Polícia correta

Não houve abusos na prisão de Paulo e Flávio Maluf

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20 de setembro de 2005, 16h12

Talvez nada tenha sido mais revelador de uma certa visão do sistema penal brasileiro do que o estarrecimento que tomou conta de uma moradora da favela Coliseu que fica ao lado da loja Daslu, em São Paulo, quando viu assomar viaturas da Polícia Federal. Acostumados que estão as classes populares à abordagem policial, o sentimento foi de perplexidade ao tomar conhecimento que o aparato da lei tinha por objetivo a Daslu, e não a favela.

A perplexidade daquela moradora hoje contagia parcela da elite nacional que, também estarrecida, vê o aparato legal ser dirigido contra ela. Mas como? Como admitir que medidas cautelares penais, como a interceptação telefônica, a busca e apreensão, as prisões processuais, tenham como alvo pessoas até então “imunes” ao direito penal?

Daslu, Schincariol, Maluf? Estamos diante de uma nova Revolução Francesa à brasileira? Quem será o próximo? Entre a perplexidade e a indignação, se pergunta — sim, a mesma parcela da sociedade que quer mais polícia, que quer mais armas, que quer maior repressão, que silenciou diante da barbárie dos 111 mortos no Carandiru — não estamos mais no Brasil?

Até onde vai meu conhecimento, não há jacobinos entre membros da Polícia Federal. A Polícia Federal tem exercido apenas seu papel constitucional, de polícia judiciária da União, e tem cumprido, como se espera, ordens judiciais requeridas pelo Ministério Público Federal e autorizadas pelo Poder Judiciário Federal, o que, aliás, é absolutamente comum num Estado que se proclama de Direito. Está cumprindo a lei. E a lei, perdoem seus detratores, é para todos.

Posto isso, é necessário enfrentar a questão: houve excessos nos fatos que redundaram na prisão de Paulo e Flávio Maluf na madrugada de sábado?

Exceção feita à forma como transcorreu a prisão do senhor Flávio Maluf, na qual o uso de algemas aparentemente teve fins meramente midiáticos, e por isso mesmo já é objeto de sindicância por parte do Departamento de Polícia Federal, não se identifica qualquer fato desabonador da ação policial.

Onde, então, a ilegalidade? Onde, portanto, os abusos? Nas prisões processuais? Na divulgação pela imprensa? Ora, a PF cumpria determinação judicial, de sorte que não se pode falar em ilegalidade. Talvez vejam alguns na divulgação pela imprensa das prisões uma publicidade indevida. Ressalvada mais uma vez a forma como foi conduzida a prisão de Flávio Maluf, essa questão deve ser melhor compreendida.

Já no dia 2 de setembro, parte da imprensa teve acesso indevido a dados sigilosos do inquérito, inclusive o relatório da autoridade policial — o que importou em prejuízo a algumas medidas requeridas por aquela autoridade — que representava pela prisão preventiva dos indiciados, bem como a trechos das interceptações telefônicas.

A partir daí, como se viu, houve uma progressão exponencial de informações na mídia escrita e falada ao longo da semana, o que permitiu inclusive que os investigados antecipassem suas defesas, seja por meio de publicações pagas veiculadas nos principais jornais desta cidade, seja por intermédio de entrevistas concedidas ao longo da semana.

Nesse quadro, cabe a pergunta: era possível e necessário que as prisões ocorressem sem a cobertura da mídia? Possível, certamente. Necessário, não. O primeiro significado do termo “público”, segundo Hannah Arendt, é de que tudo que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Ora, o pedido de prisão dos investigados estava na esfera pública (havia dias), assim como as investigações da polícia e do Ministério Público eram de domínio público (havia anos), daí porque não se justificava qualquer segredo na efetivação das prisões.

Certamente que o direito à informação não justifica a degradação da imagem de qualquer pessoa ou qualquer tipo de abuso, autorizando, nesses casos, a representação por abuso de autoridade, conforme prevê a lei 4.898/65.

Todavia não se vêem motivos para tanta preocupação com as ações da PF, o órgão policial mais respeitador dos direitos humanos neste país e ao qual cabe a função de polícia judiciária da União na repressão de crimes tradicionalmente cometidos pela elite nacional, como a evasão de divisas, a sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro. Talvez essa vocação e o efetivo exercício de suas atribuições não se coadunem com o pensamento de alguns para os quais o “alvo” da polícia deve, preferencialmente, ser a moradora da favela Coliseu.

Não há um projeto de República em curso, o que até mesmo os mais otimistas constataram diante dos últimos escândalos de Brasília, mas, se a Polícia Federal prosseguir cumprindo e fazendo cumprir ordens do Poder Judiciário, de forma imparcial e contra todos, talvez teremos algo republicano neste país.

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