Favela da Paz

MPE exige do Estado assistência a crianças desabrigadas

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5 de setembro de 2005, 18h07

O Ministério Público do Estado de São Paulo está reclamando que a Justiça obrigue o município e o estado a prestar assistência social e a garantir os direitos básicos para crianças e adolescentes carentes da capital. Desde que o terreno em que 220 famílias moravam há oito anos foi reintegrado aos proprietários, 96 estão morando em condições precárias numa praça do centro da cidade.

A Ação Civil Pública de Preceito Cominatório de Obrigação de Fazer, com pedido de liminar, foi ajuizada pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude nesta segunda-feira (5/9). A representação, que deu origem à ação, é do Cedeca — Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos.

Em 29 de março deste ano, foi cumprida a reintegração de posse de um imóvel no centro da capital paulista da CTEEP — Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (antiga Eletropaulo), obedecendo a ordens da 3ª Vara da Fazenda Pública. Das 220 famílias que moravam no lugar, 96 não tinham para onde ir e passaram a acampar numa praça, próximo ao terreno. Desde então, segundo consta na ação, as crianças e adolescentes dessas famílias vivem em condições insalubres, sem acesso à educação, saúde e alimentação básica. Três delas precisam de tratamento cirúrgico, mas não podem se submeter a tal porque não possuem condições minimamente adequadas para a recuperação.

O MP-SP alega que a subprefeitura local e órgãos municiais e estaduais foram acionados, mas nenhuma atitude foi tomada. Pede, então, que em 10 dias o município e o Estado de São Paulo implantem um programa de assistência social na região, conhecida como Favela da Paz. O órgão requer que seja oferecido as crianças e adolescentes, no mínimo, alimentação básica, água potável, condições mínimas de higiene e assepsia, direito à privacidade e convivência familiar, garantia de acesso e permanência nas escolas e apoio para que possam largar a mendicância sem prejudicar a própria subsistência.

O promotor Vidal Serrano Nunes Júnior, que assina a ação, explica que a liminar deve ser concedida porque, se for necessário esperar a tramitação do processo, essas crianças “estarão correndo sério risco de vida, mercê de doenças não tratadas devidamente, de desnutrição sem perspectiva de tratamento ou ainda em virtude de infecções e outras doenças causadas por falta de higiene, dentre outros males irreparáveis após largo decurso de tempo”.

Leia a íntegra da ação do Ministério Público do Estado de São Paulo

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DO FORO DE SANTO AMARO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, pelos Signatários, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE PRECEITO COMINATÓRIO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, nos termos dos arts. 129, III, da Constituição Federal, 84 do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8078/90), 208, inciso III e 213, “caput” e § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA em face do ESTADO DE SÃO PAULO, bem como da MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, pessoas jurídicas de direito público interno, pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.

I – DOS FATOS.

Trata-se de representação formulada pelo CEDECA – Interlagos (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos) –, por meio da qual foi relatado fato ocorrido aos vinte e nove de março de 2005.

Narra a representação que o referido CEDECA acompanhou in loco a execução do mandado de reintegração de posse expedido pela Terceira Vara da Fazenda Pública de São Paulo, conforme processo de nº 1482/053.02.023375-5, do qual é autora a Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista – CTEEP, atual denominação da antiga ELETROPAULO, com endereço à Rua Bela Cintra, 847, São Paulo (fls.02 e 03).

O referido local encontrara-se ocupado, há cerca de oito anos, por 220 famílias. Com o cumprimento do mandado de reintegração de posse, as mesmas ficaram desabrigadas. Parte delas obteve apoio de familiares, logrando acomodação provisória em locais indeterminados. Outra parte, sem alternativas similares, acabou por se deslocar até a praça da Paz, espaço público distante dois quarteirões do local, onde permanecem acampadas há cinco meses, sem que qualquer assistência social lhes seja prestada.

Nessa senda, partindo da premissa de que tais famílias – atualmente, noventa e seis – são compostas também por crianças, que, neste momento, encontram-se desamparadas e passando pelas mais variadas e comezinhas necessidades, observa-se a falta de um programa mínimo de assistência social que garanta a tais infantes (cerca de cem) direitos fundamentais mínimos, como nutrição, acesso a instalações sanitárias, a água potável e a condições elementares de assepsia pessoal.


Importante ressaltar que, dentre as crianças e adolescentes citados, três encontram-se em situação muito precária de saúde, necessitando de intervenções cirúrgicas, que não podem ser realizadas porque no local em que habitam não existe salubridade mínima que garanta uma convalescença adequada, vale dizer, sem riscos muito presentes de contaminação por infecções.

Observa-se que a Subprefeitura de Capela do Socorro e os demais órgãos municipais e estaduais da área, em que pese por reiteradas vezes instados a tanto, nenhuma assistência social prestaram para minimizar a situação de exposição das crianças e adolescentes a riscos extremos.

Resta cristalino que ditas crianças se encontram alijadas dos sistemas de educação, saúde, alimentação, programas de assistência social, em face da notória insuficiência das posturas adotadas pelos Requeridos, configurando-se clara situação atentatória aos princípios constantes da Carta Magna, que cometem a citados direitos a natureza de fundamentais, em prol da dignidade da pessoa humana, princípio orientador da República Federativa do Brasil nos moldes do art. 1º, III, da Constituição.

Deste modo, tais crianças e adolescentes encontram-se marginalizados da sociedade, tendo negado o “direito a ter direitos”, preconizado por Hanna Arendt, como requisito mínimo de dignidade de um ser humano.

Registre-se que o presente procedimento foi instaurado há cinco meses, sendo que diversas autoridades da área social do Município e do Estado foram contatadas – algumas pessoalmente – e cientificadas da situação, sem que de tais gestões do Ministério Público resultasse qualquer medida concreta de proteção a tais crianças e adolescentes.

Assim, tendo em conta a legitimidade atribuída ao Ministério Público pelo art. 127 da Constituição Federal – de guardião dos interesses sociais e individuais indisponíveis – e nos termos do art. 201, incisos V e IX, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhe comete a tutela de direitos individuais e metaindividuais da infância e da juventude, baldadas as possibilidades de solução administrativa, resta o socorro da via jurisdicional como forma de garantir-se efetividade a direitos fundamentais das crianças e adolescentes relacionados as fls.42 a 44.

II – DO DIREITO.

O art. 227 da Constituição Federal, incorporando os presságios da assim chamada doutrina da proteção integral, prescreve tratar-se de dever do Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à consciência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão”.

O dispositivo em pauta não carrega disposição isolada, mas que encontra reforço semântico em diversas outras passagens da Constituição Federal.

Note-se, em primeiro lugar, que o art. 1º, III, da Constituição Federal enuncia como fundamento da República a dignidade da pessoa humana. Fazendo coro a tal disposição, o art. 5º de nossa Lex Major, adjetivando-os de fundamentais, prescreve os direitos à vida, à segurança e à privacidade. No mesmo sentido, o art. 6º da Constituição, arrolando direitos sociais, assegura o direito à educação, à saúde, à moradia, à proteção da maternidade e da infância e à assistência aos desamparados.

Há de se apontar, ainda nesse sentido, que os arts. 196 e 198, II, ambos da Constituição Federal, asseguram a saúde como direito de todos e dever do Estado, indicando , nessa questão, o dever de assistência integral, com prioridade às atividades preventivas. No mesmo caminho, os arts. 205 e 208, que asseguram o direito à educação básica, assim entendo não só como o direito de acesso, mas também o direito às condições para permanência no processo de educação formal.

A situação retratada inicialmente, como se vê, viola claramente todos os dispositivos constitucionais acima citados, pois as noventa e duas crianças e adolescentes arroladas estão absolutamente privadas de condições dignas de vida, senão vejamos:

– Estão privadas de moradia, pois vivem atualmente em barracos de lona e madeira, expostas às intempéries climáticas, à falta de condições sanitárias, à privação de acesso às condições de assepsia pessoal e à privacidade, dentro outros direitos básicos;

– Estão privadas de condições mínimas de permanência nas instituições oficiais de ensino, pois, por falta de moradia, de higienização e vestimenta (as roupas não podem ser lavadas ou passadas) são objeto de intensa discriminação no meio escolar;

– Por falta de programas sociais, que atentem para a situação peculiar em que se encontram, estão contingenciadas a perambular pelas ruas e faróis, pedindo esmolas para a própria subsistência e de suas famílias;


– Estão privadas do direito à saúde, de maneira geral, por falta de condições sanitárias, que constitui mecanismo básico de prevenção de doenças, e, de maneira específica, porque três das crianças necessitam de cirurgias que não podem ser realizadas por falta de local salubre para o período de convalescença; e,

¬ Estão privadas de alimentação, lazer, segurança pessoal e expostas a toda sorte de ocorrências.

Diversas gestões foram efetuadas junto à Subprefeitura, à Secretaria de Habitação e à Secretaria de Assistência Social do Município, sem que qualquer medida, ainda que embrionária, tenha sido adotada.

Como se cogitar de prioridade absoluta ou de proteção integral com crianças e adolescente há cinco meses em tal situação sem que qualquer medida, ainda que incipiente e parcial, tenha sido adotada? Como se cogitar de um propósito eficiente de política destinada a desestimular crianças esmolando em faróis, quando, num quadro como o desenhado, nenhuma atividade assistencial foi verificada?

Consoante o disposto no artigo 203 da Constituição Federal, “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

– a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo a crianças e adolescentes carentes;

III – A promoção de integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção à vida comunitária; (…) “.

A Carta Magna também faz referência, em seu artigo 204, às ações governamentais na área da assistência social, que “devem ser realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no artigo 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes”:

I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social.

II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”.

Observando-se que o ciclo geracional do aumento de pessoas desabrigadas está relacionado à marginalização social, estruturas familiares inadequadas, faltas de informação e de recursos comunitários, ausência de estimulação em etapas críticas da vida, baixo rendimento intelectual, falta de oportunidades de trabalho e estudo e ainda, a falta de assistência social, que os insira na sociedade, de modo que eles passem a fazer parte do corpo social, nota-se a inquestionável necessidade de que tais fatores sejam perseguidos e efetivados na esfera pública.

Neste contexto, as sempre pertinentes considerações do eminente jurista alemão Hans Kelsen:

“A essência do direito subjetivo, que é mais do que simples reflexo de um dever jurídico, reside em que uma norma confere a um indivíduo o poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento de um dever jurídico” (Teoria Pura do Direito, p. 197).

Percorrendo a mesma orientação, o art. 129, II de nossa Lex Major comete ao Parquet a missão de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Na mesma esteira, o inciso IX do artigo 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve incumbir ao Ministério Público a utilização dos remédios constitucionais para defesa dos direitos protegidos pela Lei Federal nº 8.069/90, exteriorizando, em homenagem ao princípio da efetividade da tutela, a possibilidade de utilização de todos os meios processuais adequados para a concretização dos direitos previstos no referido Estatuto.

Como se observa, o ordenamento jurídico é rico em princípios e regras que tornam inequívoco o cabimento e a pertinência da presente medida, eis que, no caso concreto, mister se faz a efetivação de programas de assistência social para as crianças e adolescentes que se encontram em clara e incontornável situação de marginalização e risco social.

III – DO CABIMENTO DA LIMINAR

Relevante salientar que tal medida servirá para restabelecer uma situação, que, se já não era ideal anteriormente à execução da reintegração de posse, atualmente tornou-se insustentável, haja vista as condições insalubres e desumanas em que se encontram tais infantes, que como tal deveriam ser tratados ao invés de lidarem com o descaso das Autoridades Públicas competentes.

Prescindível dizer que a postura de se aguardar todo o trâmite processual implicará no impedimento de que os infantes arrolados e suas respectivas famílias possam ter efetivo acesso a programas sociais eficazes, já que, com o evolver do iter procedimental comum, em que o próprio prazo para a oferta de contestação se alastra por sessenta dias, as crianças e os adolescentes listados estarão correndo sério risco de vida, mercê de doenças não tratadas devidamente, de desnutrição sem perspectiva de tratamento ou ainda em virtude de infecções e outras doenças causadas por falta de higiene, dentre outros males irreparáveis após largo decurso de tempo. Nessa senda, tem-se ainda a questão da educação dessas crianças, já que, à época da prolação da sentença, todas elas, seguramente, terão idade para cursar já nível superior de ensino.


Resta cristalino, dessarte, que os efeitos danosos da demora para se garantir condições mínimas de assistência social implicam mesmo em risco à vida e à saúde das crianças e adolescentes listados, bens jurídicos cuja tutela é imperiosa e suprema.

Desse modo, deve o Magistrado levar em conta não somente a letra fria da lei, mas sim, a finalidade para a qual esta se destina; assim, que bem jurídico teria o maior valor social? A que o Poder Público deve servir? Qual o papel que lhe cabe numa sociedade pautada no princípio da dignidade da pessoa humana?

Atento a mencionada situação, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 213, § 1º, autoriza o Magistrado a conceder a tutela liminarmente sempre que entender relevante o fundamento da demanda e houver justificado receio de ineficácia do provimento final.

Essa justamente a hipótese dos autos: todas as famílias e suas crianças acima citadas estão impedidas de exercer direito fundamental consubstanciado no acesso a programas de assistência social que ensejem maior inclusão delas a uma sociedade regida por uma Constituição, dita cidadã, por omissão dos Requeridos, o que materializa a relevância da demanda.

À evidência que o processo supõe efetividade: sem ela, o Poder Judiciário seria inerte ante os desmandos e ilegalidades ocorridos no seio social, pois Justiça tardia é negativa de Justiça. Aguardar-se o desfecho da demanda, após longa instrução, certamente tornará ineficaz o provimento final, em patente violação da garantia insculpida no art. 5º, XXXV, da Magna Carta.

Mercê de tais ponderações, curiais o cabimento e a pertinência da concessão de tutela liminar na hipótese, sob pena de conceder-se placet à histórica e reiterada omissão dos Requeridos no trato das questões sociais.

IV – DO PEDIDO.

Diante do exposto, requer:

a. a concessão liminar da tutela, com a finalidade de determinar-se aos Requeridos que procedam à implementação, no prazo de dez dias, de programa de assistência social na região da Favela da Paz, que contemple, em relação às crianças e adolescentes arrolados, ao menos os seguintes pontos:

– Acesso às condições de nutrição básica, assim entendida como o direito à alimentação adequada à condição de ser humano em processo de formação;

– Acesso ao consumo de água potável e às condições mínimas de higiene e assepsia pessoal;

– Condições materiais de exercício da privacidade e do direito de convivência familiar;

– Condições de acesso e permanência nas instituições oficiais de ensino;

– Condições que permitam o resguardo da saúde, inclusive com medidas necessárias à convalescença das crianças que necessitam de tratamento cirúrgico;

– Programa de apoio às famílias respectivas para que as crianças e adolescentes arrolados possam, sem prejuízo da própria subsistência, deixar a condição de mendicância em que se encontram.

b. sejam o Estado e a Municipalidade citados, para que, desejando, contestem a presente ação, sob pena de se reputar confessada a matéria de fato em virtude de sua revelia, prosseguindo-se até final julgamento, quando a ação será julgada procedente, tornando definitivo o provimento requerido em sede de antecipação de tutela.

O autor fará prova do alegado por todos os meios de prova em direito permitidos, inclusive a testemunhal, a documental, a diligencial, a pericial, etc.

Dá à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 1.000,00 (um mil reais).

Termos em que,

p. deferimento.

São Paulo, 02 de setembro de 2005.

VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR

Promotor de Justiça

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