Investigação criminal

Investigação criminal: Direito comparado dá razão ao MP

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1 de setembro de 2005, 13h51

1. INTRODUÇÃO

A questão do “poder investigatório do Ministério Público”, como se convencionou denominá-la, continua pendente de julgamento definitivo pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal. O tema é de grande importância para o sistema penal brasileiro e coloca em jogo a validade de centenas de investigações e processos em curso. Apesar disso, nem sempre tem sido tratado com o necessário rigor metodológico, olvidando-se inclusive a comparação com os ordenamentos jurídicos estrangeiros.

No presente artigo — que reúne considerações que fizemos em escritos anteriores — buscamos sistematizar o debate, fixando as principais teses contrárias à investigação pelo Ministério Público, cujos fundamentos nem sempre são explícitos. Discutiremos, assim, o problema da separação das funções de acusação, instrução e julgamento, inclusive na perspectiva do direito comparado (seção 2), a questão da imparcialidade do Ministério Público (seção 3) e a interpretação do artigo 144 da Constituição Federal (seção 4). A conclusão virá na seção 5, com algumas considerações de ordem diversa.

2. A QUESTÃO DA SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES DE ACUSAÇÃO, INSTRUÇÃO E JULGAMENTO

Num nível mais profundo, a polêmica em tela remete a uma analogia equivocada entre o processo penal brasileiro e o sistema do juizado de instrução vigente em muitos países europeus. Foi o Code d´instruction criminelle de 1808, de Napoleão Bonaparte, que fez escola tanto quanto o seu Código Civil, que estabeleceu a separação estrita das funções de acusação, instrução e julgamento.

Com base nesse princípio, o sistema clássico do juizado de instrução funciona da seguinte maneira: cabe ao membro do Ministério Público acusar, isto é, manifestar perante o juiz de instrução o intuito de punir determinada pessoa, tipificando a sua conduta; o juiz de instrução procederá então à “instrução” dos fatos, investigação em que poderá ouvir pessoas, determinar busca e apreensão, interceptação telefônica e a prisão preventiva do investigado; convencido da existência do crime e de sua autoria, o juiz de instrução remeterá o feito a uma composição de julgamento, isto é, não decidirá o caso ele próprio.

O sistema do juizado de instrução inspira-se do princípio liberal da repartição de poderes, dos “checks and balances”. O procurador detém com exclusividade o poder de acusar, mas não possui os poderes de instrução confiados ao juiz; este, que detém poderes consideráveis na instrução do feito, não pode iniciar de ofício a instrução e somente investiga no âmbito da tipificação conferida pelo Parquet; por fim, o juiz de instrução não julga o caso por ele investigado, como forma de garantir a imparcialidade do julgamento.

No Brasil, observa-se muitas vezes uma assimilação do nosso sistema com o juizado de instrução, substituindo-se, contudo, na equação deste, o juiz de instrução pela Polícia Judiciária. Essa assimilação se traduziria na comum assertiva: a Polícia investiga, o Ministério Público acusa e o juiz julga.

Além disso, é tradicional, não se confundem três agentes: investigador do fato (materialidade e autoria), órgão da imputação e agente do julgamento. (STJ, RHC 4.769-PR, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6ª Turma, 07.11.1995

A equiparação é, como dito, indevida. No juizado de instrução, a separação se dá entre as funções de acusação e instrução, entre as funções do Ministério Público e do juiz de instrução. A instrução realizada pelo juiz é algo totalmente diverso, em sua essência, da investigação pré-processual que é objeto da polêmica no Brasil. O juiz de instrução dispõe de poderes efetivamente jurisdicionais, podendo determinar busca e apreensão, interceptação telefônica, prisão preventiva. Daí porque tais medidas, adentrando na esfera da liberdade e da intimidade do indivíduo, são vedadas, na ótica do processo acusatório, ao órgão acusador.

A investigação realizada no Brasil pela Polícia Judiciária, e por vezes pelos órgãos do Ministério Público, distingue-se nitidamente da referida instrução. Constitui-se em oitivas, coleta de informações e documentos, realização de perícias, sendo fora de dúvida que toda medida mais grave deve ser solicitada ao Poder Judiciário. Dessa forma, a ratio juris que, no juizado de instrução, veda ao Ministério Público a realização de atos de instrução, não se repete em relação à investigação de natureza policial no nosso país.

O princípio europeu da separação das funções de acusação, instrução e julgamento alcança, do ponto de vista orgânico ou subjetivo, as figuras do membro do Ministério Público, do juiz de instrução e do juiz ou juízes que irão efetivamente julgar a causa, condenando ou absolvendo o réu. Não inclui em sua formulação a Polícia Judiciária, cujas funções não são exclusivas, notadamente face ao Ministério Público, que investiga por conta própria ou dirige as atividades da Polícia.


A barreira jurídica erguida entre o Ministério Público e os atos do juiz de instrução não se verifica com relação às investigações meramente policiais. Prova disso são os laços orgânicos que em muitos países existem entre as duas instituições, como na França, onde a Polícia Judiciária está subordinada ao Ministério Público, que dirige todas as investigações em que não seja necessária a intervenção do juge d’instruction, levando os seus resultados diretamente aos órgãos de julgamento.1, 2

3. A QUESTÃO DA IMPARCIALIDADE

Outro óbice apontado às investigações realizadas pelo Ministério Público é o da imparcialidade. Na perspectiva contrária à investigação, pode-se distinguir duas formas, até contraditórias, de tratar o problema.

Um primeiro argumento assevera que o Ministério Público deve guardar no processo penal postura de imparcialidade, não podendo, a fim de não comprometê-la, participar ou realizar diretamente as investigações preliminares. O Ministério Público, aqui, por conta dessa imparcialidade, exerceria também o controle das atividades desenvolvidas pela Polícia Judiciária.

RHC – CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL PENAL – MAGISTRADO – MINISTERIO PUBLICO – O MAGISTRADO E O MEMBRO DO MINISTERIO PUBLICO SE HOUVEREM PARTICIPADO DA INVESTIGAÇÃO PROBATÓRIA NÃO PODEM ATUAR NO PROCESSO. RECLAMA-SE ISENÇÃO DE ÂNIMO DE AMBOS. RESTARAM COMPROMETIDAS (SENTIDO JURIDICO). DAI A POSSIBILIDADE DE ARGÜIÇÃO DE IMPEDIMENTO,OU SUSPEIÇÃO. (STJ, RHC 4.769-PR, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6ª Turma, 07.11.1995).

Essa tese veio a ser finalmente rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, que adotou, em 13 de dezembro de 1999, a Súmula 234: a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.

Nada mais fez a Corte do que aplicar entendimento pacífico na doutrina, de que o Ministério Público é parte no processo penal. É o juiz quem deve ocupar o ponto eqüidistante entre a acusação e a defesa, entre o acusado e o Ministério Público. A imparcialidade que se exige do membro do Ministério Público é aquela de cunho pessoal (impessoalidade), proibindo que o acusador seja parente do juiz ou das partes, seu amigo íntimo ou inimigo capital etc; do ponto de vista funcional, a imparcialidade é incompatível com a função do acusador público. É nesse sentido a lição de José Frederico Marques:

(…) não há que falar em imparcialidade do Ministério Público, porque então não haveria necessidade de um juiz para decidir sobre a acusação: existiria, aí, um bis in idem de todo prescindível e inútil. No procedimento acusatório deve o promotor atuar como parte, pois, se assim não for, debilitada estará a função repressiva do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu, nem o de juiz, e sim o de órgão do interesse punitivo do Estado.3

Portanto, a posição do Ministério Público no processo penal não fica comprometida pelo fato de seus órgãos participarem da coleta de provas na fase pré-processual, ou mesmo de produzi-las diretamente. Caberá ao juiz dizer da validade e da suficiência desses elementos probatórios.

O segundo argumento referente à (im)parcialidade do membro do Ministério Público reconhece, nisso acertadamente, o papel de parte (parcial) que a instituição desempenha no processo penal, mas acena com a possibilidade de que tal parcialidade influencie negativamente as investigações: o membro do Parquet somente buscaria provas que servissem à acusação, deixando de pesquisar elementos que pudessem interessar à defesa.

Atribuir ao Ministério Público a prerrogativa de dirigir os atos de polícia judiciária e a apuração das infrações penais seria desastroso por vários motivos, entre os quais podemos distinguir o comprometimento da imparcialidade que é crucial para a investigação. O Ministério Público é parte da relação processual futura, o que, por si só, desaconselha sua participação ativa nos trabalhos investigatórios, sob pena de prejuízos óbvios e incomensuráveis para a defesa.4

Os dois argumentos parecem opostos. Para o primeiro, o Ministério Público deve manter-se imparcial no processo, ao menos quanto às provas colhidas pela Polícia Judiciária, daí porque não poderia participar de sua coleta (MP imparcial e Polícia parcial)… para a segunda linha de argumentação, o Ministério Público é por natureza parcial no processo e sua parcialidade poderia contaminar as investigações preliminares (MP parcial e Polícia imparcial!)…5

A fragilidade do segundo argumento reside no fato de creditar à Polícia, em detrimento do Ministério Público, maior possibilidade de realizar uma investigação imparcial. Tanto quanto o Ministério Público, os membros da Polícia estão funcional e psicologicamente comprometidos com a persecução penal. Pela forma prática como intervêm no sistema, protagonizando a luta por vezes de vida ou morte contra a criminalidade e exercendo a força física legal, no dizer de Max Weber, os policiais estariam até menos inclinados a reconhecer e respeitar os direitos dos investigados.


As entidades de defesa dos direitos humanos sempre acreditaram no Ministério Público como órgão capaz de conduzir investigações imparciais. Em carta dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2004, a Sra. Irene Kahn, Secretária-Geral da Anistia Internacional, referindo-se a crimes contra os direitos humanos perpetrados por policiais, asseverou que “na condição de órgão independente do Executivo, o Ministério Público é um dos únicos, senão o único, organismo independente capaz de, atualmente, realizar tais investigações no Brasil.”6

Por outro lado, a Polícia Judiciária está submetida hierarquicamente ao Executivo, logo a critérios políticos, e os delegados não gozam das mesmas garantias funcionais (e vedações) conferidas aos membros do Ministério Público.

Quando o constituinte conferiu ao membro do Parquet independência funcional similar à dos juízes, não foi apenas para que possa acusar livre de pressão, mas também para que possa deixar de acusar, se razão jurídica não houver para tal. A independência conferida a procuradores e promotores se constitui em garantia não só para o Estado, mas para os cidadãos, habilitando-os — do ponto de vista institucional — a agir com mais imparcialidade e ao abrigo de critérios partidários.

O advogado e professor Aury Lopes Jr. aponta os inconvenientes do sistema de investigação preliminar policial:

A eficácia da atuação policial está associada a grupos diferenciais, isto é, ela se mostra mais ativa quando atua contra determinados escalões da sociedade (obviamente os inferiores), distribuindo impunidade para a classe mais elevada. Também a subcultura policial possui seus próprios modelos preconcebidos: estereótipo de criminosos potenciais e prováveis; vítimas com maior ou menor verossimilitude; delitos que “podem” ou não ser esclarecidos etc.7

E, adiante:

A polícia está muito mais suscetível de contaminação política (especialmente os mandos e desmandos de quem ocupa o governo) e de sofrer pressão dos meios de comunicação. Isso leva a dois graves inconvenientes: a possibilidade de ser usada como instrumento de perseguição política e as graves injustiças que comete no afã de resolver rapidamente os casos com maior repercussão nos meios de comunicação.8

É legítima a preocupação com o direcionamento das investigações, na fase pré-processual, nada indicando, contudo, que aconteça em menor grau nas investigações conduzidas pela Polícia, até porque o inquérito policial não admite o contraditório. Medidas legislativas e regulamentares podem introduzir um mínimo de contraditório nessa fase, obrigando ainda os condutores da investigação a realizar diligências requeridas pela defesa.9

4. A EXEGESE DO ARTIGO 144 DA CONSTITUIÇÃO

Da mesma forma que não há princípio jurídico que impeça a investigação de crimes diretamente pelos órgãos do Ministério Público, as regras contidas no artigo 144 da Constituição, se bem compreendidas, não asseguram às Polícias exclusividade na investigação criminal.

O artigo 144, parágrafo 1º, IV, da Constituição assevera que a Polícia Federal se destina a “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.” É desse dispositivo que se tem erroneamente concluído que somente a Polícia poderia realizar investigações de natureza penal, função que estaria vedada aos membros do Ministério Público.

Acontece que, ao falar em “funções de polícia judiciária”, no artigo 144, §1º, inciso IV, a Constituição não abrange a apuração de crimes, que vem prevista no inciso I do mesmo artigo, sem a cláusula de exclusividade. Senão, vejamos:

Art. 144. (…)

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98)

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II – (…)

III – (…)

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

Vê-se, pois, que a Constituição Federal distinguiu entre a função de apuração de crimes e a função de polícia judiciária. Ao tratar das Polícias Civis, no § 4° do mesmo artigo, a distinção é repetida, asseverando-se que lhes incumbem “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” 10


Tal compreensão tem reflexos evidentes para o tema em apreço, uma vez que a exclusividade foi mencionada apenas no inciso IV, relativo às funções de polícia judiciária e não no inciso I, que trata da apuração de infrações penais. Do ponto de vista hermenêutico, em face da clara distinção adotada pela Constituição, enfatizada por duas vezes, não se admite embutir a apuração das infrações na função de polícia judiciária, como usualmente se faz, com a conseqüência de lhe estender a cláusula de exclusividade. Onde a lei distingue, não cabe ao intérprete confundir!

Destacada da apuração de infrações penais, a função de polícia judiciária, ao menos no direito constitucional pátrio, deve ser entendida de forma mais restrita, circunscrita à colaboração das forças policiais com o Poder Judiciário no curso do procedimento penal, abrangendo o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão e a realização de perícias e de outras diligências.

Assim, a função de apuração de crimes (art. 144, §1°, I) não foi destinada às Polícias com exclusividade, no mesmo espírito com que a matéria foi sempre tratada no âmbito legislativo. No seu artigo 4º, parágrafo único, o Código de Processo Penal estabelece que a competência da Polícia Judiciária “não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.” A tese da exclusividade da Polícia nas investigações, para além de prejudicar o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público, teria efeitos nocivos também na atividade de outros órgãos administrativos que se dedicam à apuração de ilícitos penais, como os setores próprios da Receita Federal e do Banco Central.

Outro argumento de ordem constitucional contra a exclusividade é o fato de a menção figurar apenas no parágrafo referente à Polícia Federal. Não se repete no parágrafo 4º, que trata das Polícias Civis. Ora, se a exclusividade da Polícia nas investigações é, como querem, princípio basilar do processo penal e mesmo garantia dos investigados, por que valeria apenas para a esfera federal, desprestigiando-se, assim, o princípio federativo da simetria das formas?

Não se destinando a afastar das investigações nem o Ministério Público, nem outros órgãos que desempenhem essas funções, a menção à exclusividade, no artigo 144, parágrafo 1º, IV, tem como único objetivo impedir a atuação das Polícias Civis na esfera federal, intuito confirmado pela ressalva da competência da União existente no parágrafo 4º. Nesse sentido, escreveram Lenio Streck e Luciano Feldens:

Logicamente, ao referir-se à “exclusividade” da Polícia Federal para exercer funções “de polícia judiciária da União”, o que fez a Constituição foi, tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual observou, para cada uma delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144.11

5. CONCLUSÃO

Vimos não existir separação jurídica ou essencial entre as funções de acusação, desempenhada pelo Ministério Público, e a investigação de natureza policial (seção 2); ao contrário, em muitos países tais funções estão associadas do ponto de vista orgânico.

A tese da “esquizofrenia” entre Ministério Público e Polícia, entre acusação e investigação, poderá gerar perplexidade. O conceito de investigação é muito fluido, até por não ter maior substrato jurídico. A cognição de fatos criminosos pode se dar de variadas maneiras.

O que se considerará investigação, vedada ao Ministério Público? A oitiva de pessoas, a requisição de documentos? Mesmo diante das disposições constitucionais relativas ao Ministério Público, tidas como avanços, o risco é mesmo de retrocesso até em relação ao ordenamento anterior a 1988. O Código de Processo Penal há mais de cinqüenta anos estabelecia no seu art. 47:

Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.12

Embora a regra seja a realização das investigações através do inquérito policial, os membros do Ministério Público têm realizado diretamente algumas delas. Na maioria dos casos, por medida de celeridade e simplificação dos procedimentos, evitando-se instaurar inquérito policial quando simples requisição de documentos (ex.: um contrato social) ou a oitiva do investigado ou da vítima podem ser suficientes ao ajuizamento da ação penal. Em outros casos, mais raros, quando se vislumbra não haver interesse da Polícia em promover investigações sérias: crimes praticados por policiais, como tortura, ou algumas situações envolvendo governantes.


Por outro lado, deve-se ter em mente que a Lei 8.429/92, em consonância com o art. 129, III, da Constituição, autorizou o Ministério Público a conduzir inquéritos civis para apurar atos de improbidade administrativa. Existem milhares deles espalhados pelo país, instaurados pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais, em que se apuram atos de corrupção, dispensa indevida de licitações, superfaturamento – questões com as quais nem sempre a Polícia está familiarizada. Ao cabo dessas investigações, o membro do Ministério Público dispõe de elementos suficientes para a propositura de ações civis públicas ou ações civis por atos de improbidade administrativa.

Pois bem, se as provas obtidas no inquérito civil indicarem também a prática de crime, devem ser consideradas imprestáveis para fins penais? Estará o procurador ou promotor proibido de ajuizar as ações penais cabíveis pelo fato de ter realizado as apurações? Estaríamos diante de um absurdo jurídico e prático, com afronta, inclusive, ao princípio constitucional da eficiência, que deve pautar a atuação de todas as esferas estatais.13

Seja pelo ângulo dos princípios jurídicos, seja por aquele da exegese constitucional e legal, não existe exclusividade das Polícias nas investigações criminais; suas competências, contudo, não saem diminuídas pela legitimidade do Ministério Público em também conduzi-las. Esse reconhecimento significará notável avanço do sistema penal brasileiro e certamente ajudará, como já demonstraram inúmeros casos de repercussão, a diminuir a impunidade em nosso país.

Notas

1 — Art. 12 do Code de procédure pénale: “la police judiciaire est exercée sous la direction du procureur de la République.” Art. 41: “Le procureur de la Republique procède ou fait procéder à tous les actes nécessaires à la recherche et à la poursuite des infractions pénales.”

2 — Na Espanha, o art. 126 da Constituição prevê que a Polícia Judiciária depende dos juízes, Tribunais e do Ministério Público no desempenho das funções de averiguação do delito, descoberta e detenção do delinqüente. Em Portugal, o art. 263 do Código de Processo Penal estabelece que o Ministério Público está encarregado de levar a cabo a fase pré-processual, contando com a assistência da polícia judiciária, que atua sob seu mando direto e dependência funcional (art. 56 do CPPp). Ver LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.

3 — MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1961, p. 40.

4 — Discurso atribuído a Achilles Benedito de Oliveira, então presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Distrito Federal. Apud BERNARDO, Manoel Firmino; SANTANNA, Alonir Jorge. Perigo do “Quarto Poder.” Porto Alegre: Sagra – DC Luzzato Editores, 1994, p. 101.

5 — O Ministro Nelson Jobim parece se filiar ao segundo argumento. Sua Excelência asseverou, no julgamento da ADI 1570-2/DF: “Sou absolutamente contrário ao processo de instrução, como também às atividades investigatórias do Ministério Público, desde que as mesmas atividades não sejam dadas à defesa(…) o Ministério Público será sempre parcial no sentido de colher prova somente acusatória(…)”

6 — Disponível em . Acesso em 26/08/2005. No mesmo sentido, a relatora especial da ONU para a questão dos grupos de extermínio, Asma Jahangir, em visita oficial ao Brasil entre 16 de setembro e 8 de outubro de 2003, consignou em seu relatório que os poderes do Ministério Público deveriam ser reforçados no combate a esse tipo de crime. É a recomendação de número 82: “Os órgãos do Ministério Público devem ser fortalecidos(…) Devem ser providos de equipes de investigadores e serem encorajados a realizar investigações independentes dos casos de grupos de extermínio. Os obstáculos legais a tais investigações devem ser removidos pela legislação futura.” (tradução nossa) Disponível em: .

7 — Op. Cit.,p. 65/66.

8 — Idem, p. 68.

9 — A Resolução nº 77, de 14 de setembro de 2004, do Conselho Superior do Ministério Público Federal, buscou disciplinar as investigações preliminares realizadas pelos membros do Ministério Público Federal. Além de obrigar à formalização do procedimento investigatório criminal, previu no seu art. 9º, parágrafo único, ao final da investigação, a notificação do investigado para prestar as informações que considerar adequadas, oportunidade em que poderá requerer diligências.

10 — As idéias desenvolvidas nesse tópico foram veiculadas pela primeira vez em mensagem eletrônica que o autor dirigiu à rede nacional dos Procuradores da República, no dia 16 de outubro de 2003.

11 — STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a Legitimidade da Função Investigatória do Ministério Público. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 92-93.

12 — O Ministro Carlos Velloso ponderou, no julgamento da ADI 1570-DF: “se amanhã o Ministério Público receber uma carta com documentos, contendo uma acusação que possibilite a instauração de ação penal, ele o faz, dispensando o inquérito. Mais: se é procurado em seu gabinete por um cidadão com uma denúncia, ele não pode tomar o seu depoimento? É claro que pode.”

13 — Em julgamento unânime, a 1ª Turma do STF denegou habeas corpus em que se alegava nulidade por ter sido a investigação conduzida pelo Ministério Público: “Caso em que os fatos que basearam a inicial acusatória emergiram durante o Inquérito Civil, não caracterizando investigação criminal, como quer sustentar a impetração. A validade da denúncia nesses casos – proveniente de elementos colhidos em Inquérito Civil – se impõe, até porque jamais se discutiu a competência investigativa do Ministério Público diante da cristalina previsão constitucional (art. 129, II, da CF).” (HC 84367-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 18-02-2005). A menção correta seria ao art. 129, III.

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