“Fui chipada”

Elba Ramalho perde ação de indenização contra a Veja

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22 de setembro de 2005, 17h23

A Editora Abril levou a melhor num processo movido pela cantora Elba Ramalho contra a revista Veja. A 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou o recurso da cantora contra sentença de primeira instância.

Elba pedia indenização por danos morais com o argumento de que foi ofendida pela reportagem “Eu fui chipada”. A cantora sustentou que o texto — a respeito de crenças e misticismos — tinha conteúdo distorcido e jocoso, com a exploração negativa de sua imagem porque afirmava que ela queria apenas aumentar a venda dos seus discos com as declarações feitas durante um evento internacional de ufologia.

Segundo o relator do processo, desembargador Teixeira Leite, o tema em si desperta curiosidade e isto se acentua quando associado a pessoas públicas, que naturalmente recebem trato diverso das outras pessoas.

“Portanto, se a própria apelante e porque a própria apelante invoca suas reconhecidas virtudes de artista de sucesso e ‘caloroso reconhecimento público’ para pleitear esta indenização, não há como afastar suas opiniões deste contexto que é de permanente exposição à mídia em geral, pois, em tudo, aquilo que é da sua pessoa e do seu cotidiano, desperta maior interesse, e, conseqüentemente, é muito mais aberto e sujeito não só a comentários, como também, a críticas”, afirmou Teixeira Leite.

Histórico do caso

A defesa da cantora recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo contra a decisão do então juiz auxiliar da 27ª Vara Cível da capital paulista, José Tadeu Picolo Zanoni. O advogado alegou nulidade da sentença porque a decisão foi proferida num julgamento antecipado — sem análise de provas, com base somente nos argumentos. No mérito, dizia que a reportagem foi ofensiva porque debochava da cantora.

Por sua vez, a defesa da Editora Abril, representada pela advogada Vera Leitão, do escritório Lourival J. Santos, sustentou que não houve nenhum impedimento para que a decisão fosse dada naquele momento. Também afirmou que não houve ofensa porque o assunto foi tratado de forma divertida.

Os desembargadores Teixeira Leite, Francisco Loureiro (revisor) e Jacobina Rabelo concordaram com os argumentos e rejeitaram o recurso da cantora por unanimidade.

Processo 289.078.4/9-00

Leia a íntegra do acórdão

ACÓRDÃO

Indenização. Dano moral. Publicação jornalística que discorreu sobre crenças e convicções de artista brasileira, bem como suas atividades na área de ufologia e esoterismo. Alegação da cantora de que a matéria lhe causou danos morais, por tratar o assunto de forma jocosa e irônica. Ação julgada improcedente. Entendimento de que a matéria jornalística não é ofensiva. Apelação improvida. Ausência dos elementos caracterizadores da responsabilidade em indenizar.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL nº 289.078-4/9-00, da Comarca de SÃO PAULO, onde figuram como apelante ELBA MARIA NUNES RAMALHO e apelados EDITORA ABRIL S/A e MARCELO MARTHE:

ACORDAM, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso.

Elba Maria Nunes Ramalho apela (fls. 331/343) da r. sentença (fls. 305/312) que julgou improcedente ação de indenização por danos morais promovida contra Editora Abril S/A e Marcelo Marthe, procurando revertê-la, para isso, reiterando os argumentos de que ao publicar determinada matéria a respeito de crenças e misticismos, com ênfase acentuado e ilustrado para sua pessoa, deu-se à reportagem que foi tirada de uma entrevista, um conteúdo distorcido e, jocoso, provocando uma exposição ao ridículo e a exploração negativa de sua imagem pública, inclusive autorizando uma retratação e uma resposta, ao lado da indenização que pretende.

Também, e em questão preliminar, sustenta a ocorrência de cerceamento de defesa, prejudicando o que se decidiu, porquanto não realizada a prévia tentativa de conciliação bem como não se decidiu sobre as provas que requereu e, justificou.

Contra-razões a fls. 346/381 e este é o relatório.

Embora a apelante tenha apenas mencionado a questão de eventual violação do princípio da identidade física do juiz, convém esclarecer que, não tendo sido realizada audiência com produção de prova, não se cogita de vinculação do juiz processante. A propósito:

“COMPETÊNCIA – Juiz certo – Artigo 132 do Código de Processo Civil – Inaplicabilidade – Hipótese em que não houve audiência – Processo julgado com base nas provas documentais e periciais trazidas aos autos – Inocorrência de violação ao princípio da identidade física do Juiz – Preliminar rejeitada” (JTJ 179/27). Nem mesmo a ausência do ato formal com objetivo, da conciliação entre as partes, e, no caso, muito improvável, serve de argumento para não se prestigiar a oportunidade do julgamento e isto porque, “a falta de tentativa de conciliação, nas causas que versem sobre direitos patrimoniais de natureza privada, não induz nulidade do processo (RT 482/87, 482/164, RJTJESP 103/295, JTA 39/309, 46/66)” (Theotônio Negrão, CPC e legislação processual em vigor, 37ª ed., SP: Saraiva, p. 487, nota 6, in fine, ao art. 447).


Assim, o digno Magistrado que sentenciou o feito, o fez regularmente, convencido da solução a ser dada à lide diante dos fatos e das provas existentes nos autos, no caso, documentos, daí dispensando os demais (perícia e testemunhas) no que, aliás, estava certo.

Com efeito, a pretensão é de uma extensa reparação de afirmado dano de natureza moral, portanto, da intimidade da apelante, e, a causa dessa pretensão é o conteúdo de um texto redigido pelo apelado e publicado pela apelada, o que importa em, antes, decidir sobre o que foi explicado e justificado a esse respeito para, ao depois, verificar se há ou não o dever em indenizar e, mais adiante, o preço desta reparação.

Logo, no momento da sentença era prematuro indagar a respeito da tiragem das edições da revista, aliás, o que insistiu em várias petições, pedindo uma apuração técnica sobre o faturamento da empresa com aquela matéria, e isto porque nada impede essa verificação em oportunidade de liquidação do julgado, evidentemente se acolhido o pedido, e, mais ainda, conforme bem explicado pelos apelados, necessariamente não existe obrigação de se adotar tal parâmetro ao se fixar uma indenização dessa natureza.

Aliás, isto “exige a análise sensível e cautelosa de variados fatores objetivos e subjetivos, de diferentes elementos genéricos e circunstâncias, o que nos proíbe de alcançar qualquer metodologia precisa ou vinculativa” (A quantificação dos danos morais pelo STJ, trabalho de José Roberto Ferreira Gouvêa e Vanderlei Arcanjo da Silva).

Ademais, qualquer associação com o faturamento maior da edição de uma revista somente se justifica quando a matéria tem identificação destacada na capa, sugerindo a leitura por um público que não é o habitual, despertando maior atenção destes não assinantes, pois, estabelecendo e desde logo, uma repercussão extravagante durante o período de exposição daquela publicação nas bancas, daí resultando em média de vendas superior a habitual. No caso, isto não ocorreu.

E porque de premissas incertas não se chega a conclusões certas, também não há porque prestigiar o argumento de cerceamento de defesa, inclusive pela ausência de oportunidade para o depoimento pessoal do jornalista responsável pela entrevista e matéria, pois, foi apresentado o texto e consta dos autos a fita gravada naquela ocasião, e isso o que se examinou (fls. 109/117) e se apresenta como suficiente para a solução da lide, nos exatos termos em que foi proposta e que não se altera (art. 264 CPC).

Ademais, neste particular, verifica-se o que de essencial se falou e, divulgou, necessariamente sem associar o resultado pretendido pela apelante com a “montagem” que, a seu ver, traduziu uma “forma jocosa e denegritória com que o assunto foi tratado” porquanto, ela mesma reconhece que durante a entrevista, o gravador foi desligado várias vezes e, por óbvio, isto provocou “corte da linha de raciocínio e distorção do contexto da entrevista” (fl. 273).

A apelante, “conhecida e renomada cantora, cujo talento proporcionou-lhe sempre muito prestígio no meio artístico, com caloroso reconhecimento do público em geral” com “expressiva vendagem (discos e shows) o que confirma encontrar-se no seleto e destacado patamar dos maiores do país” (cf. inicial fl. 03, itens 1 a 3), litiga porque durante sua presença na 11ª Conferência Internacional de Ufologia, concedeu entrevista ao apelado, jornalista que fazia a cobertura do evento e o que resultou na publicação da matéria da revista Veja, editada pela apelada com o título “Fui Chipada” (cf. contestação, fl. 56), mas, de conteúdo distorcido e daí a ofensa a sua honra e intimidade.

Nesse sentido, foi a sua primeira reclamação, publicada na seção de cartas de edição seguinte, pois “muito me surpreende a matéria. Acreditar ou não é um direito do repórter, assim como meu. Porém, chacotear e questionar minha fé e verdade não é correto” (fl. 135).

Portanto, inequívoca essa seqüência, a primeira conclusão é de que existiu a entrevista e foi a apelante quem forneceu detalhes e elementos sobre essa sua postura, e crença, até porque “aprecia matérias esotéricas e espiritualistas, mantendo atividades e estudos afins, dentre os quais a Ufologia, aqui compreendida como ciência que estuda os objetos voadores não identificados” (fl. 03, item 04 da inicial).

Logo, verdadeira a afirmação maior que vem do tema propriamente dito, e, evidente que esse foi o motivo da matéria, após a constatação deste “fascínio no mundo pop”, citando-se nominalmente outros e não menos consagrados artistas que “extravasaram suas pirações sobre seres intergaláticos”, inclusive relatando algumas, não há como imputar aos apelados a conduta infamante sugerida pela apelante (fl. 17).

O relato foi publicado na seção “música”, e não nas páginas de jornalismo ou de ciência da revista, e isto já é suficiente para indicar uma leitura menos atenta a realidade, mais voltada a superficialidade e espiritualidade, até porque assim foi ilustrada e nem mesmo se cogita que a apelante, que tem afirmações e posturas públicas sobre esse tema, tenha imaginado de outra forma.


Prova isso a repercussão do fato (fls. 26, 29, 37, 126, 127), reclamando-se de alguma ironia, ou, de equivocado juízo interpretativo e valorativo para o que se mostrava, mas, em tudo, sem que se possa extrair ofensa, desrespeito ou, até mesmo uma intenção de menosprezar a figura pública e de artista, da apelante, quando associada ao tema então tratado.

Como se permite, o conteúdo da matéria não ultrapassou o limite do razoável na técnica de apuração, compreensão, e linguagem do jornalista, e, também neste campo, foi a edição, com o título identificando o que se poderia ler e que não se afastou do que se encontra na entrevista a respeito do “chip” e o que sucedeu com a apelante, conforme relatou.

Inegável que o tema em si desperta curiosidade do mesmo modo que induz a uma polêmica no que diz respeito ao item credibilidade. Daí porque é necessária tolerância recíproca no seu trato, permanecendo qualquer análise no limite do que é sugestivo, sem que isso provoque inquietação nos mais aficionados, sob pena de se reduzir o estoque de argumentos considerados válidos neste debate que, por inequívoco, é da imaginação e da intimidade, em tudo derivadas da liberdade de pensamento, opinião e crença.

E isto mais se acentua quando associado a pessoas públicas, sabe-se, de trato diverso das outras. Portanto, se a própria apelante e porque a própria apelante invoca suas reconhecidas virtudes de artista de sucesso e “caloroso reconhecimento público” para pleitear esta indenização, não há como afastar suas opiniões deste contexto que é de permanente exposição à mídia em geral, pois, em tudo, aquilo que é da sua pessoa e do seu cotidiano, desperta maior interesse, e, conseqüentemente, é muito mais aberto e sujeito não só a comentários, como também, a críticas.

Nesse sentido, ensina a doutrina:

“Os limites de proteção da honra individual, quanto à divulgação dos fatos pertinentes à vida humana, assentam-se em dois princípios: interesse público e liberdade de expressão. A vida de determinadas pessoas, seja pelo exercício de função pública estatal, seja de atividade ligada ao público (cinema, televisão, imprensa, teatro etc.), tem na publicidade grande fator de sucesso. A expectativa do público em relação a fatos da vida privada dessas pessoas restringe-lhes o âmbito desta esfera, quanto maior for a notoriedade.

Desta forma, mesmo que na ofensa à honra no campo civil seja indiferente a veracidade ou não do fato considerado lesivo, a permissibilidade de sua divulgação está contida apenas no interesse público justificado e, neste caso, a divulgação deve referir-se a fato verdadeiro. Pode ocorrer que a divulgação de certos fatos verdadeiros corresponda a um interesse social, como os que ocorrem nas relações profissionais. Mesmo que um fato seja tido por desonroso, como nas informações bancárias, a finalidade da informação justifica extravasar a notícia do fato.

Fato de interesse público, segundo Mario Are, é todo aquele que reflete apreciável interesse da coletividade, como o comportamento de personalidade política, a procura de autores de crime, a verificação de acontecimento particularmente significativos…” (Aparecida Amarante, Responsabilidade civil por dano à honra, 5ª ed., BH: Del Rey, 2001, p. 118/119).

Aliás, o que se cuidava era da sua presença e participação em congresso de ufologia, e, evidentemente, o que ali e sobre esse tema declarou ao apelado, com detalhes, ilações, versões e conclusões, não só interessou inovou e isto o que se divulgou, de modo aceitável, dentro deste espaço que é da liberdade de imprensa, igualmente assegurado pela Constituição Federal.

Ou, aquele em que a informação jornalística difunde, sem ofensa a honra pessoal, fato comprovadamente verdadeiro (a entrevista) mas, com opinião que, no campo das ideais, ora aplaude, ora critica. E, ainda que induza a alguma dúvida entre a ficção e a realidade, não se encontra uma acentuada ironia a ponto de compreender a matéria como proposital chacota ou, de conteúdo jocoso, para expor a apelante ao ridículo e prejudicar sua imagem pública.

Com efeito, “todo acontecimento desperta invariavelmente, como reação lógica, algum juízo ético na massa em geral e, em cada indivíduo em particular” e porque o artigo em análise foi dirigido a um “público seleto”, quer pelo alcance e conceito da revista, quer pelo espaço que se utilizou, é lógico que sua leitura exige outra compreensão, também pela apelante, de que a entrevista que ali se procurou retratar, foi “dirigida aos sentimentos ou apetites de pessoa individualmente considerada”.

Pois, “quanto se lê uma crônica com sentido humano, jamais entra em jogo um interesse prático imediato, são os sentimentos do homem que vibram. Como nas novelas, estas crônicas levam a deliberações e especulações éticas sobre a natureza humana, a fé, a vida, a morte etc.” (cf. Israel Drapkin Senderey, Imprensa e Criminalidade, ed. José Bushatsky, 1983, p. 41/42).

Assim é com algumas situações que são impostas, mesmo que em conseqüência de imagináveis ilícitos mas que, não ultrapassando o patamar da contrariedade, não constituem dano moral indenizável.

Na lição de Sérgio Cavalieri, só se caracteriza como dano moral:

“(…) a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo” (Programa de responsabilidade civil, 2ª ed., SP: Malheiros, 1998, p. 78, apud Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade civil, 8ª ed., SP: Saraiva, 2003, p. 549/550).

Nesse mesmo sentido, já decidiu reiteradas vezes o Superior Tribunal de Justiça:

“CIVIL. DANO MORAL. NÃO OCORRÊNCIA. O recurso especial não se presta ao reexame da prova. O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige. Recurso especial não conhecido” (REsp 403919-MG, 4ª turma, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 15.5.2003, RSTJ 171/351).

Por oportuno o registro que não existe ofensa e como afirmado pela apelante, ao “dizer que precisava ir a congressos de ufologia para promoção de seus discos” (fl. 173) e isto porque, conforme ressalvado no texto e a esse respeito, “alguns insinuam” (textualmente). Outrossim, essa referência foi associada ao relato, ainda verdadeiro, de que, “naquele evento ela deu entrevista coletiva e autografou pôsteres” (fl. 18); logo, a seqüência dessa informação, comentada, também não induz a qualquer ilícito.

Assim, não há porque indenizar, e, muito menos, retratar ou responder. A propósito, “a imprensa livre remedeia-se a si mesma, porque não pode haver razão para que a mentira, sendo igualmente livre como a verdade, prevaleça contra esta” (Hipólito da Costa, apud Isabel Lustosa, Insultos Impressos, Companhia das Letras).

Daí porque a r. sentença deve ser mantida.

Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso.

Participaram do julgamento, os Desembargadores J. G. Jacobina Rabello (Presidente e 3º Juiz) e Francisco Loureiro (Revisor).

São Paulo, 22 de setembro de 2005.

TEIXEIRA LEITE

Relator

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