Reforma processual

Problema de lentidão não está no número de recursos

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6 de setembro de 2005, 15h22

Os advogados têm assistido, passivamente, pronunciamentos de políticos e de alguns membros do Poder Judiciário brandindo armas contra o número de recursos previstos em nossas leis processuais, por eles considerados como os vilões da demora da prestação jurisdicional.

Com todas as vênias, esse clamor afronta o princípio da ampla defesa. O sistema de recursos no direito processual veio sendo aperfeiçoado ao longo de décadas. Não pode, de uma hora para a outra, segundo as circunstâncias do momento, ser destroçado ao pretexto de acelerar a prestação jurisdicional. Nunca se soube de nenhuma reforma que tenha dado certo com a supressão de recursos. O que se vê é exatamente o contrário. Aqui e em outros países, é só suprimir um recurso ou abreviá-lo para vir, logo em seguida, o arrependimento.

Pode-se lembrar do agravo no auto do processo que, eliminado no projeto da reforma de 1973, acabou, à enésima hora, ressurgindo sob a forma de agravo retido (graças à clarividência do então senador Acciolly Filho, acatando sugestão do professor Egas Dirceu Moniz de Aragão), hoje quase relegado ao desuso por conta de recente e inoportuna reforma.

Queremos lembrar, aliás e ainda, dessa reforma que alterou o sistema de interposição do agravo de instrumento, não mais permitindo sua apresentação ao juízo de origem para retratação, porém diretamente ao tribunal, numa agressão ao princípio de acesso à Justiça relativamente às partes que têm seus feitos tramitando em comarcas interioranas. E isso a que conduziu? A incontáveis expedientes, ao renascimento do agravo regimental e, nos casos em que este foi abolido, ou em que não é eficaz, ao mandado de segurança.

Queremos lembrar, por igual, da figura da retenção, no juízo de origem, do recurso especial que versa sobre decisão interlocutória, criada para evitar sua apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça antes da solução final do processo, da qual brotaram, como conseqüência, inúmeros incidentes para viabilizar a apreciação da matéria por aquele Tribunal.

Queremos nos referir, mais, aos embargos infringentes cíveis, que não têm mais cabimento quando o tribunal, por maioria de votos, confirma sentença de primeiro grau. Trata-se de uma violência à norma constitucional que assegura a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, pois não é possível, em matéria de direito da parte, definir o cabimento de um recurso por critério que vincule a decisão de primeiro grau àquela que a revê.

A experiência está aí para demonstrar que são incontáveis os casos em que o acerto só veio com o julgamento de embargos infringentes. O que mais surpreende é o suprimento do recurso com base em simples proposição teorética, sem qualquer levantamento estatístico que confirmasse a suposta presunção de serem reiteradamente rejeitados embargos infringentes interpostos contra decisões majoritárias confirmatórias da sentença de primeiro grau.

Destaque-se, também, as tentativas — algumas já consumadas — de permitir ao magistrado ou órgão que julga o recurso, que condene a parte ao pagamento de multa por tê-lo interposto, sem qualquer critério seguro e objetivo que balize tal condenação. No caso de embargos declaratórios, a multa que decorre de serem reputados protelatórios só tem o condão de retardar mais o processo, pois, sistematicamente, os recursos especiais por violação ao dispositivo próprio acabam sendo admitidos para que o STJ reconheça a violação e afaste a multa. Ou seja, prejudica a parte vencedora, que demora mais para iniciar a execução do julgado, diante da subida dos autos, e em nada desafoga os Tribunais Superiores. Basta consultar o grande número de recursos existentes no STJ que se limitam, unicamente, à discussão sobre cabimento de multa em embargos tidos por protelatórios, a ponto de a matéria ter sido, até, sumulada.

Nessa mesma linha pode ser enquadrada a idéia de exigir depósitos ou de majorar as custas para a interposição de recursos, de sorte a dificultar ou inviabilizar o acesso das partes aos tribunais — isto é, o acesso à justiça revisora. A ADI que questiona esses depósitos no âmbito da Justiça do Trabalho até hoje não foi julgada.

Para deixar mais nebuloso esse cenário, está começando a se esboçar, em paralelo a essas medidas, uma reação de alguns magistrados mal orientados contra a profusão de recursos interpostos pelos advogados, como se a culpa fosse destes e não do sistema ou — o que é muito mais sério e precisa ser dito — da falta de conhecimento da matéria pelo julgador.

Há tempo não muito distante, o ministro Maurício Correia, ainda no cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal, a pretexto de desviar a atenção da comunidade sobre essa reforma do Judiciário que não desejava, verberou contra as normas processuais que, na sua ótica, são as que entravam o andamento da Justiça.

Na verdade, essa assertiva só pode ser compreendida por partir de alguém que há muitíssimo tempo estava afastado do dia-a-dia forense. Todos sabemos, no entanto, que a demora da atividade jurisdicional decorre muito mais (i) da burocracia criada pelos responsáveis pelo funcionamento do Poder Judiciário, que podemos chamar de burocracia cartorial, e (ii) da não observância do devido processo legal ou da hesitação dos magistrados na sua condução (permeando-o de decisões interlocutórias inúteis), do que da complexidade das leis processuais. O Código de Processo Civil de 1973 é simples e não nos parece que possa passar por maior simplificação, sob pena de se repetir o que aconteceu com o processo sumaríssimo que, de tão célere, virou ordinaríssimo.

Precisa esse Código, isto sim, ser observado e aplicado. Mais que isso: necessita ser restaurado ou aperfeiçoado nos pontos em que foi mutilado pelas reformas até agora propostas e conduzidas por altas autoridades que não têm a visão prática de quem atua nos diversos escalões da atividade forense, notadamente junto ao balcão das serventias de primeiro grau.

Pois bem. É hora de tentar pôr um paradeiro nesse estado de coisas.

É hora de os advogados dizerem, alto e bom som, que querem ser ouvidos.

E é hora de serem ouvidos. Somos nós os advogados, afinal, que sabemos o que é, realmente, necessário para a defesa de nossos constituintes. Temos a neutralidade para opinar, já que sofremos a pressão de nossos constituintes e experimentamos, invariavelmente, todas as agruras das posições que as partes podem ocupar num litígio, ao contrário do que ocorre com os políticos do ouvir dizer, sem experiência para opinar, dos magistrados, sempre preocupados com fórmulas para desafogar o Poder Judiciário e assim por diante. O advogado é o filtro das desesperanças e das frustrações dos jurisdicionados.

Se há necessidade de reduzir a carga que recai sobre os tribunais, é preciso primeiro verificar se o meio não prejudica o fim, que é a realização plena da Justiça; é preciso ver se a solução não está no aprimoramento e no aumento do número de magistrados — áreas em que não têm ocorrido avanços significativos.

Veja-se, de um lado, a omissão da maioria dos tribunais na promoção de atividades culturais voltadas à discussão de matérias ligadas às suas funções e a ausência, quase que absoluta, de membros da magistratura em eventos promovidos por outras entidades. Veja-se, de outro lado, que o Superior Tribunal de Justiça continua com seus exatos mínimos 33 ministros sem se abalançar na ampliação desse número e se manifesta sempre que pode, contra a criação de tribunais regionais por conta do aumento das despesas, sem, contudo, apresentar qualquer demonstrativo que afaste a suposição corrente de ser infundado o argumento.

Essas considerações servem para sinalizar o rumo a ser tomado na abordagem das questões aqui versadas, tratando-se de contribuição para o início do debate, como fruto da militância diuturna da advocacia, não de solução para as questões apresentadas.

E, para evitar que continuem sendo perpetrados atos que não enaltecem a imagem da Justiça, para tentar resgatar a voz dos advogados nos assuntos que mais diretamente tocam ao exercício de sua profissão, voltada para a defesa dos direitos do cidadão, vimos propor uma cruzada pela manutenção dos recursos processuais existentes, reivindicando estudos para eventual restauração do sistema recursal mutilado com participação ativa de nossa classe.

Propõe-se, em conclusão deste sucinto trabalho, que a secional do Paraná encaminhe ao Conselho Federal da OAB proposta para a realização de uma campanha de abrangência nacional visando a garantir a manutenção dos recursos existentes no Código de Processo Civil e a eliminar os entraves criados para o acesso à Justiça, medidas essas que certamente virão em benefício dos jurisdicionados e concorrerão para a recuperação do prestígio do Poder Judiciário, como almeja a classe dos advogados.

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