Interrupção da gravidez

Tribunal de Justiça gaúcho autoriza aborto de feto anencéfalo

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19 de setembro de 2005, 13h56

A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul autorizou uma mulher a interromper a gravidez de um feto anencéfalo (que tem ausência parcial ou total do cérebro).

No entendimento dos desembargadores, a partir da constatação de que o feto sofre de anencefalia, impedir o aborto é submeter a mãe a um sofrimento inaceitável. A mulher grávida recorreu ao Tribunal de Justiça gaúcho contra decisão de primeira instância, que negou seu pedido.

Para relatora do caso em segunda instância, desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, “o direito penal não pode exigir das pessoas comportamentos heróicos, logo, a lei penal não deve ser aplicada cegamente, sem análise minuciosa do caso concreto”.

Segundo a desembargadora, “o caso sob apreciação é excepcional pelas suas características e, mesmo não estando apoiado nos dispositivos penais vigentes tem embasamento na causa supra-legal da inexigibilidade de outra conduta, porque nem o direito, tampouco a lei positiva podem exigir heroísmo das pessoas a ponto de violar sua higidez mental e psíquica e a própria dignidade, no caso da gestante”, concluiu.

O voto de Elba foi acompanhado pelo desembargador Newton Brasil de Leão. Foi vencido o desembargador Danúbio Edon Franco. Cabe recurso.

Panorama

Nos últimos meses, a Justiça de Goiás, Minas Gerais, Pernambuco e do Rio Grande do Sul autorizou o aborto de fetos anencéfalos enquanto o Supremo Tribunal Federal não julga a ADPF — Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental que discute a permissão de aborto de fetos anencéfalos.

Processo 70011918026

Leia a íntegra da decisão

APELAÇÂO – ABORTO DE FETO ANENCEFÁLICO E ANACRÂNICO – INDEFERIMENTO – INEXISTÊNCIA DE DISPOSIÇÃO EXPRESSA – CAUSA SUPRA-LEGAL DE INEXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA – ANENCEFALIA – IMPOSSIBILIDADE DE VIDA APELAÇÃO – ANTECIPAÇÃO DE PARTO DE FETO ANENCEFÁLICO E ANACRÂNICO – LIMINAR DE SUSPENSÃO DOS PROCESSOS EM ANDAMENTO GARANTINDO DIREITO DA GESTANTE – DEMAIS DISPOSIÇÕES DA LEI 9.882/99 – ARTIGO 11 – MAIORIA DE 2/3 – RELEVÂNCIA DO TEMA – INEXISTÊNCIA DE DISPOSIÇÃO EXPRESSA – CAUSA SUPRA-LEGAL DE INEXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA – ANENCEFALIA – IMPOSSIBILIDADE DE VIDA AUTÔNOMA.

O feto anencefálico, rigorosamente, não se inclui entre os abortos eugênicos, porque a ausência de encéfalo é incompatível com a vida pós-parto extra-uterina. Embora não incluída a antecipação de parto de fetos anencéfalos nos dispositivos legais vigentes (artigo 128, I, II CP) que excluem a ilicitude, o embasamento pela possibilidade esteia-se em causa supra-legal autônoma de exclusão da culpabilidade por inexigível outra conduta. O “aborto eugênico” decorre de anomalia comprometedora da higidez mental e física do feto que tem possibilidade de vida pós-parto, embora sem qualidade, o que não é o caso presente, atestada a impossibilidade de sobrevivência sem o fluido do corpo materno.

Reunidos todos os elementos probatórios fornecidos pela ciência médica, tendo em mente que a norma penal vigente protege a “vida” e não a “falsa vida”, legitimada a pretensão da mulher de antecipar o parto de feto com tal anomalia que o torna incompatível com a vida. O direito não pode exigir heroísmo das pessoas, muito menos quando ciente de que a vida do anencéfalo é impossível fora do útero materno. Não há justificativa para prolongar a gestação e o sofrimento físico e psíquico da mãe que tem garantido o direito à dignidade. Não há confronto no caso concreto com o direito à vida porque a morte é certa e o feto só sobrevive às custas do organismo materno.

Dentro desta ótica, presente causa de exclusão da culpabilidade (genérica) de natureza supra-legal que dispensa a lei expressa vigente cabe ao judiciário autorizar o procedimento.

PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, dar provimento ao apelo defensivo, autorizando a paciente a interromper a gravidez de feto anencéfalo com a condição de ser praticado por médico, vencido o Presidente que suspendia o processo nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores DES. DANÚBIO EDON FRANCO (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. NEWTON BRASIL DE LEÃO.

Porto Alegre, 09 de junho de 2005.

DESA. ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS,

Relatora.

RELATÓRIO

DESA. ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS (RELATORA):

Trata-se de Apelação-Crime interposta por MILLA CARLA AMARAL DA SILVA, contra a sentença que julgou improcedente o pedido de autorização para interrupção de gestação, por entender tratar-se de pedido impossível – artigo 267, inciso VI, do CPC, subsidiariamente aplicado.


Em suas razões, busca a reforma da decisão, tendo em vista que o prolongamento da gravidez compromete a integridade físico-psicológica da apelante, argumentando que quanto ao mérito há demonstração, através de prova técnica, que a gravidez da requerente recebeu diagnóstico de feto apresentando anencefalia, além de não possuir a formação dos ossos da cabeça, alteração do desenvolvimento fetal incompatível com a vida pós-parto.

Na mesma linha do parecer de folha 33, o Ministério Público de primeiro grau manifesta-se pela concessão da autorização.

Nesta instância, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Paulo Fernando dos Santos Vidal, ofereceu parecer escrito, opinando pelo provimento da apelação (folha 36/38).

É o relatório.

VOTOS

DESA. ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS (RELATORA):

MILLA CARLA AMARAL DA SILVA ingressou com pedido de AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ junto à 2ª Vara do Júri de Porto Alegre, julgada improcedente a ação pela Drª Juíza de Direito em declarar extinta a ação penal, com fundamento no artigo 267, VI do CPC que entendeu que se trata de aborto eugenésico não amparado nas disposições legais de exceção referendadas no artigo 128, I e II do CP, do aborto necessário e do sentimental ou humanitário. Prossegue a decisão no sentido de que: ”Não há como conferir legitimidade ao aborto de feto portador de anencefalia porque ilegal e ilegítima a interrupção da gravidez nestes casos, não se configurando a excludente de ilicitude das exceções legais, embora reconheça o juiz, que há discussões para a alteração, ainda não aprovada. O Código de 1969, ampliava os casos de licitude, mas também não chegou a ser aprovado”.

1- Há uma questão preliminar a ser examinada sobre a “suspensão dos processos e decisões em andamento”, na forma do artigo 5º da Lei 9.882/99, deferida em liminar monocrática pelo Ministro Marco Aurélio de Mello na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54-8, interposta pela Confederação dos Trabalhadores em Saúde juntamente com o reconhecimento do direito constitucional das mulheres grávidas de em antecipar a operação, de parto, comprovado tratar-se de fetos anencéfalos interrompendo, garantindo seus direitos constitucionais.

A liminar foi concedida em razão do recesso do mês de julho/04. Na sessão seguinte, houve por maioria, revogação da segunda parte da liminar, mantida pelo STF a primeira parte de sobrestar processos e decisões não transitadas em julgado que tivessem como tema o direito das mulheres grávidas de fetos anencéfalos em submeter-se a interrupção de gravidez.

A liminar que suspende os processos em tramitação no país tem efeito erga omnes, segundo o que preceitua o artigo 5º da Lei 9882/99 se proferida por maioria absoluta dos Ministros.

Ocorre que, como se vislumbra da ata de julgamento do Supremo Tribunal Federal, a liminar suspendendo as ações não foi referendada, ao que se depreende da ata, por maioria absoluta. Os Ministros Ellen Gracie, Cezar Peluso e Eros Grau, não a admitiram a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Outros três Ministros, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence se manifestaram favoráveis a manutenção da liminar concedida. Não se tem clareza, mas do contexto vislumbra-se que somente quatro Ministros, cinco se o Presidente também votou pela cassação da liminar, deixaram de referendar a decisão do Ministro Marco Aurélio. A ata, inclusive, registra “por maioria” “e não por maioria absoluta”, decorrendo daí que não há vedação para que se aprecie a questão posta no juízo ordinário.

A verdade é que a Confederação que argüiu o Descumprimento de Preceito Fundamental, ao contrário de obter uma posição definitiva sobre a matéria por entender que se trata de uma antecipação de parto de anencéfalos e, portanto, não haveria lesão a direitos fundamentais, nem afronta à legislação penal, artigo 124, 125 ou a dispositivos penais, de certa forma teria criado um obstáculo legal com a suspensão de parte da liminar do Ministro Marco Aurélio. Contudo, do exame da ata não se evidenciou que a suspensão dos processos em andamento tenha sido por maioria absoluta.

Mesmo que a liminar parcialmente mantida pudesse ter o voto de 2/3, o que não está consignado na ata, o artigo 11 da Lei 9.882/99, prevê, como se trata de excepcional interesse da sociedade, que poderão ser limitado os efeitos ao trânsito em julgado ou fixado o momento de tal eficácia, aí sim, com efeito vinculante. Como se vê, em nenhuma das sessões foi determinada a eficácia, logo, não me parece que ao examinar a questão de relevância para os direitos da gestante esteja sendo afrontada a necessária vinculação.

Por essas considerações estaria conhecendo a matéria e superando a incidência do sobrestamento sobre todos os processos, nos termos do artigo 5º da Lei 9.882.


2- Mérito

2.1. A sentença indeferitória da Drª Juíza de Direito da 2ª Vara do Júri, embasa-se na estrita legalidade das disposições vigentes do artigo 128, I e II do CP, que afastam a ilicitude, tão somente nos casos de aborto necessário (quando é a única forma de salvar a vida da mãe) e o humanitário, (este se a gravidez é decorrente de estupro ou atentado violento ao pudor) não comportando, extensão analógica aos casos de anencefalia.

Contudo, a ausência de lei expressa, não significa que não possa o Judiciário, face o caso concreto comprovada a excepcionalidade, embasando-se em outros dispositivos, mesmo em princípios constitucionais ou supra-legais como a inexigibilidade de outra conduta, entender que é possível antecipar o parto em casos expressos de anencéfalos. Presente para tanto os direitos da gestante como pessoa e sua dignidade como ser a quem a natureza dotou da função de preservar a espécie, mas que certa a morte poderia, em tese, antecipar o parto, sem que com isto a viole e os profissionais de saúde dispositivos constitucionais e penais vigentes.

2.2. A interrupção da gestação de fetos anencefálicos, deixa-se claro, não corresponde, rigorosamente, ao “aborto eugênico“, que ocorre quando constatada anomalia comprometedora da higidez mental e física do feto, mas com possibilidade de sobrevida pós-parto, não importa se curta ou longa é interrompida a gravidez.

Neste caso, conforme a maioria dos doutrinadores há aborto que é realizado atendendo o impacto emocional, psicológico da mãe e familiares, significativo, mas não superior à perspectiva de vida do recém nascido, embora com deformidades. Ontologicamente, a eugenia trata da reprodução e do aperfeiçoamento da raça, portanto, a interrupção da gravidez para “preservar a qualidade de vida do ser”, não encontra, por ora sustentação em causa legal, princípio vigente a permitir que o juiz proveja a espécie.

Até mesmo para embasar-se em causas supra-legais, necessário analisar-se o caso específico e concreto com todas as provas científicas, médicas e de outros profissionais (psiquiatras, psicólogos), avaliando os bens em jogo e a hierarquia deles. O caso presente, a meu ver, contudo, não corresponde ao aborto eugenésico, propriamente dito.

3. Anencefalia é anomalia que torna incompatível a vida do feto destituído de encéfalo, dependente tão só da permanência no ventre materno, assim mesmo, em 50% dos casos, a morte ocorre antes de decorrido o tempo gestacional. A morte é certa, não há possibilidade alguma de vida extra-uterina.

A legislação Penal, especificamente nos artigos 124 e seguintes protege a vida ao penalizar o aborto, prevendo os dois casos de exceção no artigo 128, condicionado à prática (interrupção de gravidez) à realização por médico. São casos legais que excluem a ilicitude. A redação do caput, embora imprópria como registram os doutrinadores, Magalhães Noronha, Mirabete, Guilherme de Souza Nucci e outros, são excludente da ilicitude, e não exclusão da culpabilidade. A redação da forma como verbalizada é imprópria ao dispor: “Não se pune o aborto praticado por médico; I – se não há outro meio de salvar a gestante; e II – se a gravidez resulta de estupro, precedido do consentimento da gestante”.

4. A interrupção da gravidez de fetos anencefálicos não se embasa na excludente da ilicitude por não estar prevista no dispositivo, acima referido, portanto, não autorizada pela lei penal positiva e legislada. Não se pode olvidar que a evolução da sociedade é dinâmica e o direito deve acompanhar os avanços que criam novas relações jurídicas entre os cidadãos e instituições e o avanço tecnológico e científico que nos últimos 50 anos, atropelou concepções antigas e, mesmo que não inverta os bens e valores fundamentais permite se vislumbre, em casos concretos causas supra-legais que tornam obsoletas, concepções da época do Código Penal: 1940.

A meu sentir, comprovada a anomalia do feto, para efeitos de interrupção da gestação ante os avanços fantásticos da medicina e da tecnologia aplicada nas últimas décadas, admiráveis em todos os sentidos passou a desvendar o ser humano, detectando não só as alterações no feto, mas estabelecendo com segurança a possibilidade de vida pós-parto, e, em outros casos, a total incompatibilidade com esta, ou seja: a morte do feto tão logo expulso do corpo materno voluntária ou involuntariamente.

Na segunda opção, quando há impossibilidade total com a vida, tem-se entendido que legitimado “o médico a proceder à operação cirúrgica de antecipação do parto, embasando-se a autorização não na lei expressa, mas em causa supra-legal, princípio de direito que independe da lei que seria a dignidade da mulher, sua higidez mental e psíquica, excluindo eventual tipificação por ausência de culpabilidade”.


4.1. O juiz, reunidos todos os elementos probatórios fornecidos pela ciência médica, face ao caso concreto, tendo em mente que a norma penal vigente protege a “vida“ e não a “falsa vida”, poderá dentro de sua livre convicção, entender que inexigível da mulher outra conduta que não seja a interrupção da gravidez, buscando para tanto o atendimento médico especializado, único autorizado a proceder à cirurgia de antecipação do parto.

Não se pode exigir da gestante que prossiga carregando a morte já que a vida é impossível, comprovado cientificamente, que se o feto não morrer no ventre ao longo dos 09 meses, inexoravelmente, desaparecerá no momento de nascer ou poucos minutos, no máximo pouquíssimas horas, jamais tendo ultrapassado na literatura médica 12 horas. (Comentários do artigo 128 CP – Guilherme Souza Nucci, pág. 427).

4.2. O caso presente é de feto anencefálico, anomalia que pela ausência de encéfalo torna incompatível a vida, conforme certificado pela médica folha 15, Drª. Maria Eliane Paulino de Oliveira que atende a paciente na Policlínica Militar de Porto Alegre, atestado fornecido após a realização de três ecografias que também acompanham o processo. Nem mesmo perspectiva de curta vida existe, uma vez que ao nascer, apenas apresentará sinais vitais que cessarão, imediatamente, no máximo, se sobrevida de algumas horas decorre do reflexo remanescente da atividade físico-química dos órgãos do ser quando dentro do ventre, mas sem vida autônoma.

Acrescente-se que além de não possuir cérebro, o feto sequer tem qualquer ossatura do crânio, o que demonstra a total incompatibilidade com a vida, e os sinais vitais existentes são, exclusivamente, por encontrar-se no útero materno recebendo o fluido necessário para manter os batimentos cardíacos com eventual crescimento.

4.3. Assim, sem antecipar posição jurídica definitiva, mas inclinando a admitir o que foi examinado e deferido na liminar pelo Ministro Marco Aurélio, embora respeitados os doutrinadores da lavra de Magalhães Noronha, Frederico Marques e, modernamente a de Guilherme de Souza Nucci, que rejeitam “a legitimação do aborto de fetos com anomalias monstruosas, com curta expectativa de vida”, e daqueles em sentido contrário, como Alberto da Silva Franco que entendem configurar o aborto eugênico uma excludente de ilicitude, reserva-se ao exame de caso concreto que venham a ser postos ao Tribunal, peço vênia para transcrever o que diz Souza Nucci.“in Comentários ao Código Penal – pág. 429 edição 2003” que bem responde às ansiedades e perplexidade do tema: “a curta expectativa de vida do futuro recém nascido também não deve servir de justificativa como aborto, uma vez que não se aceita no Brasil a eutanásia, vale dizer, quem está desenganado não pode ser morto por terceiros, que terminarão praticando homicídio (ainda que privilegiado. Entretanto, se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe cérebro, por exemplo), não se cuida de “vida” própria, mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica. Assim, a ausência de cérebro pode ser motivo mais que suficiente para a realização do aborto, que não é baseado porém em características monstruosas do ser em gestação, e sim em sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma fora do útero materno”. (Grifo meu).

5. Conclui-se que: comprovado que a mulher está grávida de feto anencefálico, como no presente, realizadas três ecografias, acrescidas dos relatórios médicos atestando a total incompatibilidade com a vida, independe de norma legal positiva a autorização de operação para antecipar o parto, evita-se o prolongamento do sofrimento físico, psíquico e emocional da mãe, consciente ela de que traz no ventre não a vida querida e desejada, mas a morte inevitável. Neste caso, a meu sentir, inexigível outra conduta da gestante, tanto para ela que consente com o abreviamento da gestação, inexistindo ilícito para o médico que procede a cirurgia, respaldado nas comprovações exaustivas da condição de anencéfalo do feto, cabendo reconhecer-se que não configura o crime dos artigos 124 e 125 do CP, judicial excluindo-se a culpabilidade (sentido amplo).

5.1. “O direito não pode exigir das pessoas, cidadãos comportamentos heróicos, logo, a lei penal não deve ser aplicada, cegamente, sem análise minuciosa do caso concreto”, desconhecendo a dinâmica do processo civilizatório que se reflete no direito. Sendo o feto incompatível com a vida autônoma, a interrupção da gravidez não configura a meu sentir uma sentença de morte ao nascituro, não havendo afronta ao valor vida, protegido na Constituição Federal e na legislação Penal.

Certamente a Constituição e as leis ordinárias não admitem a pena de morte, porém, salvo princípios teológicos abstratos de cada um, não sendo o Estado Brasileiro religioso, mas laico, não pode o direito ficar insensível à evolução da sociedade, da ciência e os padrões comportamentais e de relacionamento delas decorrentes.

O caso sob apreciação é excepcional pelas suas características e, mesmo não estando apoiado nos dispositivos penais vigentes (artigo 128, I, II do CP) tem embasamento na causa supra-legal de inexigibilidade de outra conduta, exatamente, por que nem o direito, tampouco a lei positiva podem exigir heroísmo das pessoas a ponto de violar sua higidez mental e psíquica e a própria dignidade humana, no caso da gestante.

Ante o exposto, é de prover-se o apelo, autorizando a paciente MILLA CARLA AMARAL DA SILVA a interromper a gravidez de feto anencéfalo com a condição de ser praticado por médico, implicitamente em estabelecimento hospitalar.

Expeça-se o competente alvará para autorizar a antecipação de operação de feto anencéfalo.

APELO DEFENSIVO PROVIDO.

DES. DANÚBIO EDON FRANCO (PRESIDENTE E REVISOR):

1. Com a vênia da eminente Relatora, tenho que há questão prejudicial ao exame do mérito recursal, porquanto, em decisão proferida em 20 de outubro de 2.004, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, impetrada pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE – CNTS, aquela Corte referendou a primeira parte da liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio, em 01 de julho de 2004, no que diz respeito ao sobrestamento dos processos e decisões sobre o tema, não transitadas em julgado, vencido o Senhor Ministro Cezar Peluso e, também por maioria, revogou a liminar deferida, na segunda parte, em que reconhecia o direito constitucional da gestante de se submeter à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos os Senhores Ministros Relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Assim, tenho que imperativo o sobrestamento de todos os feitos que envolvam a matéria posta, sejam de natureza cível ou criminal, determinação que, aliás, decorre da própria lei regente – n.º 9.882/99 –, em seu art. 5º , § 3º.

O voto, então, é pela suspensão do processo até apreciação do mérito da ação constitucional pelo Pretório Excelso, ou decisão modificativa da orientação por aquele lançada.

DES. NEWTON BRASIL DE LEÃO – Acompanho integralmente o voto da eminente Relatora.

DES. DANÚBIO EDON FRANCO – Presidente – Apelação Crime nº 70011918026, Comarca de Porto Alegre: “POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO APELO DEFENSIVO, AUTORIZANDO A PACIENTE A INTERROMPER A GRAVIDEZ DE FETO ANENCÉFALO COM A CONDIÇÃO DE SER PRATICADO POR MÉDICO, VENCIDO O PRESIDENTE QUE SUSPENDIA O PROCESSO NOS TERMOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”.

Julgador(a) de 1º Grau: LAIS ETHEL CORREA PIAS

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