Mãos erradas

Credicard é condenada por entregar cartão não solicitado

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13 de setembro de 2005, 19h27

A administradora é responsável pelos prejuízos sofridos por cliente pelo extravio ou uso indevido de cartão de crédito. O entendimento é do juiz da 6ª Vara Cível de Brasília, Giordano Resende Costa.

O juiz condenou a Credicard administradora de cartões de crédito a pagar indenização de R$ 10 mil por danos morais a um consumidor, por enviar um cartão não solicitado e inscrever seu nome no cadastro de restrição ao crédito. Cabe recurso.

Segundo a Credicard, o cartão foi enviado para a casa do autor da ação e recebido por uma terceira pessoa. A administradora sustentou que a dívida foi gerada em transações realizadas pelo próprio usuário. O cliente alegou não ter recebido ou utilizado o cartão de crédito.

O juiz entendeu que não foi comprovado que as compras foram mesmo feitas pelo autor da ação. Segundo a decisão, o fato de um terceiro utilizar o cartão é de responsabilidade da Credicard, por não se preocupar em entregar o cartão de crédito diretamente ao cliente.

Leia a íntegra da sentença

Trata-se de ação de conhecimento com pedido de condenação em quantia certa, sob o fundamento da prática de ato ilícito.

Alega o autor, em apertada síntese, nunca ter solicitado a emissão de um cartão de crédito e não reconhece os débitos que a ré lhe imputa. Sustenta que houve a inserção de seus dados nos cadastros dos órgãos de proteção ao crédito.

Ao final requer a condenação da ré ao pagamento da quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais) e a retirada definitiva dos seus dados do cadastro de inadimplentes.

A ré foi citada e ofertou contestação às fls. 44/62.

Alega que houve o envio do cartão de crédito para a residência do autor e o recebimento desta por uma terceira pessoa. Argumenta que nos seus cadastros consta os dados de linha telefônica que está instalada em um estabelecimento comercial de propriedade do autor. Portanto, afirma que os débitos são oriundos de transações realizadas pelo autor.

No decorrer de sua peça, tece argumentos acerca da culpa exclusiva de terceiros, da inexistência de danos, analisando de forma detalhada o quantum dos danos morais.

Ao final requer a improcedência do pedido.

Réplica às fls. 129/141.

Não houve composição civil no ato designado para esta finalidade (fls. 149).

É breve o relato. Decido.

Versando a presente ação sobre matéria de direito e de fato e sendo a prova exclusivamente documental, toma assento o julgamento antecipado da lide (art. 330, I, C.P.C.).

Não existem questões processuais a serem apreciadas, razão pela qual passo à análise da questão meritória.

DO CONTRATO

A questão primordial gira ao redor da existência de vínculo jurídico obrigacional entre as partes, oriunda da aceitação e utilização do cartão de crédito por parte do autor.

O autor sustenta a inexistência deste vinculo, ao argumento de que nunca recebeu ou utilizou o cartão de crédito n°4006490972790116.

Ora, é ônus imputável a parte ré, ao comparecer em juízo, fazer a prova do fato desconstitutivo do direito da autora, comprovar a emissão do cartão de crédito e a efetiva utilização deste pelo autor, uma vez que não é admissível reconhecer a ônus da parte autora de fazer a prova de um fato negativo, ou seja, da inexistência do vinculo jurídico obrigacional.

Nesta situação, a doutrina se inquina para impor à ré o ônus da prova, havendo assim uma inversão, por não se possível imputar ao autor a prova de não ter a ré realizado a conduta que lhe era imposta.

Neste sentido o professor Luiz Rodrigues Wambier assevera que:

“Nesse caso, negativa de fatos, pela regra do ônus da prova, o réu estará isento de qualquer atividade probatória, pois caberá ao autor provar que o fato existiu, e não ao réu que tal fato não se deu.

Situação diversa ocorre em relação aos chamados fatos negativos. Nestes, não há a afirmação da existência do fato pelo autor e a negativa pelo réu, mas apenas a afirmação de que um fato que deveria ter ocorrido não houve. Afirma-se, portanto, um fato negativo, que não aconteceu, e dessa inexistência e que se busca a conseqüência jurídica pretendida.

Exemplo: inadimplemento, ou seja, uma inação, não ocorreria de um ato a que o contratante se obrigou, ou que a norma impôs. A conseqüência jurídica que se pretende não decorre da prática de um ato, mas, ao contrário, decorre da inação.”

Neste mesmo sentido é o posicionamento da jurisprudência, conforme se evidencia o presente aresto, in verbis:

“2 – O ônus da prova, nos termos do artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil, incumbe ao réu quanto a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. quando o fato alegado pelo autor é negativo, converte-se em positivo para o réu, cabendo-lhe a sua com provação.” (APC 2000.01.1.054953-7, Relator: HAYDEVALDA SAMPAIO, Publicação no DJU: 16/09/2004, Pág. : 84)


Ocorre que a prova documental e os argumentos utilizados pela ré não comprovam que as compras efetivadas no cartão de crédito tenham sido realizadas pelo autor, pois sequer junta aos autos os “canhotos” assinados pelo comprador. Destaco que é notório que todo aquele ao utilizar o cartão de crédito tem que assinar o “canhoto” emitido, com o intuito de reconhecer a existência da dívida e instrumentalizar o recebimento por parte do comerciante.

Assim, ante a falta de elementos convincentes de ter o autor utilizado o cartão de crédito, é forçoso o reconhecimento da inexistência de vínculo jurídico obrigacional entre as partes.

DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil, tanto para o reconhecimento da indenização por danos materiais, quanto para o reconhecimento de indenização por danos morais, repousa na existência do um ato culposo ou em atividade de risco, no dano moral ou patrimonial, e na relação de causalidade entre o dano e o ato culposo ou atividade de risco. É o que se extrai da análise do art. 186 do Código Civil e do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

Passo a analisar cada um destes elementos.

Da culpa e do risco

Não ficou demonstrado de fato a culpa da ré, pois não há tão somente evidencias de presunção da culpa, pois esta autorizou a utilização de um cartão, sem a certeza do recebimento deste pelo destinatário.

Entretanto, nem por isto está afastada a responsabilidade pelos danos eventualmente sofridos pelo autor.

É que, como antes anotado, a responsabilidade pode ter por base também uma atividade de risco, sendo esta a que se verifica no presente caso.

No caso em apreço, houve uma fraude perpetrada por terceiro. A origem do prejuízo da ré foi o artifício praticado por um terceiro, que se utilizou da facilidade oferecida pela própria ré para a consecução de suas finalidades econômicas.

Em face desta fraude e do prejuízo decorrente da prestação de serviços originada do artifício, a ré encaminhou o nome do autor para inscrição em cadastro de inadimplentes, assumindo, assim, o risco dos danos que tal conduta pudesse ocasionar.

Se não se pode subsumir a conduta dos prepostos da ré no conceito tradicional de culpa, segundo uma inspiração do positivismo psicológico, a verdade é que havia todo um conjunto de elementos criadores de uma situação de alto risco, onde se torna perfeitamente previsível a ocorrência dos fatos trazidos aos autos.

Não se pode esquecer que há mais de um século a tecnologia incide sobre o conceito tradicional de culpa, para, mudando suas bases sociológicas e filosóficas aproximá-la do conceito de risco.

Foi a partir daí que se alargou o conceito de culpa, desde a teoria da culpa objetiva dos irmão Mazeaud (ALVINO, Lima. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo. Editora malheiros. 2000. pág. 61), passando pela extensão do conceito de culpa por processos técnicos, como a definição da culpa mínima, (Ob. Cit. Pág. 70), até se chegar à teoria do risco, que mereceu de Alvino Lima o seguinte trecho: “a teoria do risco, embora partindo do fato em si mesmo, para fixar a responsabilidade, tem raízes profundas nos mais elevados princípios de justiça e eqüidade. Ante a complexidade da vida moderna, que trouxe a multiplicidade dos acidentes que se tornaram anônimos, na feliz expressão de Josserand, a vítima passou a sentir uma insegurança absoluta ante a impossibilidade de provar a culpa, em virtude de múltiplos fatores.”(Ob. Cit. Pág. 195).

Estas e outras considerações é que fizeram proliferar as presunções, muitas delas com base nas regras processuais sobre a prova, em especial aquela que dispensa a prova dos fatos observáveis pela experiência comum (art. 335 do Código de Processo Civil).

Nesta evolução é que se chegou ao final do século XX com um conceito de culpa totalmente diferente daquele, provindo das condutas típicas de uma sociedade já há muito tempo ultrapassada, mas que ainda resistia no vetusto Código de Napoleão.

O Código de Defesa do Consumidor, aplicável ao caso, já se antecipara ao Código Civil para estabelecer o risco como fundamento da responsabilidade civil, ao dispor que:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;”

De fato não é razoável esperar que na inscrição de nomes de devedores inadimplentes, o pretenso credor tome por base as informações contraídas por telefone para praticar um ato (inscrição) que trás conseqüências tão graves às pessoas nas suas relações econômicas e sociais.


Para quem não conhece a política interna da empresa fica a impressão de que é mais cômodo facilitar a contratação de novos consumidores e com isto receber uma quantidade grande de clientes que trarão lucro, embora tenha, eventualmente, que suportar o ônus de arcar com a responsabilidade de alguma delas que, em razão de não ter obedecido aos parâmetros da prudência, venha a causar prejuízo a outrem.

Esta situação faz lembrar o conceito de risco-proveito, segundo a qual “responsável é aquele que tira proveito da atividade danosa, com base no princípio de que, onde está o ganho, aí reside o encargo – ubi emolumentum, ibi ônus”. (FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo. Editora Malheiros, 2000, pág. 144).

Destaco que a singela afirmação de que as normas regulamentares autorizam a contratação de serviços por telefone é insuficiente para demonstrar que a ré agiu com a cautela devida.

Ora, a inscrição do nome dos consumidores em cadastros de inadimplentes representa um perigo de prejuízo ao patrimônio moral das pessoas, e se, no caso concreto, não ficou demonstrada a existência de cuidados especiais, é de se concluir que a atividade de inscrição de nome em cadastro de inadimplentes não atendeu ao nível de segurança que é razoável esperar do sistema.

Neste quadro, o serviço é defeituoso, a teor do que prescreve o art. 14 do CDC.

Assim, a ré é responsável pelos danos causados ao autor.

Do dano

O dano que se verifica é o dano moral.

Trata-se da violação do patrimônio moral da pessoa, patrimônio este consistente no conjunto das atribuições da personalidade. É a “lesão de bem integrante da personalidade, tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo. Editora Malheiros, 2000, pág. 74).

Tal dano, na forma do art. 5º, inciso X da Constituição Federal é passível de indenização.

Dentre os casos que configuram o dano moral indenizável se encontra a integridade moral, em face de estar abalada pela agressão frontal à honra objetiva pela inscrição do nome do autor perante cadastro de devedores inadimplentes como se isto correspondesse à realidade (fls. 11 e 17).

Assim, deve a ré responder por tais danos.

Do valor da indenização

Não há critérios legais para a fixação da indenização, razão pela qual, com esteio na doutrina, devo considerar vários fatores, que se expressam em cláusulas abertas como a reprovabilidade do fato, a intensidade e duração do sofrimento, a capacidade econômica de ambas as partes (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo. Editora Malheiros, 2000, pág. 81).

Nesses casos, os sentimentos e o sofrimento atingem os mais íntimos direitos da personalidade. Não se pode, entretanto, esquecer que o principal fundamento para a indenização por danos morais é o caráter pedagógico da indenização.

No caso presente, além da gravidade do dano, a conduta da ré é merecedora de reprovabilidade excepcional, diante da necessidade de que atos como estes, que causaram prejuízo de várias ordens ao autor, não sejam banalizados. É necessário que o prejuízo ao consumidor represente também um prejuízo ao fornecedor de serviços que exigem segurança e confiabilidade.

É relevante, neste caso, o valor de desestímulo para a fixação do dano moral, que representa o caráter pedagógico da reparação.

É que, além do aspecto compensatório, o dano moral tem um efeito preventivo que é observado pela teoria do valor de desestímulo: “a função presente na teoria do valor do desestímulo do espírito lesivo do agente, exerce papel de relativa importância nos futuros atos que venham a ser praticados pelo ofensor no meio social” (REYS, Clayton. Os novos rumos da indenização do dano moral. Rio de Janeiro. 2003, pág. 162).

Esta tendência é verificável também na jurisprudência, conforme já sinalizou o Superior Tribunal de Justiça: “… Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares…” (RESP 355392 Min. NANCY ANDRIGHI)

Neste sentido devem ser consideradas as circunstâncias e a necessidade de que os fornecedores de produtos e serviços ajam de acordo com a boa-fé objetiva, de modo a tornar mais justas e equânimes as relações de consumo.

Considero, estes elementos e o valor de desestímulo, especialmente a necessidade de se reprimir o abuso na ânsia de captar clientela, as condições econômicas do autor e da ré, para entender que uma indenização de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é suficiente como resposta para o fato da violação do direito.

DO DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE, em parte, o pedido deduzido na inicial para condenar a ré ao pagamento da quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), devidamente corrigidos monetariamente e acrescidos de juros legais no importe de 1% (um por cento) ao mês, a partir da citação.

CONDENO a ré a retirar o nome dos autos dos cadastros de inadimplentes. Razão pela qual, confirmo a decisão antecipatória de fls. 30/31.

Arcará a ré com o pagamento das custas processuais e com os honorários os quais arbitro em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, nos termos do artigo 20, § 3º, do C.P.C.

Após o efetivo recolhimento das custas e o trânsito em julgado da presente decisão, remetam-se os autos ao arquivo.

Publique-se, registre-se e intime-se.

Brasília – DF, quarta-feira, 31/08/2005 às 16h25.

GIORDANO RESENDE COSTA

Juiz de Direito Substituto

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