Episódio de autoritarismo

Prisão de Paulo e Flávio Maluf só se justificam pelo espetáculo

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14 de setembro de 2005, 18h36

Desde que se instalou e não mostrou qual é o seu projeto, o governo Lula se sustenta pela continuidade da política econômica anti-desenvolvimentista do antecessor. Frustrou, assim, a expectativa dos que nele viam o caminho para as tão esperadas transformações sociais, políticas e estruturais.

Como saída, o presidente viu-se compelido a usar sua grande capacidade de comunicação com as massas, aperfeiçoada por décadas de trincheira oposicionista. Dada a insistente recorrência, acabou por esgotar o discurso de palanque, sempre recheado de bravatas e também sempre vazio de conteúdo.

Eis, portanto, uma rematada Presidência parabólica: vindica mudanças pela força da retórica, numa face. Noutra, repassa cantilenas de outros governos, ora desbastadas pela força dos fatos e pela premência de investigar quem agora, comprova-se, vendia indulgências sob o signo dos novos tempos.

O governo e o presidente caíram nos braços do “marketing” como estratégia de sustentação. E resvalaram na conivência com os espetáculos policialescos, encenados pela polícia judiciária da União, própria dos programas de televisão “mundo cão”. O governo acabou escrevendo sua história com a tinta da galhofa, a pena da melancolia e, agora, também, com rabugens de pessimismo, como notava o bruxo do Cosme Velho.

Mal aconselhado pelos que o cercam, vislumbrou nas “operações da PF” o vetusto “panis et circenses” romano: eis que, uma vez controlada a inflação, o custo de vida se estabiliza, e a diversão fica por conta das cenas policialescas que entretêm o telespectador e passam a sensação de que “algo está sendo feito…”. Os “homens de preto”, em carros negros e dourados, são o construto tangível de um governo cuja essência está se desmanchando a olhos vistos, engessada por denúncias de corrupção impagável, nos dois sentidos do termo.

Tanto essa análise é real que o próprio presidente, em suas prestações de conta à população, se ufana em dizer que a grande obra de seu governo tem sido a polícia, com suas prisões de empresários por sonegação fiscal, apreensões domiciliares, invasões de escritórios de advocacia, janelas quebradas etc. Seria essa toda obra de um governo? Uma imensa delegacia de polícia? Pior é que não.

Com o prestigiamento dos excessos (e ninguém é contra a perseguição aos ilícitos penais dentro dos limites do devido processo legal) sistematicamente praticados nessas diligências, vem crescendo, assustadoramente, a arbitrariedade, o desrespeito às garantias constitucionais de índole processual penal dos cidadãos e gerando a sensação de onipotência aos nem sempre bem preparados agentes da autoridade.

Esse autoritarismo se espraia para outros Poderes (como nas CPIs, por exemplo) e instituições que, “flexibilizando” os princípios constitucionais garantistas e os direitos fundamentais da personalidade humana, chancelam a prática arbitrária com o surrado argumento de que o fim justifica quaisquer meios.

Assim é que hoje a liberdade humana, para o Estado brasileiro, é bem jurídico de segunda categoria, tal a freqüência e a facilidade com que se a suprime nas instâncias formais da jurisdição, com total desprezo à opção feita pela Constituição, segundo a qual a regra é o réu responder à ação penal em liberdade. Prisão, antes da sentença final, só em casos de inexorável necessidade, isto é, quando o acusado é violento ou oferece, de qualquer modo, temibilidade. A regra constitucional é a liberdade.

A recente (e desnecessária) prisão de Paulo Maluf e de seu filho Flávio é um desses episódios de autoritarismo explícito, com o devido respeito aos que a arquitetaram, pela sua desnecessidade técnica e insustentabilidade jurídica. Só se justifica pelo espetáculo, que, aliás, não faltou.

Como quer que seja, a opinião é de que tirou o foco dos acontecimentos inaceitáveis de Brasília, pelo menos por algum tempo. O epicentro da crise palaciana transfere-se, aos olhos da multidão, para algo “maior” e “mais tangível”: o portento máximo dessa transferência visual, midiática, se expressa em algemas teatrais, proibições didáticas, perseguições aos advogados que se atrevem a exercer com vigor a defesa técnica, rigores auto-referentes.

Além da desnecessidade da medida de exceção que é a prisão processual, o que não se compreende é a razão pela qual, havendo os acusados entrado em contato com a autoridade policial do caso e convencionado a sua apresentação voluntária, teve de acontecer o espetáculo de degradação em relação ao filho do ex-governador, com o uso abusivo de algemas, com o exclusivo propósito de humilhar…

A alguém é dado o direito de abusar em nome do Estado? E a presença de um órgão de imprensa no local (nada contra o profissional que fazia o seu trabalho e que tem de ser respeitado), quando há norma do Ministério da Justiça (portaria 1.287, de 1/7/2005) proibindo esse tipo de ocorrência? Afinal, quem tem mais autoridade: a portaria ministerial ou a idiossincrasia do policial do caso? Ou, ainda, ambas foram concebidas para conviver?

Ademais, qual a necessidade da cerimônia de degradação pública, quando o próprio indiciado se apresentou espontaneamente? E, por fim, abstraído o descumprimento das condições convencionadas para a apresentação espontânea de Flávio Maluf, o que justifica a exclusividade a um órgão de comunicação para registrar o execrável ato?

Por último, fica difícil explicar como órgãos de comunicação veiculam gravações telefônicas que estão sob segredo de Justiça, de que só o Ministério Público Federal e a polícia dispõem, enquanto que a defesa dos acusados até hoje não pôde delas conhecer pelas vias legais, no foro.

Não se tem notícia, nesse escopo, até agora, de que diligências promovidas para investigar escoamento espartano de material sob o manto do segredo de Justiça tenham chegado a algum lugar. Jamais chegarão, é claro. Além de haver mergulhado na lama, para onde vai o nosso Brasil?

*Artigo publicado nesta quarta-feira (14/9) no jornal Folha de S. Paulo.

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