Justiça gratuita

TJ paulista concede Justiça gratuita para pessoa jurídica

Autor

  • Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro

    é procurador do Trabalho mestre em Direito especialista em Filosofia do Direito História e Filosofia da Ciência e em Direitos Humanos e Trabalho e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

19 de setembro de 2005, 15h06

A decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida no Agravo de Instrumento 400.331-4/1, reconheceu expressamente em sua ementa, em ação movida pela San Remo, detentora da marca Drible contra a São Paulo Alpargatas, que é admissível a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa jurídica havendo “comprovação da debilidade financeira mediante apresentação das declarações de renda da pessoa jurídica e da sócia majoritária”.

E do voto do relator, desembargador De Santi Ribeiro, se extrai a sua fundamentação: “A agravante juntou cópias das suas declarações de renda (fls. 85/87), bem como da sua sócia majoritária dos exercícios de 2004 e 2005 (fls. 89/94), evidenciando ao final a inatividade da agravante e o decréscimo da situação financeira da sócia majoritária (cf. doc. fls. 93). (…) Comprovado, portanto, de forma satisfatória que a agravante está numa situação financeira problemática, admissível conceder a ela os benefícios pretendidos”.

Observa-se, portanto, a novidade da decisão paulista, a qual não apenas é paradigmática, como revela ainda uma sensibilidade crescente do Poder Judiciário para com as sociedades empresárias. Reflexo, talvez, de uma mentalidade social mais abrangente de proteção e incentivo à preservação das pessoas jurídicas, da qual a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas é exemplo, pelo próprio espírito de “recuperação” de empresas, constante do seu próprio título.

Consolida-se, assim, o respeito ao princípio constitucional da igualdade de direitos e garantias, pelo reconhecimento de que a pessoa jurídica merece tanta proteção pelo Estado de Bem-Estar Social quanto a pessoa física, naquilo que não lhe for naturalmente incompatível, como é o caso do direito à Justiça gratuita.

A Constituição Federal de 1988 apresenta forte caráter principiológico, que não se restringe apenas ao seu Título I, denominado “Dos Princípios Fundamentais”, mas se mostra presente, também, em seu Título II, denominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Inaugura tal capítulo o principal repositório dos direitos e garantias individuais constitucionais, que é o artigo 5º, com seus 77 incisos, dois parágrafos e um caput no qual está gravado um dos mais importantes princípios constitucionais, o da igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza.

Quem são esses “todos”? Apenas as pessoas físicas? Se fosse a intenção do constituinte limitar a abrangência de concessão destes benefícios e direitos fundamentais, então ele teria consignado expressamente que eles findam na pessoa física. Mas nada disto se extrai do texto constitucional.

Existem direitos e garantias fundamentais que, pela sua natureza, só podem proteger as pessoas físicas, como, por exemplo, o direito de não ser submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (inciso III), o direito de crença religiosa (inciso VI), direito de herança (inciso XXX), dentre outros.

Mas aqueles que não são próprios da pessoa física podem proteger, também, as pessoas jurídicas. E, dentre tais direitos e garantias, se encontram os dos incisos XXXV, LV, e LXXIV, que estabelecem a apreciação do Judiciário sobre as demandas, o acesso dos litigantes ao processo com os recursos de que disponham, e a assistência judiciária ofertada pelo Estado, gênero do qual a Justiça gratuita é espécie.

Logo, inexiste no texto constitucional qualquer empecilho ao reconhecimento de que a pessoa jurídica tenha acesso ao Judiciário, com os recursos de que disponha, merecendo, inclusive, a Justiça gratuita.

Sequer na lei específica da assistência judiciária, que é a Lei 1.060/50, há qualquer restrição ao reconhecimento de que a pessoa jurídica possa se beneficiar da isenção de despesas e honorários processuais.

É comum que se interprete tal dispositivo legal como destinado meramente à pessoa física, pela menção existente na lei de que a gratuidade visa proteger a família da parte. Mas tal análise é incorreta, pois tanto no caput de seu artigo 4º, quanto no parágrafo único de seu artigo 2º, a lei diz, claramente, que o benefício será concedido a quem afirmar não ter “condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.

Observe-se que o radical “ou” constante do texto legal implica reconhecer que são duas as hipóteses legais de autorização de concessão do benefício, e que em apenas uma delas se exige a alegação de periclitação do sustento da família.

Logo, na outra hipótese, a de salvaguardar o sustento próprio, não existe vedação alguma à leitura que identifique que o sustento próprio mencionado possa ser o da pessoa jurídica, caso esta tenha que arcar com as despesas e honorários processuais.

Outra não tem sido a análise dada ao instituto apontado pelos nossos tribunais. O Tribunal de Justiça do Paraná, no Agravo 00.91.351-3-Maringá, relatado pela desembargadora Regina Afonso Portes, decidiu que “o art. 2.º da Lei 1.060/1950 deve ser interpretado com maior flexibilidade, pois a pessoa jurídica pode passar por dificuldades que não lhe permitam efetuar o pagamento de custas e honorários sem prejuízos do próprio sustento”.

No mesmo sentido já havia se posicionado o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como se observa pelo voto do juiz relator Armando Freire, condutor da decisão colegiada do Agravo 305.502-5-Governador Valadares: “A Lei 1.060/1950 não faz restrições quanto ao acesso de pessoa jurídica à assistência judiciária, sendo esta direito constitucionalmente garantido na hipótese de insuficiência de recursos”.

A tese defendida já era antiga no próprio Superior Tribunal de Justiça, que em 1998, julgando o Recurso Especial 135.181-RJ, entendia expressamente, por meio da relatoria do Ministro Costa Leite que “o prejuízo do sustento próprio, a que se refere o parágrafo único do art. 2.º da Lei 1.060/1950, pode dizer também com a pessoa jurídica”.

O que une todas estas decisões é o reconhecimento da debilidade financeira da pessoa jurídica como condição e autorização para a concessão da Justiça gratuita.

Mas não é só esta alegação que pode ser utilizada para a invocação do direito à isenção. As pessoas jurídicas são criações da mente humana, e por trás delas existem, sempre, pessoas físicas que as administram, recolhem os frutos da atividade exercida e, em diversas situações, respondem pelos atos e obrigações das assumidos pelas entidades.

Demonstrando-se que uma demanda poderá gerar despesas insuperáveis não apenas para a pessoa jurídica, mas também para as pessoas físicas que são suas sócias, então aí existe a possibilidade de concessão do benefício da Justiça gratuita à pessoa jurídica.

E outra conclusão seria ilógica, pois se é ainda objeto de discussão o direito da pessoa jurídica a tal benefício, por outro lado é pacífico o direito da pessoa física à isenção das despesas e honorários processuais.

Comprovada, portanto, a incapacidade econômica dos sócios, aliada à da pessoa jurídica, mais um motivo se tem para a concessão da Justiça gratuita à pessoa jurídica.

E no caso em tela onde se discute os danos materiais de aproximadamente R$ 480 milhões causados pela não utilização da marca em contrato de licença de absoluta exclusividade, o tratamento não poderia ser outro, uma vez que a Drible e seu sócio ficaram sem recursos ao rescindirem o contrato com a São Paulo Alpargatas pelo inadimplemento contratual.

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