Baixaria na TV

Ministério Público vai à Justiça para tirar do ar a Rede TV!

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24 de outubro de 2005, 15h28

O Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou uma ação nesta segunda-feira (24/10), pedindo a cassação da concessão da Rede TV! O motivo do pedido são os atos de discriminação contra homossexuais e humilhações a mulheres, idosos e deficientes físicos no programa Tardes Quentes, produzido, dirigido e apresentado por João Kléber. A Ação Civil Pública, co-assinada por entidades de defesa dos direitos dos homossexuais e de controle social da programação das emissoras de TV, deve tramitar com pedido de urgência.

Em pedido liminar, os autores da ação pedem a retirada imediata do programa do ar e a colocação no mesmo horário de um direito de resposta às entidades de direitos humanos por 60 dias. Caso a emissora seja condenada, os procuradores paulistas pedem a condenação a uma multa para o fundo de direitos difusos no valor de R$ 20 milhões, equivalente a 10% do faturamento bruto anual da emissora. Além disso, pedem a cassação da concessão pública da emissora, o que na prática seria a sua extinção.

Antes de oferecer a denúncia, os procuradores Sergio Gardenghi Suiama e Adriana da Silva Fernandes, que assinaram juntos a ação, propuseram à emissora um Termo de Ajustamento de Conduta, pelo qual a emissora concordaria em retirar do ar programas discriminatórios e assim evitaria a ação. A Rede TV!, no entanto, rejeitou a proposta. A emissora é acusada também pelos procuradores de tentar impedir a apuração. Para que as fitas com as chamadas “pegadinhas” fossem entregues ao MPF, foi necessária uma busca e apreensão determinada pela Justiça Federal. Por isso, os autores da ação já avisaram que não pretendem fazer acordo, levando-a até as últimas conseqüências.

Esta ação é parte de um conjunto de medidas do MPF e de entidades como o “Quem Financia a Baixaria É Contra a Cidadania” contra os programas de conteúdo discriminatório. A entidade faz um ranking quadrimestral de queixas de telespectadores contra programas considerados de baixo nível. Na contagem geral, os dois programas de João Kléber estão entre os mais citados. O “Eu Vi na TV” também é alvo de procedimento no MPF. O apresentador já se propôs, no MPF e para a entidade, a melhorar a qualidade de seus programas televisivos, mas não cumpriu.

Os autores da ação também expediram uma recomendação à Móveis Marabrás, sugerindo que a empresa pare de patrocinar programas como os do apresentador. Em um outro procedimento, os procuradores investigam a falta de fiscalização do Ministério das Comunicações sobre a programação das concessionárias de sinal televisivo.

Além da Rede TV! a Rede Globo, a TV Gazeta, a Rede Record e a Rede Mulher já foram acionadas na Justiça por causa de sua programação. O Ministério Público Federal em Brasília recomendou que a Globo retirasse do ar quadros do Zorra Total de conteúdo homofóbico, assim como do programa do apresentador Sérgio Mallandro, da TV Gazeta. No caso das redes Record e Mulher, ambas controladas pela Igreja Universal do Reino de Deus, a reclamação é contra os programas religiosos que discriminam as religiões afrobrasileiras e seus praticantes. Neste caso, a Justiça já concedeu o direito de resposta, que ainda não foi apresentado por causa de um recurso no STJ que adiou a exibição até o julgamento de um pedido de reconsideração das emissoras no TRF-3.

Procurado pela revista Consultor Jurídico, o superintendente de gestão estratégica da Rede TV! Dênis Munhoz disse que entrou em contato com os procuradores que assinaram a ação para tentar um ajustamento de conduta.

Para Munhoz não há a necessidade de uma ação para cassar a concessão da emissora. “A intenção da emissora é fazer uma programação de qualidade e se houver algum problema com algum quadro vamos adequar às sugestões do Ministério Público Federal”, disse Munhoz.

Leia a íntegra da ação

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DE UMA DAS VARAS CÍVEIS DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.

“A que não obrigas os corações humanos, ó fome maldita de ouro?”

(Vergílio, Eneida III, 57)

“Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.”

(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)

“- Queria dizer ao telespectador que mais de 22 milhões de pessoas estão vendo a gente.”

(João Kleber, durante a exibição do programa Eu vi na TV)

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República infra-assinados, e as organizações da sociedade civil …

vêm respeitosamente à presença de Vossa Excelência propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

em face da TV ÔMEGA LTDA., empresa concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens, estação geradora da REDE TV!, inscrita no CNPJ sob o número 02.131.538/0001-60, sediada nesta subseção judiciária, no Município de Barueri – SP, na Rua Bahia, 205 – Alphaville; JOÃO FERREIRA FILHO, também conhecido como JOÃO KLEBER, brasileiro, portador da cédula de identidade RG n.o 9.972.108-6, o qual poderá ser encontrado em um dos seguintes endereços: a) Alameda Tietê, 288 – 2o andar – Jardins – São Paulo – SP; b) Rua Bahia, 205 – Alphaville – Barueri – São Paulo – SP; e UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, a qual poderá ser citada por intermédio de seus advogados, na Avenida Paulista, 1804 – 20º andar – Cerqueira César – São Paulo – SP; pelas seguintes razões de fato e de direito:


DOS FATOS

Não é de hoje que os programas dirigidos e apresentados pelo réu JOÃO KLEBER na REDE TV são conhecidos por exibirem cenas de humilhação a pessoas do povo, instigação da violência contra grupos discriminados e exploração da miséria humana, em todas as suas formas.

Nas listas de programas que mais violam os direitos da pessoa, desde 2004 publicadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, os programas comandados por JOÃO KLEBER têm lugar cativo. Aparecem em TODAS elas, à exceção de uma. Em quatro sistematizações, o apresentador é o líder absoluto do nomeado “ranking da baixaria” .

A violação explícita e reiterada a direitos fundamentais é promovida pelo mais torpe dos fins: a obtenção do lucro fácil, auferido com a venda da audiência a um punhado de anunciantes, que parecem não se incomodar em ver a imagem de seus produtos associada a cenas vexatórias e infamantes.

Na disputa por pontos de ibope instituiu-se neste Estado de Direito o vale-tudo entre as emissoras comerciais. Vale expor crianças deformadas, exibir mulheres sendo espancadas, pregar linchamentos de suspeitos, ridicularizar pobres, gays, idosos e deficientes físicos. Só mesmo a Constituição brasileira nada vale, já que é diariamente vilipendiada em comunicações como as feitas por JOÃO KLEBER.

Por certo não é o apresentador o único vaníloquo a promover a destruição simbólica – diante de milhões de espectadores – dos valores que fundam qualquer Estado que se declara republicano. Mas o réu e a emissora que lhe dá suporte são certamente os maiores responsáveis pelo festival de agressões a que todos nós, cidadãos brasileiros, estamos expostos quando sintonizamos um canal comercial de televisão.

Convém apresentar desde logo os fatos específicos que constituem a causa de pedir da ação, para que Vossa Excelência possa ver, por si próprio, por que o Ministério Público Federal vê-se obrigado a vir a juízo. Para facilitar a consulta, as cenas que ilustram o que adiante será exposto foram reunidas em anexo CD-Rom .

JOÃO KLEBER apresenta atualmente dois programas na emissora ré: “EU VI NA TV”, levado ao ar às segundas-feiras, às 23:30 horas, e “TARDE QUENTE”, veiculado de segunda à sexta-feira às 17 horas, e aos sábados, a partir das 18 horas.

“EU VI NA TV” exibe o famigerado “teste de fidelidade”, no qual mulheres que “traíram” os namorados são agredidas em pleno palco , para o deleite da platéia.

O outro programa – “TARDE QUENTE” – veicula, na visão dos dois primeiros Réus, as “melhores e mais engraçadas pegadinhas da TV brasileira” .

Trata-se, na verdade, de uma interminável seqüência de zombarias feitas a passantes, supostamente incautos. Poderia ser objeto de menoscabo, não fosse a ofensa a dois valores elementares em qualquer sociedade civilizada: o direito à não-discriminação e a dignidade humana. Vejamos.

1. Discriminação em razão da orientação sexual.

Ao menos um terço das chacotas levadas ao ar no programa TARDE QUENTE fazem referência explícita à orientação sexual dos personagens da cena.

Os títulos de algumas gravações recolhidas falam por si: “Bicha atrevida faz pedestre se passar por gay e apanha”; “Bichas fazem festa no banheiro, irritam as pessoas e apanham”; “Acha que vai ser servido por ‘gostosa’ mas é travesti”; “Ator insiste que pedestre é gay e acaba apanhando”; “Repórter faz pedestre passar por marido de travesti e apanha”.

Há duas situações distintas nas chacotas exibidas: a) o “ator”, travestido de um tosco estereótipo do que a ideologia dominante crê ser “o homossexual”, assedia moral e fisicamente os participantes da cena, provocando-lhes reações de repulsa e violência; b) o “ator” insulta os passantes chamando-lhes de “bicha”, “veado” e “boiola”, todos conhecidos disfemismos empregados para inferiorizar homossexuais do sexo masculino, como registra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa .

Ilustram a primeira situação os seguintes sketchs:

“Machão à paisana tira sarro e apanha de pedestre”

Resumo: “Machão” assusta mulheres, dizendo ser policial, revista bolsas, joga as coisas no chão, e depois usa batom. Em seguida se faz passar por homossexual, dando gritos. Diz que “vai encontrar com seu bofe”. Chama algumas mulheres de “trouxa”.

“Acha que vai se dar bem com gostosa e bate em folgado”

Resumo: Jovem loira oferece a passantes “test-drive de camisinhas”, mas depois chega ator do sexo masculino, e agarra o participante à força, enquanto lhe pergunta se é “ativo ou passivo”.

“Bicha atrevida faz pedestre se passar por gay e apanha”

Resumo: Ator pede que passante leia bilhete em que está escrito “eu sou gay”. Quando passante lê, ator passa a assediá-lo, fingindo ser estereótipo de homossexual.


Para um participante diz: “você chupa bastante, não chupa?” Vários participantes batem no ator.

“Bichas fazem festa no banheiro, irritam as pessoas e apanham”

Resumo: Atores travestidos dizem para participante que está em “inauguração de banheiro gay”. Em seguida o assediam e o agarram.

“Quer se dar bem com gostosa, mas acaba se dando mal”

Resumo: Atriz loira pede para passante segurar pano escuro para que possa mudar de roupa. Atriz troca de papel com estereótipo de homossexual, que assedia e agarra participante. Homem agride fisicamente estereótipo. Comentário de João Kleber: “A loira sai e entra a bichinha”.

“Acha que vai ser servido por ‘gostosa’ mas é travesti”

Resumo: Garçonete de restaurante é travesti, que assedia e agarra participantes.

“Vai engraxar o sapato, leva xaveco e fica furioso”

Resumo: Ator passa a mão na perna de homens, assediando-os.

“Pensa que vai receber massagem de loira e fica furioso”

Resumo: Participante acha que será massageado por jovem loira, mas quando deita na maca é atendido por estereótipo de homossexual, que o agarra à força.

“Cliente pede rabada… mas quando vai comer, a rabada é outra”

Resumo: Participante pede, em um restaurante, uma “rabada”, e em seguida é assediado por estereótipo de homossexual.

“Vai comprar engate e é ‘engatado’ por machão”

Resumo: Participante vai a uma oficina para comprar um “engate” (peça de automóvel) e é agarrado por trás por estereótipo de homossexual.

São exemplos da segunda situação as seguintes encenações:

“Folgado fala que pedestre é ‘gay’ e apanha”

Resumo: Ator pergunta para dois homens o que acham da adoção de crianças por homossexuais. Se o participante responde que é a favor, ator pergunta se “vai adotar um menino ou uma menina”, “quem é a mamãe e quem é o papai” e “se você é a mulher dele”. Os participantes se ofendem e agridem o “entrevistador”. Comentário de João Kleber: “Que é isso??! Chamou os caras de “casalzinho gay’!!”;

“Folgado confunde pedestre e acaba apanhando”

Resumo: “Ator” belisca as nádegas dos passantes. Quando reagem, diz: “Desculpe, pensei que você fosse meu amigo Zé. É que ele rebola assim, meio baitola, como você”; e “é que você parece o Zé, um amigo meio veadinho como você”.

“Falsa pesquisa engana pedestre e se dá mal”

Resumo: Ator pergunta a passantes: “queria saber por que todo viado é surdo”.

“Folgado faz piadinha sem graça e apanha de pedestre”

Resumo: Ator pergunta a pedestre: “- o que é marrom por fora, branca por dentro, e sangra”. Participante não sabe, e ator responde que é a mandioca. Participante não entende, e ator diz: “você já sentou em cima de uma, para saber se não sangra?”. Para um pedestre, ator diz: “esse baitola acha que é macho.”

“Ator insiste que pedestre é gay e acaba apanhando”

“Foi sacanear pedestre e apanhou”

Resumo: “Ator” aperta a mão de passantes, dizendo: “Fui de automóvel e voltei de avião; você é o primeiro viado que pega hoje na minha mão”. Quando passantes saem, “ator” diz: “Vai embora, seu veado”; “careca, bicha”.

Comentário de João Kleber: “essa eu gostei, essa eu gostei, essa foi sensacional”.

“Atrevido procura buraco em pedestre e acaba apanhando”

Resumo: Ator aponta aparelho para nádegas do passante, e em seguida diz que participante está com “buraco muito aberto” e “fora de padrão”.

“Atrevido engana pedestre em ‘assalto’ e apanha”

Resumo: “Ator” simula assalto, deixa passante ficar com as mãos para o alto e sai. Depois outro ator diz que vítima “não pode ver um pau nas suas costas que se arma todo”.

Podemos identificar alguns elementos comuns a todas cenas mencionadas. Elas:

a) naturalizam a oposição “macho” vs. “bicha”, impondo-a como critério geral de diferenciação entre as pessoas, levando o espectador ingênuo a crer que o mundo é naturalmente dividido em homos e heterossexuais;

b) inferiorizam aqueles que nomeiam de “bichas atrevidas”, quer usando a orientação sexual como elemento do crime de injúria , quer atribuindo-lhes traços semânticos nitidamente negativos. No pastiche produzido pelos réus, os “homossexuais” não possuem atributos positivos; são párias, inconvenientes, ofensivos, misóginos;

c) simbolizam e legitimam a violência social contra homossexuais, na medida em que a “bicha” encenada termina sempre punida com os socos e chutes dos passantes.

Não pretendemos argüir nexo de causalidade direto entre as emissões dos réus e as centenas de agressões físicas contra homossexuais que ocorrem todos os dias no Brasil. Isso porque O PRÓPRIO PROGRAMA TELEVISIVO DOS RÉUS JÁ É UM ATO DE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA CONTRA, PELO MENOS, 20 MILHÕES DE BRASILEIROS.


Especificamente trata-se do que Axel Honneth chamou de “negativa de valor a um modo de viver” , feita por intolerantes, incapazes de conviver com múltiplas formas de existência.

Vossa Excelência poderá melhor dimensionar o mal causado pela conduta dos Réus se atentar para o fato de que as ofensas à sexualidade e à dignidade alheias são exibidas durante seis dias por semana, para uma platéia de dezenas de milhões de telespectadores, inclusive crianças e adolescentes.

Mutatis mutandis, seria o mesmo que conceder ao editor de livros gaúcho Siegfried Ellwanger – condenado definitivamente em 2003 pela prática do crime de racismo – um público cativo de milhões de telespectadores para que pudesse transmitir em “horário nobre” suas idéias fascistóides acerca da “mentira do holocausto judeu”. Nas “inocentes” pegadinhas divulgadas pelos dois primeiros Réus há o mesmo insidioso conteúdo de intolerância e preconceito contra o Outro que alimenta as idéias racistas. Em perspectiva psicanalítica, talvez se trate do que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” , ovo da serpente do nazifascismo.

Tivéssemos nós, brasileiros, uma cultura de tolerância para com o Outro, a doutrinação dos Réus não encontraria solo para fertilizar. Acontece que a sociedade brasileira pratica, em grande medida, formas de violência simbólica ou física contra negros, pobres, índios, idosos, mulheres, pessoas com deficiência e, também, contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis.

Segundo pesquisa realizada pelo Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos e pelo Instituto de Medicina Social da UERJ durante a 9ª Parada do Orgulho GLBT, no Rio de Janeiro, 64,8% DOS HOMOSSEXUAIS ENTREVISTADOS JÁ HAVIAM SIDO VÍTIMAS DE ALGUM TIPO DE DISCRIMINAÇÃO. Em 33,5% dos casos, isso ocorreu no círculo de amigos e vizinhos; em 27%, no ambiente familiar; em 26,8%, nas escolas e universidades . 55,4% DOS ENTREVISTADOS DISSERAM TER SOFRIDO AGRESSÕES VERBAIS OU AMEAÇAS, EM RAZÃO DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL; 18,7% RELATARAM TER SOFRIDO VIOLÊNCIA FÍSICA.

Enfim: está claro que os Réus REDE TV e JOÃO KLEBER vêm há anos ofendendo a liberdade de orientação sexual de milhões de brasileiros e, com isso, contribuindo para a legitimação social da homofobia e da intolerância.

A ofensa – convém repetir – consiste em categorizar, inferiorizar e ridicularizar todos cuja orientação do desejo está voltada para pessoas do mesmo sexo. Para tais seres, “cujo único crime é não ter os mesmos gostos que vós” , o programa levado ao ar pelos Réus reserva toda a sorte de xingamentos e agressões físicas (“Bicha atrevida faz pedestre se passar por gay e APANHA”, “Bichas fazem festa no banheiro, irritam as pessoas e APANHAM”).

2. Ofensa à dignidade da pessoa humana.

Não são os gays os únicos a serem humilhados diante da multidão ávida por construir a própria imagem em negativo .

Também pessoas comuns do povo são vítimas de humilhações e constrangimentos no programa “TARDE QUENTE”. Passantes são gratuitamente adjetivados de “trouxas”, “drogas”, “fedidos”, “aleijados”, “cornos”, “otários” e “escrotos”. Mulheres – inclusive senhoras idosas – são chamadas de “galinhas” pelos “atores” contratados pelos Réus (“É chamada de galinha, fica furiosa e folgados apanham”).

Em cena levada ao ar no dia 05 de julho de 2005 (“Homem ameaça apagar pedestres e acaba apanhando”, registrada no anexo CD-Rom), o “ator” se faz passar por assaltante e ameaça uma mulher que, sem saber que se tratava de uma farsa, começa a chorar, sob o riso de escárnio de JOÃO KLEBER.

Em outra cena, a “atriz” indaga a homens acompanhados: “- Você não usa drogas?! Como não, e essa droga de mulher que está aí do seu lado?!” (“Gostosa faz pesquisa, irrita as pessoas e se dá mal”).

São freqüentes, no programa, humilhações a pessoas simples que se dispõem a ajudar alguém em necessidade. Transcrevemos, abaixo, alguns exemplos registrados no CD-Rom juntado aos autos:

”Dinheiro falso faz pedestre entrar em fria e folgado apanha”.

Resumo: Passante entra numa fonte para pegar dinheiro a pedido de “ator”, vê que cédula é falsa, e é chamado de “trouxa”.

“Aleijado engana pedestre e entra no tapa”

Resumo: Um “ator” com muletas pede ajuda para atravessar a rua. Tão logo chega do outro lado, tira as muletas, e dá um chute na pessoa que o ajudou.

“Titio atrevido passa a mão nas pessoas e acaba em fria”

Resumo: “Atriz” pede ajuda a pedestre para colocar “ator” que simulava passar mal em um carro. Em seguida, atriz comenta com ator que conseguia “pegar qualquer trouxa”.

“Acha que vai ganhar bolsa de estudo e fica furioso”


Resumo: Quando o passante não sabe responder perguntas há imitação do zurro de um asno. Ator chama participantes de “trouxa”.

“Vai comprar chiclete, é sacaneado e folgado apanha”

Resumo: “Ator” dá bala com corante azul para passantes, e em seguida chama-os de “frescos” e “trouxas”.

“Folgado pede ajuda, solta pum na cara do pedestre e acaba apanhando”.

Resumo: o título é auto-explicativo.

“Ajuda gostosa a trocar pneu e acaba se dando mal.”

Resumo: “Atriz” pede para passante trocar o pneu do carro. Depois chega “marido” da “atriz” e chama o participante de “babaca”, “otário” e “mané”.

“’Mudo’ folgado deixa pedestre furioso e entra em fria”

Resumo: “Ator” se faz passar por mudo, e quando passantes cruzam seu caminho, os chama de “trouxas”, “boiolas” e “feiosas”.

“Vai dar informação para folgado e acaba se dando mal”

Resumo: “Ator” pergunta a passantes onde fica o banheiro. Enquanto respondem, ator simula urinar em cima da pessoa.

Indagamos a Vossa Excelência que direito tem os Réus REDE TV e JOÃO KLEBER de usar uma concessão do povo para enriquecer à custa da humilhação feita a pessoas comuns. O poder-dever de explorar o serviço público de radiodifusão (CR, art. 21, XII, “a”) acaso confere à concessionária o direito de aviltar a boa fé e a dignidade alheias, em nome da mais desprezível das ambições? Como em qualquer outra concessão, não há normas de observância obrigatória pela empresa que explora o serviço?

Não restou ao MINISTÉRIO PÚBLICO, portanto, outro meio senão vir a juízo pedir a ação protetora do Estado em defesa dos mais altos valores desta República.

DO DIREITO

1. Direito de não ser discriminado em razão da orientação sexual.

Como se sabe, o artigo 5º, caput, da Constituição declara o direito geral de igualdade nos seguintes termos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

A redação do artigo é manifestamente hiperbólica, pois é evidente que não há o dever de assegurar a igualdade de todos com relação a todas as posições jurídicas. A própria Constituição, em diversos dispositivos , estabelece distinções entre pessoas e situações, sem que haja, por isso, ofensa ao princípio em questão.

O que é preciso perquirir, na verdade, é se há alguma justificativa legítima que autorize a diferenciação. Pois, na precisa formulação de Robert Alexy, “se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado o tratamento igual” .

Pensamos já ter suficientemente demonstrado que os réus vêm se valendo do critério “orientação sexual” para inferiorizar e humilhar aqueles cujo desejo é dirigido a pessoas do mesmo sexo. Em outras palavras, os réus estão conferindo tratamento desigual entre as pessoas.

Resta, então, indagar se há alguma “razão suficiente” para que a orientação sexual de milhões de brasileiros seja cotidianamente aviltada pelo programa TARDE QUENTE, de responsabilidade dos réus JOÃO KLEBER e REDE TV.

É evidente que não há.

Talvez nem seja preciso lembrar que o artigo 3°, inciso IV, da Constituição estabelece, como objetivo fundamental da República, a promoção do bem de todos “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

E que o artigo 5° da mesma Lei Fundamental assegura a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à liberdade (inclusive a liberdade de escolha do parceiro sexual), à honra e à intimidade .

E ainda que em um Estado democrático não é lícito a ninguém impor seus ideais de excelência humana, nem suas concepções de moralidade auto-referente , ainda que compartilhadas pela maioria.

A transmissão reiterada de chacotas dirigidas a homossexuais constitui, portanto, autêntica discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, e deve ser reprimida com todo o rigor pelo Estado brasileiro, como, aliás, determina o artigo 5°, inciso XLI, da Constituição.

Afinal a “falta de proteção judicial contra essas ações simbólicas” também representa “um consentimento, uma cumplicidade com esta violência diuturna. Ela é uma evidência da denegação de igualdade plena” .

2. Respeito à dignidade da pessoa.

A formulação de Kant é conhecida:

“Tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem um preço pode ser muito bem substituído por qualquer outra coisa, a título de equivalente; ao contrário, AQUILO QUE É SUPERIOR A TODO PREÇO, AQUILO QUE POR CONSEGÜINTE NÃO ADMITE EQUIVALENTE, É ISTO QUE POSSUI UMA DIGNIDADE.”

No programa televisivo de responsabilidade dos réus, todavia, a dignidade humana não só admite equivalente, como também possui, literalmente, um preço. Custa R$ 13.424,00, valor cobrado para uma inserção comercial nacional de 30 segundos no programa .


Em troca da paga, exibem intermináveis flagrantes de violação da dignidade humana a um público virtual de 131.874.053 de brasileiros, majoritariamente formado por pessoas de média e baixa rendas , e que muitas vezes não dispõe de outra opção de lazer que não assistir a sete ou oito canais da televisão aberta.

A dignidade humana – nunca é demais lembrar –constitui o fundamento último deste Estado (CR, art. 1º, III) e é o valor de onde emanam todos os direitos da pessoa.

Muito embora, como ressalta Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio constitucional da dignidade humana constitua uma “categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista” , é perfeitamente possível definir-lhe alguns contornos que autorizem decidir, no caso concreto, se houve ou não ofensa ao fundamento maior da ordem comunitária.

Para Dürig, por exemplo, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada atingida sempre que a pessoa for rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, privada, portanto, de sua condição de sujeito de direitos .

Pérez Luño, em sentido convergente, salienta que o princípio implica a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, e também “la garantía negativa de que la persona no va a ser objeto de ofensas o humillaciones” .

Ora, humilhar pessoas comuns, chamando-as de “galinhas”, “trouxas”, “cornos” e “escrotos” e submetendo-as a situações constrangedoras, é justamente a especialidade do programa TARDE QUENTE, como já visto.

Ante a omissão criminosa dos órgãos administrativos da UNIÃO incumbidos de fiscalizar as concessões públicas de rádio e TV, cabe à Justiça brasileira conferir plena efetividade ao princípio constitucional fundador da ordem social, fazendo cessar, imediatamente, as humilhações e constrangimentos praticados por uma concessionária do serviço público federal de radiodifusão.

3. Violação das normas constitucionais e infraconstitucionais que regulam o serviço público de radiodifusão.

É importante dizer que, ao contrário do que pensa o senso-comum, a emissora Ré não é “proprietária” do canal em que opera. É, na verdade, uma concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens , e, como tal, está sujeita às normas de direito público que regulam este setor da ordem social.

Justifica-se o regime jurídico de direito público porque, diversamente do que acontece nas mídias escritas, as emissoras de rádio e TV operam um bem público escasso: o espectro de ondas eletromagnéticas por onde se propagam os sons e as imagens.

Trata-se de um bem público de interesse de todos os brasileiros, pois somente por intermédio da televisão e do rádio é possível a plena circulação de idéias no país. A imprensa escrita, como se sabe, não alcança número expressivo de leitores, e a Internet, espaço democrático, quase anárquico, de comunicação global, ainda tem um universo de usuários muito restrito.

Como esperamos já ter demonstrado, a empresa Ré vem, há anos, usando o bem público que lhe foi temporariamente concedido para negar os valores fundamentais declarados na Constituição.

Ao fazê-lo, descumpre o artigo 221 da Constituição, que obriga as emissoras a respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família, dentre os quais se encontram, indubitavelmente, a dignidade humana, a igualdade de todos e o respeito à honra, à liberdade e à privacidade alheias.

Descumpre também o artigo 53, alíneas “a” e “h”, do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei Federal n.º 4.117/62), pois ofende a moralidade pública e incita a multidão que assiste ao programa a desobedecer a Lei maior do país.

Descumpre, finalmente, o artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto Presidencial nº 52.795/63), que obriga as concessionárias a “subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão” e a “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Ora, como observa Rodolfo de Camargo Mancuso,

“Lendo-se os dispositivos que regem a programação televisiva à luz do que visa garantir a liberdade de iniciativa e a livre concorrência (CF, art. 170, caput e inciso IV), chega-se a esta exegese: É AUTORIZADA A EXPLORAÇÃO COMERCIAL DA DIFUSÃO TELEVISIVA PRIVADA, COM NATURAL APROPRIAÇÃO DOS LUCROS DAÍ RESULTANTES, DESDE QUE VENHAM OBSERVADOS OS PRINCÍPIOS E GUARDADAS AS RESTRIÇÕES ESPECIFICADAS PARA TAL ATIVIDADE. Em suma, livre iniciativa com responsabilidade social; lucro empresarial sem capitalismo selvagem.


De outra parte, deve o intérprete precatar-se de não baralhar o entendimento do que seja um padrão básico de qualidade na programação televisiva, em face de textos outros que em verdade apenas reflexamente tangenciam aquele tema, tais os que vedam a censura artística e garantem a liberdade de expressão (CF, art. 220, caput e § 2º). Aí, a nosso ver, não se trata do fenômeno conhecido per colisão entre preceitos constitucionais, visto não ser razoável pretender-se que os valores liberdade de expressão e vedação de censura prévia viessem preservados às custas do aniquilamento de outros preceitos constitucionais reguladores de uma atividade que é estritamente regulada, como se passa com a radiodifusão de sons e imagens.

Sem esses cuidados, o intérprete pode tomar a nuvem por Juno, extraindo dos textos de regência o que neles não se contêm, porque É EVIDENTE QUE NÃO ESTEVE NA INTENÇÃO DO CONSTITUINTE FRANQUEAR UM LAISSEZ FAIRE, JUSTAMENTE NA PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA, ATIVIDADE PARA A QUAL A PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO FIXOU PARÂMETROS COGENTES. SERIA NO MÍNIMO ESTRANHÁVEL, escreve José Carlos Barbosa Moreira, ‘QUE SE HOUVESSE DE DEIXAR A DETERMINAÇÃO AO ARBÍTRIO DAS EMISSORAS, ISTO É, DOS PRÓPRIOS INFRATORES POTENCIAIS OU ATUAIS…’”

O descumprimento reiterado das normas que regulam o serviço dá ensejo à CASSAÇÃO DA CONCESSÃO PÚBLICA outorgada à emissora, mediante decisão judicial, nos termos do disposto no artigo 64 da Lei Federal n.º 4.117/62 c.c. o art. 223, § 4º, da Constituição. É o que será pedido adiante.

CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O Ministério Público Federal e as organizações da sociedade civil litisconsortes desejam esclarecer que não estão em juízo para defender o direito individual dos participantes das “pegadinhas”.

A busca dos Autores é pelo reconhecimento do direito de milhões de brasileiros a uma programação televisiva que respeite os direitos fundamentais.

Trata-se de legítimo INTERESSE DIFUSO, como já apontou Barbosa Moreira, em artigo sobre o tema:

“O INTERESSE EM DEFENDER-SE ‘DE PROGRAMAS OU PROGRAMAÇÕES DE RÁDIO E TELEVISÃO QUE CONTRARIEM O DISPOSTO NO ART. 221’ ENQUADRA-SE COM JUSTEZA NO CONCEITO DE INTERESSE DIFUSO. (…) Com efeito: em primeiro lugar, ele se caracteriza, à evidência, como ‘TRANSINDIVIDUAL’, já que não pertence de modo singularizado, a qualquer dos membros da comunidade, senão a um conjunto indeterminado – e, ao menos para fins práticos, indeterminável – de seres humanos. Tais seres ligam-se uns aos outros pela mera circunstância de fato de possuírem aparelhos de televisão ou, na respectiva falta, costumarem valer-se do aparelho do amigo, do vizinho, do namorado, do clube, do bar da esquina ou do salão de barbeiro. E ninguém hesitará em qualificar de INDIVISÍVEL o objeto de semelhante interesse, no sentido de que cada canal, num dado momento, transmite a todos a mesma e única imagem, nem se concebe modificação que se dirija só ao leitor destas linhas ou ao rabiscador delas” .

O direito aqui invocado é de natureza indivisível também por outro motivo: funda-se no princípio da solidariedade como dever jurídico fundamental.

A discriminação e as humilhações exibidas pelos réus não atingem apenas um ou outro indivíduo ou grupo social. Os lesados somos todos.

A solidariedade, ensina Fábio Konder Comparato,

“(…) prende-se à idéia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. É a transposição, no plano da sociedade política, da obligatio in solidum do direito privado romano. O fundamento ético desse princípio encontra-se na idéia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana” .

Em registro mais literário, escreve Albert Camus: “a revolta não nasce exclusiva e forçosamente nos oprimidos, mas pode igualmente surgir perante o espetáculo da opressão de que outrem seja vítima (…). O indivíduo não é por si só esse valor que quer defender. É preciso pelo menos todos os homens para o formar” .

O argumento de que uma parcela dos espectadores apóia os preconceitos exibidos não serve para afastar o cabimento da ação coletiva. Isto porque, como bem lembrou Rodolfo de Camargo Mancuso, é justamente no embate de coletividades extensas – uma parte posicionando-se contra, e outra a favor de um padrão básico de qualidade na programação televisiva – que repousa uma das notas mais típicas dos interesses difusos, que é a sua intrínseca conflituosidade .

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL E LEGITIMIDADE ATIVA

Pensamos que já está suficientemente esclarecido o motivo da demanda ter sido proposta perante a Justiça Federal: A UNIÃO FIGURA NO PÓLO PASSIVO DA AÇÃO e a EMPRESA RÉ É CONCESSIONÁRIA DE UM SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL, como se depreende da leitura dos arts. 21, inciso XII, “a”, e 223 da Constituição.


Como em qualquer concessão pública, tem o poder concedente – no caso, a UNIÃO – o DEVER DE FISCALIZAR o cumprimento das obrigações legais e contratuais impostas aos concessionários e também a responsabilidade subsidiária por danos causados a terceiros no exercício do serviço delegado .

Uma vez que o órgão do Ministério das Comunicações incumbido de fiscalizar as emissoras concessionárias queda-se HÁ ANOS totalmente inerte, cabe ao Ministério Público, na qualidade de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CR, art. 127), pleitear em juízo as medidas necessárias e suficientes à reparação do mal causado e à aplicação da sanção contra os faltosos.

A propósito, o art. 5º, inciso IV, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal n.º 75/93), confere ao Ministério Público Federal atribuição expressa para “zelar pelo efetivo respeito dos meios de comunicação social aos princípios, garantias, condições, direitos, deveres e vedações previstos na Constituição Federal e na lei, relativos à comunicação social”.

Como o Ministério Público Federal é órgão da União, e os réus demandados são a própria União e a prestadora do serviço público federal concedido, a ação coletiva deve, obrigatoriamente, ser proposta perante a Justiça Federal, consoante dispõe o art. 109, inciso I, da Constituição.

A legitimidade ativa das associações civis autoras decorre de permissivo legal expresso (o art. 5º da Lei Federal n.º 7.347/85).

DOS PEDIDOS

Os pedidos que serão adiante formulados partem dos seguintes pressupostos já enunciados:

a) há uma ação ilícita continuada praticada pelos dois primeiros réus;

b) a ação consiste na transmissão quase diária de mensagens preconceituosas e ofensivas à dignidade humana, à liberdade de orientação sexual, à privacidade e à honra das pessoas;

c) o Estado brasileiro – aqui compreendido o Poder Judiciário – tem o dever de proteger tais direitos contra a ação ilícita promovida pelos réus;

d) as mensagens transmitidas alcançam dezenas de milhões de pessoas porque a emissora ré é concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens;

e) não foi garantido aos Autores – ou a outras organizações da sociedade civil – o direito de responder aos preconceitos transmitidos em condições de “igualdade comunicativa” (kommunikative Chancengleichheit);

f) sem prejuízo das tutelas inibitórias específicas que serão adiante formuladas, a ação ilícita continuada da emissora enseja também a aplicação de duas sanções, de natureza distinta: a SANÇÃO CIVIL – equivalente à indenização pelos danos morais causados à toda coletividade – e a SANÇÃO ADMINISTRATIVA, correspondente à cassação da concessão pública outorgada, mediante sentença judicial, conforme dispõe o art. 223, § 4º, da Constituição.

Partem, ainda, os Autores da concepção de que o art. 5º, inciso XXV, da Constituição assegura a todos não só o direito de ação, mas o DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL ADEQUADA, EFETIVA E TEMPESTIVA. Pois, como bem diz Luiz Guilherme Marinoni,

“Não teria cabimento entender, com efeito, que a Constituição da República garante ao cidadão que pode afirmar uma lesão ou uma ameaça a direito apenas e tão-somente uma resposta, independentemente de ser ela efetiva e tempestiva. Ora, SE O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA É UM DIREITO FUNDAMENTAL, PORQUE GARANTIDOR DE TODOS OS DEMAIS, NÃO HÁ COMO SE IMAGINAR QUE A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PROCLAMA APENAS QUE TODOS TÊM O DIREITO A UMA MERA RESPOSTA DO JUIZ. O DIREITO A UMA MERA RESPOSTA DO JUIZ NÃO É SUFICIENTE PARA GARANTIR OS DEMAIS DIREITOS, E, PORTANTO, NÃO PODE SER PENSADO COMO UMA GARANTIA FUNDAMENTAL DE JUSTIÇA. (…) Como diz Camoglio, o problema crucial do acesso à justiça está, em última análise, na efetividade da tutela jurisdicional. Não basta reconhecer, em abstrato, a libertà di agire e garantir a todos, formalmente, a oportunidade de exercer a ação. Limitar-se a tal configuração, no catálogo tradicional das liberdades civis, significa desconhecer o sentido profundamente inovador dos direitos sociais de liberdade, em seus inevitáveis reflexos sobre a administração da justiça. Cabe, portanto – prossegue o professor da Universidade de Pavia -, ASSEGURAR A QUALQUER INDIVÍDUO, independentemente das suas condições econômicas e sociais, A POSSIBILIDADE, SÉRIA E REAL, DE OBTER A TUTELA JURISDICIONAL ADEQUADA” .

PEDIDOS DE CONCESSAO DE TUTELA ANTECIPATÓRIA INIBITÓRIA

A tutela inibitória destina-se a impedir a prática, repetição ou continuação do ilícito. Difere da tutela ressarcitória porque esta volta-se à reparação do dano causado ao direito material, ao passo que aquela diz respeito à imposição de meios coercitivos capazes de convencer o obrigado a não fazer ou a cumprir uma obrigação de fazer infungível .


A ação inibitória é indispensável à efetividade da tutela dos direitos fundamentais, já que, como observa Marinoni, esses direitos dependem, primordialmente, “de obrigações continuativas de não-fazer, ou de obrigações de fazer infungíveis ou dificilmente passíveis de execução através das formas tradicionais da ‘execução forçada’”:

“Os direitos de personalidade não podem ser garantidos adequadamente por uma espécie de tutela que atua apenas após a lesão ao direito. ADMITIR QUE TAIS DIREITOS SOMENTE PODEM SER TUTELADOS ATRAVÉS DA TÉCNICA RESSARCITÓRIA É O MESMO QUE DIZER QUE É POSSÍVEL A EXPROPRIAÇÃO DESTES DIREITOS, TRANSFORMANDO-SE O DIREITO AO BEM EM DIREITO À INDENIZAÇÃO. NÃO É PRECISO LEMBRAR QUE TAL ESPÉCIE DE EXPROPRIAÇÃO SERIA ABSURDA QUANDO EM JOGO DIREITOS INVIOLÁVEIS DO HOMEM” .

Por esse motivo, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva corresponde, no caso dos direitos não-patrimoniais, “ao DIREITO A UMA TUTELA CAPAZ DE IMPEDIR A VIOLAÇÃO DO DIREITO. A ação inibitória, portanto, é absolutamente indispensável em um ordenamento que se funda na ‘dignidade da pessoa humana’ e que se empenha em realmente garantir – e não apenas em proclamar – a inviolabilidade dos direitos da personalidade” .

Ora, como já ficou demonstrado, o programa televisivo TARDE QUENTE, de responsabilidade dos Réus JOÃO KLEBER e REDE TV, vem de forma continuada ofendendo os direitos invioláveis à dignidade humana, à liberdade, à igualdade, à honra e à privacidade de milhões de brasileiros.

OU O ESTADO BRASILEIRO CONTINUA A ASSISTIR PASSIVAMENTE AO FESTIVAL DE VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS PATROCINADO PELA REDE TV, OU ENTÃO, CORAJOSAMENTE, OBRIGA A EMISSORA A CUMPRIR AS NORMAS DE DIREITO PÚBLICO QUE INCIDEM SOBRE A CONCESSÃO, FAZENDO CESSAR, IMEDIATAMENTE, OS PRECONCEITOS E OFENSAS EXIBIDOS PELO PROGRAMA “TARDE QUENTE”. TERTIUM NON DATUR.

A SUSPENSÃO DEFINITIVA DA VEICULAÇÃO DO PROGRAMA E DE SUAS FAMIGERADAS “PEGADINHAS” É MEDIDA IMPRESCINDÍVEL, PORÉM INSUFICIENTE PARA COMBATER O MAL CAUSADO pela repetição, durante anos, das mensagens preconceituosas e ofensivas transmitidas pelos réus.

É obrigatório, também, propiciar o que Jorge Miranda denominou de “pluralismo interno”, isto é, a “POSSIBILIDADE DE EXPRESSÃO E CONFRONTO DAS DIVERSAS CORRENTES DE OPINIÃO – tomando opinião no sentido mais amplo para abarcar quer a opinião política quer a religiosa e filosófica” – NO INTERIOR DA PRÓPRIA EMISSORA.

Isto porque, como advertia Stuart Mill em seu conhecido libelo a favor da liberdade de expressão,

“O único modo pelo qual é possível a um ser humano tentar aproximar-se de um conhecimento completo acerca de um assunto é ouvindo o que podem dizer sobre isso pessoas de grande variedade de opiniões, e estudando todos os aspectos em que o podem considerar os espíritos de todas as naturezas (…). O hábito constante de corrigir e completar a própria opinião cotejando-a com a de outros, longe de gerar dúvidas e hesitações ao pô-la em prática, constitui o único fundamento estável para que nela se tenha justa confiança” .

Durante anos os dois primeiros réus vêm se valendo da omissão do poder concedente para disseminar mensagens de intolerância e preconceito. Seria injusto permitir que a emissora em questão simplesmente substitua o programa TARDE QUENTE por outro do mesmo “nível”, sem que seja assegurado à sociedade civil organizada o direito de, ao menos durante algumas semanas, fazer a devida contrapropaganda, de forma a permitir que o público forme suas convicções a partir do confronto de idéias, e não do monólogo da emissora.

A falta de previsão legal específica não constitui óbice válido para impedir a concessão da tutela ora requerida. Pois, como bem diz Cândido Rangel Dinamarco,

“A crescente e visível tendência moderna à universalização da jurisdição desautoriza o abuso de bolsões de direitos ou interesses não-jurisdicionalizáveis e impõe que na maior medida possível possa o Poder Judiciário ser o legítimo e eficiente portador de tutela a pretensões justas e insatisfeitas. O exagero na exclusão da jurisdicionalidade alimentaria a litigiosidade contida e, com isso, minaria a realização de um dos objetivos do Estado” . Portanto, “EM PROCESSO CIVIL, A DETERMINAÇÃO DA POSSIBILIDADE JURÍDICA FAZ-SE EM TERMOS NEGATIVOS, DIZENDO-SE QUE HÁ IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA QUANDO O ESTADO, SEM LEVAR EM CONTA AS CARACTERÍSTICAS PECULIARES DA SITUAÇÃO JURÍDICA CONCRETA, NEGA APRIORISTICAMENTE O PODER DE AÇÃO AO PARTICULAR. INEXISTINDO RAZÃO PREPONDERANTE OU EXPRESSA VEDAÇÃO LEGAL, A AÇÃO É ADMISSÍVEL” .

Ademais, é perfeitamente possível aplicar à lide, por analogia, os preceitos que cuidam da contrapropaganda inseridos no Código de Defesa do Consumidor. O artigo 60 do Código autoriza a imposição da contrapropaganda “quando o fornecedor incorrer na prática de publicidade enganosa ou abusiva, nos termos do art. 36 e seus parágrafos, sempre às expensas do infrator”.


O § 1º do mesmo artigo determina que “a contrapropaganda será divulgada pelo responsável da mesma forma, freqüência e dimensão e, preferencialmente no mesmo veículo, local, espaço e horário, de forma capaz de desfazer o malefício da publicidade enganosa ou abusiva”.

A conduta dos Réus JOÃO KLEBER e REDE TV é assemelhada à publicidade abusiva, porque, nos termos do art. art. 37, § 2°, do Código de Defesa do Consumidor, é abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza e a que incite à violência, explore o medo ou a superstição do público.

Considerando, ainda, que o acesso à informação é direito fundamental da pessoa, reconhecido no art. 5º, inciso XIV, da Constituição, compreende-se porque é preciso, no presente caso, desfazer o malefício causado pelas mensagens abusivas, através da garantia da contrapropaganda.

Tanto a Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n.º 7.347/85) quanto o art. 461 do Código de Processo Civil autorizam a concessão da tutela antecipatória inibitória específica.

A medida preventiva é cabível, nos termos do § 3o do art. 461 do CPC, quando for “relevante o fundamento da demanda” e houver “justificado receio de ineficácia do provimento final”.

Pensam os Autores desta ação que a relevância da demanda já está suficiente demonstrada.

Diversamente das ações que costumam ser propostas perante a Justiça Federal, a presente demanda não versa sobre direitos patrimoniais de contribuintes. Ela busca tutelar a liberdade, a igualdade e a dignidade dos telespectadores brasileiros, que não suportam mais assistir às humilhações e preconceitos veiculados ad nauseam no programa dos primeiros Réus.

Para esses brasileiros, apenas a concessão do provimento jurisdicional antecipado servirá para proteger, de modo efetivo, os direitos não-patrimoniais de que são titulares. A outra opção – aguardar anos até a prolação da sentença definitiva – importaria em admitir que os direitos fundamentais invioláveis aqui invocados podem continuar a ser violados até final decisão judicial, o que evidentemente é um absurdo.

POR TODO O EXPOSTO, PLEITEIAM OS AUTORES A CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPATÓRIA INIBITÓRIA PARA O FIM DE:

ORDENAR AOS RÉUS REDE TV e JOÃO KLEBER QUE SE ABSTENHAM DEFINTIVAMENTE DE EXIBIR O PROGRAMA “TARDE QUENTE” E O QUADRO “PEGADINHAS”, NELE VEICULADO;

ORDENAR QUE A EMISSORA RÉ EXIBA, À TÍTULO DE CONTRAPROPAGANDA, DURANTE 60 (SESSENTA) DIAS, NO MESMO VEÍCULO, LOCAL, ESPAÇO E HORÁRIO DA TRANSMISSÁO IMPUGNADA, OS PROGRAMAS DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS PRODUZIDOS E/OU INDICADOS PELOS AUTORES DA AÇÃO;

PARA TORNAR EXEQUÍVEL A MEDIDA REQUERIDA NO ITEM ANTERIOR, ORDENAR QUE OS RÉUS REDE TV e JOÃO KLEBER SEJAM COMPELIDOS A FORNECER A ESTRUTURA E O PESSOAL TÉCNICO NECESSÁRIO (câmeras, operadores de áudio e de vídeo, cabos, técnicos de iluminação, eletricistas, operadores de VT etc.) E TAMBÉM A PAGAR OS CUSTOS DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO, ATÉ O LIMITE DE R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), POR PROGRAMA;

ORDENAR QUE O ÓRGÃO DA UNIÃO FEDERAL COMPETENTE (a Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações) proceda ao IMEDIATO MONITORAMENTO DOS DEMAIS PROGRAMAS EXIBIDOS PELA EMISSORA RÉ, sobretudo aqueles arrolados no “ranking da baixaria”, periodicamente divulgado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados;

DETERMINAR A IMPOSIÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA DIÁRIA, em valor não inferior a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), com fundamento no art. 461, § 4º, do Código de Processo Civil, para a hipótese de DESCUMPRIMENTO das ordens judiciais requeridas nos itens anteriores.

PEDIDOS DE PROVIMENTO CONDENATÓRIO E DESCONSTITUTIVO APÓS COGNIÇAO EXAURIENTE

1. Condenação dos Réus JOÃO KLEBER e REDE TV ao pagamento de indenização por dano moral coletivo.

Como ensina Carlos Alberto Bittar Filho,

“(…) O DANO MORAL COLETIVO É A INJUSTA LESÃO DA ESFERA MORAL DE UMA DADA COMUNIDADE, OU SEJA, É A VIOLAÇÃO ANTIJURÍDICA DE UM DETERMINADO CÍRCULO DE VALORES COLETIVOS. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.”

A possibilidade jurídica do pedido de indenização por dano moral coletivo decorre de expresso dispositivo legal: o art. 1º, caput, da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n° 7.347/85):

Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, AS AÇÕES DE RESPONSABILIDADE POR DANOS MORAIS e patrimoniais causados (…) A QUALQUER outro INTERESSE DIFUSO OU COLETIVO. .


Há, no caso, o dever de indenizar porque a conduta ilícita continuada praticada no programa TARDE QUENTE ofendeu, diante de uma platéia de milhões de telespectadores, valores fundamentais compartilhados por todos os brasileiros.

A responsabilidade dos Réus REDE TV e JOÃO KLEBER é solidária, uma vez que decorre da prática de ato ilícito para o qual ambos concorreram .

Como observa Carlos Alberto Bittar, O VALOR DEVIDO a título de indenização pelos danos morais coletivos

“(…) deve traduzir-se em MONTANTE QUE REPRESENTE ADVERTÊNCIA AO LESANTE E À SOCIEDADE DE QUE SE NÃO SE ACEITA O COMPORTAMENTO ASSUMIDO, OU O EVENTO LESIVO ADVINDO. Consubstancia-se, portanto, em IMPORTÂNCIA COMPATÍVEL COM O VULTO DOS INTERESSES EM CONFLITO, REFLETINDO-SE DE MODO EXPRESSIVO, NO PATRIMÔNIO NO PATRIMÔNIO DO LESANTE, A FIM DE QUE SINTA, EFETIVAMENTE, A RESPOSTA DA ORDEM JURÍDICA AOS EFEITOS DO RESULTADO LESIVO PRODUZIDO. DEVE, POIS, SER QUANTIA ECONOMICAMENTE SIGNIFICATIVA, EM RAZÃO DAS POTENCIALIDADES DO PATRIMÔNIO DO LESANTE. Coaduna-se essa postura, ademais, com a própria índole da teoria em debate, possibilitando que se realize com maior ênfase, a sua função inibidora de comportamentos. Com efeito, o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta pecuniária mais adequada a lesionamentos de ordem moral.”

O faturamento bruto anual anunciado pela emissora Ré é de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).

É preciso considerar também que: a) o programa impugnado é exibido para um público virtual de 131.874.053 de brasileiros; b) as ofensas são transmitidas em horário livre, durante todos dias da semana (exceto aos domingos), e alcançam praticamente todo o território nacional; c) a conduta ilícita vem se repetindo há anos; d) os Réus têm pleno conhecimento da ilicitude do fato e recusaram a composição amigável da lide.

Por essas razões, entendem os Autores que é mais do que razoável a FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS NO VALOR DE R$ 20.000.000,00 (VINTE MILHÕES DE REAIS), EQUIVALENTE A 10% DO FATURAMENTO BRUTO ANUNCIADO DA EMISSORA.

2. Cassação da concessão pública outorgada à emissora ré.

Como ocorre em TODOS os serviços públicos cuja exploração é deferida a particulares, também as concessões do serviço de radiodifusão de sons e imagens estão sujeitas a normas de direito público, de caráter cogente.

Justifica-se o regime jurídico não-privatista porque, na dicção de Celso Antônio Bandeira de Mello, os serviços concedidos estão “inamovivelmente sediados na esfera pública, razão porque não há transferência da titularidade dos serviços para o particular” .

Como em qualquer outra concessão pública, também na outorga do serviço de radiodifusão o concedente dispõe de uma série de “poderes-deveres” em face do concessionário, dentre os quais o poder regulamentar e o poder de aplicar sanções administrativas ao concessionário inadimplente.

Como já visto, a emissora Ré vem reiteradamente descumprindo as seguintes normas regulamentares, de natureza cogente, que incidem sobre a concessão:

a) o artigo 221 da Constituição, que obriga as concessionárias a respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família;

b) o artigo 53 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei Federal n.º 4.117/62), que tipifica, como infração administrativa, o emprego da concessão para “incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias”, “veicular notícias falsas, com perigo para ordem pública, econômica e social” e “ofender a moral familiar pública ou os bons costumes” ;

c) o artigo 28 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto Presidencial nº 52.795/63) que obriga as concessionárias a “subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão” e a “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

As sanções administrativas para a concessionária faltosa estão tipificadas no art. 59 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei Federal n.º 4.117/62). São elas: a) multa até o valor de NCr$ 10.000,00; b) suspensão, até 30 (trinta) dias; e c) cassação da concessão.

A pena de cassação da concessão pública – isto é, a rescisão unilateral do contrato celebrado – é cabível nas hipóteses elencadas no art. 64 do mesmo Código, dentre elas, “a infringência do artigo 53” (acima citado) e a “reincidência em infração anteriormente punida com suspensão”.

Além de infringir as alíneas “a”, “h” e “j” do art. 53 do Código Brasileiro de Telecomunicações, a emissora ré também cometeu – e continua cometendo – o crime de injúria contra as pessoas que participam das “pegadinhas”, crime esse tipificado no art. 22 da Lei 5.250/65.


Ora, o art. 63, alínea “b”, do Código Brasileiro de Telecomunicações autoriza a imposição da pena de suspensão justamente na hipótese de infração à Lei Federal n.º 5.250/67. Como a Ré é reincidente nessa infração, também é cabível a aplicação da pena de cassação da concessão, com fundamento no art. 64, alínea “b”, do mesmo Código.

Ocorre que a Constituição brasileira excepcionou, no art. 223, § 4º, a regra geral que faculta à Administração Pública o poder de “cancelar” [rectius: rescindir unilateralmente] os contratos de concessão do serviço público de radiodifusão. Segundo a norma constitucional, “o cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, DEPENDE DE DECISÃO JUDICIAL”.

O que se está a pleitear a Vossa Excelência, portanto, é a RESCISÃO JUDICIAL do contrato de concessão do serviço de radiodifusão, celebrado entre a União e a emissora Ré.

O fundamento do pedido de desconstituição da relação jurídica é o reiterado inadimplemento, pela concessionária ré, das normas regulamentares de caráter cogente que incidem sobre a prestação do serviço.

Trata-se, convém repetir, de sanção administrativa tipificada no art. 64 do Código Brasileiro de Telecomunicações, cuja imposição só pode ser feita mediante decisão JUDICIAL definitiva. Daí a razão do pedido.

SÍNTESE DOS PEDIDOS FORMULADOS E REQUERIMENTOS FINAIS

Em síntese, Excelência, os Autores estão em juízo para pedir:

A concessão de TUTELA ANTECIPATÓRIA INIBITÓRIA DE EFEITOS NACIONAIS para, com fundamento no art. 461 do Código de Processo Civil:

ORDENAR QUE OS RÉUS SE ABSTENHAM DEFINTIVAMENTE DE EXIBIR O PROGRAMA “TARDE QUENTE” E O QUADRO “PEGADINHAS”, NELE VEICULADO;

ORDENAR QUE A EMISSORA RÉ EXIBA, À TÍTULO DE CONTRAPROPAGANDA, DURANTE 60 (SESSENTA) DIAS, NO MESMO VEÍCULO, LOCAL, ESPAÇO E HORÁRIO DA TRANSMISSÁO IMPUGNADA, OS PROGRAMAS DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS PRODUZIDOS E/OU INDICADOS PELOS AUTORES DA AÇÃO;

PARA TORNAR EXEQUÍVEL A MEDIDA REQUERIDA NO ITEM ANTERIOR, ORDENAR QUE OS RÉUS SEJAM COMPELIDOS A FORNECER A ESTRUTURA E O PESSOAL TÉCNICO NECESSÁRIO (câmeras, operadores de áudio e de vídeo, cabos, técnicos de iluminação, eletricistas, operadores de VT etc.) E TAMBÉM A PAGAR OS CUSTOS DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO, ATÉ O LIMITE DE R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), POR PROGRAMA;

ORDENAR QUE O ÓRGÃO DA UNIÃO FEDERAL COMPETENTE (a Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações) proceda ao IMEDIATO MONITORAMENTO DOS DEMAIS PROGRAMAS EXIBIDOS PELA EMISSORA RÉ, sobretudo aqueles arrolados no “ranking da baixaria”, periodicamente divulgado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados;

DETERMINAR A IMPOSIÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA DIÁRIA, em valor não inferior a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), com fundamento no art. 461, § 4º, do Código de Processo Civil, PARA A HIPÓTESE DE DESCUMPRIMENTO DAS ORDENS JUDICIAIS REQUERIDAS NOS ITENS ANTERIORES;

2. A CONDENAÇÃO DOS RÉUS REDE TV e JOÃO KLEBER, SOLIDARIAMENTE, ao PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO, POR DANOS MORAIS COLETIVOS NO VALOR DE R$ 20.000.000,00 (VINTE MILHÕES DE REAIS), acrescidos de juros moratórios e correção monetária a partir da citação;

3. A RESCISÃO JUDICIAL DO CONTRATO DE CONCESSÃO DO SERVIÇO DE RADIODIFUSÃO, CELEBRADO ENTRE A UNIÃO E A EMISSORA RÉ.

Requerem, ainda:

a) A DISTRIBUIÇÃO URGENTE desta inicial;

b) A ISENÇÃO do pagamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nos termos do que dispõe a Lei Federal n.º 7.347/85;

c) A INTIMAÇÃO DA UNIÃO FEDERAL para, se quiser, integrar a presente lide, na posição de litisconsorte ativa, como lhe faculta o art. 5º, § 2º, da Lei 7.347/95, caso concorde com os pedidos aqi formulados;

d) A CITAÇÃO dos Réus para, querendo, contestar a presente ação, pena de, assim não o fazendo, sofrerem os efeitos da revelia;

e) A INTIMAÇÃO PESSOAL dos representantes do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, nos termos do que dispõe o art. 236, § 2º, do Código de Processo Civil.

Protestam os Autores provar os fatos alegados por todos os meios admitidos no Direito, notadamente a juntada de documentos, a oitiva de testemunhas, e a realização de perícias e inspeções judiciais.

Dá-se à presente causa o valor de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 24 de outubro de 2005.

SERGIO GARDENGHI SUIAMA

Procurador Regional dos Direitos do Cidadão

Procurador da República

ADRIANA DA SILVA FERNANDES

Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão

Procuradora da República

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