Direito de defesa

Em CPI, advogado pode falar e depoente calar

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11 de setembro de 2005, 12h52

Em CPI, advogado pode falar e depoente pode ficar calado. Foi no berro que os advogados paulistas Roberto Podval e Beatriz Rizzo fizeram valer seus direitos na CPI dos Bingos, onde estiveram acompanhando Marcelo Sereno, o ex-secretário de comunicações do PT e ex-assessor do ex-ministro José Dirceu.

Enfrentados pelo senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) que de dedo em riste os ameaçava de expulsão da sala de audiências, os dois resistiram bravamente, confiantes de que se o pior acontecesse seriam salvos por um Habeas Corpus, nas mãos de um advogado do escritório, de plantão na porta do Supremo Tribunal Federal.

Não se chegou às ultimas conseqüências, mas o episódio, se não mudou totalmente o tratamento dispensado aos advogados nas CPIs, pelo menos chamou a atenção para a questão. E deu ensejo também para se questionar o papel da OAB na defesa das prerrogativas da advocacia: “A OAB hoje está mais preocupada em atacar o presidente da República do que em defender os advogados”, diz Podval.

É de assuntos como a atuação dos advogados nas CPIs e o papel da OAB que Podval fala nesta entrevista à Consultor Jurídico. Junto com Beatriz Rizzo, falou também de delação premiada, do papel da imprensa, dos direitos e da liberdade.

Com o mesmo entusiasmo que conta sobre seu embate com ACM no Senado, Podval fala da experiência, que também junto com Beatriz, desenvolve de advocacia gratuita para clientes que não podem pagar ou da assistência que prestam às detentas dos presídios femininos de São Paulo. Foi neste trabalho que teve o privilégio de fazer parte do júri do concurso que escolheu a “Miss Cadeias” de São Paulo.

Roberto Podval, 39 anos, formou-se na FMU, em São Paulo, em 1988, e fez mestrado em Ciências Criminais em Coimbra, Portugal, em 2002. Beatriz Dias Rizzo, 35 anos, é formada pela Faculdade do Largo São Francisco, da USP, em 1992, e foi colega de Podval no mestrado da Universidade de Coimbra. Entre 1994 e 2001 foi procuradora do Estado, em São Paulo.

Participaram da entrevista com Beatriz e Podval o editor-executivo Mauricio Cardoso, o editor Rodrigo Haidar e os repórteres Leonardo Fuhrmann e Aline Pinheiro.

Leia a entrevista

ConJur — O que aconteceu em sua passagem pela CPI, que acabou provocando um tumulto e, de certa forma, desviando o foco do cliente para o advogado?

Roberto Podval — A questão que deu ensejo a todo o tumulto na CPI foi a seguinte: o senador [Tasso] Jereissati [PSDB-CE] pergunta para o Marcelo [Sereno, ex-assessor do deputado José Dirceu]: “Você aceita uma acareação com A, B e C?”. O Marcelo diz: “Aceito, com quem o senhor quiser, senador”. E o senador disse: “Mas sem Habeas Corpus?”. O Marcelo responde: “Eu vou ter que perguntar para os meus advogados”. A questão era absolutamente técnica. Quem resolve se pede o Habeas Corpus não é o cliente. É o advogado que toma a decisão e explica para o cliente por que vai fazer e as conseqüências. É uma questão técnica. Então, ali, o cliente não podia responder se ia aceitar, e diz: “Eu vou falar com o advogado”. Foi aí que os senadores falaram: “Não, o advogado não pode falar”.

ConJur — Ou seja, o advogado não estava querendo tomar o lugar do depoente.

Roberto Podval — Toda a discussão surgiu por uma questão absolutamente técnica e jurídica na qual o advogado tinha todo o direito de falar e eles não tinham o direito de ter perguntado. Eles colocam como se o Habeas Corpus não fosse um direito do indivíduo. Como se a pessoa pedisse o Habeas Corpus porque é culpada. Quando fizemos mestrado em Portugal, em uma aula de Direito Penal o professor disse que não existia, em Portugal, Habeas Corpus preventivo, e que achava isso um absurdo. Porque o Habeas Corpus preventivo é a presunção de que o Estado vai violar a lei, vai me constranger. Então, eu entro com um pedido antes para evitar que alguém venha a violentar um direito meu. Eu me lembro que eu falei na aula: “Não é possível, no Brasil tem Habeas Corpus preventivo e aqui não se admite”. Aí o professor disse: “É porque aqui não se admite a hipótese de imaginar que no futuro alguém vai violar a lei contra você”. Em Portugal não se admite porque a instituição democrática é sólida. Aqui se permite esse Habeas Corpus porque no futuro é quase certo que as autoridades vão violar o seu direito.

ConJur — Por isso, o senhor se preparou com todas as salvaguardas para ir à CPI.

Roberto Podval — Dá para sentir a autoridade de um ACM [senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA)] sentado naquela cadeira com um microfone na mão. Enquanto isso, o advogado fica sem voz, porque ele te corta o microfone. A pressão é muito grande: a autoridade daquelas pessoas, na casa delas, no espaço delas. O meu espaço é o espaço jurídico. Eu no tribunal sou como um médico no hospital. Então, o ambiente da CPI incomoda, porque assusta e reprime. E tem o problema do day after. Como é que será amanhã? Eu posso sair daqui bem ou eu posso sair daqui arrasado, achando que fiz papel de bobo. O que o meu cliente vai dizer de mim? Qual a reação dos órgãos de classe? É muito difícil.


ConJur — As pessoas chegam a comentar: “como um advogado, de um escritório grande como esse, pode ter uma reação dessas?”.

Roberto Podval — Ficar quieto era a postura mais fácil. Para a opinião pública é melhor, porque eles acham que você está lá como encrenqueiro. Acredita-se que o advogado está lá para defender o bandido que está roubando os cofres públicos e você é confundido com o cliente porque o defende. A reação é complicada.

ConJur — Essa coisa do Habeas Corpus tomou essa conotação. O Habeas Corpus é entendido como um benefício para proteger um criminoso e não como um direito de toda pessoa que está sendo investigada.

Roberto Podval — O Habeas Corpus só é concedido porque o depoente não pode ser visto como bandido. O Habeas Corpus está dizendo: “Não tratem o depoente como bandido porque ele não é”.

Beatriz Rizzo — A questão é maior do que se é ou não é bandido. Pede-se Habeas Corpus porque nós temos um sistema que não acha bonito exigir que as pessoas sejam seus próprios algozes ou seus próprios carrascos. Todo mundo tem o direito de não se auto-incriminar e a idéia do Habeas Corpus é totalmente deturpada.

ConJur — Fala-se até em “direito de mentir”.

Beatriz Rizzo — Não. É para proteger o direito que eu tenho, de não ser obrigado a me acusar de nada. Se eu quiser, me acuso, se eu não quiser, não me acuso.

Roberto Podval — O funcionamento da CPI parece com a Inquisição. São 15, 20 horas de interrogatório. Tem 30, 40 pessoas se revezando para te questionar e mais 50 repórteres ali atrás se revezando, tirando fotos, e você falando durante 15 horas. Isso é tortura.

Beatriz Rizzo — O depoente já é condenado na hora porque quem interroga emite opinião.

Roberto Podval — Eles perguntam, te humilham, te massacram. Já é a punição. Isso é o escracho público, porque vai para a televisão. Uma CPI séria não precisa ter televisão. Porque não há problema no fato de ser aberta ao público e televisionada. O problema é o mau uso, porque aí vira espetáculo. Nós voltamos à idade média, quando o cara que cometia o crime andava com uma máscara de ferro na cabeça durante o tempo todo e, assim, sabia-se que ele era um criminoso.

ConJur —Em termos de investigação, da busca da verdade, como o senhor avalia o resultado de uma CPI.

Roberto Podval — A CPI tida seriamente tem um resultado positivo. Ela tem uma força de coleta de informação muito grande. Isso é positivo. O ponto negativo é o abuso, é o fato de a CPI se tornar um programa do Chacrinha. A opinião pública não é ruim, porque força que as coisas venham à tona. O problema é como você usa isso. O uso da CPI como palanque para autopromoção de A, B ou C, ou para humilhar e espezinhar o cidadão que vai lá prestar depoimento é altamente negativo. Aí a coisa fica séria porque perde o foco. Acho um exagero o Congresso ter três CPIs funcionando ao mesmo tempo sobre o mesmo assunto.

ConJur — O senhor acha que a situação do seu cliente na CPI e na Justiça é a mesma?

Roberto Podval — É difícil dizer porque na Justiça o meu cliente não tem nada e talvez nem venha a ter. A CPI está buscando informação dele como testemunha e não necessariamente para o incriminar. Acho que até exageraram, já que antes de ouvi-lo pediram a quebra do sigilo fiscal e bancário. Ele não é acusado de nada.

ConJur — Existe a Frente Parlamentar da Advocacia. Ela deveria tomar partido numa situação como a de vocês?

Roberto Podval — Eu acho triste que você precise de uma frente parlamentar para tomar uma atitude em defesa da advocacia. Esta é uma atitude que o próprio Congresso Nacional deveria tomar.

ConJur — Os deputados dizem que a CPI funciona com as mesmas regras do inquérito policial, portanto o advogado não tem direito de falar mesmo.

Roberto Podval — É uma visão equivocada. Porque a lei diz que o inquérito é inquisitivo, então é um ato administrativo. O delegado pergunta e o advogado pode estar lá para acompanhar o seu cliente. A única razão de o advogado estar lá é a de impedir qualquer arbitrariedade contra o cliente. É óbvio que o advogado não pode intervir e mudar a resposta. Mas ele pode dizer para cliente: “Não responda porque isso o incrimina e você não é obrigado a se auto-incriminar”. O delegado não vai mandar o advogado calar a boca, porque o direito dele é esse. Se o delegado fizer uma pergunta mal colocada, ofensiva ou que induza o cliente a dar uma resposta que possa incriminá-lo, eu posso interromper e falar: “Pela ordem, doutor, o senhor não pode perguntar isso assim”. Este é o meu papel no inquérito.

ConJur — E foi isso que o senhor tentou fazer na CPI?

Roberto Podval — Quando o presidente da Ordem em exercício, numa primeira hora, disse que nós devíamos ter agido como os outros advogados que ficaram calados, e cita o inquérito para dar o exemplo, ele está errado. Eu estava lá exatamente para medir até onde aquelas perguntas eram devidas, eram legais. Se eu não puder sequer falar com o meu cliente para orientá-lo sobre o que ele pode ou deve responder, então qual o sentido de ser acompanhado por um advogado? Eu levo um boneco ali, coloco do lado do cliente e vou embora.


ConJur — Qual é o papel da Ordem dos Advogados do Brasil nesta confusão toda?

Roberto Podval — Em vez de criticar o presidente da República, de dar opinião sobre a transposição do Rio São Francisco, a OAB deveria defender os advogados que passaram pela CPI. E a Ordem não fez nada. A OAB deveria estar em cada CPI com um representante, assim como o Ministério Público tem um membro em cada sessão da CPI.

ConJur — Mas a Ordem sempre teve voz nas questões políticas?

Roberto Podval — Quando acabou a ditadura, a Ordem perdeu a bandeira, ficou um pouco sem ter o que falar. Os advogados são humilhados e a Ordem está falando do Rio São Francisco, se o presidente da República deve falar à Nação ou não. O papel do Senado talvez seja este. O da Ordem dos Advogados é estar presente em cada sessão apoiando e fazendo valer os direitos dos advogados. Naquele Mandado de Segurança do Supremo, para dar direito ao advogado [de falar na CPI do Narcotráfico] num caso exatamente igual ao que estamos vivendo agora, o ministro Celso de Mello convocou a Ordem para manifestar-se e a Ordem até hoje não falou nada. Então, a OAB precisa acordar.

ConJur — O senhor está se referindo à OAB nacional ou à seccional paulista?

Roberto Porval — O que estou dizendo vale para a Ordem federal, como vale para a Ordem estadual. Não estão cumprindo o papel que deveriam cumprir. Quando começou essa história de invasão de escritórios de advocacia foi o nosso escritório, junto com o do Mariz de Oliveira, que fez um projeto de lei para impor regras e coibir a invasão. Entregamos o projeto ao [deputado]Michel Temer[PMDB-SP]. O que fez a Ordem? Foi para a Praça da Sé fazer uma caminhada contra invasões. Para quem era essa caminhada? Para o público da Praça da Sé?

ConJur — O senhor vê alguma relação entre as invasões de escritórios e o que aconteceu na CPI?

Roberto Podval — Vejo. Vejo cada vez mais os advogados perdendo respeitabilidade. Vejo cada vez mais as entidades que deveriam dar credibilidade aos advogados não darem mais. São conseqüências de um mesmo problema. Começa pequenininho. É como aquela história: um dia perseguiram os negros e eu não os defendi porque não sou negro, no outro pegaram os judeus e eu também não agi porque não sou judeu. Quando vieram me pegar não tinha ninguém pra me defender. É um pouco isso que a gente vê na Ordem dos Advogados. Está faltando o advogado verdadeiro, o advogado de balcão, aquele que advoga. Não precisa de político. Político a gente já tem de mais.

ConJur — Não seria o caso de formar uma chapa para concorrer à OAB?

Roberto Podval — O perigo é politizar a situação e não é esse o caso. Também não é o momento da minha vida para isso. Você precisa parar de advogar, percorrer o estado inteiro, é uma campanha caríssima. Mas está na hora de nós resgatarmos os advogados para a liderança da Ordem.

ConJur — Tivemos os casos da Daslu, Schincariol, das invasões de escritórios. Qual o limite para esse tipo de ação?

Roberto Podval — Em determinadas situações pode-se e deve-se entrar nos escritórios para pegar determinados documentos. Mas houve equívocos. O primeiro equívoco e talvez o maior deles é que se a Ordem fosse séria e rigorosa com os maus profissionais, se evitaria um monte de coisas. A própria Ordem tem competência para acabar com os profissionais que não deveriam estar atuando. Depois houve um problema de foco. Foram em cima do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos dizendo: “Está fazendo como ministro o contrário do que sempre defendeu como advogado”. Uma atitude equivocada, porque as ordens de invasão não partem da Polícia Federal. Eram ordens judiciais. O Ministério Público pede, o juiz determina e a Polícia cumpre. Se você disser que os policiais cumpriram com exagero, aí tudo bem, mas é uma questão menor. O problema não está no ministro, o problema está nos juízes que dão as ordens.

ConJur — E por que os juízes estão agindo assim?

Roberto Podval — A magistratura está com a credibilidade abalada. Houve alguns casos chatos envolvendo juízes, como o do juiz Nicolau [dos Santos Neto, condenado pelos desvios de recursos da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo], o caso Anaconda. São coisas que podem acontecer com qualquer instituição, mas que abalaram a confiança da magistratura. Por conta disso, os juízes passam a decidir sem confiança, a chancelar tudo que vem do Ministério Público com uma facilidade muito grande.

ConJur — O problema das invasões não seriam “mandados genéricos”?

Roberto Podval — O que não pode é um juiz com um pedido de prisão temporária mandar prender 70 pessoas.

Beatriz Rizzo — A mídia tem uma parcela de responsabilidade nisso, porque apresenta o juiz como conivente com a impunidade e o Ministério Público fazendo o papel do bem. O MP é o que quer pegar os culpados. Se o juiz coloca limites aparece na mídia como conivente com o crime, a favor da impunidade. Tudo que é direito e limite é confundido com permissividade. O juiz tem de ter força para dizer sim e para dizer não, sem ter medo.


Roberto Podval — O papel do Ministério Público, há quem diga, é o de fiscal da Lei. Eu acho que não, para mim está claro: o papel do Ministério Público é o papel de parte. Enquanto parte, e porque é parte, muitas vezes ele exagera. Assim como nós advogados, como partes, também exageramos do outro lado. Para ter equilíbrio, precisamos de uma magistratura forte, independente e com autoridade para dizer sim ou não. Quando o juiz tiver autoridade, os excessos das partes, seja dos advogados, seja do Ministério Público, vão ser controlados.

Beatriz Rizzo — Isso passa por uma reforma institucional e por uma reforma de mentalidade. Juiz também precisa conhecer qual é o seu papel democrático. A instituição do Judiciário é super hierarquizada, antiquada. Na dúvida, é muito mais fácil para o juiz dar um mandado genérico do que detalhar e limitar.

Roberto Podval — É uma questão de formação. Quando acontecem episódios como o que aconteceu de pegar um juiz corrupto e a imprensa generaliza, cria um mal estar em todo o Judiciário e os juízes passam a se sentir inseguros. Aí começam a pensar: “se eu for liberal posso ser visto como corrupto”. Esse é o receio. Por outro lado, temos uma advocacia absolutamente fraca e um Ministério Público extremamente forte.

ConJur — Como o senhor vê a atuação de promotores procurando a imprensa para passar informação, como aconteceu no caso do depoimento do Rogério Buratti [ex-assessor que acusou o ministro da Fazenda de receber propina]?

Roberto Podval — Aconteceu com o Ministério Público o que acontece com uma criança que você dá o primeiro chocolate. Ela vai comer até passar mal, até aprender a comer devagar, a conhecer os limites. É um pouco isso: o Ministério Público saiu de uma condição de nenhum valor, para uma posição com um valor social importantíssimo. Quando se faz esta passagem, a tendência é ir de um extremo ao outro. Com o amadurecimento as coisas tendem a chegar a uma posição de equilíbrio. Neste caso, por exemplo, se a gente fizesse um levantamento de quem ganhou e de quem perdeu com a oscilação do preço das ações na Bolsa daquele dia, dá para perceber que as conseqüências são muito maiores do que a investigação em si. Tem de haver muita responsabilidade.

ConJur — Já se percebe um retorno para a posição de equilíbrio?

Beatriz Rizzo — Eu acho que são vários momentos neste movimento. Bem ou mal, o MP é a instituição que mais evoluiu e está evoluindo. Quando comparamos com a advocacia e com a Justiça, percebemos que estas instituições estão perdendo muito. O Ministério Público tem esse valor, é uma instituição que está se construindo. É um processo: exagera, recua, exagera, recua, mas está avançando. Os outros é que estão apenas recuando.

Roberto Podval — Se existe uma instituição que cresce positivamente neste país é o Ministério Público. Mesmo com todos os exageros que nós criticamos, sem dúvida é uma instituição que está aprendendo a trabalhar. Até cria dificuldades, mas trabalha cada vez com mais know-how, com mais qualidade técnica, com inteligência funcional.

ConJur — Outras instituições, como a magistratura, não acompanham essa evolução?

Roberto Podval — A magistratura parou no tempo. A magistratura de São Paulo é vagarosa, antiquada, falta modernidade, falta verba. Precisa evoluir em termos de ideologia, de maquinário, de processo. Um tribunal como o nosso precisa ter uma administração profissional, até contratada. Não podemos ter tanto receio de avançar tecnologicamente. Isso é difícil, porque nós advogados, somos conservadores por natureza. Mas se o Ministério Público vem crescendo, a advocacia vem aí correndo atrás do próprio rabo.

ConJur — Isso passa também por um medo de comunicação, não?

Roberto Podval — A imprensa assusta muito porque traz um certo perigo. A imprensa tem um papel e um valor muito grande. Com a tecnologia, o papel da imprensa também está mudando. A internet mudou o valor dos meios de comunicação. Hoje, um meio de comunicação, por menor que seja economicamente, tem importância, consegue colocar uma informação que imediatamente é vista por toda a grande imprensa mundial. Claro que aparecer no Jornal Nacional continua sendo um grande negócio, mas hoje o Jornal Nacional, a Rede Globo e as grandes redes estão 24 horas ligadas na internet para ver onde está a notícia. No caso da CPI, por exemplo, quem passou a notícia sobre o que se passou, não foi a grande imprensa. Foram vocês, foi a internet, foi o [Portal] Terra. O jornal já entra atrasado.

ConJur — O senhor falava do perigo da imprensa.

Roberto Podval — A imprensa causa um certo receio. Na Justiça as instituições são hierárquicas, têm um respeito, existem normas ali. Algumas são mais fechadas, outras menos fechadas na relação com a imprensa. A magistratura tem um certo receio porque não aprendeu, não teve contato com a imprensa. O juiz, pela própria personalidade, é uma pessoa mais fechada. Ele não é parte, ele é quem decide. Esta a característica do personagem que ocupa o papel de juiz. Assim como o advogado, pela própria natureza, desempenha um papel mais extrovertido. O Ministério Público também passa a ser mais extrovertido. Por isso temos de ter cuidado para não jogar com a imprensa. Acho que tem de ter o cuidado das partes em não jogar com a imprensa e o cuidado da imprensa em não se permitir ser utilizada pelas partes.


ConJur — O Ministério Público tem se saído melhor na missão de se comunicar?

Roberto Podval — O MP foi hábil para entender que é preciso se comunicar com a imprensa. Goste ou não, você vive numa sociedade de informação e você tem que aprender a falar com ela. Não adianta se fechar. O que acontece com a magistratura é isso, ela não fala.

Beatriz Rizzo — De fato, o Ministério Público tem uma facilidade enorme em falar com a imprensa. É fácil falar para quem quer ouvir aquilo que você vai dizer. A notícia está do lado do Ministério Público, que é o lado bom da história, é quem caça os corruptos, que investiga o que a imprensa quer divulgar. Aí é fácil se comunicar. Quando o advogado fala, geralmente está do lado antipático. Este papel é incompreendido socialmente e aí fica mais difícil comunicar. Eu dou um exemplo com o episódio que vivemos na CPI e como ele repercutiu na Globo. A notícia foi passada como se a nossa atuação lá fosse absurda, fosse abusiva.

Conjur — Você acha que a imprensa influencia na decisão do juiz?

Roberto Podval — Muito…Não há dúvida que no Júri popular, num caso com grande repercussão, a imprensa tem um peso muito grande. Um juiz, por mais justo e alheio que deve estar disso, é alguém que chega em casa, liga a televisão, lê um jornal, conversa com os amigos, vive em sociedade. É difícil marcar um limite. Porque a sociedade traz informações e pressões. Então, cada homem julga de acordo e em função de uma criação, de uma formação intelectual, social, política. Óbvio que isso tem reflexo em um julgamento.

Beatriz Rizzo — É melhor que assim seja, porque senão seriam todos robôs. Na verdade quem faz parte do processo são pessoas, com vida, com opiniões. Daí a importância da mídia de tentar ser o mais segura e imparcial. De não vender a informação só com um lado, de vender idéias prontas. As pessoas têm que comprar um problema e poder refletir sobre ele.

Conjur — Virou uma prerrogativa do MP ter notícias socialmente importantes?

Roberto Podval — Os advogados criminalistas têm procurado fazer um trabalho social, pensando menos na notícia e mais na justiça social. A gente mexe muito com o lado ruim da humanidade, com o crime. Então, a gente tem o IDDD [Insituto de Defesa do Direito de Defesa], formado pelos melhores criminalistas do país, que se reúnem para defender pessoas pobres em júri. Só assim essas pessoas têm condição de ter a defesa de grandes criminalistas. Estamos falando de José Carlos Dias, Arnaldo Malheiros, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. Isso é importante. A gente não faz para ter a notícia, mas pela responsabilidade social.

ConJur — O trabalho vai além da assistência jurídica?

Roberto Podval — Promovemos uma festa nos presídios, todo fim de ano, no Natal, para poder fazer um pouco de justiça social. Eu acho que cada área, na sua medida, deve estar preocupada um pouco com isso.

Conjur — Às vezes, no torvelinho da ação judicial, não se corre o risco de perder a visão humana?

Roberto Podval — É uma tendência semelhante à dos médicos, talvez até como uma medida de autoproteção. A visão humana machuca muito, você assiste a um sofrimento muito grande. Não dá para descrever o que é uma pessoa estar presa, qualquer que seja o crime, por pior que seja. Quando você vai visitar e vê a pessoa na cela, tratada da forma como é tratada dentro desse sistema, é muito duro. Ir para casa dormir não é fácil. Talvez, até para criar uma barreira, a gente está o dia inteiro dizendo: “Isso é só trabalho”. Não posso misturar isso com a minha vida. Há um discurso de autoproteção. Mas a verdade é que o advogado não consegue. Por mais que você tente fazer crer que é só um trabalho, é um peso terrível nas suas costas.

Beatriz Rizzo — Mas eu já me conformei que é um trabalho incompreendido. Socialmente, em geral, o advogado é visto como alguém totalmente insensível, sem escrúpulos, absolutamente sem caráter. Só na hora em que a corda está no meu pescoço é que o meu advogado vira o meu herói. Na própria família, todo mundo te olha pergunta se você tem algum desvio de caráter para conseguir “este tipo de gente”.

Roberto Podval — Como você vai defender essa pessoa? É por dinheiro? É muito dinheiro? Você está ficando rico? O que justifica isso? As pessoas não compreendem. Só é possível atuar, exercer sua profissão efetivamente, se você acreditar que as pessoas merecem ser defendidas, por pior que elas possam ser. A gente trabalha em casos pró-bono, com pessoas presas em presídios, acusadas ou condenadas por crimes comuns. E são pessoas de uma doçura, de um tratamento tão…

Beatriz Rizzo — Ninguém é só uma coisa.


Conjur — E como vocês escolhem os casos?

Roberto Podval — A nossa grande utopia é poder montar um escritório só para atender esses casos. Era poder ter dois escritórios, um deles para atender esses casos em uma quantidade muito maior. Óbvio que não dá. Não dá tempo. Mas o que é possível a gente faz. E atende com a mesma qualidade, com o mesmo tipo de serviço que atende qualquer caso.

Conjur — São quantos atualmente?

Roberto Podval — São seis, sete casos complicadíssimos. A gente atende acompanhando, fazendo visita nos presídios, conversando com pessoas. Recebemos as pastas, relatório mensal de com está o caso, de quem acompanhou.

Beatriz Rizzo — Vai à Brasília, faz sustentação oral, tudo igualzinho. É por isso que dá para fazer pouco. Mas não tem atendimento de segunda categoria porque não paga. É o mesmo atendimento.

Conjur —Como o senhor vê o papel do Supremo Tribunal em meio a todo este tumulto político?

Roberto Podval — O Supremo é “O” tribunal, e não é à toa que é Supremo. É o Supremo Tribunal e o que se diz ali ressoa para todos os tribunais do país, para todo os juízes. E é muito importante que a gente tenha um Supremo como hoje.

Conjur — Como?

Roberto Podval — O Supremo é diferente. Ele não é homogêneo. Tem pessoas com uma diversidade muito grande, mas intelectualmente muito preparadas. Estamos assistindo a decisões que estão mudando posicionamentos nesse país, e isso é muito bom. A jurisprudência tem um papel importante e o Supremo norteia a jurisprudência nacional conduzindo-a para um progresso muito grande. Os ministros não se preocupam com a imprensa.

Beatriz Rizzo — O Supremo tem sido independente e imparcial, especialmente em matéria criminal. Porque há tribunais que são independentes, mas parciais. O Supremo não. Vemos o Supremo com coragem, discutindo as questões com imparcialidade, com pessoas completamente diferentes. Eles julgam com uma consciência muito grande do que é ser juiz e do que é ser juiz do Supremo Tribunal Federal.

Conjur — Mas trata-se de um tribunal político.

Roberto Podval — É um tribunal político pela própria natureza. Mas sua visão política não muda o resultado jurídico. Nas causas criminais esse tribunal político tem pouca relevância, porque são questões mais doutrinárias do que institucionais. O problema não é ser político, o problema é não ser independente. O problema do Supremo é que tem uma quantidade muito grande de processos e aí chega a morosidade.

Conjur — Mas este não é um problema apenas do Supremo?

Roberto Podval — O grande problema que sofremos na parte criminal são os tribunais que por princípio não dão liminares. Seria interessante até fazer um estudo para pegar quantos pedidos de liminares são feitos no Tribunal de Justiça de São Paulo na área criminal em um ano e quantas liminares foram dadas. Vamos descobrir que o volume de liminares concedidas não chega a 5%. Talvez não chegue a 1%. É possível que nós tenhamos menos de uma liminar por mês no tribunal.

Conjur — E não é porque vocês pedem liminar demais, não?

Beatriz Rizzo — A desproporção é tanta que não é possível que ninguém tenha razão. Tanto que depois as decisões são reformadas.

Conjur — E é só na área criminal?

Beatriz Rizzo — O Tribunal de Justiça parte de um pressuposto de que não deve dar liminares. É um pressuposto contrário à Justiça.

Roberto Podval — As pessoas que estão no Tribunal de Justiça, historicamente, não dão liminares. Uma pessoa que foi presa por qualquer razão pede uma liminar. A liminar é indeferida pelo Tribunal, eu não posso mais, por conta de uma decisão sumulada do Supremo, ir para o Superior Tribunal de Justiça.

Beatriz Rizzo —Tem que esperar julgar o mérito. E com isso as pessoas ficam presas esperando a Justiça por seis meses, um ano.

Roberto Podval —Tanto que agora uma decisão no Supremo, deu uma flexibilizada nessa súmula da liminar.

Conjur — Se for aprovada a aposentadoria compulsória aos 75 anos, vai melhorar, piorar, ou não muda nada na Justiça?

Roberto Podval — Conheço pessoas tão preparadas e tão animadas com o exercício da magistratura e não acho que aos 70 anos elas deveriam se afastar. Enquanto outras estão tão cansadas que levam a função de julgar já como uma certa rotina, o que é muito negativo. Honestamente, nos dias de hoje, há pessoas tão jovens com 70 anos idade. Não sei se é um bom limite.

Beatriz Rizzo — O melhor seria aumentar a carreira e espalhar. Tem muito pouco juiz e você paga pela inatividade de gente que poderia estar produzindo e bem e com gosto.

Roberto Podval — Eu gosto dos mais velhos. Não necessariamente os mais velhos são melhores ou mais justos. A gente viu isso no Senado, quando os senadores idosos mandavam a gente calar a boca de dedo em riste. Alguns envelhecem e não aprendem com as experiências de vida. Mas muitos têm tanto para mostrar, para ensinar. Então, eu digo com muita tranqüilidade que perdemos grandes nomes da magistratura brasileira ou paulista por este critério de aposentaria aos 70 anos.


Conjur — Voltando um pouco na questão criminal. Qual a sua opinião sobre a delação premiada?

Roberto Podval — O Estado não pode trabalhar com a lógica do particular. A lógica, toda a construção ideológica da delação premiada, é uma construção do dedo-duro, do alcagüete, do imoral. E o Estado se aproveita dessa situação para conseguir informações como se fosse a única alternativa. É de uma pobreza de espírito muito grande. Isso cria situações difíceis.

Conjur — A delação premiada deu bons resultados em outros lugares onde foi aplicada.

Roberto Podval — Embora eu não concorde, consigo entender que para enfrentar a máfia italiana você precisava daquilo. A nossa realidade é completamente outra. Não há essa necessidade. É um risco desnecessário. As pessoas aparecem delatando, se oferecendo, se vendendo. É perigoso. Acho indecente, se eu posso dizer assim, o Estado utilizar esse tipo de artimanha. Temos, por um lado, as delações cada vez mais incentivadas. E por outro as gravações telefônicas absolutamente vulgarizadas. E aí acabou a investigação. Basta gravar de um lado, delatar do outro.

Beatriz Rizzo — O processo vira uma fofoca. Está errado. Se o sistema quer coibir a imoralidade alheia, ele não pode ser imoral. Eu não sei se é possível evitar, impedir a delação. Agora, você montar um sistema em cima de delação, que é o que está acontecendo, é inaceitável. Então não precisamos mais de juiz e promotor. Troca tudo por psicólogo para fazer as pessoas confessarem e delatarem. Confessa e delata e a gente não precisa mais de polícia, de prova técnica.

Roberto Podval — Isso poderia ser utilizado excepcionalmente dentro de um sistema montado. Mas não podemos aceitar que o sistema seja a delação e a gravação. A partir daí, vive-se a maluquice das pessoas falarem de terceiros e esses terceiros passarem a ser vistos como réus, até prova em contrário.

Beatriz Rizzo — Para usar a delação parte-se do pressuposto de que o investigado é culpado. Se não partir desse pressuposto, não tem delação.

Roberto Podval — A sociedade tem as leis que quer. Esse é o preço que se tem de pagar para punir um culpado? Corremos o risco de criar uma sociedade absolutamente insegura. É o que passamos hoje. Atendemos no escritório um grande número de pessoas em absoluto pânico. Empresários que chegam lá para saber se estão ou não vigiados, se há o risco de a Polícia entrar na casa deles, de uma busca e apreensão. Mas, o que você fez de errado? E ele vai lá te contar que um dia foi tomar uma bebida, sei lá, com a mulher do vizinho. Então, é isso. A paranóia é grande. Nós vivemos em um Estado policialesco. Hoje, as pessoas se sentem inseguras por si só. Porque, afinal de contas, eu posso estar grampeado. E se eu estiver grampeado, eu sei que vão pegar alguma coisa, porque, afinal de contas, quem um dia não deixou de pagar a multa, não deu propina na estrada? Então, vamos ter que escolher: queremos uma sociedade como a germânica ou como a de Cingapura?

Beatriz Rizzo — Suécia ou Cinagapura. São dois lugares absolutamente seguros. Você pode ter máxima segurança e nenhuma liberdade, ou máxima segurança e liberdade. Custa mais construir segurança com liberdade na Suécia do que segurança sem liberdade em Cingapura.

Roberto Podval — Dependendo do caminho pelo qual você vai, até a tortura pode ser instrumento para uma delação premiada. Então, há que se tomar muito cuidado, porque não tem limite. A gente pode ir até onde a sociedade quiser que vá.

Conjur — O advogado, o criminalista, não tem de se preocupar com a origem do dinheiro que vai pagar seus honorários?

Roberto Podval — Esse problema surgiu agora com a lei de lavagem de dinheiro. No mundo inteiro há uma discussão com relação à origem do dinheiro com o qual se paga o advogado. Como é que vai avaliar a procedência do dinheiro? Você recebe o dinheiro, declara, paga os impostos. Agora, eu não tenho condições de fazer um inquérito para saber a origem do dinheiro de quem me paga.

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