Saída para a crise

É preciso um pacto de convivência, diz José Eduardo Cardozo

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18 de setembro de 2005, 14h42

Em entrevista à Consultor Jurídico, o deputado José Eduardo Martins Cardozo (PT-SP) afirma que a melhor saída para a crise política é a punição de todos os culpados de transgressões éticas e um pacto de convivência mínima entre todos os partidos. “Se não houver um entendimento para uma eventual eleição de um novo presidente da Câmara, o resultado será um novo desastre”, diz.

Mesmo sem disfarçar a imensa frustração com a débâcle do seu próprio partido, Cardozo acredita que soluções permanentes para a crise dependem de uma ampla reforma política na qual esteja contemplada a valorização dos partidos. Para isso, ele acha imprescindível a exigência da fidelidade partidária e de um sistema eleitoral menos volátil. Embora considere difícil, diz que o ideal seria a adoção do voto distrital misto.

Cardozo é um caso raro de petista que tem passado pelas CPIs que assolam o país sem fazer feio. Primeiro porque ele está na banca de investigadores e não de investigados. Sem manchas em sua reputação ética, Cardozo é o sub-relator de contratos da CPMI dos Correios, que investiga o mensalão e outras supostas falcatruas de seus companheiros de partido. Em segundo lugar, porque, com sua atuação isenta e seus conhecimentos de advogado, ele tem contribuído muito para que a CPI avance.

Esta postura, da qual ele poderia se orgulhar, só lhe rende problemas dentro de seu próprio partido. A maior resistência a que ele seja o candidato de consenso numa cada vez mais provável substituição de Severino Cavalcanti (PP-PE) parte justamente dos setores do PT mais comprometidos com o mensalão. A rejeição é recíproca: Cardozo não admite concessões para aqueles que, segundo ele, traíram os princípios éticos do partido.

Participaram da entrevista o diretor de redação Márcio Chaer, o editor-executivo Mauricio Cardoso, e os repórteres Leonardo Fuhrmann, Aline Pinheiro e Adriana Aguiar.

Leia a entrevista

ConJur —Tem pizza no forno das CPIs?

José Eduardo Cardozo — Todos os órgãos em geral são corporativos. O Parlamento tem uma dose de corporativismo impressionante. Se a sociedade relaxar, eu acho que não demora muito para sair a pizza. E o forno fica permanentemente quente. Hoje eu acho que ninguém ousa propor um acordo, mas o resultado vai depender muito da energia que a sociedade passar.

ConJur — E se não for pizza, o que vai sair de todo esse processo?

José Eduardo Cardozo — É difícil prever. Uma possibilidade é que haja uma grande desagregação que pode deixar o Legislativo paralisado por um ano e meio. Outra possibilidade é os partidos se conscientizarem da gravidade da situação, aplicarem as punições que têm que ser feitas e buscarem um pacto de convivência mínima. Se os partidos não se conscientizarem de que é hora de buscar consensos para eleger o sucessor do Severino na Presidência da Câmara, essa eleição vai ser um desastre. No entanto, sinto que hoje há um clima de busca de consenso, há um clima de construção de uma identidade: “gente, vamos fazer a casa funcionar”. Não dá para colocar a disputa partidária à frente da instituição nesse momento. Se nós conseguirmos um processo desse tipo, podemos ter um final bom, com a utilização da energia gerada pela crise para promover mudanças.

ConJur — Em nome de fazer a limpeza na política, não está se perdendo uma oportunidade para mudar o sistema?

José Eduardo Cardozo — Pois é. Quando você cinge a discussão a dezoito, vinte deputados, a este ou aquele ministro, se o presidente sabia ou não sabia, você está deixando de potencializar a crise para buscar soluções mais definitivas. As causas disso tudo são muito mais profundas. É questão de tempo para outros escândalos se repetirem em maior ou menor intensidade. Vamos lembrar do Fernando Henrique Cardoso. O governo conseguiu evitar a CPI mas a questão da compra de votos para a reeleição foi evidente naquela época. Se o problema fosse enfrentado, talvez não tivesse acontecido de novo agora. A questão é: ou enfrentamos os problemas do ponto de vista estrutural, sem prejuízo de cortar as cabeças que têm que ser cortadas, ou vamos repetir as crises ciclicamente a cada cinco, dez anos. É inevitável.

ConJur — Na CPI, quando o senhor fala isso, dizem que quer defender o governo.

José Eduardo Cardozo — São duas discussões que correm paralelas: punição dos que erraram e correção dos erros para que esses erros não se repitam futuramente.

ConJur — Como é ser governo em uma CPI?

José Eduardo Cardozo — O que mexe um pouco mais com a gente é o lado emocional. Uma coisa é você estar investigando pessoas com quem você nunca conviveu, e outra é você colocar no banquinho pessoas que estavam ao seu lado e você não desconfiava que faziam certas coisas. É emocionalmente pesado.


ConJur — Interrogar o Delúbio não foi mole.

José Eduardo Cardozo — Para mim, muito mais pesado talvez tenha sido interrogar o Silvinho. O Silvinho foi da coordenação da campanha do Eduardo Suplicy a governador do estado [de São Paulo], muitos anos atrás, comigo. A gente convivia diretamente. Essa questão de convivência é complicada. Ou você tende a poupar, ou tende a ficar com um ódio cego, a querer projetar a sua raiva. Não são momentos fáceis. Na própria argüição do Delúbio fiquei muito irritado. Fui um dos últimos a falar e percebi que o Delubio não ia responder nada. Eu normalmente não faço discursos políticos na CPI. Mas com o Delúbio eu fiz uma fala política. “Olha, vou falar como militante do PT. Não vou falar como deputado. Para nós, militantes do PT, ouvir esse tipo de coisa que você está fazendo é uma coisa que machuca, dói. E peço a você que repense”.

ConJur — Como advogado, como é que você vê o tratamento que tem sido dado aos depoentes?

José Eduardo Cardozo — Eu acho que muitos dos meus colegas parlamentares não têm o menor senso, o mínimo, de respeito. O depoente seja ele quem for, tem que ter sua dignidade respeitada. Então, de repente, você vê alguns deputados darem pito no cara, dar bronca. “O que o senhor acha? O senhor está envergonhado?”. CPI não é confessionário, não é divã de analista, não é conselho familiar para ficar dando bronca. Há algumas coisas que eu não entendo. Chegar para o depoente e falar assim: “O senhor se considera um hipócrita?”. A quem interessa saber se o cara se considera um hipócrita. “O que a sua mãe está pensando ao ver o senhor falar isso?”. Os presidentes das CPIs deveriam coibir esse tipo de pergunta. Elas são indevidas. Mas o pior é o destrato. Isso é inaceitável.

ConJur — O que o senhor acha da atuação da OAB em torno desses episódios todos?

José Eduardo Cardozo — O ideal, na minha opinião, seria a OAB abrir um canal de diálogo com o Legislativo, já que há muita desinformação. Quando começaram os depoimentos, eu, a Denise Frossard [PPS-RJ], e outros, levantamos a questão para saber se o indivíduo estava depondo como testemunha ou como investigado. Porque isso é chave para você ver se a pessoa pode mentir, se não pode mentir. Em toda CPI isso é uma novela. Aí o cara quer dar voz de prisão para o investigado que mentiu. Eu acho que a OAB poderia ter um tipo de canal preventivo de discussão com o Parlamento para que algumas coisas fossem acertadas, inclusive regulamentadas. Hoje, por exemplo, existe uma discussão real do papel do advogado na CPI em relação ao investigado e à testemunha.

ConJur — O advogado pode falar?

José Eduardo Cardozo — Essa é a questão. Nós temos uma decisão, inclusive que foi relator o ministro José Celso de Mello Filho, uma decisão muito liberal, que relaciona a CPI ao que dispõe o Código de Processo Penal. Chega inclusive a dizer que o advogado pode conversar com a própria testemunha, o que é bastante discutível. Essa é uma questão polêmica que, até pelo efeito da CPI, tínhamos que fazer uma regulamentação regimental. No fundo, fica uma zona de incerteza mesmo para quem estuda e está mais adaptado com o meio. Imagine o deputado que nunca conviveu com isso, que não sabe. Ele vê o advogado falando e já quer prender. A OAB poderia aproveitar esse momento e abrir um processo de discussão para que nós pudéssemos aperfeiçoar o nosso regimento que é muito pobre em regras de processamento de CPIs e aí normatizar essas situações.

ConJur — Inclusive do ponto de vista da inquirição tem deputado que parte para a agressão, para a ameaça.

José Eduardo Cardozo — São coisas absurdas. Há certos comportamentos que são qualificadores de dano moral. Você xingar a pessoa, “o senhor é isso”, “isso é uma lavanderia de dinheiro”. Pelo amor de Deus, é inacreditável esse tipo de coisas. Essas situações teriam de constar do código de ética dos parlamentares. Tinha que constar do regimento que o presidente deve indeferir perguntas que sejam consideradas ofensivas à dignidade do depoente e perguntas que são juízos de valor.

ConJur — Não existe uma regulamentação?

José Eduardo Cardozo — Tem um dispositivo constitucional que trata das CPIs. Diz que os regimentos irão cuidar da organização da CPI. Aí você tem o regimento da Câmara, do Senado, o regimento comum do Congresso Nacional que trata do assunto de uma maneira muito superficial. E tem uma Lei de 1952, em que a maior parte dos artigos não foram recepcionadas pela Constituição de 1988, só a parte criminal. Então acaba criando aquela confusão medonha.

ConJur — Já se sugeriu até uma CPI das CPIs.

José Eduardo Cardozo — A gente precisa mesmo. O problema é que como há um vazio normativo, os advogados pegam o Código de Processo Penal e tentam aplicar todas as regras, como se fosse um processo penal comum na CPI. Então fica uma loucura. Na CPI que eu presidi, em 1999, os advogados queriam entrar com recurso contra a decisão do presidente, aplicar embargo de declaração na decisão, coisa maluca. O que me convenceu pragmaticamente que a tese teórica do direito de ampla defensa é rigorosamente incompatível com a CPI. Por isso mesmo, você precisa normatizar, ter regras muito claras. Quando acabar essa confusão, minha idéia é propor para a mesa diretora uma regulamentação da CPI de forma detalhada.


ConJur — CPI funciona?

José Eduardo Cardozo — Para investigar relações de poder é um instrumento insubstituível. Como ela faz investigação pública, cria um apelo para a sociedade que tem uma força avassaladora contra o poder. O poder pelo jogo de influência, pelo jogo de bastidor, tem muitos meios para parar a investigação. Numa CPI é mais complicado. É muito comum você estar numa CPI e receber informações da sociedade. Ligam para o gabinete e pedem para perguntar isso ou aquilo. A investigação pública, além do apelo, tem um papel fundamental em criar informação. Agora, tem que ser realizada com critério, tem que evitar ao máximo que ela se transforme em foco de disputa de política eleitoral. É impossível não ter disputa, mas não pode ultrapassar o limite da razoabilidade. Não pode comprometer a investigação por causa da disputa política.

ConJur — A crise não acabou atribuindo ao PT problemas que na verdade são de todo o sistema político?

José Eduardo Cardozo — É evidente que esse escândalo teria impacto em qualquer governo. Tem mais impacto no PT. Por quê? Porque o PT sempre foi identificado com a ética. Na medida em que mostra dirigentes ou parlamentares petistas violando aquilo que nós denunciamos a vida inteira, então isso tem um apelo emocional de raiva, de traição que nenhum outro partido teria. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: o PT é um partido. Se um prefeito do PT rouba é o prefeito do PT que está roubando. Se um prefeito de outro partido rouba é o Zezinho que está roubando. O partido não é relevante para essa referência. Quando o Hidelbrando Paschoal foi caçado por serrar pessoas ao meio, ninguém dizia que o partido dele era partido de serrador. Era ele.

ConJur — O PT está provando do próprio veneno?

José Eduardo Cardozo — No caso do PT, se faz uma generalização estranha. Vi artigos em jornal dizendo que o PT é uma quadrilha. Todo petista é um bandido. Mas o que é isso?! É evidente que isso é uma generalização indevida, mas que guarda relação com a postura daqueles que defenderam a vida inteira uma coisa que não poderiam ter traído.

ConJur — O que vai sobrar do PT?

José Eduardo Cardozo — Não dá para saber. Enquanto permanecerem no PT pessoas que nós consideramos que traíram os princípios partidários, aqueles que são contra esse tipo de coisa vão ficar pouco confortáveis no partido. Vão lutar para tirar os outros, com a clareza de que se não tirar, o partido deixou de ser aquela referência que nós sempre defendemos. Por outro lado, quem está nesse processo obviamente não vai querer ser responsabilizado. Então você tem aí uma disputa terrível que tende a se desdobrar no futuro de uma forma muito forte.

ConJur — Não é engraçado que um partido firme com suas posições ideológicas seja comandado por um grupo que tem o nome de Campo Majoritário?

José Eduardo Cardozo — O Campo Majoritário não é ideológico, é de poder. O que une é o poder. Tem segmentos diferentes ali dentro. Não se pode dizer, por exemplo, que o grupo do José Dirceu pense a economia como pensa o grupo do Palocci. Mas ambos estão no Campo Majoritário, que é uma junção de segmentos que foi formado pragmaticamente para combater correntes mais à esquerda. Todos que não compactuavam com as visões mais à esquerda uniram-se, independentemente do que pensavam, em um projeto para manter o poder partidário.

ConJur — O campo majoritário é o PFL do PT.

José Eduardo Cardozo — Talvez .

ConJur — O senhor continua no Campo Majoritário.

José Eduardo Cardozo — Minha dúvida é se existe Campo Majoritário ainda. Eu só posso continuar em uma coisa que existe. A situação está bastante desgastada. Afloraram contradições éticas dentro deste grupo que acho impossível manter a agregação. Não se pode esquecer que certos setores de esquerda sempre defenderam que, para a revolução, os fins justificam os meios. E aí para o partido vale tudo. Coisa que nós não podemos concordar. Quem defende a democracia tem que ser democrático nos meios para chegar aos fins. Portanto tem que distinguir o público do privado nos meios para ter distinção do público do privado nos fins. E isso não é uma realidade intocável na esquerda.

ConJur — Uma diáspora no PT significaria a exclusão dessas correntes mais à esquerda?

José Eduardo Cardozo — O que temos no PT hoje é um divisor ético muito claro. Eu não tenho nenhum problema em conviver, debater, ganhar ou perder com quem não tem a mesma concepção de socialismo que a minha. Mas tenho muita dificuldade de conviver no partido com quem não pensa eticamente como eu penso. Aí não dá.

ConJur — O que significaria o senhor sair do PT?

José Eduardo Cardozo — Eu só sairia do PT se eu ficasse absolutamente convencido que o PT está totalmente degenerado, que é irreversível o processo de disputa interna que permitisse o resgate do PT. Hoje eu não estou convencido.


ConJur — Se essas pessoas não forem punidas, não seria o caso?

José Eduardo Cardozo — Se não forem punidas e assumirem o poder de uma forma consolidada no PT, sem duvida. Aí não da para aceitar. Mas eu estou absolutamente convencido de que o PT vai sair dessa situação, inclusive expulsando as pessoas que estariam envolvidas.

ConJur — Quando Luiza Erundina foi a primeira prefeita petista de São Paulo, ela não quis fazer acordos com os vereadores e sofreu uma oposição tão virulenta que praticamente a impediu de governar. Quando Lula chega à Presidência, se dispõe a negociar para garantir uma base parlamentar e deu no mensalão. Onde foi que o PT errou?

José Eduardo Cardozo — Na verdade nós vivemos entre dois extremos. No momento em que ganhamos a eleição de São Paulo com a Luiza Erundina, nós tínhamos uma visão, que eu considero messiânica, segundo a qual basta chegar ao governo e tudo se resolverá. Acreditávamos que poderíamos ser duros na relação com o Legislativo porque a sociedade iria pressionar já que nós tínhamos boas propostas. Esta postura tinha um quê de messianismo e uma grande dose de ingenuidade.

ConJur — Mas apesar de suas boas intenções, a Erundina não conseguiu governar.

José Eduardo Cardozo — Na época não havia dois turnos. Erundina foi eleita com um terço dos votos, ou seja, foi eleita pela minoria. Se tivesse segundo turno, talvez nós não ganhássemos, porque o PT naquele momento ainda era um partido muito mal visto e também muito sectário nas relações com outras forças políticas. Como não tínhamos maioria na Câmara Municipal, tivemos momentos de turbulência muito grande. Os vereadores para apoiar exigiam a participação no governo, mas nós não dialogávamos com nenhuma força política. A própria coligação da Erundina era PT, PC do B e o PCB. O PC do B não ficou no governo. Para o PCB, a muito custo, foi o Serviço Funerário. Isso nos deixou no isolamento social e político, sem dialogo com a Câmara, até mesmo com os setores que poderiam atuar conosco.

ConJur — O resultado dessa política anterior pode explicar de alguma forma os fatos atuais?

José Eduardo Cardozo — Fizemos uma leitura crítica e percebemos que aquela forma de governar não era correta. Percebemos que tínhamos de dialogar com outras forças políticas, tínhamos que abrir a discussão política, dentro do respeito de programas. Ficou claro a partir da experiência da Erundina que, como governo, nós não podíamos ter aquela visão estreita, que tínhamos que dialogar com outras forças políticas. Só que isso acabou gerando um pragmatismo de concepção: saímos de um extremo e caímos em outro. Porque uma política de alianças é necessária e correta, mas tem que haver limites. O primeiro limite é o ético. Não dá para ter um partido ético e ter no governo pessoas que não têm nenhum comprometimento ético. Em segundo lugar, você tem que fazer alianças que não descaracterizem seu programa de governo. Fazer alianças que descaracterizam seu programa é a mesma coisa que não fazer aliança nenhuma.

ConJur — Ganha a eleição mas não governa.

José Eduardo Cardozo — Ganha, mas não leva. A tendência posterior a isso foi a do pragmatismo. Um pragmatismo que reproduziu muitas práticas políticas que tínhamos obrigação de rever. Iniciamos um processo de negociação que teve como primeiro resultado o fracionamento dos partidos, inclusive do nosso. Caímos na vala comum da política brasileira em vez de forçar um outro patamar. Você vai dizer: “Ia ser difícil ou impossível?”. Não sei, mas tinha que ser tentado. Não dá para você ter mudança numa gestão administrativa sem ter mudanças no modo que você faz política.

ConJur — Já se sabe como não fazer as coisas…

Jose Eduardo Cardozo — Temos um momento da estreiteza absoluta que foi o governo de Luiza Erundina em São Paulo e o momento do pragmatismo absoluto que foi — só para manter o termo de comparação — o governo da Marta aqui em São Paulo. São dois extremos na forma de fazer política que precisamos repensar e refletir.

ConJur —Será que as coisas que estão acontecendo no governo Lula já se desenhavam aqui na Prefeitura de São Paulo?

José Eduardo Cardozo — Já. Eu acho que já se desenhava esta concepção em São Paulo. Atribuo isso coletivamente a nós do PT. Quando passamos do plano municipal para o federal levamos alguns equívocos que não poderíamos ter praticado. Em primeiro lugar, a reforma política era a mais importante. No entanto nós optamos por outras reformas, também importantes, mas que não tiveram o impacto de transformação que a reforma política teria, infelizmente.

ConJur — O que é uma reforma política? Não é essa que está no Senado.

José Eduardo Cardozo — Não. Isso é uma reforma eleitoral. Reforma política é uma reforma total do sistema político, que pega desde o financiamento eleitoral até a estrutura partidária. Se você mantiver o financiamento como está hoje, vai sempre ter uma porta aberta para a corrupção. Entra governo, sai governo, o financiamento eleitoral é a mola propulsora de toda essa engrenagem de corrupção. Segundo, é necessário mudar o sistema eleitoral. O sistema hoje impede o crescimento dos partidos na medida em que afirma de maneira absoluta a relação direta eleitor-candidato. O partido é apenas um fornecedor de legenda, não é um agregador de políticos. Se pudesse optar eu optaria pelo voto distrital.


ConJur — Qual a vantagem do voto distrital?

José Eduardo Cardozo — O voto distrital fortalece o partido. O eleitor vota em alguém que representa o seu distrito, alguém de quem possa cobrar numa relação direta, saudável. Como não é possível mudar a Constituição, eu defendo o voto em lista, que é uma ruptura na cultura política do Brasil. É chegado o momento de a gente romper porque do jeito que está não dá mais.

ConJur — Nenhum partido tem identidade?

José Eduardo Cardozo — O PT, por exemplo, tem. Embora tenhamos varias facções, quando alguém fala que é do PT, você localiza mais ou menos o que a pessoa pensa. O PSDB não tão claramente quanto o PT, mas também tem um amálgama mais definido em nível nacional. Agora, quando você fala um outro partido qualquer, não tem a menor idéia do que a pessoa pensa, não tem esse núcleo de pensamento identificado com o partido. Têm socialistas nos partidos liberais, têm liberais nos partidos socialistas. É uma coisa inacreditável. Se vier o voto em lista, vai ter que começar a ter partido com identidade.

ConJur — No âmbito municipal o sistema já não é meio distrital?

José Eduardo Cardozo — Esse é o problema do voto distrital puro. Ele é distrital sem ser, porque as pessoas não são escolhidas para falar com a sociedade como um todo. O parlamentar acaba propenso a falar só para a sua base. Se o Congresso Nacional vai discutir uma nova taxa de juros para o Brasil, vem o cara falar do distrito de Jacarezinho Paulista. O cara só pensa em Jacarezinho porque é o Jacarezinho que vota nele. O voto distrital misto evitaria isso. O partido dialoga com a sociedade como um todo e tem um representante para falar com bairro. Haveria uma combinação interessante de quadros partidários com representantes locais.

ConJur — Mas isso funcionaria em nível nacional?

José Eduardo Cardozo — Dá para fazer. O Brasil seria dividido em 513 distritos, respeitando contingentes populacionais e geográficos e você teria a representação. Então, uma cidade, por exemplo, com 200 mil habitantes, ou 300 mil, escolhe um deputado federal que é o seu deputado distrital. Este sistema baratearia os custos das eleições porque ninguém teria que fazer campanha para o estado inteiro, o que é uma alucinação. Do jeito que é hoje um parlamentar não tem nem como prestar contas ao seu eleitorado. Como você presta contas numa cidade como São Paulo?

ConJur — Precisa mudar a lei? Não seria suficiente apenas cumprir as leis que já existem?

José Eduardo Cardozo — A lei é sempre um resultado das forças e das concepções em um certo momento histórico. A Constituição e as leis são uma fotografia das relações de poder em um certo momento histórico. Mas ao mesmo tempo em que é uma fotografia das relações de poder do momento, ela também é uma fotografia daquilo que se quer conquistar. A lei é fruto da sociedade, mas ela também influencia a sociedade no momento seguinte. Às vezes ela não tem base de sustentação nenhuma e a gente diz que a lei não pegou. A Constituinte aprovou que os juros não passariam de 12%. Mas, na prática, não se tornou auto-aplicável. Por que a norma não permitia? Não, porque o poder não permitia. Não há direito sem poder. Tem um jurista que dizia que por trás do direito tem sempre, em última instância, o canhão. No caso do sistema eleitoral, é evidente que não daria para criar um sistema perfeito só com a aprovação de uma nova lei. Mas a lei pode induzir a realidade. Essa reforma eleitoral não é suficiente, mas ela é boa. Proibir showmício, por exemplo, proibir aqueles programas altamente sofisticados, reduz brutalmente o custo eleitoral. Não elimina, mas bate pesado na roda de corrupção que hoje alimenta as campanhas.

ConJur — Corrupção é coisa nossa?

José Eduardo Cardozo — Embora a corrupção seja um fenômeno internacional e histórico, há algumas sociedades que são mais permeáveis à corrupção do que outras. A cultura brasileira é muito permeável à corrupção. Inclusive do ponto de vista da relação social. Você pega países em que ministros que foram descobertos roubando se suicidaram de vergonha de encarar sua família. No Brasil você não tem suicídio, você tem reeleição. Mas por quê? Porque a cultura favorece. Nessa medida, pode-se criar o sistema que quiser que a cultura não muda por decreto. Mesmo que se construa um sistema melhor, é óbvio que ele terá problemas. Mas serão problemas que não terão o patamar que tem hoje. É impossível controlar gasto eleitoral quando o próprio presidente do Tribunal Eleitoral diz: “Caixa 2 é uma realidade no Brasil”.

ConJur — O que é preciso para melhorar a organização partidária?

José Eduardo Cardozo — Fidelidade partidária é fundamental. A idéia de que o mandato é do candidato e ponto final não é uma verdade democrática. São poucos os parlamentares que têm uma dimensão de votos que permite que eles sozinhos se elejam, sem precisar do partido. Muitos que votaram nele não votariam se estivessem em outro partido. Temos que ter claro que o partido é a peça chave da democracia. Quem está no partido tem que obedecer as relações partidárias. Se não fizer isso, é impossível governar de uma forma saudável, porque governo não tem como negociar com o partido.


ConJur — E como pode ser essa negociação?

José Eduardo Cardoso — O Roberto Jefferson faz uma análise interessante: três razões podem levar um parlamentar a indicar pessoas para cargos no governo. Primeira delas: eu quero dar emprego para um correligionário meu, que é o empreguismo. Segunda alternativa: eu quero colocar alguém para fazer a máquina administrativa atuar em meu favor, que é o clientelismo. Em terceiro lugar: nomeio alguém para tomar dinheiro para minha campanha, para o meu bolso, que é corrupção pura e simples. Na medida em que você individualiza as relações para ter a tal da governabilidade, fatalmente entra em um processo político de desastre. Isso só vai acabar no dia em que tiver partidos fortes. Para ter partidos fortes, é preciso um sistema que prestigie o partido. Esse sistema vai exigir fidelidade partidária, vai exigir uma serie de questões.

ConJur — O problema de governabilidade, que é recorrente desde a redemocratização, não tem origem justamente na impossibilidade de se fazer maioria no Legislativo?

José Eduardo Cardozo — A Constituição de 1988 é um marco. Vem logo depois da ditadura e é essencialmente democrática, fortaleceu muito o poder Legislativo. Uma boa Constituição. Só que como o sistema eleitoral é o que é, acabou tendo um instrumento democrático dentro de um sistema que é perverso. No nosso sistema governar sem ter maioria no Legislativo é um inferno. Por outro lado, ter maioria é outro inferno. É perfeitamente possível e razoável negociar com transparência e com forças políticas reais. O problema é que os partidos não são forças políticas reais, e aí você tem que negociar individualmente.

ConJur — Os dois partidos em que se pode vislumbrar uma identidade partidária e ideológica são o PSDB e PT. Por que nunca se pensou numa frente com estes dois partidos?

José Eduardo Cardozo — Há um pecado original que é do PT. Quando houve o impeachment do governo Collor, o que seria correto? Que todas as forças políticas que colocaram o Collor para fora formassem um governo de sustentação do Itamar Franco. O PT se recusou a fazer isso naquele momento por uma visão muito pragmática. Achamos na época que tínhamos tudo para ganhar a eleição com o Lula e que se nós entrássemos no governo Itamar, não ganharíamos. Então fizemos uma opção pragmática e fomos para a oposição do governo Itamar Franco. Isso criou o divórcio. Ao não irmos para o governo Itamar Franco, formou-se a candidatura do Fernando Henrique Cardoso com todo o espectro político que apoiava o governo Itamar versus o PT.

ConJur — Perdeu-se uma grande oportunidade de aglutinar as forças mais progressistas do país?

José Eduardo Cardozo — A partir daí, inicia-se no Brasil uma polarização eleitoral que não é uma polarização ideológica-política. Que é PT versus PSDB. E com uma contradição muito curiosa: toda vez que PT ou PSDB ganham as eleições, eles tem que se socorrer da base eleitoral do outro governo, formada por partidos que têm menos identidade do que o PT e o PSDB teriam entre si. A base de apoio do Governo Fernando Henrique Cardoso, tirando o PFL, é praticamente a mesma base do governo Lula.

ConJur — Ou seja, muda o governo, mas não muda a base do governo.

José Eduardo Cardozo — A polarização que surge do equívoco que nós cometemos acaba determinando a dinâmica política do país hoje. Eu me recordo que quando a Marta ganhou a eleição, nós tínhamos uma frente de oposição ao malufismo na cidade. Mas na eleição para a Presidência da Câmara Municipal eu disputei contra um candidato do PSDB. Aí os dois candidatos foram buscar votos em setores que tinham sido a base do governo Celso Pitta. É uma coisa totalmente absurda.

ConJur — O senhor vê alguma possibilidade de reversão dessa tendência?

José Eduardo Cardozo — Eu não sei a partir de que momento esse quadro vai se reverter, mas é inevitável que ele se reverta. Não é possível que os governos tenham mais identidade com a oposição do que com sua base. Era muito curioso ver o Babá [ex-PT, hoje PSOL-PA] criticando o governo Lula e o Alberto Goldman [PSDB-SP] ou o Roberto Jefferson [PTB-RJ] defendendo. Essa situação é bem paradoxal, surrealista, totalmente esquizofrênica. Há um alinhamento para as situações em que está em jogo a dinâmica de poder governamental totalmente diferente do alinhamento que existe quando há questões de valores, como o desarmamento. Neste tipo de alinhamento, digamos, natural, PT, PSDB, PPS e parte do PSB votam numa linha, e o grosso da base governista vota em outra linha.

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