente, ano a ano, como o direito também se lapidou no pó de suas próprias imperfeições.

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A consciência democrática há de representar a base espiritual de nosso sistema de govêrno.

Cada homem, ou cada mulher, – fim em si mesmo e não instrumento dos fins alheios – há de possuir nítida compreensão da sua própria dignidade e do dever de respeitar a dignidade dos outros. A democracia funciona embaraçadamente em mãos de indivíduos destituídos do senso de autonomia intelectual e moral.

A liberdade não se recebe por mercê ou tolerância dos opressores. Há que merecê-la e disputá-la. Sempre que houver almas de escravos, existirão vocações de senhores.

É tempo de concluir, Senhor Presidente.

ALIOMAR BALEEIRO, cujo centenário de nascimento ora celebramos, está vivo, pois as suas palavras ainda ressoam no Plenário desta Suprema Corte, vibrantes e plenas de significação na defesa – da qual jamais desertou – dos direitos básicos dos cidadãos, quando em conflito com os excessos governamentais ou com a arrogância autoritária daqueles que, conscientemente ou não, transgridem as suas prerrogativas oficiais, esquecidos de que, numa República democrática, o Estado nem tudo pode, menos, ainda, abusar de sua posição de força, para, com esse gesto prepotente, degradar cidadãos livres à condição subalterna de súditos feridos pela opressão do poder.

É importante assinalar, bem por isso, Senhor Presidente, que o Ministro ALIOMAR BALEEIRO, ao transpor os umbrais desta Corte Suprema, aqui depositou, em solo historicamente fértil, onde sempre floresceu a liberdade, a semente de seu exemplo, que constitui legado precioso e inspiração permanente para todos os que crêem no Direito e têm necessidade de justiça.

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