Crise política

Ministro diz que Constituição é garantia de estabilidade

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9 de setembro de 2005, 15h24

Não há motivo para medo do futuro, nem mesmo nos momentos de crise, já que a força da Constituição de 1988 garante estabilidade para o país, e cabe aos advogados assegurar a máxima eficácia das normas jurídicas. Foi de otimismo o tom do discurso do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, na colação de grau dos formandos de Direito do UniCEUB — Centro Universitário de Brasília. O ministro foi o patrono da turma.

Segundo o ministro, essas crises políticas e econômicas que ocorreram depois da Constituição de 88, estão sendo superadas dentro dos moldes democráticos, sem haver sequer ameaça de ruptura institucional ou de volta ao autoritarismo. “Graças a esses avanços, o Brasil de hoje é melhor, mais estável e menos injusto do que aquele de antes da Carta de 1988. Não há, pois, razão para niilismo ou ceticismo.” afirma o ministro.

Para Gilmar Mendes, o Brasil já avançou muito depois da Constituição de 1988, e podemos comemorar 17 anos de estabilidade institucional apesar de tantas turbulências e mudanças. “Ressalte-se, ainda, que, se a nossa Constituição apresenta defeitos — e, certamente, ela não está isenta de falhas —, ela tem virtudes que precisam ser destacadas. A maior delas não está em nenhum instituto em especial, mas na força normativa que nela se manifesta, inclusive em momentos de crise.”

“Assim, posso dizer que se vocês estiverem dispostos a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, estarão certamente contribuindo para a construção do Estado Constitucional em que se consagra o respeito à Constituição como força essencial de sua própria existência.” aconselha o ministro.

Leia a íntegra do discurso:

Discurso do Ministro Gilmar Ferreira Mendes na formatura da turma de Direito do UniCEUB, “Nós, brasileiros, cidadãos do mundo”, proferido em 05 de setembro de 2005.

Meus caros amigos, formandos do UNICEUB

Foi com um sentimento de gratidão que recebi a informação de que havia sido escolhido como Patrono da turma “Nós, Brasileiros, Cidadãos do Mundo”, do primeiro semestre de 2005.

Os festejos de colação de grau de mais uma turma de bacharéis em Direito me conduzem a uma dupla reflexão: a esperança que a juventude sempre inspira e a responsabilidade que se apresenta imprescindível para que os jovens possam enfrentar os desafios que a história lhes reserva.

Vivemos tempos de desafio na sociedade. E isso afeta diretamente o direito e a política. São tempos de mudanças. O mundo que vocês vão encontrar fora da Universidade não é um mundo organizado ou ordenado, mas, ao revés, um mundo em processo de grande transformação.

É muito provável que, em razão dessas transformações intensas, muitas das disciplinas desenvolvidas durante o curso de Direito mostrem-se, desde logo, superadas. É também intensa a mudança de conteúdo e de enfoque.

A história mundial das duas últimas décadas do século XX está a nos contar que o século XXI já nasce repleto de angústias. São múltiplas as crises que se somam a um universo de quebra de paradigmas em direção à chamada sociedade hipercomplexa, multicultural e globalizada.

Daí a importância da concretização do Estado Social que, na visão de Peter Häberle, tem como objetivo primordial a proteção dos direitos fundamentais sociais e a vinculação da sociedade à sua função social.

É bem verdade que a Constituição de 1988 representa um avanço nesse particular. Aprovada num contexto econômico e social difícil (a inflação acumulada do ano de 1988 foi de 1.037,56%), a Carta Magna de 1988 fez uma clara opção pela democracia e uma sonora declaração em favor da superação das desigualdades sociais e regionais brasileiras.

A ênfase em uma agenda social está estampada logo no início da Carta Constitucional. Em seu artigo 3º a Constituição declara constituírem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos. Tem-se uma Carta que, ao lado das disposições tradicionais sobre o modelo democrático, consagra um amplo catálogo garantidor dos direitos individuais, e incorpora um número elevado de direitos sociais. A Constituição consagra, entre direitos de perfil fortemente programático, o direito a um salário mínimo capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador urbano e rural (art. 7º, IV) e à assistência social para todos aqueles que dela necessitarem (art. 203).

Como se vê, a institucionalização da democracia em 1988 veio acompanhada de uma agenda social, que, em muito, transcende os aspectos meramente formais. Optou-se por um modelo constitucional fortemente dirigente, que, de forma extremamente analítica, disciplina uma série de questões da vida nacional.


É, indubitavelmente, a mais detalhada Constituição da nossa história constitucional, com 250 artigos na parte permanente e 83 disposições transitórias, que tratava, originariamente, não só de questões relativas ao funcionamento dos órgãos estatais supremos, mas também de matérias ligadas à própria administração da economia (monopólios, empresas da capital nacional, etc.).

A Constituição de 1988 inaugura uma convicção no modelo democrático, e as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que o conflito e a ruptura. Crises políticas e econômicas graves têm sido equacionadas dentro dos marcos institucionais previamente estabelecidos.

Um impeachment presidencial e inúmeras crises políticas e econômicas desenvolveram-se sob a disciplina constitucional, sem qualquer contestação ou reclamo relevante. O poder civil está consolidado, cabendo mencionar, nesse ponto, a criação do Ministério da Defesa (Emenda 23, de 1999), órgão a que estão subordinadas as forças armadas e ocupado, desde a sua criação, por civis, expressão nítida do controle das forças militares pelo Poder civil.

É bem verdade que o modelo analítico faz com que revisões de políticas governamentais passem necessariamente pela revisão da Constituição. Tal modelo obriga os Governos, independentemente do seu perfil, a cultivarem uma maioria apta a votar emendas (3/5 de votos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal). Daí a importância de um diálogo contínuo entre as três funções do Poder para que, em cada reforma, não se renove o quadro de crise e de instabilidade. Importante, igualmente, o papel da sociedade civil e da imprensa nesse diálogo.

Assim, ao longo desses anos, após 1988, pode-se perceber que a ampla proclamação de direitos pela Constituição serviu de estímulo a que as instituições de representação da sociedade civil se mobilizassem em favor da concretização daquelas promessas constitucionais. Não há dúvida de que, a partir de 1988, a sociedade civil brasileira saiu fortalecida.

Convive-se hoje com uma multiplicação de movimentos e organizações sociais voltados à defesa de múltiplos interesses, como a defesa da igualdade racial, do meio ambiente, da reforma agrária, dos interesses indígenas, do consumidor, entre outros.

E as nossas responsabilidades são ainda maiores nesse contexto, pois, para que seja construído um autêntico Estado Constitucional entre nós, já é passada a hora de diligenciarmos para que a formação de nossos cidadãos seja feita na cartilha dos direitos (fundamentais). Mais do que isso, é preciso apostar na esperança de que os jovens juristas levem a sério os direitos (expressão de Ronald Dworkin) e a própria Constituição, cabendo a cada um reconhecer-se como “refém da liberdade do outro”.

Ora, é nesse sentido que deve ser concebida a responsabilidade, aquela conferida pela liberdade que nos chega do outro, no sentido de que “não existe ação humana que não seja, contemporaneamente, um ‘responder’ a si mesmo, ao outro ou à lei”.

De uma forma ou de outra, todos nós, bacharéis em Direito, temos um papel decisivo na construção de um Estado Constitucional, para que tal Estado seja reflexo de nossos valores.

O processo de estabilidade ou continuidade constitucional, considerando o tempo como dimensão, pode ser analisado e explicado a partir de uma perspectiva científico-cultural que combina aspectos sociológicos, ideológicos e normativos, possibilitando o trabalho de especialistas em ciências jurídicas e outras áreas do conhecimento que se interessem pelo mesmo objeto cultural de análise.

Vocês, novos bacharéis em Direito, são chamados ao desafio do trabalho em equipe, equipes interdisciplinares e com visões multidisciplinares, que estão a solicitar uma nova gama de competências e habilidades.

A esse respeito, não conheço nada mais adequado do que a analogia concebida pelo grande jurista argentino Carlos Santiago Nino. Ele dizia que a tarefa dos juristas em relação à Constituição se assemelha à daqueles arquitetos que são convidados para participar do prosseguimento de uma obra de uma antiga catedral. Não se pode rever o trabalho já feito, mas é de se continuar naquele trabalho, tendo como base a lógica da segunda melhor opção. É preciso que tenhamos, portanto, essa dimensão.

Isso significa que o bacharel em Direito deve ser capaz de fazer uma nova leitura das relações existentes entre dignidade humana e povo, razão e liberdade, Direito e realidade, assim como entre ideologia e interesses econômicos.

O reconhecimento de que nós juristas também devemos ocupar um lugar no âmbito científico-cultural e nas discussões sociais atuais, pode lograr melhores fórmulas de compreensão da relação entre os textos jurídicos e seus respectivos contextos, considerando que toda manutenção ou mudança jurídico-constitucional sempre é revitalizada mais intensamente a partir das cristalizações culturais próprias.


A todos nós cabe a tarefa de assegurar a máxima eficácia das normas jurídicas em geral e da Constituição, em particular. Para isso é preciso entender, tanto o ordenamento jurídico quanto a própria Constituição, como um projeto coletivo de disciplina jurídica da vida social e política.

Assim, posso dizer que se vocês estiverem dispostos a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, estarão certamente contribuindo para a construção do Estado Constitucional em que se consagra o respeito à Constituição como força essencial de sua própria existência.

Entretanto, fica a advertência do Professor Konrad Hesse: “Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado.”

Nesse contexto, o caminho a trilhar é o da coragem de enfrentar os desafios de um futuro que nos impõe a busca por soluções rápidas para questões muito complexas. Diante de tanta perplexidade e de tantas possibilidades, só nos resta dar um crédito à esperança na formação de um cidadão altivo, consciente, de passo erguido (como diria Häberle), cuja idéia de responsabilidade esteja associada à capacidade de tolerar e perceber a sua liberdade como uma concessão recíproca da liberdade do outro.

Vocês poderão estar se perguntando, neste momento, sobre a importância do que aprenderam durante os anos escolares.

Talvez, uma das lições mais atuais é a de que a Universidade não deve limitar-se a ensinar uma dada disciplina, mas procurar preparar o estudante para um estágio de permanente aprendizagem e descoberta.

Ensinar a aprender há de ser um dos lemas dos novos tempos. O processo intenso de mudança obriga a um permanente compromisso com o estudo.

Assim, ao encerrar esta etapa de suas vidas, começa uma outra, que há de ser, igualmente, exitosa e alvissareira, especialmente para aqueles que souberem ler os sinais dos novos tempos, para aqueles que tiverem o espírito aberto para novas e constantes descobertas. Portanto, estarão mais preparados para os novos desafios aqueles que desenvolverem a permanente capacidade de aprender.

O Brasil também passa por profundas transformações. Felizmente, essas mudanças realizam-se em consonância com os paradigmas do Estado de Direito. Esse é um ganho que não pode ser desprezado. Não se esqueçam! Ainda nos recentes anos 80 vivíamos sob a sombra do autoritarismo.

A democracia é uma condição fundamental para a realização de outras pretensões civilizatórias. Não há aqui espaço para um pensamento de alternativas. O progresso econômico e a justiça social somente poderão realizar-se dentro de marcos democráticos.

E acredito que, nesse aspecto, avançamos muito no Brasil de hoje. Estamos a celebrar, sob a Constituição de 1988, 17 anos de estabilidade institucional. Não se trata de algo desprezível na nossa história marcada por tantos acidentes e turbulências. Ressalte-se, ainda, que, se a nossa Constituição apresenta defeitos – e, certamente, ela não está isenta de falhas -, ela tem virtudes que precisam ser destacadas. A maior delas não está em nenhum instituto em especial, mas na força normativa que nela se manifesta, inclusive em momentos de crise.

Não se pode olvidar que o Brasil passou – e tem passado – por crises econômicas e políticas sérias, já sob o regime da Constituição de 1988, crises essas que foram e estão sendo superadas dentro dos moldes democráticos, sem sequer se verificar qualquer ameaça de ruptura institucional. É um dado positivo quanto à força normativa da Constituição. E graças a esses avanços, o Brasil de hoje é melhor, mais estável e menos injusto do que aquele antes da Carta de 1988. Não há, pois, razão para o niilismo ou ceticismo.

Assim, neste momento de alegria para vocês e para os seus familiares, eu gostaria de dizer-lhes, como amigo um pouco mais velho, que não há porque ter medo do futuro e desse mundo em processo de transformação, especialmente se estivermos conscientes de que estamos também nós em processo de permanente aprendizagem, transformação e mudança.

Recebam, caríssimos formandos, “brasileiros e cidadãos do mundo”, os meus mais sinceros votos de felicidade pessoal e profissional. Muito obrigado!

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