Prerrogativa da classe

Leia a decisão que garante palavra a advogado em CPI

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25 de outubro de 2005, 16h14

A fiscalização de eventuais abusos cometidos por membros das CPIs contra convocados para depor “traduz prerrogativa indisponível do advogado no desempenho de sua atividade profissional”. A afirmação é do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Segundo o ministro, o advogado não pode “ser cerceado, injustamente, na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou o pertinente mandato”.

Com esse entendimento, Celso de Mello garantiu que advogados, além de acompanhar seus clientes, possam se manifestar durante sessão de acareação da CPMI do Mensalão. O ministro concedeu liminar em Mandado de Segurança ajuizado pela seccional do Distrito Federal da OAB.

Celso de Mello também determinou que caso os integrantes da Comissão Parlamentar não permitam a participação dos advogados, eles poderão se retirar da sessão com seus clientes “sem que se possa adotar qualquer medida restritiva de direitos ou privativa de liberdade”.

Segundo o ministro, acolher o pedido da seccional se fez necessário tendo em vista episódios recentes ocorridos nas Comissões Parlamentares de Inquérito, “de que resultaram graves e injustas restrições ao exercício, por Advogados, das prerrogativas profissionais de que se acham investidos, por efeito do art. 7º da Lei nº 8.906/94”.

O ministro também defende em sua decisão que “qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação (Poder Legislativo, Poder Executivo ou Poder Judiciário), ao advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas — legais ou constitucionais — outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse”.

Celso de Mello afirmou, ainda, que “o Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do advogado, cuja atuação, livre e independente, há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão”.

Leia a íntegra da decisão

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.617-6 DISTRITO FEDERAL

RELATOR:MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S):

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

ADVOGADO(A/S):IBANEIS ROCHA BARROS JUNIOR E OUTRO(A/S)

IMPETRADO(A/S):COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DA COMPRA DE VOTOS

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança coletivo, com pedido de medida liminar, impetrado, preventivamente, contra a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI criada pelo Requerimento nº 7/2005-CN (CPMI – “Compra de Votos”).


A Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, invocando situações de constrangimento ao legítimo exercício das prerrogativas profissionais dos Advogados, ocorridas, recentemente, no contexto dos trabalhos “das Comissões Parlamentares de Inquérito, mistas ou não, formalmente constituídas no âmbito do Congresso Nacional” (fls. 03), promove, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, a presente ação mandamental, expondo, em seus aspectos essenciais, os seguintes fundamentos (fls. 03/04):

(…). A Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, vem acompanhando, como de resto todo o povo brasileiro, os trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito, mistas ou não, formalmente constituídas no âmbito do Congresso Nacional.

Causa certa preocupação e até indignação a constatação de que Membros das referidas Comissões exteriorizam, às vezes até de forma grosseira e violenta, REJEIÇÃO à presença ali de advogados constituídos pelas inúmeras pessoas convocadas, seja na condição de acusados, testemunhas, acareados e investigados.

Tais gritos de REJEIÇÃO à presença dos respectivos advogados por vezes são ouvidos e acatados pela autoridade presidente dos trabalhos, proporcionando, na maioria das situações, limitações abusivas ao trabalho do profissional, cerceado no seu direito de poder exercer suas PRERROGATIVAS em toda a sua plenitude em favor dos seus constituintes.

……………………………………………….

No caso presente, em relação aos seus advogados inscritos na SECCIONAL DO DISTRITO FEDERAL, não pretende a impetrante estar omissa, cumprindo seu mister de defender e garantir a atuação livre dos profissionais aqui inscritos, perante os tribunais e juízos ou onde seus constituintes estejam sendo ouvidos.

Pois bem. Amanhã, dia 25 (vinte e cinco) do corrente mês de outubro, às 09:00 horas, terão início trabalhos de ACAREAÇÃO entre diversas pessoas, que serão levados a efeito pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI que investiga o que ficou popularmente conhecido como ‘mensalão’.

Os convocados a tal ACAREAÇÃO se farão presentes em companhia de seus ADVOGADOS, e, diante da provocação ao órgão de Classe por diversos destes profissionais, temerosos de mais uma vez verem perpetrar-se violação aos direitos constitucionais de defesa de seus clientes, e receosos de configurar-se violação às prerrogativas profissionais, os mesmos buscam e têm prontamente atendido o seu pleito de defendê-los judicialmente, buscando a preservação de suas garantias profissionais.

O que se pretende assegurar com a presente impetração é que ADVOGADOS INSCRITOS NA SECCIONAL DO DISTRITO FEDERAL ora impetrante e, portanto, por esta aqui representados e substituídos processualmente, quando regularmente constituídos para ali atuarem, possam exercer suas PRERROGATIVAS profissionais, sem limitação, elencadas no artigo 7°, da lei 8906, de 04/07/1994, especialmente quando necessária sua intervenção sumária para assegurar a ORDEM DOS TRABALHOS, contra INOBSERVÂNCIA de leis, regimento ou regulamento.

Estas, pois, as razões da impetração, sempre lembrando que as prerrogativas não pertencem ao advogado, mas, sim, a toda a sociedade, na busca da verdade real e da proteção ao direito da ampla defesa.” (grifei)

Em razão dos fundamentos invocados, a parte ora impetrante postula a concessão de medida liminar, em ordem a garantir, aos “Advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, que se façam presentes à Sessão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito ‘do Mensalão’, e que estejam devidamente constituídos por instrumento procuratório” (fls. 06), o pleno exercício, sem indevidas restrições, “das prerrogativas profissionais inscritas nos incisos X e XI do art. 7º da Lei nº 8.906/94” (fls. 06).


Passo a apreciar o pedido de medida cautelar. E, ao fazê-lo, devo registrar, inicialmente, por necessário, que os eminentes Senador AMIR LANDO, Presidente, e Deputado ABI ACKEL, Relator, ambos da CPMI – “Compras de Votos”, são parlamentares cuja formação jurídica jamais permitiria que se consumassem abusos e que se perpetrassem transgressões às prerrogativas profissionais dos Advogados, pois esses ilustres congressistas têm consciência, como bacharéis em Direito, Professores e legisladores que são, de que tais prerrogativas, mais do que franquias essenciais asseguradas pela legislação da República aos profissionais do Direito (Lei nº 8.906/94, art. 7º), representam, na realidade, instrumentos expressivos de proteção aos direitos fundamentais da própria coletividade.

Episódios recentes, contudo, ocorridos no âmbito de Comissões Parlamentares de Inquérito, de que resultaram graves e injustas restrições ao exercício, por Advogados, das prerrogativas profissionais de que se acham investidos, por efeito do art. 7º da Lei nº 8.906/94, tornam prudente o acolhimento da postulação cautelar ora deduzida pelo Conselho Seccional da OAB/DF, a quem assiste plena legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança coletivo, na condição de substituto processual (RTJ 150/104 – RTJ 165/714), em defesados interesses de seus membros…” (CF, art. 5º, inciso LXX), notadamente em tema de proteção e preservação da integridade das prerrogativas profissionais dos Advogados.

Ao decidir questão virtualmente idêntica à ora suscitada na presente causa mandamental (MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), tive o ensejo de salientar que o respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.

A autoridade da Constituição e a força das leis, por isso mesmo, não se detêm no limiar das Comissões Parlamentares de Inquérito, como se estas, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado, paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.

Se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer estrutura institucional fundada em bases democráticas.

A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas.

Nesse contexto, não se pode tergiversar na defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito e na sustentação da autoridade normativa da Constituição da República, eis que nada pode justificar o desprezo pelos princípios que regem, em nosso sistema político, as relações entre o poder do Estado e os direitos do cidadão – de qualquer cidadão.

Não se questiona a asserção de que a investigação parlamentar reveste-se de caráter unilateral, à semelhança do que ocorre no âmbito da investigação penal realizada pela Polícia Judiciária. Cabe advertir, no entanto, como já proclamou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sob a égide da vigente Constituição, a propósito do inquérito policial (que também é conduzido de maneira unilateral, tal como ocorre com a investigação parlamentar), que a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais:


INQUÉRITO POLICIAL – UNILATERALIDADE – A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO.

O inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do Ministério Público, que é – enquanto dominus litis – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária.

A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.

(RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Torna-se evidente, portanto, que a unilateralidade da investigação parlamentar – à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial – não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.

É por essa razão que, embora amplos, os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito não são ilimitados nem absolutos, porque essencialmente subordinados, quanto ao seu exercício, à necessária observância das restrições definidas em sede constitucional ou em âmbito legal, consoante proclamam inúmeros precedentes firmados pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal.

Tendo-se presente esse contexto, assiste ao Advogado a prerrogativa – que lhe é dada por força e autoridade da lei – de velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso mesmo, para o fiel desempenho do “munus” de que se acha incumbido, o exercício dos meios legais vocacionados à plena realização de seu legítimo mandato profissional.

O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação (Poder Legislativo, Poder Executivo ou Poder Judiciário), ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, mesmo tratando-se de procedimento de acareação, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:


O privilégio contra a auto-incriminação que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa que deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes.

Ninguém pode ser tratado como culpado, independentemente da natureza do ilícito penal que lhe possa ser atribuído, sem que exista decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da não-culpabilidade consagra, em nosso sistema jurídico, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.

(RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Vê-se, portanto, que nenhuma autoridade pública (congressista, magistrado ou membro do Poder Executivo), não importando o domínio institucional a que esteja vinculada, pode constranger qualquer pessoa – indiciado ou testemunha – a depor sobre fatos cuja resposta possa gerar situação de grave dano ao depoente, expondo-o ao risco de auto-incriminação.

Se, não obstante essa realidade normativa que emerge do sistema jurídico brasileiro, a Comissão Parlamentar de Inquérito – ou qualquer outro órgão posicionado na estrutura institucional do Estado – desrespeitar tais direitos que assistem à generalidade das pessoas, justificar-se-á, em tal específica situação, a intervenção, sempre legítima, do Advogado, para fazer cessar o ato arbitrário ou, então, para impedir que aquele que o constituiu culmine por auto-incriminar-se, como pode ocorrer ao longo do procedimento de acareação.

O exercício do poder de fiscalizar eventuais abusos cometidos por Comissão Parlamentar de Inquérito contra aquele que por ela foi convocado para depor – ou para submeter-se ao procedimento da acareaçãotraduz prerrogativa indisponível do Advogado no desempenho de sua atividade profissional, não podendo, por isso mesmo, ser cerceado, injustamente, na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou o pertinente mandato.

A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.

Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético- -jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.


Mesmo o indiciado, portanto, quando submetido a procedimento inquisitivo, de caráter unilateral, não se despoja de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias indisponíveis, cujo desrespeito põe em evidência a censurável face arbitrária do Estado cujos poderes devem, necessariamente, conformar-se ao que impõe o ordenamento positivo da República.

Esse entendimento – que reflete a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, construída sob a égide da vigente Constituição – encontra apoio na lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o exercício do poder não autoriza a prática do arbítrio, ainda que se cuide de mera investigação conduzida sem a garantia do contraditório, enfatizam que, em tal procedimento inquisitivo, há direitos titularizados pelo indiciado que não podem ser ignorados pelo Estado.

Cabe referir, nesse sentido, dentre outras lições, o autorizado magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE (“Garantias Constitucionais na Investigação Criminal”, p. 74, item n. 4.2, 1995, RT), de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Polícia Civil e as Garantias Constitucionais de Liberdade”, “in” “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991, RT), de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 383, 1993, Saraiva), de ROBERTO MAURÍCIO GENOFRE (“O Indiciado: de Objeto de Investigações a Sujeito de Direitos”, “in” “Justiça e Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT), de PAULO FERNANDO SILVEIRA (“Devido Processo Legal – Due Process of Law”, p. 101, 1996, Del Rey), de ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito Policial e Ação Penal”, p. 60/61, item n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva) e de LUIZ CARLOS ROCHA (“Investigação Policial – Teoria e Prática”, p. 109, item n. 2, 1998, Saraiva).

Assume inquestionável valor, presente o contexto ora em análise (direitos do indiciado e prerrogativas profissionais do Advogado perante a CPI), a lição de ODACIR KLEIN (“Comissões Parlamentares de Inquérito – A Sociedade e o Cidadão”, p. 48/49, item n. 4, 1999, Sergio Antonio Fabris Editor), que tanta expressão deu, quando membro do Congresso Nacional, à atividade legislativa:

O texto constitucional consagra o princípio de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar.

Dessa forma, estará agindo no mínimo autoritariamente quem, participando de uma CPI, negar o direito ao silêncio à pessoa que possa ser responsabilizada ao final da investigação.

Em seu interrogatório, o indiciado terá que ser tratado sem agressividade, truculência ou deboche, por quem o interroga diante da imprensa e sob holofotes, já que a exorbitância da função de interrogar está coibida pelo

art. 5º, III, da Constituição Federal, que prevê que ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’.

Aquele que, numa CPI, ao ser interrogado, for injustamente atingido em sua honra ou imagem, poderá pleitear judicialmente indenização por danos morais ou materiais, neste último caso, se tiver sofrido prejuízo financeiro em decorrência de sua exposição pública, tudo com suporte no disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, X.

……………………………………………….

Na condição de indiciado, terá direito à assistência de advogado, garantindo-se ao profissional, com suporte no art. 7º da Lei 8.906/94 – Estatuto da Advocacia e da OAB – comparecer às reuniões da CPI (VI, d), nelas podendo reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento (XI).” (grifei)


Nem se diga, de outro lado, na perspectiva do caso em exame, que a atuação do Poder Judiciário, nas hipóteses de lesão, atual ou iminente, a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria intervenção ilegítima dos juízes e Tribunais na esfera de atuação do Poder Legislativo.

Eventuais divergências na interpretação do ordenamento positivo não traduzem nem configuram situação de conflito institucional, especialmente porque, acima de qualquer dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e das leis da República.

Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis.

Uma decisão judicial – que restaura a integridade da ordem jurídica e que torna efetivos os direitos assegurados pelas leis – não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em unânime decisão:

O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

– A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

– O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.

(RTJ 173/805-810, 806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.

A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.

A observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.


O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.

Ainda que em seu próprio domínio institucional, portanto, nenhum órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.

O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais outorgadas pela ordem jurídica aos cidadãos em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República.

A separação de poderes – consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional – não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício do direito de protesto, como aquele garantido ao Advogado pelo inciso X do art. 7º da Lei nº 8.906/94, contra abusos que possam ser cometidos pelas instituições do Estado, não importando se vinculadas à estrutura do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

A investigação parlamentar, judicial ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave que ele possa ser, não prescinde do respeito incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, das normas, que, instituídas pelo ordenamento jurídico, visam a equacionar, no contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão dialética que deriva do antagonismo histórico entre o poder do Estado (que jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado) e os direitos da pessoa (que não poderão impor-se de forma absoluta).

É, portanto, na Constituição e nas leis – e não na busca pragmática de resultados, independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta pela ordem jurídica – que se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade e o valor da liberdade.

A controvérsia mandamental delineada na presente causa reclama solução, que, associada às diretrizes fixadas pelo modelo constitucional, encontra fundamento no Estatuto da Advocacia, cujas prescrições conferem, ao Advogado, determinados direitos e prerrogativas profissionais plenamente compatíveis com o integral desempenho, pela CPI, dos poderes de investigação de que se acha investida.

O que simplesmente se revela intolerável, e não tem sentido, por divorciar-se dos padrões ordinários de submissão à “rule of law”, é a sugestão – que seria paradoxal, contraditória e inaceitável – de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal.

Extremamente oportunas, sob tal aspecto, as observações feitas pelo ilustre Advogado paulista e ex-Secretário da Justiça do Estado de São Paulo, Dr. MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA (“As CPIs e a Advocacia”, “in” “O Estado de S. Paulo”, edição de 05/12/99, p. A22):

Nem se diga, no lastimável argumento repugnante à inteligência e comprometedor do bom senso, que a presença ativa dos advogados nas sessões das CPIs frustraria os seus propósitos investigatórios. Fosse assim, tampouco chegariam a termo as averiguações policiais; ou os inquéritos civis conduzidos pelo Ministério Público; ou, ainda, as inquirições probatórias administradas pelo Judiciário. Com plena razão, magistrados, promotores e delegados jamais alegaram a Advocacia como obstáculo, bem ao contrário, nela enxergando meio útil à descoberta da verdade e à administração da Justiça.” (grifei)


Concluindo: a presente decisão – concessiva da medida liminar pretendida nesta sede mandamental – limita-se a garantir, aos Advogados inscritos na OAB/DF, o exercício das prerrogativas jurídicas asseguradas pelo Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), notadamente aquelas cuja observância é ora postulada pelo Conselho Seccional da OAB/DF (incisos X e XI da Lei nº 8.906/94 – fls. 04/06), além do direito, que é atribuído ao Advogado, de comunicar-se, pessoal e diretamente, com o seu cliente, para adverti-lo de que lhe assiste o direito de permanecer em silêncio (mesmo tratando-se do procedimento probatório da acareação), fundado no privilégio constitucional contra a auto-incriminação, ou o de opor-se a qualquer ato arbitrário, abusivo ou ilegal cometido, contra o seu cliente, por membros da CPI.

Registre-se, ainda, por necessário, que, se é certo que a Constituição atribuiu às CPIs “os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (CF, art. 58, § 3º), não é menos exato que os órgãos de investigação parlamentar estão igualmente sujeitos, tanto quanto os juízes, às mesmas restrições e limitações impostas pelas normas legais e constitucionais que regem o “due process of law”, mesmo que se cuide de procedimento instaurado em sede administrativa ou político-administrativa, de tal modo que se aplica às CPIs, em suas relações com os Advogados, o dever de observância e respeito – que também se impõe aos Magistrados – das prerrogativas profissionais instituídas pelo art. 7º da Lei nº 8.906/94.

Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando, ainda, decisões proferidas no MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, e no MS 23.684/ DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, defiro o pedido de medida liminar, para garantir, preventivamente, caso tal se faça necessário, aos Advogados inscritos na OAB/DF, regularmente constituídos como mandatários das pessoas sujeitas ao procedimento de acareação designado pela CPMI –Compra de Votos” para o dia 25/10/2005, o exercício das prerrogativas profissionais asseguradas pelo art. 7º, notadamente por seus incisos X e XI, da Lei nº 8.906/94.

Caso a CPMI ora apontada como coatora descumpra a presente liminar, e assim desrespeite as prerrogativas profissionais dos Advogados em cujo favor foi impetrado o presente mandado de segurança coletivo, fica assegurado, a estes, o direito de fazer cessar, imediatamente, a participação de seus constituintes no procedimento de acareação, sem que se possa adotar, contra eles – Advogados e respectivos clientes –, qualquer medida restritiva de direitos ou privativa de liberdade.

2. Requisitem-se informações ao órgão ora apontado como coator.

Comunique-se, com urgência.

Publique-se.

Brasília, 24 de outubro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

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