Juíza em campo

Futebol não pode discriminar atuação das mulheres

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20 de setembro de 2005, 10h53

No universo machista, nada irrita mais os homens do que ver mulher dando palpite em jogo de futebol masculino. A indignação é ainda maior se a mulher for árbitro em uma partida importante.

Em recente clássico entre Corinthians e São Paulo, duas mulheres fizeram parte do trio de arbitragem, Ana Paula Oliveira e Maria Eliza Correia Barbosa. Em determinado momento, após o término da partida, o jogador argentino Carlitos Tevez, do Corinthians, insatisfeito com as decisões das árbitras, como sempre acontece com os atletas do time perdedor, declarou ser contra a participação de mulheres entre os juizes desportivos.

Evidentemente, a manifestação foi discriminatória contra as mulheres, pois a insatisfação com a arbitragem masculina também é muito freqüente, mas ninguém reclama do fato de o juiz ser homem.

Em defesa do jogador, o advogado João Zanforlin, que atua na Justiça Desportiva, em entrevista à Folha de São Paulo (13/9/2005), disse que “Tevez não discriminou ninguém. Ele acha que no futebol os homens impõem mais respeito e se sente mais confortável para se dirigir a eles. Ele só emitiu uma opinião”.

Como se vê, a emenda foi pior do que o soneto. Não adianta querer explicar o pensamento do argentino, o que ele disse está absolutamente claro. Ele não respeita as mulheres e prefere tratar com homens, o que significa exatamente discriminação e preconceito. Zanforlin reconheceu isso pensando defender Tevez e isentá-lo de qualquer intenção ofensiva, mas só fez reforçá-la. O problema é justamente não saber conviver com as mulheres de igual para igual. Se ela for juíza de futebol e tomar uma decisão que desagrade o jogador, deve, então, perder a função. E não só aquela que apitou o jogo, mas todas as criaturas do mesmo sexo.

Em nosso país, que possui legislação proibitiva da discriminação e do preconceito, nem Tevez nem ninguém pode externar esse tipo de opinião, sob pena de ter que responder judicialmente por seu ato, se a parte ofendida tomar a iniciativa de levar o caso ao conhecimento do Judiciário.

A Constituição Federal de 1988 proíbe todo e qualquer tipo de discriminação, além de estabelecer que homens e mulheres são absolutamente iguais, em direitos e obrigações. Assim, não cabe nenhum tipo de distinção de gênero em relação à capacitação profissional, sob pena de violação de princípio constitucional.

Em São Paulo, temos a Lei 11.369, de 28 de março de 2003, que veda qualquer forma de discriminação racial, ao idoso, à pessoa portadora de deficiência e à mulher, sob pena de multa.

A Ordem dos Advogados do Brasil, secção de São Paulo, entidade que sempre ocupou a vanguarda das lutas pela democracia e pelos direitos da cidadania, por sua “Comissão da Mulher Advogada”, protestou veementemente contra a postura do jogador e de qualquer outra pessoa que abraçar o mesmo preconceito, tendo em vista que nosso ordenamento jurídico não permite atitudes sexistas. Evidentemente, trata-se de uma forma de violência contra a mulher, pois objetiva cercear seu mercado de trabalho e colocá-la em posição de inferioridade social. Um atentado às mais elementares noções de igualdade de gênero.

É evidente que não existe nenhuma diferença intelectual entre homens e mulheres e que estas últimas estão perfeitamente capacitadas a apitar jogos de futebol bem como a exercer qualquer outra atividade tida, anteriormente, como exclusivamente masculina. A reserva de mercado machista está desmoronando em todos as profissões, no futebol não pode ser diferente.

Durante muito tempo as mulheres foram obrigadas a amargar intensas frustrações em suas vidas em conseqüência de um sistema social injusto, que as sufocava de todas as maneiras possíveis. Não foi por acaso que jogar futebol era uma das proibições mais estritamente observadas com relação à população feminina. Atualmente, embora existam times femininos, persistem as tentativas de desmerecer o desempenho das mulheres em campo. Esse tipo de injustiça não pode mais ser tolerado.

Graças ao avanço dos conceitos de direitos humanos e de cidadania em nosso País, a igualdade de direitos foi, finalmente, alcançada na legislação. O futebol também vai ter de se curvar a isso.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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