Violência sexual

Juiz diz que alarde faz mais mal do que abuso a criança

Autor

1 de setembro de 2005, 17h57

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça suspendeu decisão que havia afastado a presunção de violência no julgamento de um acusado de abusar sexualmente de uma menina de cinco anos. A decisão havia sido tomada pela 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Os desembargadores do TJ gaúcho entenderam que não houve violência já que a criança não foi forçada a ir até o lugar onde ocorreu o abuso.

O voto da relatora no STJ, ministra Laurita Vaz, foi acompanhado por unanimidade. A Turma restabeleceu a condenação de primeiro grau, mas afastou o enquadramento na Lei dos Crimes Hediondos, que aumenta a pena pela metade. Assim, a condenação deve ficar nos seis anos (em primeira instância o total chegou a nove anos) de reclusão em regime fechado.

A decisão dos desembargadores da 8ª Câmara Criminal do TJ gaúcho foi considerada “uma verdadeira aberração jurídica” pela subprocuradora-geral da República, Lindôra Maria Araújo.

Segundo a denúncia, no dia 19 de julho de 2003, Edison Ricardo da Silva Reinheimer abusou sexualmente de uma menina de cinco anos dentro da Igreja Evangélica Batista Betel, em Porto Alegre, onde ele é assistente. Reinheimer é acusado de ter apalpado parte íntimas da criança e feito sexo oral nela.

Em primeira instância, foi condenado a nove anos de prisão em regime fechado, mas a defesa recorreu e o TJ gaúcho reduziu a pena para dois anos, suspendendo condicionalmente por quatro anos. Em seu voto, o relator, desembargador Sylvio Baptista, considerou que a pena para o crime de atentado violento ao pudor, de seis a 10 anos de reclusão, prevista no artigo 214 do Código Penal, era “exagerada” e seria “injusto” punir o réu com nove anos de prisão.

“A ação, cometida pelo réu contra a vítima, não teve uma repercussão tão danosa que exigisse uma punição exemplar”, escreveu o relator. “Tenho a impressão de que o dano psicológico não foi tão intenso, tão marcante que determinasse, repito, uma reprimenda rigorosa”. Baptista acrescentou: “ainda que se afirme certo desgaste psicológico, penso que ele se deve muito mais as atitudes dos adultos, tratando o assunto com grande alarde, que propriamente à ação do agente”.

O desembargador afastou a presunção de violência no crime. Pelo artigo 224, alínea a, “presume-se violência se a vítima não é maior de 14 anos”. Baptista, no entanto, entendeu que, embora a “tenra idade da criança”, ela “foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado”. Para ele, “a prática do ato libidinoso, deste modo, deu-se, vamos assim dizer, com o consentimento da criança. Ela foi seduzida e não violentada”.

Com esse entendimento, Baptista desclassificou a infração penal no artigo 214 e entendeu que valeria, neste caso, o artigo 218 do Código Penal, combinado com o artigo 226, inciso II.

O artigo 218 diz: “corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo”; pena de um a quatro anos de reclusão. O 216 aumenta a pena em um quarto quando o agente exerce qualquer poder sobre a vítima, seja de ordem familiar, emocional ou profissional.

O relator diminuiu a pena para dois anos, que ficou valendo por ser voto médio. Dos outros dois desembargadores que votaram, um entendeu que a condenação deveria ser de dois meses e outro, de quatros anos. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu a pena por quatro anos, decidindo que o condenado deveria prestar serviços à comunidade por 18 meses e, depois, comparecer a cada três meses em juízo para informar as suas atividades.

Em seu voto no recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a ministra Laurita Vaz, do STJ, considerou “absurdo afastar a violência presumida”, considerando que a menina tinha apenas cinco anos. Conforme ela ressaltou, “a violência presumida no artigo 224, alínea a, do Código Penal, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal de proteção à liberdade sexual do menor de 14 anos, em face de sua incapacidade volitiva”. Assim, conforme explicou, “o consentimento é irrelevante para a formação do tipo penal”.

Laurita destacou que os crimes sexuais contra crianças têm “conseqüências gravíssimas” no desenvolvimento delas. “Não é de se admitir qualquer interpretação da norma legal tendente a minorar a sanção penal estabelecida para o grave crime de atentado violento ao pudor, sobretudo na espécie, onde o crime foi praticado contra uma criança de, frise-se, cinco anos de idade”.

Por unanimidade, a Turma suspendeu o acórdão do TJ gaúcho e restabeleceu a condenação de primeira instância, apenas desqualificando o crime como hediondo, por não ter havido estupro nem lesão corporal grave ou morte.


Leia as decisões do STJ e de segunda instância

Íntegra do voto da ministra Laurita Vaz

RECURSO ESPECIAL Nº 714.979 – RS (2005/0004160-3)

RELATÓRIO

EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ:

Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, em face de acórdão do Tribunal de Justiça local, em sede de apelação.

Informam os autos que EDISON RICARDO DA SILVA REINHEIMER, ora Recorrido, por constranger criança de cinco anos de idade a permitir que com ela se praticasse os atos libidinosos de apalpação da vagina e das nádegas e felação, foi condenado pelo Juízo da 1ª Vara Criminal do Foro Regional de Sarandi, Comarca de Porto Alegre/RS, à pena de nove anos de reclusão, em regime integral fechado, como incurso no art. 214, c.c. art. 224, alínea a, do Código Penal, agravada pelo art. 9º da Lei 8.072/90.

Em sede de apelação, a Defesa aduziu, preliminarmente, inobservância das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, no mérito, pugnou pela absolvição por falta de provas ou pela desclassificação do delito, além de afastamento da agravante do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos.

No julgamento do apelo, a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por voto médio, condenou o Recorrido à pena de dois anos de reclusão, concedido o sursis mediante condições durante quatro anos, como incurso no art. 218, c.c. art. 226, inciso II do Código Penal, nos termos do voto do relator. O revisor votou pela desclassificação para o art. 19 da Lei de Contravenções Penais, condenando o réu a dois meses de detenção, e o vogal pelo afastamento da agravante do art. 9º da Lei 8.072/90 e pelo reconhecimento da tentativa, fixando a pena em quatro anos de reclusão.

Restou o acórdão assim ementado, litteris:

“PROVA.CRIME CONTRA OS COSTUMES. PALAVRA DA VÍTIMA. CRIANÇA. VALOR. Como se tem decidido, nos crimes contra os costumes, cometidos às escondidas, a palavra da vítima assume especial relevo, pois, via de regra, é a única. O fato dela (vítima) ser uma criança não impede o reconhecimento do valor de seu depoimento. Se suas palavras se mostram consistentes, despidas de senões, servem elas como prova bastante para a condenação do agente. No caso, as declarações da menor informam e convencem sobre o abuso sexual. Ademais, sua versão encontra apoio em testemunhos sobre circunstâncias ligadas ao fato criminoso. Unânime.

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CORRUPÇÃO. POSSIBILIDADE. Afastada a presunção de violência, portanto o atentado violento ao pudor, é possível desclassificar a infração penal para aquela prevista no art. 218 do Código Penal, porque presentes os requisitos da corrupção. A Súmula 453 do STF não inibe, em apelação, o reconhecimento desta situação, aplicando-se os artigos 383 e 617 do Código de Processo Penal. A denúncia, ao descrever o crime do art. 214, na modalidade presumida, está informando ao acusado, de forma implícita, sobre as circunstâncias do outro delito. Voto do Relator.

DECISÃO: Rejeitada a preliminar. Por voto médio, apelo defensivo parcialmente provido, para desclassificar a infração penal denunciada para o delito de corrupção de menor, reduzindo-se a pena imposta.” (fl. 393)

Sustenta o Recorrente, nas razões do especial, que o acórdão recorrido ao desclassificar o crime para corrupção de menores, negou de vigência aos arts. 214, e 224, alínea a, do Código Penal. Requer, pois, que seja dado provimento ao recurso para condenar o ora Recorrido pelo crime de atentado violento ao pudor.

Contra-razões às fls. 428/432.

Admitido o recurso na origem, ascenderam os autos à apreciação desta Corte.

O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 441/447, opinando pelo provimento do recurso, em parecer assim ementado:

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 105, III, A, CF. ARTS. 214 E 224, A, CP. CONSTRANGIMENTO DE MENINA DE 5 ANOS PARA APALPAR SUAS PARTES ÍNTIMAS E PARA QUE SE PRATICASSE FELAÇÃO NA PEQUENA VÍTIMA. TRIBUNAL A QUO QUE DESCLASSIFICOU A CONDUTA PARA O TIPO DO ART. 218. CP, SOB O ARGUMENTO DE QUE A PENA PREVISTA PARA O ART. 214, CP SERIA “MUITO ALTA”, QUE A REPERCUSSÃO PARA VÍTIMA “NÃO TERIA SIDO TÃO DANOSA” E QUE A MENINA TERIA “CONSENTIDO” OS ABUSOS. DECISÃO NITIDAMENTE CONTRA LEGEM. PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO.”

É o relatório.

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PERFEITA CONFIGURAÇÃO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CORRUPÇÃO DE MENORES. ALEGAÇÃO DE EXCESSO NA PENA COMINADA. IMPOSSIBILIDADE. CRIME COMETIDO CONTRA CRIANÇA DE CINCO ANOS DE IDADE. CONSENTIMENTO. INEXISTÊNCIA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. CARÁTER ABSOLUTO.


1. A desclassificação do tipo penal previsto no art. 214 do Código Penal, para o crime de corrupção de menores (art. 218 do Código Penal), sob o mero fundamento de “excesso de rigor” da pena cominada ao atentado violento ao pudor, é decisão nitidamente contra legem, a merecer pronta cassação desta Corte.

2. Afigura-se imprescindível que o tipo penal do art. 214 do Código Penal, durante a sua vigência, seja efetivamente aplicado, posto que o legislador endereçou um comando, e não uma faculdade, ao aplicador da lei, não podendo o julgador afastar a sua incidência por considerá-la excessiva no caso concreto.

3. O consentimento de criança de cinco anos é irrelevante para a formação do tipo penal, pois a proibição legal é no sentido de coibir qualquer prática sexual com pessoa nessa faixa etária.

4. A violência presumida, prevista no art. 224, alínea a, do Código Penal, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal de proteção à liberdade sexual do menor, em face de sua incapacidade volitiva.

5. Recurso provido para restabelecer a sentença de primeiro grau, sem o aumento de pena previsto no art. 9º, da Lei 8.072/90, que afasto de ofício.

VOTO

EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA):

O recurso deve prosperar.

De início, cumpre asseverar que, na hipótese, a irresignação cinge-se à questão eminentemente jurídica, consistente na possibilidade de desclassificação do crime do Recorrido para corrupção de menores, posto que não se discute sua conduta, que restou devidamente estabelecida pelas instâncias ordinárias. Afasto, portanto, o óbice de Súmula n.º 07 do STJ.

O acórdão recorrido, confirmando a sentença monocrática, entendeu restar “indubitável o constrangimento a que se submeteu a menor na ação do réu, que movido por intensa lascívia, passava os dedos e lambia a vagina da menor para satisfazer seus impulsos sexuais” (fl. 398), contudo, afastou a configuração do crime de atentado violento ao pudor pelos seguintes argumentos, in verbis:

“Correção que faço é quanto ao tipo de delito, do qual incorreu o recorrente, para, no final, encontrar uma pena justa. Defendo que se deve punir o agente na medida de seu ato, de sua culpabilidade e que esta punição seja necessária e suficiente para a reprovação pelo crime cometido.

Tem-se que encontrar a punição adequada, pois muitas vezes – e me parece a hipótese em questão – o excesso de rigor da lei não faz justiça ao caso concreto. E dentro deste raciocínio, definir qual é o papel do Poder Judiciário, qual é a função dos tribunais, da jurisprudência.

Penso que é dar à hipótese em julgamento a justiça, porque, em contrário, para que, nos juízes, servimos? Se for para enquadrar o fato ao tipo penal e sua respectiva pena, bastarão funcionários burocráticos com alguma qualificação e um programa de computador.

[…]

Aqui, ressalto, a ação, cometida pelo réu contra a vítima, não teve um repercussão tão danosa que exigisse um punição exemplar. Ainda que se afirme certo desgaste psicológico (as informações dos pais dão conta disso), penso que ele se deve muito mais as atitudes dos adultos, tratando o assunto com grande alarde, que propriamente à ação do agente. Esta se deu através de toques em partes do corpo da ofendida e talvez o ato do cunilíngua. Tenho a impressão que o dano psicológico não foi tão intenso, tão marcante que determinasse, repito, um reprimenda rigorosa.

A isto acrescento que a pena para o crime de atentado violento ao pudor, dependendo da causa – e esta é uma -, se mostra exagerada. Punir o recorrente com nove anos de reclusão em regime integral fechado é injusto. Só trará desgraça a todos, sem que se possa afirmar que alguém ou algo foi beneficiado. A punição, necessária, suficiente, adequada, justa, do interesse de todos (réu, vítima e familiares, sociedade) é aquela que, impondo restrições à liberdade do condenado, “não eternize ou infernize a situação do apenado”.

De outra banda, e o sentido é de adequar a situação em julgamento à hipótese legal, para se fazer justiça, embora a vítima contasse com tenra idade na época, vou afastar a presunção de violência.

Isto porque não existiu a violência real. A vítima foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado. A prática do ato libidinoso, deste modo, deu-se, vamos assim dizer, com o consentimento da criança. Ela foi seduzida e não violentada.

Desta forma, inexistindo a violência real e afastada a presunção, possível desclassificar a infração para aquela prevista no art. 218 do Código Penal, porque presentes os requisitos da corrupção de menores. A ação, registrada na denúncia, descreve ato libidinoso com uma criança que evidentemente, não era corrompida. E ela teve o condão, a capacidade, de corromper ou facilitar a corrupção do menor.” (fls. 399/402)


Tem-se, portanto, que o único fundamento utilizado pela Corte gaúcha para a desclassificação do crime, ao arrepio do comando legal, foi a injustiça da pena cominada ao atentado violento ao pudor, que considerou excessiva para ser aplicada ao caso concreto.

Não é de se admitir qualquer interpretação da norma legal tendente a minorar a sanção penal estabelecida para o grave crime de atentado violento ao pudor, sobretudo na espécie, onde o crime foi praticado contra uma criança de, frise-se, cinco anos de idade que, levada à igreja por sua mãe para realizar atividades sociais, foi forçada a deixar que com ela se praticasse atos libidinosos, justamente pelo monitor das atividades, a quem caberia zelar por sua guarda.

Plenamente justificado o “grande alarde” dos responsáveis pela menina que, como qualquer membro médio da sociedade, encara essa forma de criminalidade como das mais graves. Os crimes sexuais praticados contra menores têm conseqüências gravíssimas para as vítimas e suas famílias, comprometendo o normal desenvolvimento das crianças que tiveram o infortúnio de sofrer tão hedionda agressão, somente, por serem inocentes.

Não pode o órgão julgador, como foi feito in casu, afastar a incidência do tipo penal, por entender que a lei não é boa o suficiente para o caso concreto. Afigura-se imprescindível que o tipo penal do art. 214 do Código Penal, durante a sua vigência, seja efetivamente respeitado e aplicado, posto que o legislador endereçou um comando, e não uma faculdade, ao aplicador da lei.

Por oportuno, reproduzo o parecer ministerial da lavra da eminente Subprocuradora-Geral da República Dra. Lindôra Maria Araújo, que bem corrobora esse entendimento, in verbis:

“Em primeiro lugar, qual legitimidade detém o juiz para diante do caso concreto, entender que a lei não é boa o bastante e, em conseqüência, afastá-la in casu, aplicando outra norma em seu lugar? Goste ou não o magistrado, as normas existem no ordenamento jurídico. O Direito Positivo existe para ser aplicado. Se há uma norma penal incriminadora tipificando determinada conduta, essa norma há de ser aplicada.

Ainda que fosse possível tal operação pelo juiz, não estaríamos, de fato, diante de um caso de maior gravidade, a pedir todos os rigores da lei? Ressalte-se que a vítima é uma criança de 5 (cinco) anos, que foi induzida pelo recorrido, o qual desempenhava a função de aconselhador em sua Igreja, a acompanhá-lo à sala de brinquedos da referida Igreja, e lá teve sua calcinha retirada para a prática dos atos libidinosos narrados na denúncia.” (fl. 445)

Absurdo, também, afastar a violência presumida. Não há como inferir qualquer consentimento válido de uma menina de cinco anos de idade por ter, como consta dos autos, acompanhado espontaneamente o Recorrido à sala de brinquedos da igreja.

De todo modo, a violência presumida, prevista no art. 224, alínea a, do Código Penal, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal de proteção à liberdade sexual do menor de quatorze anos, em face de sua incapacidade volitiva.

Assim, o consentimento é irrelevante para a formação do tipo penal, porquanto a proibição legal é no sentido de coibir qualquer prática sexual com pessoa nessa faixa etária. Outra não foi a intenção do legislador, visto que sequer há previsão de tipo alternativo em caso de consentimento.

Mais uma vez convém trazer à colação o excerto do parecer ministerial, que esclarece a referida questão de forma impecável, litteris:

“Além disso, o Des. Relator também defendeu, igualmente para legitimar – se é que há como legitimar tal entendimento – a não-incidência do art. 224, a, do CP, que “a vítima foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado“, concluindo que, por isso, “a prática do ato libidinoso, deste modo, deu-se, vamos assim dizer, com o consentimento da criança“.

O argumento chega às raias do absurdo! Como afirmar que uma criança de 5 (cinco) anos, que certamente ia à Igreja sozinha, mas provavelmente com seus pais, agiu “de espontânea vontade, atraída pelos dizeres do acusado”? Será que os Desembargadores esqueceram que estavam julgando o caso de um crime praticado contra um criança? Ou eles crêem fielmente que uma menina em tenra idade possui correto entendimento da vida, possui, inclusive, a malícia de perceber quando está sendo enganada? Será que eles acreditam que a menina, naquelas circunstâncias (dentro da Igreja que freqüentava!), poderia ter desconfiado da conduta do recorrido, e simplesmente ter se negado a acompanhá-lo à sala de brinquedos, onde veio a sofrer os abusos?

E quanto ao “consentimento”? É crível que uma menina com tão pouca idade possa consentir com a prática de ato sexual, ainda que diverso da conjunção carnal?

Com todo respeito ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que representa o Poder Judiciário nacional de forma tão destacada, parece-me que a decisão ora comentada, de sua 8ª Câmara Criminal, configura uma verdadeira aberração jurídica. Não apenas por seus (esdrúxulos) fundamentos jurídicos, mas pelo simples fato de tentar abrandar o apenamento do recorrido, valendo-se, para tanto, de um artificial construção teórica de desclassificação da infração penal praticada, indo em sentido diametralmente oposto aos anseios da sociedade por justiça penal, e indo contra a própria lei.” (fls. 446/447)


O acórdão recorrido afronta, assim, os anseios de justiça da sociedade, desprezando o comando legal preconizado pela Lei dos Crimes Hediondos, que inclusive incluiu em seu rol o atentado violento ao pudor.

Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso para, cassando o acórdão recorrido, restabelecer a sentença de Primeiro Grau que condenou o Recorrido como incurso nos arts. 214, c.c. art. 224, alínea a, do Código Penal, em regime integral fechado, nos termos do art. 2º, § 1º da Lei 8.072/90.

Outrossim, de ofício, por incabível nos crimes de estupro ou atentado violento ao pudor sem lesão corporal de natureza grave ou morte, AFASTO da condenação de primeiro grau, ora restabelecida, O AUMENTO DE PENA PREVISTO PELO ART. 9º DA LEI N.º 8.072/90, pois sua ocorrência implicaria violação ao princípio do non bis in idem.

É o voto.

MINISTRA LAURITA VAZ

Relatora

Leia a íntegra do voto do desembargador Sylvio Baptista, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

PROVA. CRIME CONTRA OS COSTUMES. PALAVRA DA VÍTIMA. CRIANÇA. VALOR. Como se tem decidido, nos crimes contra os costumes, cometidos às escondidas, a palavra da vítima assume especial relevo, pois, via de regra, é a única. O fato dela (vítima) ser uma criança não impede o reconhecimento do valor de seu depoimento. Se suas palavras se mostram consistentes, despidas de senões, servem elas como prova bastante para a condenação do agente. No caso, as declarações da menor informam e convencem sobre o abuso sexual. Ademais, sua versão encontra apoio em testemunhos sobre circunstâncias ligadas ao fato criminoso. Unânime.

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CORRUPÇÃO. POSSIBILIDADE. Afastada a presunção de violência, portanto o atentado violento ao pudor, é possível desclassificar a infração penal para aquela prevista no art. 218 do Código Penal, porque presentes os requisitos da corrupção. A Súmula 453 do STF não inibe, em apelação, o reconhecimento desta situação, aplicando-se os artigos 383 e 617 do Código de Processo Penal. A denúncia, ao descrever do crime do artigo 214, na modalidade de violência presumida, está informando ao acusado, de forma implícita, sobre as circunstâncias do outro delito.

Voto do Relator.

DECISÃO: Rejeitada a preliminar. Por voto médio, apelo defensivo parcialmente provido, para desclassificar a infração penal denunciada para o delito de corrupção de menor, reduzindo-se a pena imposta.

APELAÇÃO CRIME OITAVA CÂMARA CRIMINAL

Nº 70007781917 COMARCA DE PORTO ALEGRE

EDISON RICARDO DA SILVA APELANTE

MINISTÉRIO PÚBLICO APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos, acordam, os Desembargadores da Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em, rejeitando a preliminar do apelo defensivo. No mérito, o Des.Sylvio deu parcial provimento ao recurso, para desclassificar a infração penal para aquela prevista no artigo 218 do Código Penal, combinado com o artigo 226, II, do mesmo diploma legal, reduzindo a pena para dois anos e suspendendo-a condicionalmente; o Des.Tupinambá desclassificou o delito para contravenção da importunação ofensiva, aplicando a pena de dois meses de prisão; o Des.Roque deu parcial provimento ao apelo, para definir o fato como atentado violento ao pudor tentado, fixando a pena em quatro anos. Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Desembargadores Roque Miguel Fank, Presidente, e Tupinambá Pinto de Azevedo.

Porto Alegre, 07 de abril de 2004.

Sylvio Baptista

Relator

RELATÓRIO

Des. Sylvio Baptista (Relator):

1. Edison Ricardo da Silva Reinheimer foi denunciado nas sanções do artigo 214 do Código Penal, (denúncia recebida em 25 de julho de 2003), e, após o trâmite do procedimento, condenado à pena de nove anos de reclusão, regime integralmente fechado. No dia 19 de julho de 2003, à tarde, no interior da Igreja Evangélica Batista Betel, localizada na rua Resende Costa, constrangeu L.M.R.A., de cinco anos de idade, a permitir que ele apalpasse sua vagina, suas nádegas e praticasse felação na pequena vítima.

Inconformada com a decisão, a Defesa apelou. Em suas razões, o Defensor argüiu, em preliminar, a nulidade do processo face à inobservância das normas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. No mérito, pediu a absolvição do apelante, alegando que a prova produzida era insuficiente, para amparar um decreto condenatório. Alternativamente, a desclassificação do delito para a contravenção de perturbação da tranqüilidade ou de importunação ofensiva ao pudor, pela alteração do regime prisional e afastamento da incidência do artigo 9º da Lei dos Crimes Hediondos. Em contra-razões, a Promotora de Justiça se manifestou pela manutenção da sentença condenatória.


Nesta instância, em parecer escrito, o Procurador de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso.

VOTOS

Des. Sylvio Baptista (Relator):

2. Rejeito a preliminar de nulidade do procedimento. O requerimento do interessado não tem fundamento jurídico e, na verdade, nem deveria ser examinado. É, como salientou o ilustre Procurador de Justiça, dr. Glênio Amaro Biffignandi:

“Preliminarmente, cabe destacar que não se observa a existência de irregularidade capazes de macular a ação penal. Como bem assinalado pela Dra. Promotora de Justiça, em suas contra-razões, “o apelante confunde institutos e tenta criar irregularidades inexistentes no procedimento.

O artigo 98 do ECA elenca situações em que, caso constatadas, colocam crianças e adolescentes em situação de risco. Nestes casos, são merecedoras de especial atenção, podendo ser-lhes aplicadas as medidas protetivas elencadas no artigo 101 também do ECA.

Em muitos casos, quando um dos responsáveis pela criança toma conhecimento dos fatos tomando providências, ou seja, não sendo conivente com a situação à que está exposta a infante, afastando-a da situação de risco, desnecessário se faz a aplicação de medida de proteção. Porém, casos há em que esta se faz necessária.

‘A medida protetiva ser aplicada à criança o será pelo Conselho Tutelar ou através de procedimento próprio que tramitará no Ministério Público ou Juizado. Nada tem a ver com o processo criminal contra o abusador. Aquela é aplicada na seara protetiva com relação à infante. Este na seara punitiva com relação ao abusador, como ocorre no caso em análise.

Sinale-se que a ausência ou até mesmo a falta de notícia no processo criminal acerca de eventual medida protetiva aplicada à infante, em nenhum momento vicia o processo instaurado contra o acusado, ainda mais de forma absoluta, posto não tratar-se de formalidade que constitua elemento essencial do ato, como aduz o Apelante.

De outra banda! incorre em erro crasso a defesa quando alega nulidade absoluta pretendendo demonstrar prejuízo. Fosse a nulidade argüida absoluta, obviamente, não seria necessário demonstrar-se prejuízo. Inexiste no caso, nem mesmo nulidade relativa.”

3. Por outro lado, o recurso merece parcial provimento com a desclassificação da infração penal. Sobre a existência de uma ação criminosa (lato sensu) por parte do apelante, não há dúvida. Neste sentido, corretamente decidiu o ilustre julgador, dr. Felipe Keunecke de Oliveira:

“O acusado quando interrogado (fl. 145), negou a autoria alegando que houve um mal entendido, eis que encontrava-se na Igreja trabalhando enquanto a menina brincava na lousa da sala de operações, e que ao final, quando terminou a instalação que fazia, sacudiu as roupas da menina que estavam sujas de giz. Disse que apenas passou as mãos nas roupas da criança, não tendo retirado as mesmas, tampouco apalpado sua vagina ou suas nádegas.

Já a versão dada pela vítima Laura (fls. 258/264), de apenas cinco anos de idade, não corroborou a tese negativa de autoria sustentada pelo réu.

Em seu depoimento, a menina afirma categoricamente que o réu Edison, a quem ela chama de “homem mau”, devido a referências de sua mãe, abaixou sua saia, a meia calça e mexeu em sua “pepeca” com os dedos e com a boca, tendo feito o mesmo em sua bunda. Referiu que ele ainda havia trancado o portão que dá acesso a sala de brinquedos em que se encontrava. Disse que fora levada até lá pelo acusado, pois anteriormente estava sentado no salão da igreja assistindo a um ensaio de dança. Afirmou que depois do fato não quis ficar assistindo para não ter que ficar do lado do réu. Declarou ter sentido muito medo, o que a levou não dizer nada enquanto o acusado a abusava. Disse que para fazer o que o fez o réu utilizou-se do pretexto de que queria ver número de sua saia, e que quando parou de mexer em sua vagina ele fingiu ter encontrado o número.

As palavras da pequena vítima são confirmadas pelo depoimento de sua mão Márcia Machado (fls. 193/201), a qual narrou que no dia do ocorrido deixou sua filha na igreja para assistir a um ensaio de sua prima, e que quando voltou para pegá-la, levou-a para a casa da avó, ocasião em que a menina contou-lhe que o “homem de roupa preta” havia passado o tempo todo mexendo em sua “pepeca” e em sua bundinha, sendo que ela não queria, mas ele lhe disse que precisava ver o número de sua saia. Informou que em contato com outras crianças que estavam lá no dia, ficou sabendo que o acusado era uma pessoa estranha e que sempre queria beijo das meninas e que elas sentassem em seu colo. Referiu que ao examinar a vagina da criança não percebeu sangramento, mas que a região estava vermelha.

A menor Evelin, prima da vítima (fls. 203/205), que estava presente na igreja no dia do fato, relatou que no início do ensaio, Laura estava apenas sentada no banco assistindo o ensaio sem querer participar. Que em dado momento viu quando Edison a pegou pela mão e foram para o andar de baixo da igreja, lá permanecendo por aproximadamente 15 minutos. Disse que depois que retornou, Laura estava triste e diferente, queria ficar o tempo todo com as meninas ensaiando e tocando bateria, o que antes não tinha interesse em fazer. Tal comportamento por parte da vítima também é confirmado pela menor Juliana (fls. 214/216), que também ensaiava coreografia no dia.


Da mesma forma são as palavras da testemunha Jaqueline (fls. 249/252), tia da vítima, a qual também percebera a mudança de comportamento apresentada pela vítima após o acontecimento.

De outro lado, a testemunha Marta (fls. 207/210), tia da vítima, menciona um fato importante, quando afirma que em contato com o pastor da igreja, este teria lhe afirmado que havia conversando com o acusado, e este teria confessado que tinha passado a mão na menina e que tinha pego no colo e passado a mão em seus órgãos.

Já as testemunhas ouvidas às fls. 222/231, abonaram a conduta do acusado, dizendo que sempre inspirou confiança, tinha uma postura decente e cooperava na igreja.

Cumpre explanar ainda, o depoimento do pastor da igreja onde ocorreu o delito (fls. 253/256), o qual declarou em juízo que quando conversou com o réu acerca do evento, este teria lhe dito que havia levantado a saia da menina e “passado a mão”, e que perguntado o motivo, respondeu que era por curiosidade e baixou a cabeça.

Como se vê, de acordo com tal depoimento, a versão trazida pelo acusado perante este juízo é dissonante de suas palavras para seu superior hierárquico, o que leva a crer que suas alegações não merecem credibilidade.

Dessa forma, resta indubitável o constrangimento a que se submeteu a menor na ação do réu, que movido por intensa lascívia, passava os dedos e lambia a vagina da menor para satisfazer seus impulsos sexuais.

Coerente o relato da vítima com as provas produzidas, não havendo qualquer razão para suspeitar da veracidade de seus depoimentos, não encontra respaldo a tese defensiva de que o depoimento da vítima é a única prova, restando dúvida quanto o ocorrido.

O relato da vítima é prova fundamental nos delitos contra os costumes, sobremodo estando em consonância com o conjunto probatório…

Como se vê, todas as testemunhas trazidas pela acusação relatam com firmeza e coerência os fatos em seus discursos, eis que em todas as fases processuais narram o ocorrido de maneira idêntica…”.

4 – Agiu muito bem o Magistrado, ao valorar a palavra da vítima, ainda que ela seja uma criança. Tal como o Juiz de Direito, também me convenci, através dos harmônicos depoimentos da infante que, por sinal, vêm apoiados por testemunhas de circunstâncias ligadas ao fato delituoso. E digo:

“Como se tem decidido, nos crimes contra os costumes, cometidos às escondidas, a palavra da vítima assume especial relevo, pois, via de regra, é a única. O fato dela (vítima) ser uma criança não impede o reconhecimento do valor de seu depoimento. Se suas palavras se mostram consistentes, despidas de senões, servem elas como prova bastante para a condenação do agente.” (Apelação 70006527378 etc.).

5. Correção que faço é quanto ao tipo de delito, do qual incorreu o recorrente, para, no final, encontrar uma pena justa. Defendo que se deve punir o agente na medida de seu ato, de sua culpabilidade e que esta punição seja necessária e suficiente para a reprovação pelo crime cometido.

Tem-se que encontrar a punição adequada, pois muitas vezes – e me parece a hipótese em questão – o excesso de rigor da lei não faz justiça ao caso concreto. E dentro deste raciocínio, definir qual é o papel do Poder Judiciário, qual é a função dos tribunais, da jurisprudência.

Penso que é dar à hipótese em julgamento a justiça, porque, em contrário, para que, nos juízes, servimos? Se for para enquadrar o fato ao tipo penal e sua respectiva pena, bastarão funcionários burocráticos com alguma qualificação e um programa de computador.

É o que escreve Paulo José da Costa Júnior, ao prefaciar a obra “O Código Penal e sua interpretação jurisprudencial” e resumir as posições de doutrinadores europeus desde o ano de 1915:

“Concluindo, a jurisprudência não pode e nem deve apresentar papel meramente inerte e amorfo de aplicação automática de lei, de operação mecânica de submissão do fato à norma. Há de representar algo mais, senão o papel criador de novos princípios aptos a atuarem no ordenamento jurídico, cabe, sem dúvida, a jurisdição exercitar uma força de propulsão junto ao Direito, na expressão feliz de Gèny”.

E dentro deste papel está, repito, a aplicação da melhor punição ao acusado (aquela que seja suficiente para a reprovação do criminoso, que dê uma satisfação à vítima e à sociedade). Nem que, para tanto, tenhamos que encontrar, no sistema legal, uma situação que melhor se enquadre no caso ou deixar de aplicar a lei injusta.

6. A respeito da pena e como se deve impô-la, é inteligente a lição do Des. José Antônio Paganella Boschi sobre o princípio da humanidade que, para mim, é, dos princípios a respeito, o principal:

“O princípio da humanidade das penas – seja pela catalogação, seja pela execução – não pode, pois, continuar sendo algo etéreo. Se os investimentos a cargo do poder público não se fizerem sentir, para melhoria das condições das penitenciárias, de modo a poder-se alcançar o ideal de ressocialização mínima, os tribunais, que norteiam sua ação pela justiça e não pela conveniência política, precisarão rever e flexibilizar sua jurisprudência, de modo a permitir, por exemplo, em nome do princípio de humanidade das penas, o cômputo de benefícios executórios sobre o limite de trinta anos, cessando os suplícios do condenado à prisão perpétua, ou a progressão nos regimes carcerários, para os condenados por crimes hediondos, nos moldes previstos na Lei nº 9.455/75, relativa aos crimes de tortura.


É esse princípio que fornece substrato a concepção garantista de Luigi Ferrajoli, para quem o recolhimento de alguém à prisão não pode jamais exceder a 10 anos. É princípio que dá o lastro ao dever de respeito à pessoa humana, tal como o enunciou Beccaria. De acordo com as palavras do ilustre magistrado europeu, “… acima de qualquer argumento utilitário, impõe uma limitação fundamental à qualidade e à quantidade da pena. E este o valor sobre o que se funda, irredutivelmente, a recusa à pena de morte, às penas corporais, às penas infamantes e por outro lado a de prisão perpétua e às penas privativas de liberdade excessivamente longas”.

E conclui: “O juiz criminal, ao individualizar as penas na sentença, deve fazê-lo, portanto, imbuído, sempre, desse sentido de humanidade. Sem ele as penas voltarão a ser o “mal” contra o crime, como propunham os clássicos, desprovidas de finalidades construtivas ou integradoras.” (Das Penas e seus Critérios de Aplicação, ed. Livraria do Advogado, 2000, págs. 39/42).

Coroando o pensamento, cito uma decisão da justiça do Rio Grande do Sul que afirma: “Nunca é demais lembrar que o fim último da pena não é o de eternizar e muito menos infernizar a situação do apenado; para reintegrá-lo, ou reinseri-lo ao meio social torna-se fundamental dinamizar o tratamento prisional estimulando o homem apenado e preparando-o necessariamente para o retorno. A esperança de momentos mais fáceis e menos rigorosos, de liberdade ainda distante, é inerente ao complexo tema da recuperação do condenado (JUTARS 76/27).” (in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, ed. RT, 1995, pág. 667).

Assim, pergunto: encontrando-se um caso em que a punição mínima cominada em lei é exagerada e foge dos princípios citados acima, deve os tribunais se omitir? Ou, porque sendo esta a sua função, constitucional e única, a de fazer justiça, têm eles que encontrar a solução justa? É evidente que a resposta aponta para a segunda pergunta.

7. Aqui, ressalto, a ação, cometida pelo réu contra a vítima, não teve uma repercussão tão danosa que exigisse uma punição exemplar. Ainda que se afirme certo desgaste psicológico (as informações dos pais dão conta disso), penso que ele se deve muito mais as atitudes dos adultos, tratando o assunto com grande alarde, que propriamente à ação do agente. Esta se deu através de toques em partes do corpo da ofendida e talvez o ato do cunilíngua. Tenho a impressão que o dano psicológico não foi tão intenso, tão marcante que determinasse, repito, uma reprimenda rigorosa.

A isto acrescento que a pena para o crime de atentado violento ao pudor, dependendo da causa – e esta é uma -, se mostra exagerada. Punir o recorrente com nove anos de reclusão em regime integral fechado é injusto. Só trará desgraça a todos, sem que se possa afirmar que alguém ou algo foi beneficiado. A punição, necessária, suficiente, adequada, justa, do interesse de todos (réu, vítima e familiares, sociedade) é aquela que, impondo restrições à liberdade do condenado, “não eternize ou infernize a situação do apenado”.

8. De outra banda, e o sentido é de adequar a situação em julgamento à hipótese legal, para se fazer justiça, embora a vítima contasse com tenra idade na época, vou afastar a presunção de violência.

Isto porque não existiu a violência real. A vítima foi de espontânea vontade ao encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado. A prática do ato libidinoso, deste modo, deu-se, vamos assim dizer, com o consentimento da criança. Ela foi seduzida e não violentada.

Desta forma, inexistindo a violência real e afastada a presunção, é possível desclassificar a infração para aquela prevista no art. 218 do Código Penal, porque presentes os requisitos da corrupção de menores. A ação, registrada na denúncia, descreve ato libidinoso com uma criança que, evidentemente, não era corrompida. E ela teve o condão, a capacidade, de corromper ou facilitar a corrupção do menor.

Corrupção esta que só se manifestará no futuro, razão pela qual não se pode exigir, agora, prova de sua eficiência nos atos praticados por Paulo.

9. Faço a desclassificação na forma do art. 383 do Código de Processo Penal, pois a denúncia, ao narrar a prática do atentado violento ao pudor, implicitamente, descreve as circunstâncias formadoras do delito de corrupção. Não haverá prejuízo à Defesa e nem contrariedade à Súmula 453 do STF: “A Súmula 453 não inibe que, no juízo de apelação, independentemente de recurso da acusação, se dê nova definição jurídica ao fato, desde que não se aplique pena mais grave, atendidos os arts. 383 e 617 do CPP, STF, RT 601/418, Júlio Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, ed. Atlas, 1995, pág. 441.”

10. Refazendo a punição, aproveito a análise das circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, feita pelo Magistrado, para estabelecer a pena-base em dois anos. Pena esta definitiva em razão da inexistência de causas modificadoras.


O condenado preenche os requisitos objetivos e subjetivos do artigo 77 do Código Penal, motivo pelo qual suspendo sua pena pelo prazo de quatro anos, devendo, nos primeiros dezoito meses, prestar serviços à comunidade e, nos demais, comparecer trimestralmente em juízo para informar e justificar suas atividades.

E estou optando pela suspensão condicional da pena, e não pela substituição por penas restritivas de direitos, face à natureza do delito e da ação criminosa, que exige um período de prova. O condenado, assim, terá a oportunidade de demonstrar que seu ato foi isolado. Ao mesmo tempo, existindo a possibilidade de, errando, vir a cumprir a pena imposta, isto lhe servirá de freio. E são estes os motivos também para a imposição de período longo.

11. Assim, nos termos supra, rejeitando a preliminar do recurso defensivo, dou-lhe parcial provimento, para desclassificar a infração penal para aquela prevista no artigo 218 do Código Penal, combinado com o artigo 226, II, do mesmo diploma legal, reduzindo a pena para dois anos e suspendendo-a na forma do parágrafo anterior.

Sylvio Baptista

Relator

Des. Tupinambá Pinto de Azevedo (Revisor):

Discordando do voto do Relator, desclassifica a infração para aquela do art. 19 da Lei das Contravenções Penais, aplicando ao condenado a pena de dois meses de prisão.

Des. Roque Miguel Fank (Vogal): Na ocasião anterior, o Des. Tupinambá acompanhava V. Exa. em condenação e provimento do recurso, para estabelecer a condenação, por importunação ofensiva, em dois meses, segundo reli destes autos.

O réu é um rapaz por volta de trinta anos de idade, que trabalhava como orientador religioso junto à Igreja Batista Betel, na Zona Norte. Esta menina, acompanhada de uma prima um pouco mais idosa, teria ido lá para acompanhar um ensaio artístico. O réu a levou para a sala de brinquedos e, tirando suas calcinhas, fez apalpações na região vaginal e na região anal.

A questão, então, é da qualificação jurídica deste fato. Nós temos dado, por ocasiões, até como atentado violento ao pudor e, em outras vezes, ai sim sempre com alguma dificuldade técnica, como tentativa de atentado violento ao pudor, fazendo esta operação que V. Exa. fez do volume, da extensão das penas do homicídio. E estabelecemos que, em alguns casos, em consumação completa, digamos assim, de atentado violento ao pudor, como a felação ou como o coito anal, se teria uma pena de seis anos, que é para o fato consumado.

E para esses outros fatos – aí a minha dificuldade técnica – estabeleceríamos uma tentativa, em uma clara intenção de minorar o agravamento, para não fazer a correlação, por exemplo, com o estupro – uma menina de sete anos – e a manipulação anal e vaginal, que parece não era incomum nele, havia uma certa tendência.

A pena de nove anos evidentemente que eu afastaria de logo porque não há esta causa especial de aumento que possa dar a qualificadora da lei especial, de três anos. Então já restaria em seis anos.

Mas seis anos no caso concreto também é muito, estaria equiparando a um estupro completo ou a um atentado violento ao pudor clássico. Então, como diz o Des. Ranolfo, em um voto dele que li, embora com alguma dificuldade para conceber a figura do atentado violento ao pudor sob a forma de tentativa, mas para fazer essa adequação no plano axiológico entre um ato de efetiva violência sexual, como a felação ou coito anal, e uma manipulação, eu estaria em estabelecer como tentativa de atentado violento ao pudor, mesmo encontrando essa dificuldade técnica porque não houve um terceiro a interromper o fato, não houve um terceiro a cortar o iter criminis.

Estabeleço, então, já que o magistrado da Vara de Porto Alegre estabeleceu a pena-base em seis anos, também pela elevação, eu ficaria com esta pena dele – embora merecesse alguma censura porque se valeu de um ambiente sobre o qual ele tinha o poder, ele era o único adulto que estava presente neste ensaio, ele retirou a menina que assistia sua prima e outras a fazer o ensaio, para uma salinha de brinquedos, chaveou a porta, uma circunstância de muita ponderação na elevação da pena –, eu ficaria com a pena, face ao volume em concreto, de seis anos e a reduziria de um terço, estabelecendo em quatro anos, em regime integral fechado.

É o meu voto.

07/04/2004 “APÓS VOTAREM O DES.SYLVIO BAPTISTA E O DES.TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO PELA APLICAÇÃO DE 2(DOIS) MESES PELA CONTRAVENÇÃO DA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA (ART.19 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES), VOTOU O DES.SYLVIO BAPTISTA PARA DAR NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA AO FATO, ENTENDENDO O RÉU COMO PRATICANTE DO ART.218 DO CÓDIGO PENAL, COMBINADO COM O ART.226, II, DO MESMO DIPLOMA LEGAL, ESTABELECENDO A PENA EM 2(DOIS) ANOS, COM CONCESSÃO DO SURSIS, MEDIANTE CONDIÇÕES, POR QUATRO ANOS. O VOGAL, DESEMBARGADOR-PRESIDENTE, DEU PARCIAL PROVIMENTO PARA EXPUNGIR A CAUSA ESPECIAL DE MAJORAÇÃO, DEFININDO O DELITO COMO DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR TENTADO, FIXANDO A PENA EM 4(QUATRO)ANOS. COMO RESULTADO DE APENAMENTO, PERMANECE O VOTO MÉDIO DE 2(DOIS)ANOS ESTABELECIDO PELO DES. SYLVIO BAPTISTA.”

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!