Bioética no Brasil

Avanço da ciência deve respeitar a dignidade do ser humano

Autor

  • João Antonio Wiegerinck

    é advogado mestrando pela PUC-SP em Direito Constitucional e coordenador no Complexo Jurídico Damásio de Jesus. É também professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie (pós-graduação).

10 de setembro de 2005, 13h27

Em uma série de culturas milenares, comum a todos os latino-americanos, parece-nos sermos semelhantes ou até mesmo iguais em muitos aspectos. Desagradável é sermos semelhantes, sobremaneira, no chamado subdesenvolvimento. As perceptíveis diferenças são atribuídas a ações locais onde um colonizador foi além das necessidades, atuando socialmente, enquanto outro não o fez.

Ao que possa chocar esta primeira colocação, tenha-se que, se fossemos realmente diferentes em nossas raízes, mas iguais como seres humanos iríamos além do necessário à sobrevivência, mantendo cultura, civilização e costumes, amando-nos uns aos outros como semelhantes que somos.

Esses valores, transmitidos e trabalhados desde os primeiros passos de um indivíduo fazem toda a diferença na estrutura de uma nação e seu povo, onde o indivíduo transmite seus dotes axiológicos aos descendentes.

Tal fenômeno ocorre quando existe condição mínima de comunicação entre educador e educando, seja entre pais e filhos, professores e alunos. Condição mínima equivale à dignidade na conduta, ou seja, qualidade dos dados, capacidade de informação, vocação para o ensino, desejo e utilidade em aprender — perceber que a tese é aplicável e resulta em ganho pessoal e relacional.

No início do século XX, a Escola de Frankfurt tornou evidente a ditadura da Economia sobre o Poder Legislativo. Ainda que tal fato já se verificasse em toda e qualquer comunidade, merece especial atenção aquelas em que o colonialismo foi unidirecional, extrativistas, solapando tradições e costumes locais, deixando às décadas vindouras, populações viciadas, direcionadas, comprometidas, uma vez que contaminadas.

Tais dados não são novidades em termos de América Latina. Então, começamos a nos unir, porque instintivamente, seres ameaçados se unem contra seu opressor comum, ou contra as características comuns de diversos opressores. O processo de união dos paises latino-americanos levou-nos às raízes de solidariedade e boa-fé, reconhecidos internacionalmente.

Equalizar costumes e integrar um continente com tal perfil e extensão leva considerável tempo, tanto mais quando falamos em uma miscigenação de múltiplas origens e valores. Entretanto, note-se que são valores existentes e o tempo acaba sendo a matéria-prima responsável pelo reconhecimento da identidade do nosso continente, dando condições aos pensadores e ativistas bem intencionados de, artesanalmente, entender a rede que une os paises compreendidos do México às Ilhas Malvinas. Merecemos respeito e consideração, pois somos também velho mundo e potência cultural.

O futuro das relações internacionais, até por obediência aos ditames da celeridade e eficiência, se dará por blocos econômicos. Isso significa segundo Adorno, Freud, Marx, Keynes e outros então contemporâneos, a definição de cultura e civilização do porvir. O que se pergunta é: os blocos economicamente estáveis estão prontos a admitir e reconhecer a capacidade criativa e responsável dos latino-americanos ou estamos entrando em um segundo colonialismo?

Tal questão depende de outra resposta e ser dada à seguinte pergunta: os latino-americanos estão prontos a descartar a inútil ilusão de busca dos padrões de consumo, sucesso e pseudo-felicidade pregados como culto fanático, e perceber a riqueza de vida sob nossos pés e sobre nossos olhos, latino-americanos?

É necessário que façamos claro que, receber bem, tratar bem, propagar a felicidade em rituais e crenças, não significa subserviência, ainda que muitos que aqui chegam pensem assim.

Quanto tempo mais vamos viver, em termos de coletividade, como peças voltadas à sustentabilidade de um sistema estranho às nossas necessidades regionais e locais, tendo como objetivos mansões, uma diversidade de propriedades e uma multiplicidade de bens que não se justifica nem para quem as tem, porquanto impossíveis de se desfrutar a um mesmo tempo. Quando vamos deixar de lado a imagem de que o afortunado materialmente é o indivíduo mais próximo do “certo” ou da “felicidade”?

Ao que indica a ética, a filosofia, o saber hoje em dia, a dignidade depende de um mínimo necessário para se estar e sentir bem consigo. Alimento, moradia, vestimenta e educação. A percepção da dignidade da pessoa humana passa por estes fatores antes de atingir discussões como propostas no Biodireito e na Bioética.

Isso porque a dignidade parece ser a chave-mestra para que a ciência e a ética possam atuar até onde se faz possível no tempo e espaço presentes, determinar o que é ou não desejável à humanidade ou ao indivíduo em sua autonomia. O Direito, neste quadro, deve se limitar a regular o que é de interesse comum a todos, observando o que de mais precioso traz o princípio da Igualdade: tratar os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades, uma vez justificadas as diferenças.

Sejam as leis naturais, sejam as normas positivadas, sempre haverá uma variedade de matérias comuns a todos, reguladas de acordo com as igualdades da essência humana, e as exceções a serem estudadas e respeitadas quando válidas, dado o contexto experimentado pelo indivíduo frente à sua realidade.

Assim, nos parece que, ao tratar de bioética, tratamos de condutas de vida, qualidade de vida, em termos individuais e coletivos. A vontade de viver, ou a vontade de abreviar um sofrimento irreversível e crescente é resultado do que se sente como dignidade, e dignidade é um sentimento, é uma questão de foro íntimo, pessoal. A utilização de células-tronco em terapias, a clonagem, a sexualidade, o eventual melhoramento de organismos por meio da genética e as demais áreas abrangidas pela bioética passam obrigatoriamente pelo bem comum existente no Direito, na saúde e na filosofia, ética – a dignidade.

O permanente conflito entre a prevalência ou não do valor cultural, coletivo ou difuso, sobre o direito individual fundamental merece estudo permanente porquanto não existe uma fórmula pronta ou padrão a ser seguido.

O estudo permanente deve levar em conta as tentativas, erros e acertos de culturas milenares, assim como estas devem respeitar as inovações e a energia bem intencionada de culturas mais recentes em termos de milênios, derivadas ou não daquelas. O desejável é o equilíbrio entre o que a tradição mostra ser sábio, e as adequações que se mostram justificadas no avanço das ciências. Clássico é um termo que determina aquilo que tem qualidade suficiente para resistir ao tempo e ao espaço. Entretanto, sem a vanguarda, tornar-se-ia um tédio inimaginável.

Na equação acima, paises latino-americanos têm muito que contribuir e a visão de subsistema voltado à experimentação político-econômica de sistemas mais antigos ou monetariamente mais expressivos não encontra mais lugar.

Ao fim dos pensamentos aqui expressos, nos deparamos com o maior dos desafios: o crescimento vegetativo da população é muitas vezes maior que a capacitação de educadores, ou mesmo dos responsáveis pela educação, em maior escala.

Seja qual for o assunto tratado na Bioética e no Biodireito, a primeira célula envolvida é a família. Quando nossas crianças convivem com valores básicos como dignidade, a importância de se conhecer e se estimar, independente de bens de consumo ou aparências, estão a se tornar os adultos que às vezes nos faltam, na condução de um Estado, no aprimoramento de uma Cultura, nos avanços e limites de uma pesquisa, seus métodos e fins.

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  • é advogado, mestrando pela PUC-SP em Direito Constitucional e coordenador no Complexo Jurídico Damásio de Jesus. É também professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie (pós-graduação).

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