Conflito ambiental

Justiça decide entre preservação da natureza e da cultura

Autor

23 de outubro de 2005, 6h00

A preservação da cultura dos povos indígenas deve se sobrepor à preservação do patrimônio ambiental. Mas, os índios só têm direito a permanecer em área de preservação ambiental se comprovarem vínculo passado com as terras. Esse foi o entendimento do juiz Alfredo Silva Leal Júnior, da Justiça Federal no Rio Grande do Sul ao decidir sobre um conflito a respeito da ocupação do Parque Natural do Morro do Osso entre os índios Kaingang e o município de Porto Alegre.

O conflito entre os dois direitos constitucionais foi suscitado em ação do município de Porto Alegre, que pedia a remoção do grupo indígena Kaingang do Parque Natural do Morro do Osso. Os índios ocupam o lugar desde o início de 2004. Na Justiça, já tramita uma ação da comunidade pedindo para ter reconhecido seu direito à posse das terras.

Em caráter liminar, Leal Júnior determinou que, em 30 dias, os índios deixem o local. À prefeitura, ele ordenou que se responsabilize por alojar a comunidade em um local apropriado, com rede de água, luz e escola bilíngüe. Esta foi a segunda vez que a liminar foi analisada. Na primeira, os índios ficaram proibidos de construir novas edificações no local e foi determinada a destruição das já construídas. O juiz, então, solicitou o parecer da Funai — Fundação Nacional do Índio e obteve mais informações sobre a origem dos Kaingang e da terra.

Fundamentação

A principal questão do juiz era decidir qual direito deveria prevalecer: a preservação ambiental ou do patrimônio cultural. O artigo 225, da Constituição Federal, estabelece como direito de todos a garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Já os artigos 215 e 216 da Constituição estabelecem o direito ao patrimônio cultural nacional, ou seja, à memória dos grupos que formaram a sociedade brasileira. A opção foi pelo segundo. “O direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam (estabelecido pelo artigo 231 da Constituição) tem autonomia constitucional e se sobrepõe aos demais direitos constitucionais reconhecidos”, considerou o juiz Leal Júnior.

Uma vez decidido isso, restou ao juízo comprovar se as terras em questão eram tradicionalmente ocupadas pelo grupo indígena.

Pelo parágrafo 1º do artigo 231, “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Portanto, no entendimento do juiz, devem estar presentes todas as condições definidas pela lei para que a terra seja considerada tradicionalmente dos índios, e não apenas uma.

Para Leal Júnior, tem de haver o vínculo passado da comunidade indígena com a terra, e não apenas a necessidade presente e futuro. Após a análise de todos os estudos apresentados pelas partes, o juiz não pode reconhecer o vínculo passado dos índios com a terra. Os Kaingang afirmam que, no local, existe um cemitério dos seus antepassados. Para Leal Júnior, no entanto, isso não ficou comprovado. E, pelo material apresentado, se realmente existe um cemitério nas terras, não é da comunidade Kaingang, e sim dos índios guaranis. O vínculo com a terra, segundo ele, tem de ser da comunidade específica, e não dos índios como um todo.

“Mesmo que a terra seja indígena, sua retomada deve observar o devido processo legal e não está nenhuma comunidade indígena autorizada a invadir o que ainda não foi declarado como sendo terra tradicional indígena”, entendeu Leal Júnior.

Além disso, segundo o juiz, a permanência dos índios no lugar pode trazer riscos ambientais e também à integridade dos índios, agentes públicos municipais e moradores, que constantemente entram em conflito. A área, que faz parte do bioma Mata Atlântica, também tem sua preservação garantida pelo parágrafo 4º do artigo 225 da Constituição federal.

Assim, já que não existem indícios de vínculo passado dos Kaingang com as terras e considerando os possíveis danos, o juiz Leal Júnior determinou que a comunidade indígena sai da área em até 30 dias. O município deve fazer o transporte das pessoas e de seus pertences e instalá-los em local adequado até a decisão do mérito da questão.

Leia a íntegra da decisão

CONCLUSÃO

Faço estes autos conclusos ao(a) Juiz(íza) Federal.

Em 17/10/2005

p/Diretor(a) de Secretaria _________________

INTERDITO PROIBITÓRIO Nº 2005.71.00.023683-6/RS

AUTOR: MUNICIPIO DE PORTO ALEGRE

ADVOGADO: JOSE LUIZ ALIMENA

RÉU: COMUNIDADE INDIGENA KAIGANG DO MORRO DO OSSO DE PORTO ALEGRE RS

ADVOGADO: LUIZ FRANCISCO CORREA BARBOSA

ASSISTENTE: FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO – FUNAI


1. RELATÓRIO:

Trata-se de ação possessória ajuizada pelo MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE contra COMUNIDADE INDÍGENA KAIGANG DO MORRO DO OSSO DE PORTO ALEGRE, assistida pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO — FUNAI, em que se discute sobre a retirada da Comunidade Indígena da área que ocupa nas proximidades do Morro do Osso em Porto Alegre.

Na petição inicial (fls. 02-08), acompanhada de documentos (fls. 09-14), o Município alega que é legítimo proprietário da área ocupada, onde implantou o Parque Natural do Morro do Osso, criado por lei complementar municipal. Diz que a comunidade indígena ocupa indevidamente a área, recusando-se a sair e construindo edificações no local. Diz que os limites do parque foram invadidos, que não são respeitados os agentes públicos municipais, que há constante ameaça de invasão e construção de outras edificações dentro do parque. Diz que é cabível interdito proibitório com base na legislação processual civil. Pede a concessão de liminar para “que o(s) réu(s) e demais ocupantes que possam se encontrar no local quando cumprida a medida, se abstenham de quaisquer atos turbativos ou esbulhativos no imóvel do autor, anteriormente descrito, podendo ser demolidas as construções feitas dentro do Parque Natural do Morro do Osso” (item A de fls. 07). Pede a procedência da ação, “com a confirmação do mandado liminar, e a condenação do(s) réu(s) ao pagamento das custas processuais, honorários de advogado e perdas e danos a serem apurados em liquidação de sentença” (fls. 08).

No despacho inicial (fls. 15-16), esse Juízo determinou distribuição por dependência ao processo 2004.71.00.021504-0 e intimação do Município para emendar a petição inicial e justificar previamente o alegado.

Em emenda à petição inicial (fls. 19-20), acompanhada de outros documentos (fls. 21-41), o Município mostrou a situação fática atualmente existente na área, bem como requereu providências para a retirada imediata da Comunidade Indígena do local e para o imediato desfazimento das construções realizadas.

Em despacho de recebimento da petição inicial (fls. 43-46), esse Juízo entendeu que o Município veiculava pretensão de interdito proibitório e de reintegração na posse, assim recebendo a petição inicial. Também entendeu que estavam presentes circunstâncias especiais, que recomendavam que a medida liminar somente fosse examinada após a resposta da parte ré, a manifestação da FUNAI e o parecer do Ministério Público Federal.

A Comunidade Indígena foi citada (fls. 48). Intimada em nome da FUNAI, a Procuradoria Regional Federal da 4ª Região informou que havia encaminhado a intimação à Procuradoria da FUNAI (fls. 49). Posteriormente (fls. 63-67), a FUNAI alegou que a Comunidade Indígena se encontra instalada no local desde o início desde 2004, que não se trata de posse nova e que a FUNAI tem interesse em intervir, requerendo então o indeferimento da liminar e sua intervenção como assistente da parte ré.

Em petição de reconsideração (fls. 51-53), com outros documentos (fls. 54-59), o Município alegou urgência na apreciação da medida liminar, especificou a situação fática existente e requereu reconsideração quanto ao imediato exame da liminar.

Em decisão de reconsideração (fls. 68-73), esse Juízo determinou que a FUNAI esclarecesse sobre sua representação processual; conheceu parcialmente do pedido de reconsideração feito pelo Município; e, considerando a situação de urgência agora comprovada nos autos, deferiu parcialmente medida liminar em favor do Município tão-somente para: “(a) impedir que novas construções sejam feitas ou edificadas no interior do Parque do Morro do Osso ou no local atualmente ocupado pela Comunidade Indígena que ocupa o pólo passivo; (b) determinar àquela Comunidade Indígena que se abstenha de fazer novas construções ou edificações naquelas áreas, sob pena das mesmas serem compulsoriamente removidas; (c) determinar a retirada e remoção da construção localizada no interior do Parque do Morro do Osso (aquela casa solitária da foto de fls. 54, marcada com uma seta vermelha, na parte inferior da foto, distante da cancela), a ser cumprida por Oficial de Justiça passadas pelo menos 48 horas da intimação da parte ré quanto à presente decisão, com fornecimento dos recursos e dos meios materiais necessários pelo Município de Porto Alegre e com requisição de força pública se assim se fizer necessário, respeitando-se as normas legais e constitucionais vigentes para essa espécie de medida; (d) fixar multa diária de R$ 100,00 por dia de descumprimento do interdito proibitório aqui determinado, caso sejam feitas novas construções pela Comunidade Indígena no interior ou no entorno do Parque do Morro do Osso” (item 4 de fls. 71-72).


Foram feitas as intimações necessárias (fls. 76-79). A Procuradoria Regional Federal da 4ª Região prestou esclarecimentos sobre sua atuação no processo e alegou que não representa a FUNAI em questões indígenas (fls. 80-81). O Município requereu diligências para vistoria do local ocupado (fls. 86-87). A Comunidade Indígena, em carta manuscrita, informou que cumpriu a liminar e retirou a construção do interior do Parque (fls. 90-91).

Em despacho de saneamento (fls. 92-96), esse Juízo reconheceu cumprida a liminar quanto à retirada da construção; indeferiu o pedido de vistoria feito pelo Município; e representou ao Ministério Público Federal quanto à representação da FUNAI no Estado do Rio Grande do Sul.

Foram feitas as intimações e comunicações necessárias (fls. 98-108). Decorreu o prazo sem contestação pela parte ré (fls. 109-v). O Ministério Público Federal requereu prorrogação de seu prazo (fls. 110), o que foi deferido (fls. 113). O Município requereu fosse requisitado à FUNAI o laudo realizado sobre a área do Morro do Osso (fls. 112). A FUNAI peticionou (fls. 114-119 e 121-126), tecendo considerações sobre o art. 231 da CF/88, sobre o processo demarcatório de terras indígenas e sobre as providências que teria adotado quanto ao Morro do Osso, requerendo ao final o indeferimento da liminar e a improcedência da ação.

Em contestação intempestivamente apresentada (fls. 127-129 e 227-v), com documentos (fls. 130-131), a Comunidade Indígena comunicou o cumprimento da liminar desse Juízo e reportou-se ao que já havia apresentado e alegado na ação ordinária, contestando por negação os fatos imputados pelo Município e requerendo a assistência judiciária gratuita.

Foi apresentado parecer pelo Ministério Público Federal (fls. 132-180), com juntada de documentos (fls. 181-226), em que alega que nenhuma liminar possessória poderia ser deferida contra a Comunidade Indígena sem prévia audiência da União Federal. No mérito, alega que a ação deve ser julgada improcedente porque a ocupação indígena na área deve ser mantida, como vem ocorrendo desde abril de 2004, sendo que “tal reivindicação encontra fundamento mormente pela existência de um cemitério indígena na área, bem como por relatos de antepassados que noticiam a ocupação indígena naquele local” (fls. 141). Reporta-se ao que foi apresentado por Analista Pericial em Antropologia e por Estagiário em Antropologia do MPF, sobre a territorialidade vista da perspectiva das comunidades indígenas. Diz que a posse indígena não se confunde com a posse civil, possuindo aquela características próprias e constitucionalmente previstas. Examina textos constitucionais, doutrina, jurisprudência e tratados internacionais. Fundamenta seu parecer em direitos fundamentais, na dignidade da pessoa humana, e nas conclusões apresentadas pelos trabalhos antropológicos realizados pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais — NIT — da UFRGS. Especialmente quanto a esses últimos, que junta como documentos, diz que os mesmos são suficientes para comprovar a natureza indígena da área e o direito da Comunidade Indígena a nela permanecer. Diz que é imprescindível que a FUNAI realize um estudo demarcatório para verificar se a área do Morro do Osso constitui efetivamente terra tradicionalmente ocupada pelos índios nos termos do art. 231 da CF/88, concluindo que “não se pode de modo algum se determinar a retirada da Comunidade Indígena Kaingang do local sem antes ter-se segurança jurídica para tanto. E se realmente o Morro do Osso constitui terra indígena de acordo com os ditames constitucionais? Em se verificando posteriormente que para tal questionamento a resposta é afirmativa, ao proceder-se ao despejo dos integrantes da Comunidade Indígena no local, no presente momento, estar-se-ia cometendo-se uma atrocidade sem proporções, tolhendo-se um direito fundamental. Ao despejá-los sem um mínimo de prova contrária aos seus anseios, sem ao menos verificar se a permanência àquela terra teria respaldo em ocupação tradicional, estaria se negando vigência ao texto constitucional” (fls. 170). Diz que somente a FUNAI poderá realizar o processo demarcatório para investigar a natureza indígena da área ocupada. Diz que o relatório preliminar elaborado pela FUNAI (Informação n. 18/CGID, de 29/06/05), que não logrou uma posição conclusiva sobre a tradicionalidade da ocupação indígena, não ser aceito porque: (a) não encontra respaldo no ordenamento jurídico porque não está previsto na regulamentação da FUNAI; (b) não se baseou “nos elementos etnográficos, arqueológicos e na questão da ancestralidade consubstanciada na presença de cemitério indígena, os quais foram avaliados pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais — NIT da UFRGS” (fls. 173); (c) é precário e não foi realizado por um grupo técnico e multidisciplinar; (d) foi realizado em viagem de poucos dias a Porto Alegre, atendendo apenas a demandas governamentais e desatendendo à autodeterminação dos povos indígenas (fls. 173-177). Diz que a liminar possessória não poderá ser deferida porque a ocupação já ocorre há mais de ano e dia, e a posse da Comunidade Indígena é velha para os fins do Código de Processo Civil. Pede a intimação da União, a designação de audiência, o indeferimento do restante da liminar e a improcedência da ação. Junta documentos, entre os quais Relatório Antropológico Complementar pelo NIT-UFRGS (fls. 181-197), correspondência para a FUNAI assinada por Ana Elisa de Castro Freitas (fls. 199-201), Nota técnica de relatório arqueológico assinado por Sérgio Baptista da Silva (fls. 202-206), e atas de reunião do MPF (fls. 207-226).


Foi apresentada petição pelo Município (fls. 229-231), juntando documentos (fls. 232-268), dentre os quais o relatório preliminar feito pela FUNAI quanto à ocupação indígena no Morro do Osso (Informação nº 18/CGID, de 29/06/05 — fls. 242-268). Também alegou que está havendo descumprimento da liminar e pediu providências quanto à imediata desocupação da área e reintegração do Município na respectiva posse.

Em despacho de saneamento (fls. 288-294), esse Juízo deferiu a intervenção da FUNAI como assistente simples da Comunidade Indígena; manteve nos autos a resposta da Comunidade Indígena e deixou de lhe aplicar os efeitos materiais da revelia; determinou a intimação da União Federal como havia requerido o MPF; indeferiu o requerimento do MPF quanto à aplicação do art. 928-§ único do CPC; determinou a intimação da Comunidade Indígena para que se manifestasse sobre as alegações de descumprimento da liminar; e designou audiência para tentativa de conciliação. Foram adotadas as providências e feitas as comunicações necessárias (fls. 295-306).

Em 06/10/05 foi realizada audiência de tentativa de conciliação (fls. 307-310), em que compareceram e se manifestaram as partes, a FUNAI e o Ministério Público Federal. O Município manteve a proposta que havia extrajudicialmente apresentado, nesses termos: “que mantinha a proposta de desapropriação de uma área de 10 hectares no Canta Galo para que a Comunidade fosse ali provisoriamente alojada, dotando-a de infra-estrutura semelhante a da Lomba do Pinheiro, com construções e escola bi-língue para a comunidade; que a aceitação dessa área não implicaria desistência quanto a ação ordinária ajuizada pela Comunidade; que a aquisição dessa área estaria em negociação e somente poderia ser realizada pelo Município, por envolver desapropriação, se houvesse acordo nessa ação possessória, com desocupação total da área do Morro do Osso” (fls. 308). A Comunidade Indígena, por seu procurador e pelo seu Cacique, manifestou-se na audiência, não aceitando os termos da proposta e preferindo aguardar o julgamento da ação ordinária. A FUNAI e o Ministério Público Federal também puderam se manifestar. Também foi apresentada petição pela Comunidade Indígena, manifestando não aceitar a proposta do Município e juntando nota para a opinião pública que havia divulgado em junho de 2005.

Foi assegurado o acesso às partes e interessados aos autos, determinando que os mesmos permanecessem até às 18h de 10/10/05 na Secretaria da Vara, à disposição dos interessados. A União peticionou (fls. 316-318), informando que não tinha interesse em intervir no processo. Foram encaminhados a esse Juízo e juntados aos autos manifestação do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (fls. 272-287 e 319-332), dando conta de danos ambientais que causados ao Parque Natural do Morro do Osso, e manifestação da Associação dos Moradores do Sétimo Céu (fls. 333-393), dando conta da inconformidade dos moradores do bairro com a ocupação indígena no local. O Município peticionou (fls. 394), reiterando seus pedidos quanto ao deferimento de liminar possessória e alegando que estão sendo causados prejuízos ao meio ambiente e aos moradores de Porto Alegre. A Comunidade Indígena também peticionou (fls. 395-396), alegando não estar descumprindo a liminar e requerendo o desentranhamento de documentos e manifestações dos autos.

Como determinado em audiência, vieram conclusos. É o relatório. Decido.

2. FUNDAMENTAÇÃO:

Sobre os interesses envolvidos, dois interesses constitucionalmente relevantes entram em choque na ocupação indígena do Morro do Osso. De um lado, está a tutela do patrimônio ambiental, que é direito de todos (art. 225-caput da CF/88) e que tem nos remanescentes da Mata Atlântica um patrimônio nacional (art. 225-§ 4º da CF/88). De outro lado, estão a proteção ao patrimônio cultural nacional quanto à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (arts. 215-216 da CF/88) e o reconhecimento do direito originário das comunidades indígenas às terras que tradicionalmente ocupam (arts. 231-232 da CF/88). Sociedade e natureza, meio ambiente e cultura se entrechoquem nessa disputa pelo que representa a área onde se localiza o Parque Natural do Morro do Osso dentro da zona urbana de Porto Alegre.

De um lado, existe um grupo de pessoas lutando pela preservação de sua cultura e de sua memória Kaingang. Buscam espaços para continuarem a reproduzir suas práticas vivenciais e religiosas, defendendo suas crenças e suas necessidades espirituais, históricas, coletivas. Essas pessoas compõem a Comunidade Indígena Kaingang que figura no pólo passivo dessa ação, provenientes do Espaço de Sustentabilidade na Lomba do Pinheiro. Buscam um espaço para sobreviver e ter uma esperança de futuro. Essas pessoas mantêm suas tradições imemoriais e suas práticas xamânicas, próprias de sua cultura (CRÉPEAU, Robert R. A prática do xamanismo entre os Kaingang do Brasil Meridional: uma breve comparação com o Xamanismo Bororo. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 8, nº 18, pp. 113-129, dezembro de 2002; SILVA, Sergio Baptista da. Dualismo e cosmologia Kaingang: o xamã e o domínio da floresta. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 8, nº 18, pp. 189-209, dezembro de 2002; SILVA, Sergio Baptista da. Etnoarqueologia dos Grafismos Kaingan: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. Tese de doutorado apresentada ao PPGAS da FFLCH da USP. São Paulo, junho de 2001), necessitando desses espaços para preservação de seus conhecimentos e reprodução de sua cultura (arts. 215-216 e 231 da CF/88). Percorreram um longo caminho até chegar à Lomba do Pinheiro, e de lá resolveram ir adiante, reivindicando a terra que acreditam lhes pertencer histórica e espiritualmente. Foram conduzidas ao Morro do Osso por seus guias espirituais, por seus líderes políticos e pelos grupos sociais que lhes dão apoio, como por exemplo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT-UFRGS). Mesmo depois de retirados de dentro do Parque Municipal pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 2004, continuam nos limites do Parque, em via pública, onde inclusive ergueram construções e casas, insistindo em reivindicar aquela terra como sendo originária e tradicionalmente sua. Esse empenho em buscar terra e espaço para se preservarem culturalmente é inerente ao grupo Kaingang, cuja história é pautada por lutas e enfrentamentos com os colonizadores brancos (BECKER, Ítala Irene Basile. O que sobrou dos índios pré-históricos do Rio Grande do Sul. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 334-337) e entre os próprios grupos internos aos Kaingangs (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Enciclopédia dos Povos Indígenas do Brasil. Verbete “Kaingang”, p. 18. Obtido em: www.socioambiental.org/pib/epi/kaingng. Acesso em: 18.07.2005). As terras tradicionais são importantes para esse grupo indígena, que continua partilhando um registro mitológico comum e compartilhando crenças e práticas acerca de suas experiências rituais, mesmo que os grupos tenham se dispersado: “o profundo respeito aos mortos e o apego às terras onde estão enterrados seus umbigos são expressões incontestáveis do valor estruturante da cosmologia para estes índios” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Enciclopédia dos Povos Indígenas do Brasil. Verbete “Kaingang”. Obtido em: www.socioambiental.org/pib/epi/kaingng. Acesso em: 18.07.2005). O culto relacionado com os mortos, que depende dessas terras tradicionais, “é a expressão mais saliente da cultura espiritual dos Kaingang“, com grande influência na vida do grupo (BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1995, p. 263). O lugar onde estão enterrados os antepassados desempenha papel relevante na vida dessas comunidades porque “o lugar do enterramento significa a porta invisível que liga um dos planos do mundo Kaingang a outro; o nível terreno e mortal ao subterrâneo, nível mítico do mundo dos ancestrais” (VEIGA, J. Cosmologia e práticas rituais Kaingang. Tese de doutorado apresentada na UNICAMP, 2000, p. 227). Ou seja, essa luta pelas terras ancestrais é importante para a comunidade indígena porque delas dependem seus cultos e suas práticas, contribuindo para o fortalecimento de sua cultura e preservação de sua identidade.


De um outro lado, existem pessoas interessadas na preservação do Morro do Osso como Parque Natural, conforme sua destinação por lei municipal. O primeiro desses interessados é o atual proprietário da área, o Município de Porto Alegre, que figura como autor nessa ação possessória. Mas moradores de Porto Alegre e do entorno, e também os ambientalistas defendem a preservação daquele local como unidade de conservação. A motivação dessas pessoas se prende à riqueza e à biodiversidade lá existentes, sendo aquela área remanescente do bioma Mata Atlântica, constitucionalmente protegida como patrimônio nacional (art. 225-§ 4º da CF/88), com uma peculiaridade importante: localiza-se dentro da cidade, é um “santuário dentro da cidade”. É suficiente passar os olhos pela publicação feita anos atrás pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre (MIRAPELHETE, Simone Rodrigues (coord. e org.). Flora e Fauna do Parque Natural Morro do Osso. Porto Alegre: SMAM, 2001) para se compreender os motivos do empenho dessas pessoas. O lugar é rico e tem uma biodiversidade relevante para ser pesquisada, explorada e preservada. Não é à-toa que essa área é tida como “santuário cercado pela cidade” (Atlas Ambiental de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998, p. 80).

São esses interesses constitucionalmente relevantes, mas contrapostos, que fazem tão-discutida a questão da permanência indígena Kaingang na área do Parque Natural do Morro do Osso em Porto Alegre.

Sobre o equacionamento jurídico da questão indígena no Morro do Osso, são duas ações judiciais que tramitam nesse Juízo Federal, discutindo a permanência indígena Kaingang no Morro do Osso.

A primeira delas, ajuizada em 12/05/2004 e redistribuída a essa Vara Ambiental em 20/05/2005, é o processo 2004.71.00.021504-0. Trata-se da ação ordinária ajuizada pela Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso de Porto Alegre contra o Município de Porto Alegre, contra a Fundação Nacional do Índio e contra a União Federal. É uma ação de cunho reivindicatório, em que a comunidade indígena postula o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena Kaingang na área do Morro do Osso e a demarcação daquela terra em favor da Comunidade. O processo foi saneado por esse Juízo e se encontra pendente de apreciação das provas requeridas pelas partes, sendo que provavelmente se irá determinar o início da instrução probatória naquela ação. Havia pedido de antecipação de tutela pela Comunidade Indígena, postulando que fosse liminarmente reconhecido seu direito à permanência naquela área até julgamento final da ação. Isso foi indeferido pelo Juízo da Vara onde inicialmente tramitou o processo e, posteriormente, a decisão de indeferimento foi ratificada nessa Vara Ambiental quando da redistribuição.

A outra ação, ajuizada em 12/07/2005, é o presente processo (nº 2005.71.00.023683-6). Trata-se da ação possessória ajuizada pelo Município de Porto Alegre contra a Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso de Porto Alegre. A FUNAI intervém como assistente simples da Comunidade Indígena. É uma ação de cunho possessório, em que o Município postula a imediata retirada da Comunidade Indígena do Morro do Osso, inclusive em sede liminar. Esse processo teve a liminar parcialmente apreciada e deferida tão-somente naquilo que era urgente resolver (item 4 de fls. 70-72). O restante da medida liminar (a retirada da Comunidade Indígena e de suas construções do local) ficou para ser definida depois que fosse assegurada ampla defesa e contraditório ao réu, e depois que a Fundação Nacional do Índio, a União Federal e o Ministério Público Federal se manifestassem. Tudo isso foi observado e agora — antes de iniciar a fase de instrução probatória dessa ação possessória — cabe a esse Juízo decidir o restante da medida liminar postulada, isto é, se a Comunidade Indígena pode ou não permanecer no local ocupado até julgamento final da ação ordinária em que postula o reconhecimento do domínio definitivo da área. É disso que tratará essa decisão.

É preciso salientar que o processo envolve o tempo. O devido processo legal envolve o tempo. Até chegarmos a uma decisão final, é preciso que se percorra um determinado caminho procedimental, sendo justamente esse percurso o que legitima a decisão, permitindo a manifestação dos interessados, a produção de provas sobre os fatos relevantes e a discussão dos argumentos de cada uma das partes. O Juiz ouve as partes, examina seus argumentos, pesa o que cada uma traz ao processo e então decide de forma fundamentada, atendendo a pretensão da parte que lhe parecer mais acertada segundo o direito e a justiça.

Tudo isso demanda tempo. Mas nem sempre é possível que o Juiz decida apenas no final do processo. Às vezes, existem questões urgentes surgidas ainda antes ou no curso do processo, que devem ser provisoriamente resolvidas pelo Juiz antes do processo percorrer todo aquele caminho procedimental que conduz à sentença de mérito. Nesses casos, não é possível aguardar. É preciso resolver imediatamente alguma questão urgente. São as então ditas decisões liminares, em que o Juiz examina a questão a partir de uma perspectiva fragmentária e sumária, decidindo provisoriamente com base naquilo que foi produzido até aquele momento e sem prejuízo de posteriormente reexaminar o que foi decidido, quando da sentença final. A equação entre os interesses em conflito será resolvida pelo Juiz ao final, na sentença, mas isso não impede que no curso do processo examine provisoriamente algumas questões urgentes, decidindo sumariamente em favor de uma das partes e contra a outra. A presente decisão sobre liminar possessória é uma dessas hipóteses. As partes não podem ficar sem jurisdição enquanto discutem e produzem provas no processo. Pelas razões que esse Juízo adiante explicita no tópico referente ao periculum in mora, não será possível aguardar o pronunciamento judicial final, após a conclusão de toda instrução probatória. É necessário decidir antes disso. Essa decisão é provisória e envolve a liminar de reintegração na posse requerida pelo Município contra a Comunidade Indígena.


Essa decisão não esgota a causa, não exaure o exame da pretensão das partes. Decide precariamente com base no que consta até esse momento nos autos (aparência do direito). Não impede que os estudos antropológicos prossigam, que seja produzida perícia, que testemunhas sejam ouvidas. Não impede que posteriormente se autorize eventual retorno da Comunidade Indígena àquelas terras do Morro do Osso, se novos elementos probatórios forem trazidos aos autos na instrução probatória. A presente liminar apenas enfrenta de forma sumária e provisória as questões trazidas, procurando preservar ambos os interesses até a decisão final. Essa decisão urgente se justifica porque há uma situação de hostilidade no local da ocupação (conflitos dos ocupantes com a vizinhança e com os agentes públicos municipais) e há uma situação de fragilidade no local da ocupação (impactos produzidos pela ocupação humana sobre a fauna, a flora e o ecossistema local). Tudo isso conduz esse Juízo a enfrentar imediatamente os pedidos de liminar postos nessa ação possessória, mesmo que de forma precária e sumária, sem ainda ter sido realizada toda a instrução probatória.

Sobre as dificuldades para decidir a questão do Morro do Osso, essa não é liminar fácil de ser examinada. Não se trata apenas de interpretar o art. 231 da CF/88 e atribuir o direito respectivo a uma das partes. Não se trata apenas de apreciar questões jurídicas relativas à interpretação de textos normativos. É preciso que o Juiz vá além, fazendo um juízo de probabilidade (de verossimilhança) sobre a ocupação indígena no Morro do Osso, buscando a existência de evidências a favor ou contra a alegada tradicionalidade da ocupação indígena Kaingang sobre aquela área.

Se pudesse optar por isso, esse Juízo gostaria de decidir a respeito apenas na sentença final de mérito, após a produção de todas as provas das partes e de amplo debate sobre as questões fáticas postas pelas partes. Mas, como já dito, isso não é possível. Há um pedido de liminar, que já foi postergado por esse Juízo porque necessitava ouvir a outra parte e os demais agentes que atuam no processo (FUNAI, União, Ministério Público Federal). Foram ouvidos esses interessados, puderam produzir suas alegações e trouxeram alguns elementos probatórios sumários aos autos. E agora é necessário que esse Juízo decida a respeito da liminar, porque há uma situação de perigo na ocupação, que pode resultar em enfrentamentos entre a comunidade indígena e os moradores do entorno da área ocupada, e também existem impactos ambientais causados pela ocupação humana na área do Parque Natural do Morro do Osso.

Além das partes não terem esgotado suas provas nas duas ações (a instrução probatória está apenas iniciando nas duas ações e talvez seja demorado produzir prova a respeito, que envolve estudos antropológicos, etnológicos, arqueológicos, históricos, etc), outras dificuldades são divisadas por esse Juízo.

Por exemplo, está esse Juízo ciente das limitações dos estudos arqueológicos a respeito da ocupação pré-histórica do Rio Grande do Sul: “nosso estado é conhecido, do ponto de vista arqueológico, apenas nos últimos vinte anos. As pesquisas desenvolvidas tiveram que ultrapassar obstáculos pouco conhecidos dos arqueólogos dos países mais desenvolvidos, pois são escassos tanto os recursos financeiros como os humanos. Os limites impostos pela nossa realidade explicam a lentidão inicial das pesquisas” (KERN, Arno A. Introdução. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 19997, pp. 09-10).

Também há o problema da destruição dos sítios arqueológicos, sem que tivessem sido previamente identificados e estudados, como acontece quando se constroem represas de hidrelétricas, se plantam lavouras de monocultura, se constroem estradas e outras práticas semelhantes sem consideração pelo aspecto arqueológico: “Temos, igualmente, a necessidade de conscientizar-nos da proteção destes riquíssimos arquivos documentais que são os sítios arqueológicos, fonte imprescindível para as nossas reconstituições históricas. De maneira preconceituosa e sem a menor consciência, a nossa sociedade investe contra seu próprio passado, ao destruir de maneira irrefletida o seu patrimônio cultural e artístico, histórico ou arqueológico. Insensível e irrefletidamente, aniquilamos seus últimos vestígios e os de sua participação em nossa história. (…) A implantação de redes de estradas de rodagens, a abertura de canais de irrigação, a derrubada das florestas e sua substituição por áreas agriculturáveis, a instalação de barragens e imensos lagos para a produção de energia elétrica, são alguns dos fenômenos antrópicos que têm reduzido a fauna e a flora, modificado o relevo e transformado o clima. (…) Na voragem dessa destruição incontrolável, em flagrante desrespeito às leis de proteção ambiental e patrimonial, estão rapidamente desaparecendo os sítios arqueológicos, ou seja, os arquivos do solo onde se depositaram no passado os vestígios da cultura material de nossos antepassados, tenham sido eles indígenas, negros ou brancos” (KERN, Arno Alvarez. Antecedentes Indígenas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994, pp. 128-130).


Isso foi constatado em estudo específico sobre as ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre: “como foi possível verificar em diversos bairros, um grande sítio pode desaparecer em um dia de trabalho de uma ou duas retro-escavadeiras que extraem solo para aterros. Verificamos, através de investigação e de informações de terceiros, que desde o início da urbanização de Porto Alegre foi comum a retirada de terra das encostas dos morros para aterrar as grandes extensões de várzeas alagadiças por onde atualmente se espraiam vários bairros. De acordo com diversos funcionários da Prefeitura Municipal, a prática mais freqüente era a retirada de lâminas de terra com espessura média de 70 cm, em áreas que com o passar dos anos alcançaram até vários milhares de metros quadrados, justamente nas áreas onde é maior a freqüência dos sítios arqueológicos” (NOELLI, Francisco S. e outros. O mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa, volume 2, nº 1, verão de 1997, p. 217, grifou-se).

Até pouco tempo atrás, não havia cuidado com nossa pré-história, preocupando-se a historiografia tradicional apenas com a ocupação européia do território, como se tudo que tivesse existindo antes não merecesse ser conhecido nem preservado: “a história tradicional, apesar dos matizes ideológicos tão diversos que separam seus autores, ignorou sempre, sob as mais variadas explicações, o genocídio praticado indiscriminadamente contra as culturas indígenas que povoaram nosso estado e a região platina na qual ele se insere. O início do povoamento é sempre apresentado com a chegada dos primeiros açorianos e a partir de uma data limite, a da fundação da cidade de Rio Grande, no estratégico local em que a Laguna dos Patos joga as suas águas no mar. Oculta-se desta forma a existência dos períodos anteriores a esta ‘história lusa’, relativos tanto à ocupação dos grupos de caçadores, coletores, pescadores e horticultores (de 13.000 anos aproximadamente de duração) como ao domínio espanhol instalado aqui nos sécs. XVII e XVIII. Atualmente, a ação antrópica, provocada pelo desenvolvimento de nossa sociedade, está destruindo rapidamente os sítios arqueológicos destas etapas iniciais, sem nenhuma consideração para com um patrimônio histórico que pertence à nação. Isto significa que, após a destruição física dos grupos indígenas que aqui viviam, estamos agora destruindo os últimos vestígios da cultura material que permaneceram. O esforço dos arqueólogos será em vão, na tentativa de recuperar este passado e preservá-lo, se a própria sociedade não impedir a sua destruição indiscriminada” (KERN, Arno A. Introdução. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 19997, pp. 10-11, grifou-se).

Isso se agrava em relação à ocupação pré-histórica de Porto Alegre e seus arredores: “as fontes arqueológicas oferecem pouquíssimos dados sobre a ocupação indígena em Porto Alegre e redondezas. O assunto nunca despertou grande interesse nos pesquisadores, porém, a escassez dos dados não reflete a real presença de sítios de ocupação indígena. A maioria dos pesquisadores presumiu que os sítios indígenas pré-históricos tinham sido destruídos e não desenvolveu projetos na área, conseqüentemente, o Município de Porto Alegre não se beneficiou de projetos arqueológicos sistemáticos, até o início da década de 1990″ (GAULIER, Patrícia Laure. Ocupação pré-histórica guarani no município de Porto Alegre: Considerações preliminares e primeira datação do sítio arqueológico [rs-71-c] da Ilha Francisco Manoel. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira. São Paulo, nº 14/15, 2001-2002, p. 58).

Se em relação aos índios guaranis sua arqueologia é mais fácil de ser escrita (SCHMITZ, Pedro Ignácio. Migrantes da Amazônia: a Tradição Tupiguarani. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 295), o mesmo não se pode dizer quanto à história dos índios kaingangs, sobre os quais muitas dúvidas ainda persistem: “dificilmente os Kaingang seriam capazes de reconstituir a sua história como nós a esboçamos. Este relato, cheio de incertezas e escrito com o uso de uma fantasia controlada por longa experiência de arqueólogo teórico e prático, ainda está longe da verdade sobre o modo de vida e a evolução do grupo, mas representa a formulação mais exata que os dados atuais permitem. Nossa esperança é que novos arqueólogos voltem com novas técnicas e novos métodos aos inumeráveis sítios da Tradição Taquara e construam uma história mais verdadeira e mais útil para a população indígena e branca do estado” (SCHMITZ, Pedro Ignácio; BECKER, Ítala Irene Basile. Os primitivos engenheiros do planalto e suas estruturas subterrâneas: a Tradição Taquara. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 279). Felizmente, muitos estudiosos gaúchos recentemente empreenderam estudos a respeito e lançaram novas luzes sobre o conhecimento dos Kaingans (SILVA, Sergio Baptista da. Etnoarqueologia dos Grafismos Kaingan: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. Tese de doutorado apresentada na USP. São Paulo, junho de 2001; DIAS, Jefferson Luciano Zuch. A Tradição Taquara e sua ligação com o índio kaingang. Dissertação de mestrado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004; BEBER, Marcus Vinícius. O sistema de assentamento dos grupos ceramistas do Planalto Sul-brasileiro: o caso da Tradição Taquara/Itararé. Tese de doutorado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, março de 2004; ROGGE, Jairo Henrique. Fenômenos de fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições cerâmicas pré-históricas no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004, para citar apenas alguns trabalhos acadêmicos a que esse Juízo teve acesso), mas nada se trouxe de concreto relativamente à constatação da presença Kaingang nos arredores de Porto Alegre em tempos remotos, o que muito contribuiria para o equacionamento jurídico dessa liminar.


De tudo isso, repetindo a conclusão de um arqueólogo gaúcho, “não ignoramos, entretanto, as limitações do atual estágio em que se encontram as ciências da História e da Arqueologia, tendo em vista que trabalhamos com apenas amostras das informações arqueológicas e históricas possíveis, e com teorias e modelos que ainda estão sendo testados e substituídos por outros mais eficientes, na medida em que a pesquisa se desenvolve” (KERN, Arno Alvarez. Antecedentes Indígenas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994, p. 127). Mesmo frente àquelas limitações e a outras que sequer são conhecidas por esse Juízo, se deve reconhecer a qualidade do trabalho que pesquisadores e estudiosos vêm realizando nos últimos tempos nas Universidades e instituições gaúchas, buscando redescobrir o Estado e a história de sua gente.

Sobre a responsabilidade do Judiciário, tudo isso foi para dizer que esse Juízo ainda não tem certeza sobre a alegada tradicionalidade da ocupação indígena Kaingang no Morro do Osso. Talvez existam estudos científicos que ainda não vieram aos autos e aos quais esse Juízo não teve acesso pela limitação de seu conhecimento. Talvez novos estudos venham a ser feitos para lançar novas luzes sobre a questão. Talvez os modelos em que esse Juízo se baseia estejam superados por novos estudos e nova produção acadêmica. Tudo isso são possibilidades e esse Juízo não tem certeza conclusiva sobre os fatos que irá decidir, ao menos nesse momento, antes da conclusão da instrução probatória nas duas ações.

Mesmo com essas dificuldades e sem a certeza definitiva — o que esse Juízo é honesto em admitir -, o Poder Judiciário não pode se eximir de decidir as questões urgentes trazidas aos autos pelas partes. A necessidade da decisão, mesmo diante da incerteza, é própria da atividade jurisdicional, que busca resolver conflitos concretos surgidos entre as partes e muitas vezes tem que se basear apenas na probabilidade das aparências para decidir (liminares). É por isso que o art. 126 do CPC estabelece que “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei” e o art. 5º-XXXV da CF/88 eleva à garantia de direito individual a garantia de acesso à justiça, prevendo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Esse é o drama do juiz que nas liminares, mesmo ainda não convencido plenamente da certeza de alguns fatos, precisa decidir naquele momento com base na aparência das coisas e na verossimilhança do direito. Ao contrário dos pesquisadores e estudiosos, que podem postergar a conclusão e realizar mais estudos, o Judiciário precisa decidir (mesmo que provisoriamente) no instante em que os conflitos estão postos, mesmo correndo o risco da História depois provar seu erro. Talvez daqui a alguns anos ou décadas, novos arqueólogos ou antropólogos lancem novas luzes sobre a ocupação humana no Morro do Osso, concluindo de forma diferente daquela que esse Juízo hoje concluiu nessa liminar. Embora isso então prove que esse Juízo estava errado a respeito dos fatos da causa, não significa que a decisão tenha sido equivocada porque a presente liminar não pode se deter diante das múltiplas possibilidades do futuro ou da incerteza do conhecimento sobre o passado, precisa prover para o presente. Precisa equacionar o momento presente, onde um conflito social e um drama humano de graves proporções está instaurado a partir da ocupação indígena no Morro do Osso, com enfrentamentos entre ambientalistas, comunidade local, agentes públicos municipais e comunidade indígena que ali se instalou há mais de um ano. É preciso decidir a respeito agora, pensando no presente e assegurando o futuro para ambas as partes, mesmo que exista o risco desse Juiz ser desmentido futuramente por novos estudos científicos, aos quais então se curvará se isso ainda estiver ao seu alcance (arts. 462 e 463 do CPC).

Esse Juízo está tranquilo para decidir porque os interesses estão adequadamente representados e as partes estão bem acompanhadas. O Município de Porto Alegre conta com zelosos e diligentes procuradores, experientes e conhecedores das vicissitudades das demandas coletivas pela posse da terra urbana. Também conta com Secretários Municipais (Meio-Ambiente e Cidadania) que conhecem seus deveres para com a população porto-alegrense e, principalmente, se empenham na solução do problema decorrente da ocupação. A Comunidade Indígena Kaingang, por sua vez, tem a felicidade de contar com um dos mais habilidosos advogados gaúchos, que já integrou a magistratura, que já integrou o Poder Executivo e que, como poucos, conhece a política e os caminhos do devido processo. Também se percebe, pela leitura das atas de reunião havidas no Ministério Público Federal (fls. 207-226), que a Comunidade Indígena é apoiada por diversas instituições da sociedade civil, dentre as quais se destaca o reconhecido Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT-UFRGS), que encaminhou diversas manifestações a respeito da ocupação indígena no Morro do Osso (fls. 181-206), mostrando um louvável comprometimento com a defesa da causa indígena, assim expressado em suas próprias palavras: “Enquanto órgão de uma Universidade Federal, o NIT tem assumido tais tarefas principalmente porque as comunidades indígenas reconhecem em nosso trabalho competência e real comprometimento com a causa pública, entendida pelos parâmetros pluriétnicos e multiculturais promulgados pela Constituição Federal de 1998. A necessidade de assumir o compromisso de produzir este documento sobrecarrega nossa rotina de trabalho, sobretudo quando se constata que isto acontece em decorrência da falta de comprometimento e inoperância das instâncias federais oficialmente responsáveis pela condução administrativa da regularização das terras indígenas” (fls. 182). Há também o trabalho incansável do Ministério Público Federal, através do Ofício das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas, manifestando-se de forma fundamentada e efetiva nos autos. Tudo isso leva esse Juízo a concluir que a Comunidade Indígena e o Cacique Jaime não estão sós na sua luta, ao seu lado estando o conhecimento antropológico proporcionado pelo NIT-UFRGS, a habilidade do advogado que os representa e a operosidade do Ministério Público Federal. Isso deixa esse Juiz tranquilo (art. 125-I do CPC) porque seus erros certamente serão apontados pelos prejudicados pela decisão e serão corrigidos pelo duplo grau de jurisdição no TRF4ªR.


Esse Juízo fala em erros porque existem limites à cognição judicial no caso dos autos. Esses erros podem provir, quem sabe, da singularidade inerente ao objeto da lide, que apresenta dificuldades relativas às limitações do conhecimento e da pesquisa arqueológica, antropológica, etnológica, histórica, como já foi antes apontado. Podem provir da má-interpretação da ciência e dos conhecimentos técnicos por esse Juízo, que não é antropólogo, não é sociólogo, não é arqueólogo, não é historiador. Podem provir de preconceitos inconscientes desse Juiz, como aponta o documento do NIT-UFRGS: “a disputa em torno do Morro do Osso se configura como mais um exemplo de construção ideológica pretensamente ambientalista, mas que tem por motivação o preconceito étnico e o interesse privado sobre espaços de ocupação tradicional indígena, que vêm sendo gradativamente transformados em área urbana” (fls. 182). Esse Juiz não tem interesse privado sobre a área em questão, mas é possível que sua visão de mundo esteja inconscientemente contaminada por algum desses preconceitos apontados, ou talvez pelo preconceito de acreditar que o Judiciário deve ser imparcial, deve se manter eqüidistante das partes, e deve decidir os fatos segundo o direito aplicável, sem que sobre muito espaço para legislar segundo a vontade do julgador.

Se o Juiz pode cometer erros, é preciso deixar espaço para que as partes corrijam esses erros, produzindo alegações e apresentando recursos. O primeiro cuidado esse Juízo já observou quando relegou o exame da liminar para momento posterior à resposta do réu e à intervenção da FUNAI, da União e do Ministério Público Federal. Permitiu que fosse exercida ampla defesa pela Comunidade Indígena, evitando uma liminar sem audiência da parte contrária (salvo naquilo que era imprescindível para reduzir o conflito no local, com a retirada de uma construção dentro da área do parque, o que foi cumprido espontaneamente pela própria Comunidade Indígena numa demonstração da forma honesta como vem deduzindo em juízo sua pretensão reivindicatória). Para a população diretamente interessada na retirada imediata da Comunidade Indígena do Morro do Osso talvez pareça exagero desse Juízo não ter ainda decidido a liminar quando a ação possessória foi ajuizada em julho de 2005. Afinal, já se está em outubro de 2005, passaram-se mais de três meses, e o Judiciário ainda não decidiu a liminar. Mas o próprio Município de Porto Alegre demorou mais de um ano para ajuizar a ação possessória e esse Juízo não poderia decidir uma questão com tantas implicações culturais e urbanas sem assegurar o direito de resposta ao réu e sem ouvir, ao menos, o Ministério Público Federal e a Fundação Nacional do Índio. Esse foi o primeiro cuidado que esse Juízo tomou para decidir: observou o devido processo legal e respeitou os direitos constitucionais do réu, dando-lhe oportunidade de se manifestar.

O segundo cuidado deve ser tomado agora, ao decidir. É preciso assegurar o direito de acesso ao duplo grau de jurisdição ao vencido nessa liminar. É preciso permitir que o recurso que contra ela possa ser interposto possa ter um resultado útil, a tempo de evitar o cumprimento da ordem judicial se ela tiver sido reformada pelo Tribunal. Para isso, é preciso fundamentar adequadamente a decisão, explicitando todos os elementos de que se valeu esse Juízo para a decisão, e é preciso assegurar um prazo razoável para o cumprimento da eventual decisão de reintegração. Esta se explica por si mesma: não é viável o cumprimento imediato da decisão, sem prazo útil para interposição de agravo de instrumento pelos interessados. Aquela consiste na fundamentação honesta da decisão, permitindo que a parte vencida saiba o que motivou a decisão do Juiz e, principalmente, possa controlar eventuais equívocos, preconceitos ou distorções que a visão de mundo do Juiz e as limitações de seu conhecimento tenham causado à parte vencida.

A interpretação do art. 231 da CF/88 e a decisão sobre o pedido de liminar veiculado nessa ação possessória são atribuições constitucionais desse Juízo (art. 109 da CF/88). Seus erros podem ser corrigidos pela juntada de elementos probatórios adequados na instrução ou então mediante o recurso para o TRF4ªR. Esse Juízo tentará da forma mais honesta e completa possível fundamentar sua decisão e explicitar as premissas em que se baseou. Se estiver equivocado, fica tranquilo porque certamente será corrigido pelos estudiosos e pesquisadores que acompanham a Comunidade Indígena nessa ação.

Sobre a liminar em ação possessória, a posse da Comunidade Indígena sobre a área municipal ocupada no entorno do Morro do Osso data de mais de ano e dia. Essa posse já existia quando do ajuizamento da ação ordinária (processo 2004.71.00.021504-0), em 12/05/2004. Portanto, quando ajuizada a ação possessória pelo Município de Porto Alegre, em 12/07/2005, a Comunidade Indígena já tinha posse velha. O art. 924 do CPC estabelece que: “regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação e do esbulho; passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter possessório” (grifou-se). Isso quer dizer que o Município de Porto Alegre, investindo contra posse velha da Comunidade Indígena, não poderia contar com o deferimento da liminar do art. 928-caput do CPC, que prescinde da audiência da parte contrária e da comprovação de qualquer situação de risco. Por isso, não foi examinada de plano toda a liminar possessória por esse Juízo quando do recebimento da petição inicial.


Isso não significa, entretanto, que na ação possessória contra posse velha não possa ser deferida medida liminar. O art. 924 do CPC não impede a concessão de liminar nessa espécie de possessória, apenas determina que observe o procedimento ordinário (aquele previsto no art. 274 do CPC, que permite o deferimento de liminar de antecipação de tutela do art. 273 do CPC). A diferença entre aquela providência do art. 273 do CPC (antecipação de tutela, cabível na ação possessória contra posse velha) e a do art. 928 do CPC (liminar possessória, cabível na ação possessória contra posse nova) é que esta se contenta apenas com o exame da verossimilhança do direito possessório, enquanto aquela exige junto disso a demonstração de uma situação de urgência ou risco iminente (art. 273-II do CPC).

Portanto, para exame da medida liminar possessória pedida pelo Município de Porto Alegre contra a Comunidade Indígena, esse Juízo deve examinar o duplo requisito do art. 273 do CPC, a saber: a verossimilhança do direito alegado pelo Município de Porto Alegre (fumus boni júris) e a possibilidade de ocorrência de dano irreparável ou de difícil reparação aos interesses envolvidos na discussão (periculum in mora). É isso que passa a ser examinado.

Sobre o fumus boni júris, interessa aqui e agora a aparência do direito. Mais do que a aparência, a verossimilhança do direito: quem parece nesse momento da liminar que vencerá a ação? A resposta a essa questão dispensa o exame das outras normas constitucionais relativas à cultura (arts. 215-216 da CF/88) e ao meio ambiente (art. 225 da CF/88), porque o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam tem autonomia constitucional (art. 231 da CF/88) e se sobrepõe aos demais direitos constitucionalmente reconhecidos. O art. 231-§ 2º da CF/88 não deixa dúvidas quanto a isso, dizendo que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes”. Então, examinando a verossimilhança do direito, esse Juízo deve se preocupar em analisar se a área do Morro do Osso parece ser uma terra tradicionalmente ocupada pelos índios Kaingang que a reivindicam.

Para isso, é imprescindível interpretar o art. 231-§ 1º da CF/88, que contém uma definição para as terras indígenas sujeitas à especial proteção constitucional: “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultura, segundo seus usos, costumes e tradições“. O exame do texto constitucional e de doutrina autorizada permite concluir que “a base do conceito acha-se no art. 231, § 1º, fundado em quatro condições, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha, a saber: 1) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2) serem por eles utilizadas para suas atividades produtivas; 3) serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; 4) serem necessárias a sua reprodução física e cultural, tudo segundo seus usos, costumes e tradições, de sorte que não vai se tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 835, grifou-se).

Esse Juízo concorda com essas conclusões doutrinárias, sendo necessário que as quatro condições estejam presentes e devendo o exame ser feito a partir da cultura indígena, e não da cultura européia ou ocidental. Fosse exigida a visão do colonizador branco, do qual somos descendentes, não estaria havendo reconhecimento de uma sociedade multicultural, como preconizam os arts. 215-216 da CF/88. Estar-se-ia privilegiando a perspectiva das concepções de Brasil de apenas um dos grupos formadores da sociedade brasileira, e estar-se-ia permitindo que um dos outros grupos (indígenas) fosse julgado pela perspectiva daquele (europeus).

Mas isso não significa que o auto-reconhecimento que se deva assegurar às comunidades indígenas chegue a ponto de permitir que escolham as terras que irão ocupar e aqueles que necessitam, como parece decorrer da leitura que doutrina autorizada faz da norma constitucional: “O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 836, grifou-se).


A ocupação tradicional não pode estar condicionada apenas ao auto-reconhecimento e à ocupação futura das terras pelos indígenas. É preciso que exista um vínculo entre passado e futuro, que consista numa relação concreta entre algo efetivamente ocorrido no passado naquela terra em relação à comunidade indígena que a reivindica e a necessidade de ocupação dessa terra como garantia de um futuro para mesma comunidade indígena.

Ou seja, é imprescindível que a terra reivindicada tenha uma relação com o passado da comunidade, seja por ali terem sido feitas práticas culturais, seja porque ali tenham habitado em caráter permanente, seja por existirem vestígios de ocupação imemorial, etc. Mas é preciso também que tenha uma relação com o futuro da comunidade, seja porque dela dependem, seja porque nela podem continuar a reproduzir sua forma de vida e suas tradições, etc.

Os dois elementos (passado e futuro) são necessários para esse reconhecimento no presente. Do contrário, estar-se-ia dando um salvo-conduto para que qualquer área pudesse ser reivindicada por comunidades indígenas a partir da simples alegação de que aquela área interessaria à sua subsistência física, sobrevivência cultural ou manutenção de vínculos comunitários. Bastaria que uma determinada comunidade indígena escolhesse uma dada área do território nacional e então se auto-atribuísse aquela área. Mesmo sem ter nenhuma relação com aquela área, poderia a Comunidade Indígena Kaingang reivindicar para si o Parque Natural do Morro do Osso porque, por exemplo, se trata de área de Mata Atlântica, capaz de fornecer matéria-prima para seu artesanato e permitir suas práticas religiosas e tradicionais.

Isso não parece suficiente a esse Juízo. A necessidade ou desejo de futuro não são suficientes para assegurar a tradicionalidade de uma terra indígena. É preciso existir também um elo com o passado, algo que ligue a comunidade indígena à área reivindicada. No caso dos autos, por exemplo, seria necessária a comprovação da existência de cemitério indígena Kaingang na área do Parque Natural do Morro do Osso, onde estariam enterrados os ancestrais da comunidade indígena que reivindica a terra e que poderia permitir o restabelecimento do contato com seus guias espirituais e suas práticas religiosas.

É indiscutível que a terra é importante para os índios, seja qual for a etnia a que pertençam porque “a questão da terra se transforma no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois, para eles, ela tem um valor de sobrevivência física e cultural. Não se ampararão seus direitos se não se lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas, pois, a disputa dessas terras e de sua riqueza (…) constitui o núcleo da questão indígena hoje no Brasil” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 834, grifou-se).

No caso dos índios Kaingang, a vinculação à terra e a luta por sua conservação, aliado às suas crenças e rituais xamânicos, é característica de sua forma de ser enquanto indígenas. Os Kaingangs tentam “sua sobrevivência como grupo conservador de vários dos antigos traços culturais a um preço bastante elevado”, sendo que “o sentimento de religiosidade ou crença (…) parece continuar fortemente apoiado no passado; o velho Xamã Kaingang continua como mediador entre os espíritos que consulta e o homem que a ele recorre, tanto para respostas a situações pessoais como para fatos ligados à situação do grupo. O Xamã pode apontar um local favorável de caça como pode revelar o resultado de uma iniciativa que envolve o grupo” (BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1995, pp. 21 e 27, respectivamente).

Esse empenho em buscar terra e espaço para se preservar como cultura é inerente aos grupos Kaingangs, cuja história é pautada por lutas e enfrentamentos com os colonizadores brancos e mesmo conflitos internos entre os diversos grupos, sendo que “o resultado final da colonização para os Kaingáng foi colocá-los numa situação mais ou menos igual à dos períodos iniciais, isto é, a necessidade de continuar a luta pela posse, de fato, das suas terras, frente a entidades econômicas de interesses vários” (BECKER, Ítala Irene Basile. O que sobrou dos índios pré-históricos do Rio Grande do Sul. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, pp. 332-343, estando o trecho citado na p. 337).

Considerando essa leitura que faz do art. 231 da CF/88, o que é conhecido e o que foi provado até esse momento, esse Juízo só encontra uma conclusão possível quanto à aplicação do direito no caso concreto: não existem evidências de vínculo passado entre a área do Morro do Osso e a Comunidade Indígena Kaingang que a ocupa desde 2004. Se não existem ainda provas evidentes desse vínculo da Comunidade Indígena com o passado daquela área de terras, parece que ela não pode ser tida como “terra tradicionalmente ocupada” para os fins do art. 231 da CF/88, não tendo sustentação sua pretensão de permanecer na área. Essa conclusão desse Juízo se baseia nos elementos a seguir indicados e analisados:


Primeiro, porque não foi assegurada a permanência da Comunidade Indígena na ação ordinária (nº 2004.71.00.021504-0), ali tendo sido indeferida a antecipação de tutela postulada e sendo depois indeferido o pedido de reconsideração. Ou seja, nem na presente ação possessória, nem na outra ação ordinária, foi ainda reconhecido jurisdicionalmente o direito da Comunidade Indígena permanecer ocupando aquela terra do Morro do Osso.

Segundo, o argumento trazido pelo MPF no seu parecer, de que a forma como as comunidades indígenas encaram a territorialidade justificaria uma leitura diferente do art. 231 da CF/88 (fls. 141-144), não é suficiente para convencer esse Juízo de que ali devam ou possam permanecer. Mesmo que as comunidades indígenas vejam a terra a partir de uma perspectiva diferente daquela dos institutos do direito civil, isso não significa que bastasse desejarem uma área para que esta passasse a lhes pertencer. O art. 231 da CF/88 continua em vigor e ali está dito que não basta desejar uma garantia para o futuro, mas é preciso também uma relação com o passado da comunidade para que seja legítima sua pretensão àquela terra específica, como já mencionamos. É preciso que algo pretérito relacione a comunidade àquela terra que deseja para futuro. Se aceitássemos uma argumentação diferente dessa, estaríamos reconhecendo às comunidades indígenas um direito maior que a própria Constituição, permitindo que a auto-determinação dessas comunidades pudesse desconstituir a propriedade que o direito civil reconhece. O art. 231-§ 6º da CF/88, que prevê nulidade e extinção de pleno direito de alguns títulos dominiais, não alcança toda e qualquer pretensão indígena, mas apenas aquela referida às terras tradicionalmente ocupadas, as quais — no entendimento desse Juízo — necessitam de um vínculo com o passado da comunidade indígena. Só isso já é suficiente para não acolher a pretensão da Comunidade Indígena pelos critérios puramente etnológicos ou por aquilo que entenda necessitar para sua reprodução física e cultural. É preciso mais do que isso, é preciso um vínculo concreto da comunidade indígena com o passado daquela terra.

Terceiro, não há dúvida que a posse indígena não se confunde com a posse civil, possuindo aquela características que a diferenciam desta (parecer do MPF às fls. 144). Mas qual é a posse indígena que a Comunidade Indígena Kaingang que ocupa a área do Parque Natural do Morro do Osso possuí? Não é posse indígena, porque ocorre apenas desde 2004 e decorreu de uma ocupação de área urbana do Município de Porto Alegre. A “posse indígena” que é diferente da “posse civil” não é qualquer posse por comunidade indígena, mas uma posse qualificada que atenda as condições do art. 231 da CF/88. Somente as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios geram os efeitos do art. 231 da CF/88, o mesmo não ocorrendo com qualquer outra posse de terras por indígenas. A propriedade privada continua sendo um direito individual constitucionalmente assegurado (art. 5º-XXII da CF/88) e somente as condições do art. 231 da CF/88 asseguram um tratamento constitucional distinto. Precisaria existir nos autos uma prova razoável de que a posse da Comunidade Indígena Kaingang no Morro do Osso atende aos requisitos do art. 231 da CF/88 para que ela merecesse o tratamento qualificado que a norma constitucional assegura aos indígenas. Não existem nos autos quaisquer evidências de que a posse seja qualificada e atenda às condições do art. 231 da CF/88, não cabendo então o tratamento especial dispensado à posse indígena qualificada.

Quarto, o art. 231 da CF/88 não pode também ter o efeito de se voltar indefinidamente ao passado, para devolver as terras aos primeiros ocupantes do território nacional, porque não teríamos como encontrar o “Adão Brasileiro”, aquele que foi o primeiro a ocupar o território nacional e seus descendentes, que então fariam jus à terra se adotássemos esse regresso ao primeiro ocupante. Toda a história do uso da terra sempre envolveu conflito entre povos, fazendo isso parte do destino das pessoas e das civilizações: “os portugueses e os espanhóis não foram os primeiros conquistadores da América. Astecas e Incas estavam organizados militarmente e controlavam impérios no México e no Peru, dominando outros grupos indígenas, transformados em seus tributários e dominados. Muitos séculos antes da dominação colonial ibérica, os grupos Tupis e Guaranis realizaram uma intensa atividade de conquista e povoamento de uma enorme área situada no litoral leste do Brasil e em grande parte da região do rio da Prata. (…) Sabe-se que os Guaranis faziam continuamente expedições guerreiras, atacando os povos vizinhos para devorá-los em cerimônias de canibalismo. Isso aconteceu em relação aos grupos pampeanos Charrua e Minuano, bem como aos Jê do planalto” (KERN, Arno Alvarez. Antecedentes Indígenas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994, pp. 104-106). O avanço guarani sobre outros povos que ocupavam o território gaúcho antes da chegada dos europeus dá uma idéia de como seria infrutífero buscar um regresso aos primeiros habitantes e seus descendentes para lhes assegurar a posse das terras: “A vida dos povos caçadores-coletores que circulavam pelo Sul seguia tranqüila havia milênios. Cerca de 2.000 anos atrás, essa paz relativa começou a ser destruída: uma marcha migratória gigantesca e arrasadora, iniciada na Amazônia, desceu o Rio Paraná e alcançou os territórios do Paraguai, Uruguai, Argentina e Rio Grande. Pelos rios Ijuí e Jacui, chegou até a região de Porto Alegre. Eram os indígenas da Tradição Tupi-guarani. Foi uma devastação. Eles migraram por problemas ecológicos ou de superpopulação, mas sempre em busca da ‘terra sem males’ de sua mitologia. Vieram invadindo tudo, com seus tacapes, lanças e flechas, e apavorando o inimigo com seus rituais antropofágicos. Como uma horda bárbara, chegaram às margens do Guaíba entre os séculos IX e X. No caminho, destroçaram os grupos do Planalto gaúcho. Foram os primeiros povos a se fixar na região de Porto Alegre” (HISTÓRIA ILUSTRADA DE PORTO ALEGRE. Os habitantes da região do Grande Lago (3.000 aC 1680 aC). Porto Alegre: Já Editores, 1997, p. 3, grifou-se). O que a norma constitucional quis foi preservar o que ainda deve ou pode ser preservado, e não restaurar indefinidamente o passado. A norma constitucional busca a reparação possível de erros do passado, mas não quer vingança nem recompensa. Quer apenas garantir a reprodução da cultura, preservar a biodiversidade humana, seus valores, suas tradições, suas crenças, a memória de todos os grupos formadores da sociedade brasileira atual.


Quinto, a norma constitucional do art. 231 da CF/88 não pode ser interpretada isoladamente, como se arqueólogos e antropólogos se transformassem em “caçadores de tesouros”: achando um sítio arqueológico, desapropriar-se-ia a terra e ali se colocariam outras pessoas que seriam descentes dos anteriores habitantes do local. Não é isso que a norma constitucional quer. Ela busca a harmonia, a preservação, o diálogo entre acontecido no passado e seus reflexos no presente, buscando a construção de um futuro. É preciso que exista um reflexo atual do passado no presente para que se busque aquela terra como futuro. Numa das reuniões promovidas pelo Ministério Público Federal para tentar equacionar a questão do Morro do Osso (em 05.02.2004), o Procurador da República Marcelo Beckhausen, cujo trabalho é respeitado por todos aqueles que militam com grupos indígenas e minorias étnicas, afirmou que não basta que um sítio arqueológico seja identificado para que as comunidades indígenas possam reivindicar a respectiva terra: “O Dr. Marcelo afirmou [sobre o Morro do Osso] que aquela é uma área de proteção ambiental, e não há estudo ou laudo antropológico que comprove a presença indígena ancestral. Também afirmou que a existência de sítio arqueológico não é suficiente para garantir a posse pela referida comunidade indígena, considerando que o ordenamento jurídico não prevê tal possibilidade” (fls. 225).

Sexto, não existem vestígios da ocupação pré-histórica ou histórica de Porto Alegre e seus arredores por comunidades indígenas Kaingang, que pudessem justificar a ocupação do Morro do Osso em decorrência de ali terem se estabelecido seus antepassados antes da ocupação portuguesa. É certo que a história tradicional nunca deu muita importância ao conhecimento da contribuição indígena para a formação do Rio Grande do Sul, não dispensando muita atenção aos períodos pré-históricos dessa ocupação: “a história tradicional, apesar dos matizes ideológicos tão diversos que separam seus autores, ignorou sempre, sob as mais variadas explicações, o genocídio praticado indiscriminadamente contra as culturas indígenas que povoaram nosso estado e a região platina na qual ele se insere. O início do povoamento é sempre apresentado com a chegada dos primeiros açorianos e a partir de uma data limite, a da fundação da cidade de Rio Grande”, ocultando-se “desta forma a existência dos períodos anteriores a esta ‘história lusa’, relativos tanto à ocupação dos grupos de caçadores, coletores, pescadores e horticultores (de 13.000 anos aproximadamente de duração) como ao domínio espanhol instalado aqui nos sécs. XVII e XVIII” (KERN, Arno A. Introdução. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 19997, pp. 10-11).

Entretanto, recentemente os estudiosos voltaram sua atenção às comunidades indígenas pré-colombianas, procurando lançar luzes sobre sua dinâmica e sua contribuição, concluindo que no período anterior à chegada dos portugueses o território gaúcho foi povoado dessa maneira: “na origens da ocupação pré-histórica da região platina oriental, caçadores-coletores se estabelecem nas paisagens abertas dos pampas, caçando com arcos, flechas e boleadeiras os animais, nestas extensas coxilhas sem horizontes que ligam a Patagônia Argentina ao sul do Brasil e aos campos de Vacaria, de Lages e de Curitiba. Outros grupos de caçadores-coletores se instalam nas florestas subtropicais da encosta do Planalto Meridional, subindo pelos vales encaixados até atingir pouco a pouco as matas de araucária. No litoral, grupos de pescadores e coletores se instalam nos sambaquis, numa outra forma de adaptação cultural à planície litorânea e aos recursos marinhos. Somente muitos séculos depois estas tradições sócio-culturais serão modificadas pelo aporte de inovações tecnológicas importantes e pela chegada de grupos de horticultores que migram para nossa região. Um limiar parece ser gradualmente transposto. Ao sul, os grupos de antepassados dos Charrua e Minuano passam a utilizar a cerâmica — aparentemente sem nada conhecer da domesticação das plantas — na cocção de peixes que pescam em seus sítios litorâneos. O vale do Rio Uruguai, a Depressão Central, o vale do Jacuí e o litoral coberto de florestas subtropicais são os espaços onde os antepassados dos atuais Guaranis instalam as suas aldeias. No alto do planalto, os antepassados dos Kaingang se organizam em aldeias de casas subterrâneas, em meio aos bosques de araucária” (KERN, Arno A. Introdução. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 19997, p. 09, grifou-se).

Mesmo quando recorremos aos relatos da história e dos primeiros europeus que ocuparam o território gaúcho, não encontramos relatos da presença Kaingang na região de Porto Alegre (CESAR, Guilhermino. Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul — 1605-1801. 3ª edição. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998; NOAL FILHO, Valter Antonio, e FRANCO, Sérgio da Costa. Os viajantes olham Porto Alegre: 1754-1890. Santa Maria: Editora Anaterra, 2004).


Ao contrário, existe registro histórico de que os primeiros povoadores de Porto Alegre não eram Kaingang, mas indígenas pertencentes a outros grupos: “A consulta meticulosa de fontes históricas de vala referentes ao Rio Grande do Sul deixa perfeitamente evidenciado que a vasta superfície do nosso glorioso Estado foi outrora ocupada por numerosas tribus de indígenas. Documentos preciosos, de procedências diversas, nos dizem por onde vieram ‘Patos’, ‘Charruas’, ‘Guanacús’, ‘Tapes’ e ‘Minuanos’, os seus usos e costumes e o papel que tiveram em cometimentos importantes, tais como a fundação dos sete povos de Missões, onde se reuniu a maior parte das populações indígenas do Rio Grande do Sul. Infelizmente, são muito lacônicas, quase não existem mesmo informações no tocante as tribus moradoras na grande área que hoje é ocupada pela capital do Estado. Sabe-se que Porto Alegre deu morada, durante o século 16 e 17, a vários grupos de selvagens; conhece-se até alguns detalhes a respeito, mas não são tão numerosos que permitam uma resenha histórica completa. O que se sabe, ao certo, já pelo testemunho eloqüente de diversos documentos escritos, já pela tradição, é que nas proximidades da Capela de Viamão, da Várzea do Gravataí, de Santa Teresa, e mesmo no local onde existe o centro de movimento da cidade, se encontraram outrora ‘tabas’ diversas de ‘tapes’ e ‘minuanos‘. As vastas ruas, nas quais atualmente se deparam os mais variados estigmas do progresso, eram, naqueles tempos, ora verdejantes colinas ora espessas matas salpicadas aqui e acolá de ocas e juraus, ou alpendrados onde residiam indígenas e eram depositados os seus gêneros alimentícios, armas, objetos de uso doméstico, etc. Na encosta das colinas, mais tarde chamadas morro de Santana, Cascata e Cristal, grandes plantações de mandioca e inhame contribuíram para demonstrar a existência de seres humanos nestas paragens. Essas tribus viviam em contínuo movimento terrestre e fluvial, este feito em numerosas ‘pirogas’, que se encontravam às dezenas, às centenas, pelas margens do Guaíba, até Itapuã e Gravataí. Os indígenas aqui domiciliados pertenciam à grande nação ‘Tape-Minuano’, e, mais tarde estabelecido, o domínio português, foram conhecidas sob denominação genérica de ‘Guaranys’, porque todos falavam a mesma língua. ‘Tapes’ e ‘Minuanos’ tinham as suas tabas ou aldeias disseminadas pela grande superfície que vem de Itapuã à Capela de Viamão, estendendo-se mesmo a pontos mais distantes. (…) Nos últimos anos do século 18, ainda existiam em Porto Alegre velhos ‘guaranys’, que tinham notícias seguras da existência dessas tabas e da vida dos ‘tapes’ e ‘minuanos'” (FILHO, Coruja. Os Fundadores de Porto Alegre. Boletim Municipal. Porto Alegre, vol. VI, ano V, 1943, pp. 216-217, grifou-se).

Também encontramos que “a área em que assenta o hodierno município de Porto Alegre, antes da descoberta do Brasil estava povoada pelos índios charruas que foram, aos poucos, e depois da ocupação e povoamento de Santa Catarina pelos portugueses, impelidos mais para o sul, tomando os seus lugares os arachanes, também conhecidos por índios patos” (SPALDING, Walter. Município de Porto Alegre. Boletim Municipal. Porto Alegre, vol. VI, ano V, 1943, p. 389, grifou-se). Num apêndice a esse texto, o historiador ainda responde a algumas perguntas sobre “devassamento do território“, por solicitação da Prefeitura Municipal da época: “4. É conhecida a existência atual, no Município, de tribus indígenas, ou há somente tradição de terem elas aí existido? Na afirmativa, quais as tribus e pontos do território em que estão ou estiveram localizadas? Atualmente não existem tribus indígenas na zona ocupada pelo Município. Era, porém, antes da descoberta do Brasil até meados do segundo século provavelmente, habitada por índios Charruas que foram, aos poucos, e depois da ocupação e povoamento de Santa Catarina, pelos portugueses, impelidos mais para o Sul, pelos Arachanes, também conhecidos por índios Patos por terem negociado com os portugueses espanhóis, nesse palmide bravio, abundante em toda aquela zona e costa do Rio Grande do Sul. Vestígios dessas tribus ainda são encontrados pelo Município, especialmente na ilha Francisco Manuel, na ponta dos Coatís, que foi verdadeiro depósito de artefatos indígenas infelizmente desaparecidos, mas de que vimos fragmentos regulares em mãos de particulares e escavados naquela ilha. É provável que ainda muita cousa se encontre não só naquela ilha como em outras zonas, pelas margens dos arroios e riachos. Pelos fragmentos do Mound da ilha Francisco Manuel, notamos que os indígenas da zona eram de cultura inferior globular liso, própria dos charruas. Esses indígenas foram cada vez mais para o Sul, pacíficos que eram, fugindo dos novos conquistadores, instalando-se, por fim a Sudoeste do Rio Grande do Sul, e Noroeste do Uruguai, especialmente. Outras tribus, consta, terem habitado a zona, como os rachanes e Tapes, cooperando para a fuga dos Charruas. Há tradição, colhida por Sebastião Leão, de que os Tapes (?) apareceram em Porto Alegre, quando ainda o branco não existia na zona, vindos do outro lado do Guaíba, o que comprova terem os Arachanes de Santa Catarina descido pela costa marítima instalando-se nas margens do Rio Grande que recebeu, em homenagem a esses índios, o nome de Lagoa dos Patos, pelo apelido que lhes foi dado, como vimos, por negociarem com o pato bravo (pato arminho). 5. Se já não existem tribus no Município, sabe-se em que ano ou época se verificou o desaparecimento da última delas? É bem difícil fixar-se o ano do desaparecimento dos índios da zona do atual Município. Pode-se, porém, afirmar que seu desaparecimento data do aparecimento dos colonizadores. Primeiro — os Arachanes ou patos expulsaram em parte os charrua; Segundo — os lagunistas e portugueses mais longe os jogaram, distribuindo-os por diversas zonas do Sul, sudoeste, e noroeste da República do Uruguai, locais onde, desde fins do século XVII, como vimos, iam procurá-los, aos charruas, para negociar em gado, as frotas de lagunenses e paulistas. Conclue-se daí, que foi em meados do século XVII, em conseqüência do exposto e da fama dos preadores de índios de S. Paulo que eles se tenham internado, deixando livre toda a costa do Rio Grande, onde são encontrados objetos indígenas, desde Torres ao Chuí, e a zona de Porto Alegre, seguindo o curso dos Rios dos Sinos, Jacuí, Gravataí, Caí, Taquari, etc, deixando apenas, de sua passagem traços que apenas dão para identificá-los” (SPALDING, Walter. Município de Porto Alegre. Boletim Municipal. Porto Alegre, vol. VI, ano V, 1943, pp. 412-413, grifou-se).


Mesmo que algumas correções devam ser feitas quanto aos grupos indígenas mencionados nesses relatos (NOELLI, Francisco S. e outros. O mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa, volume 2, nº 1, verão de 1997, pp. 210-212), ainda assim não surgirá evidência da presença de Kaingangs em Porto Alegre, mas apenas de Tapes, Minuanos e Guaranis.

Isso se confirma em trabalho relativamente recente, sobre a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, que procurou traçar um mapa arqueológico (mesmo que parcial) a respeito disso, mostrando que “em meados do século XVIII a região abrangida por Porto Alegre e adjacências não estava mais ocupada pelos Guarani ou outras etnias, como se pode constatar nas cartas de Gomes Freire de Andrada à Coroa portuguesa (1927, 1928, 1929). Os únicos indígenas mencionados por Gomes Freire foram os Minuanos na região de Rio Grande e os ‘Tape’ no Planalto-Sul-Riograndense e tropas de Guarani missioneiros acampados na região do salto do Jacuí. Os sesmeiros que ocupavam Porto Alegre e arredores desde a década de 1730, interrogados por Gomes Freire, não deram nenhuma notícia de indígenas na região (Andrada, 1928, 1929). Os únicos indígenas descritos em Porto Alegre e arredores após 1750 foram os 2.500 transmigrados a força das sete cidades missioneiras e instalados na Aldeia dos Anjos, atual cidade de Gravataí (AHRGS, 1990). Posteriormente, estes habitantes de Gravataí foram se dispersando e alguns podem ter vindo para Porto Alegre como deve ter sido o caso do Guarani Vicente, relatado em 1875 por José Antonio Vale Caldre e Fião (1943). Muitos outros descendentes dessa comunidade transmigrada vieram para Porto Alegre, para servir no Regimento de Dragões e posteriormente devem ter ido habitar diversas partes do município em expansão. Os poucos historiadores que trataram da ocupação indígena em Porto Alegre especularam sem fundamentação histórica, etnográfica e arqueológica. Estabeleceram erroneamente, desprovidos de uma perspectiva histórica, que teria havido uma concomitância de ocupações por parte dessas distintas populações, excetuando Nicolau Dreyes ([1839] 1961: 154-159), um dos primeiros cronistas rio-grandenses, que descreveu corretamente a localização das populações indígenas” (NOELLI, Francisco S. e outros. O mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa, volume 2, nº 1, verão de 1997, pp. 211, grifou-se).

Essa descrição feita por Nicolau Dreyes, dito acima como um dos primeiros cronistas rio-grandenses que teria descrito corretamente a localização das populações indígenas, é a seguinte: “Das cinco nações indígenas que entre si repartiam o território da província do Rio Grande, no tempo da colonização, hoje [1839] não se depara senão com os guaranis, confinados na extensão do antigo país das Missões, que já descrevemos. Os patos desapareceram, não deixando de si se não o nome que comunicaram à grande lago no redor da qual habitavam. Os charruas que ocupavam o Sul da província desde a vizinhança da Lagoa Mirim até o Rio da Prata; os minuanos, em cujo poder estava o terreno de Oeste até as margens do Uruguai, acabaram nas fileiras de Artigas, em favor do qual tinham pegado em armas; os diminutos restos daquelas duas nações passaram o Uruguai e se estabeleceram no país de Entre Rios; todavia, alguns indivíduos talvez ficassem nos domínios de seus antepassados, incorporados com a população local. Os guaianás que freqüentavam os campos da Vacaria, acima da serra, ainda existem nas mesmas paragens, escondidos nos extensos matos da vizinhança, onde saem inopinadamente para hostilizar os brancos, como já o fizemos ver no decurso de nossas descrições. A nação guarani mesma não é representada ali senão por uma subdivisão a que os primeiros exploradores deram o nome de tapes, e essa mesma tribu dos tapes, que com o tempo deixou substituir seu nome particular pelo apelido genérico, não existe hoje senão reduzida a uma fração de pouca importância em comparação de sua existência anterior, pois os povos indígenas, pertencendo à grande confederação guarani, cobriam antigamente a parte oriental da América do Sul, até o Amazonas ao Norte e até a embocadura do Madeira, a Oeste, seguindo no interior uma linha que, do Rio da Prata, procurava as águas do Amazonas, passando pelas nascentes do Paraguai e atravessando a serra transversal que liga as duas cordilheiras do Brasil e do Peru” (DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. 4ª edição. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 1990, pp. 117-118, grifou-se). Os Kaingang foram denominados no passado como Guaianã, grafado de várias formas (NOELLI, Francisco S. e outros. O mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa, volume 2, nº 1, verão de 1997, p. 213).


Também já foram realizadas pesquisas arqueológicas na zona sul de Porto Alegre, dando conta da existência de evidências robustas da ocupação guarani no local, nada sendo dito quanto aos Kaingangs: “este artigo apresenta os primeiros resultados das pesquisas sobre a ocupação de grupos Guarani pré-históricos no município de Porto Alegre-RS, Brasil. As prospecções concentraram-se na zona sul da cidade, onde projetos anteriores de prospecções evidenciaram zonas potenciais. Um primeiro sítio foi encontrado e registrado na Ponta do Arado e um segundo sítio na ilha Francisco Manoel foi parcialmente escavado. Os dois sítios, nas margens do rio Guaíba, evidenciaram uma ocupação por grupos Guarani. Foi possível obter a primeira datação de ocupação pré-histórica indígena da região. Os dados ainda parciais oferecem elementos sobre as características ambientais e determinam áreas potenciais para as pesquisas” (GAULIER, Patrícia Laure. Ocupação pré-histórica guarani no município de Porto Alegre: Considerações preliminares e primeira datação do sítio arqueológico [rs-71-c] da Ilha Francisco Manoel. In: Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira. São Paulo, nº 14/15, 2001-2002, pp. 58-73, grifou-se).

Em resumo, não se encontrou registro da ocupação Kaingang na região de Porto Alegre e adjacências, existindo entretanto menção à existência de outros grupos indígenas ocupando essa área, que não os Kaingangs. Se não há vestígios dessa ocupação pré-histórica Kaingang, não haveria como reivindicar a existência de um cemitério indígena Kaingang na área do Morro do Osso, pelo menos a partir do conhecimento que se tem até agora.

Sétimo, os estudiosos mencionam que as comunidades indígenas Kaingangs ocupavam área distinta, na região do planalto e nas florestas de araucárias, longe da região de Porto Alegre e da Lagoa dos Patos. Poderia esse Juízo mencionar diversas referências a isso, mas parece suficiente reportar-se às conclusões de Ítala Irene Basile Becker, que reuniu em “O índio Kaingang no Rio Grande do Sul” o que existia a respeito da disposição geográfica deles no Estado do Rio Grande do Sul desde o século XVI até a atualidade, concluindo que eles ocupavam a região do planalto, tendo como limite sul a Bacia do Rio Caí (BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1995, pp. 11-31). Portanto, a localização de um cemitério indígena Kaingang na região de Porto Alegre não encontraria evidências naquilo que atualmente se conhece da distribuição territorial do grupo Kaingang através do tempo. Aliás, a localização desse cemitério indígena Kaingang seria um achado arqueológico, capaz de alterar toda a compreensão que se tem da dinâmica e localização dos grupos de primeiros povoadores do Estado.

Oitavo, parece que se existir um cemitério indígena no Morro do Osso, esse cemitério não seria Kaingang, mas Guarani. Embora não tenham ainda sido feitas pesquisas arqueológicas mais detalhadas a respeito, há indicação de que o Morro do Osso seria um local apropriado para escavações e pesquisas arqueológicas em busca de respostas sobre os primeiros habitantes de Porto Alegre: “a estratégia oportunística também apresentou resultados positivos, apesar das dificuldades geradas por inúmeras pistas falsas e pelo tempo gasto para encontrá-las. Nesta não fizemos prospecções sistemáticas, apenas aleatórias, sem resultados positivos no Morro do Osso e na Restinga. A confirmar, com prospecções sistemáticas, temos informações oportunísticas obtidas para a Lomba do Pinheiro (próximo a Via do Trabalhador), Ponta do Arado, Belém Novo, Lageado, Ponta do Cego, Restinga, Morro do Osso, Vila Mapa, Campo Novo, Vilba Nova, Ilhas do Delta do Jacuí, Lami, Ponta dos Coatís e Espírito Santo” (NOELLI, Francisco S. e outros. O mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa, volume 2, nº 1, verão de 1997, pp. 216-217, grifou-se).

E o que se tem até agora a respeito de achados arqueológicos ou registro histórico a respeito do Morro do Osso dá conta de que ali teria havido um cemitério indígena guarani em tempos imemoriais. Encontramos dois relatos históricos a respeito.

Um deles consta de artigo de CORUJA FILHO sobre aqueles que teriam fundado a cidade de Porto Alegre. Após discorrer sobre os indígenas que habitavam Porto Alegre e suas adjacências, numa nota de rodapé ele menciona a existência de um cemitério indígena no Morro do Osso: “Os ‘tapes’, seguidamente, referiam aos habitantes de Porto Alegre várias lendas relativas à tribu dos ‘minuano’, mas conservavam segredo absoluto sobre as tradições de sua gente. Mais de uma vez, contaram eles fatos extraordinários, ocorridos no Morro dos Ossos, em Santa Teresa, onde os ‘minuanos’ tinham o seu cemitério; nunca, porém, ninguém conseguiu saber o local onde estavam enterrados os ‘tapes’ de Porto Alegre” (FILHO, Coruja. Os Fundadores de Porto Alegre. Boletim Municipal. Porto Alegre, vol. VI, ano V, 1943, p. 217, nota 2, grifou-se).


O outro relato foi escrito em 1875, por JOSÉ ANTÔNIO DO VALE CALDRE E FIÃO, tendo sido o texto republicado com “notas da redação”, atualizadas à época da nova publicação, em 1943. Pela importância do relato para a presente ação e pela dificuldade em obter o referido documento, transcrevemos o referido relato, sublinhando as passagens que interessam à presente ação possessória: “Si perguntásseis ao caray Vicente, àquele índio velho (avatuchá) da raça guarani, que ainda existia em 1760 quando José Marcelino resolveu estabelecer aquí a sede da governança, e que morava num rancho no lugar que é hoje o quartel do 8º, tendo em outro tempo servido o lugar de guarda do potreiro de Nossa Senhora, como se chamava o sítio povoado que hoje denominam, Passo-da-Arêia, ele vos diria que noutras épocas era conhecido por Ibicuí-retã e repetiria a tradição guardada e transmitida por seu pai. A nosso turno vamos expô-la para vosso conhecimento: Diziam os velhos da tribu que do lado d’além do Guaiba viera em pequenas pirogas uma tribu de Tapes estabelecer-se nas terras d’aquém (o Viamão) e que aí, depois de alguns anos, tomara o nome de Tapís dividindo-se em dois magotes dos quais o maior, que levantara toldos ou tabas nos lugares onde hoje estão as freguezias de Viamão e Belém, tomou o nome de Tapíaçú, e a menor que se apoderou dos morros e plainos de Ibicuí-retã (passo da arêia) tomou o nome de Tapí-mirim. Os tapí-mirins, pois, discorriam no vale do Gravataí desde a sua foz até as lagôas de Xicolomão [Também conhecidos por ‘Banhados do Gravataí’, e onde tem sua nascente o referido rio, no município atual de Santo Antanio da Patrulha] e vinham nas montanhas que olham para a grande lagoa do Guaiba [O Rio Guaíba era denominado, outrora, ‘Lagoa do Viamão’ e ‘Lagoa do Guaíba’ e daí Rio Guaíba] tão povoada de pitorescas ilhas; e ainda que inimigos mortais de seus irmãos tapiaçús, serviam-lhes de guarda avançada contra os coroados que habitavam os serros e matas de Itacolomím [Itacolomim ou Itacolomi — (Menino de pedra), lugar na freguezia de N. S. dos Anjos (Gravataí) que em 1791 foi dado em sesmaria a Sebastião Manuel de Santiago] e se estendiam pelos vales de Itapuí [Itapuí (rio da pedra de sino) foi o nome antigo do atual rio dos Sinos que também se denominou Cururuai (mapa de 1758 de José Custodio de Sá e Faria) rio que é lugar do sapo ‘cururú’, e que parece a origem do nome ‘Sinos’ pelo coaxar do sapo] onde estridúla a araponga e solta seu gemebundo canto o tristonho urutau. Ibicui-retã era o lugar da taba dos tapí-mirins. Aquelas ruivas areias que ali alvejam, que rolam do leito do arroio pelos sulcos da estrada e que vão atirar-se nas águas da lagoa para depois irem ao grande-rio (o mar) onde está a voz atroadora do Tupã, foram testemunhas dos feitos, do ódio e do amor de uma geração que passou e que a que lhe sucedeu, tão estranha a ela, nem o nome lhe guardou, nem comemorou a sua gloriosa ainda que curta existência.Ibuisui-retã era um baluarte, os seus guerreiros destemidos e sociáveis não deixaram passar para a grande lagoa as selváticas tribus do sertão mas facilmente se tornaram amigos dos primeiros viajantes (caraís) que aí vieram e lhe deram armas e roupas. É certo que nas viagens por terra de São Paulo ou Curitiba até a Colônia ou Rio da Prata, as partidas militares eram engrossadas por tapís que com fidelidade as acompanhavam defendendo-as dos ataques dos Minuanos e Charruas. O caracter do tapí era dócil como o do guarani, e seus costumes pouco diferiam dos daquele — eram estáveis, habitavam a taba e tinham pequenas, ainda que rudimentares, indústrias domésticas. A fabricação de vasos era adiantada e quase perfeita, e prova disso temos no cemitério conhecido deles, no Morro do Osso desta cidade, alem de Santa Tereza, onde se achavam, ainda há bem pouco tempo, grandes panelas contendo cadáveres secos ou ossos dos homens (tapis) de tempos remotos. Em Ibuicui-retã (no passo da areia) não se sabe onde era o cemitério, mas os velhos ainda viram a cerca da taba, trançada de comboim e cambará bem alta e bem defendida ficando as primeiras ocas bem à vista e no lugar onde está uma venda (hoje mora aí o interessante e industrioso cidadão Manuel Luiz Corrêa), e distendendo-se pela margem do arroio. O regime político das tribus tapis era simplíssimo. Toda a lei era o alvitre do conselho dos maiorais ou mais velhos da tribu que julgava as contendas e determinava o castigo ou recompensa da gente da taba: é porisso quenão reconheciam cacique algum. Elegiam anualmente um guerreiro para chefe de guerra, o qual rara vez era reeleito; escolhiam sempre o mais valente dos mancebos e a sua investidura era solene e perante o conselho dos velhos. Tinham muitos jogos públicos — Como eram as tabas circulares e formavam no centro vasta praça era aí que eles se faziam nos dias solenes presididos pelo conselho e pelo Pagé (sacerdote) que dele também fazia parte. As raparigas eram aí igualmente recompensadas quando primavam pela agilidade e graça, com cocares de penas de papagaios, e enfeites de pedras coradas e finas. Conta uma lenda da tribu dos tapi-mirins que uma formosa donzela enamorada do chefe dos guerreiros se finara em pranto por ter sido vencida nos jogos públicos por outra não menos formosa e mais feliz — e que Tupã, arrebatando-a para a morada dos imortais, transformara no arroio gemedor que ali corre, as lágrimas da moça sensível, cujas águas quase divinas são remédio para as saudades das que amaram guerreiros mortos em combate. Ibuicuí-retã é um sítio agradável e fresco, salubre e de boas águas, e as chácaras que por aí demoram são aprazíveis porque estão em terras muito férteis. A uma légua de distância de Porto Alegre, devendo em poucos anos ser alcançada pelos carros de bondes, o que importa transporte fácil, breve comunicação com o coração da cidade, pode oferecer uma vivenda fácil, cômoda e sadia para os negociantes e empregados públicos. A divisão das suas terras em pequenas chácaras ou terrenos seria cousa conveniente para a atualidade em que se vai sentindo a necessidade de disseminar-se a população aglomerada da cidade que porisso já sofre enfermidades endêmicas. Ibuicui-retã tem hoje próxima uma capela destinada ao culto de São João Batista — mas fora de desejar que no próprio lugar da antiga taba se erigisse algum templo que deve servir de sede da freguesia que aí se creará inevitavelmente visto ser já muito populoso e extenso o 2º distrito (freguezia de Nossa Senhora do Rosário) desta cidade. Já existem no lugar aulas de ensino primário para ambos os sexos” (CALDRE E FIÃO, José Antônio do Vale. Ibuicui-retã. Boletim Municipal, 6(15): 418-421. Porto Alegre, 1943, grifou-se).


Numa nota da redação a esse texto, acrescentada na época da republicação do texto no Boletim Municipal (em 1943), foi dito o seguinte: “É o atual Morro do Osso (125mts) no arrabalde da Tristeza. Aliás, na ilha Francisco Manuel foram encontrados muitíssimos fragmentos de cerâmica indígena de cultura rudimentar guarani. Em junho do corrente ano além do Morro do Osso, no Morro do Espírito Santo, junto ao balneário de igual nome no rio Guaiba, o sr. João Maliveno encontrou uma moeda de prata, espanhola e uma urna funerária, contendo fragmentos de ossos humanos. Essa urna que foi entregue ao Museu Julio de Castilhos é, também, guarani, de cultura rudimentar. Damos, a seguir, algumas notas da reportagem então feita pelo Correio do Povo no local (15-6-1943): ‘Há poucos dias, quando abria buracos para plantar algumas arvores frutíferas, o sr. João ouviu um ruído metálico ao bater com a enxada no solo. Numa rápida busca ele constatou que se tratava de uma moeda de prata, com os seguintes dizeres: ‘Hispania Rum, Rex R. S. 2 C. N — 80 — Carolus’. A moeda estava revestida de espessa camada de ferrugem, indicando achar-se muitos anos enterrada’.’Quando prosseguia na abertura dos buracos para desenvolver o plantio de árvores frutíferas, o agricultor bateu com a ponta da enxada num objeto que ofereceu resistência. Bateu com mais violência e, com surpresa, verificou que havia partido um vaso de grandes proporções. Afastando a terra que caiu para dentro do vaso, o agricultor chamou seu empregado e pessoas de sua família, para ver o estranho achado. Com carinho, foi cavado em redor do vaso de barro, conseguindo, em poucos minutos, retira-lo quase inteiro, pois somente a tampa estava partida’ — (N. da R.)”

Como se vê, o cemitério indígena não seria kaingang, mas guarani. Isso coincide com o que se conhece da arqueologia guarani: “os mortos eram acomodados em velhas urnas e depositados num cemitério próximo das casas” (SCHMITZ, Pedro Ignácio. Migrantes da Amazônia: a Tradição Tupiguarani. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 306, grifou-se) e “o cemitério ficava perto das casas. Os mortos eram colocados nas igaçabas (urnas de cerâmica), em posição fetal, porque na crença guarani o primeiro homem havia sido retirado de um recipiente de cerâmica por um personagem mítico. Os guaranis de Porto Alegre habitavam, em tempos diferentes, quase todas as regiões do que é hoje o município — das várzeas do Rio Gravataí, na zona norte (incluindo o Passo da Areia e as ilhas do delta), às praias de Ipanema, Belém Novo e Lami, na zona sul, até cruzar a divisa com Viamão, em Itapuã” (HISTÓRIA ILUSTRADA DE PORTO ALEGRE. Os habitantes da região do Grande Lago (3.000 aC 1680 aC). Porto Alegre: Já Editores, 1997, pp. 5-6, grifou-se).

Ao contrário dos guaranis, os Kaingangs não enterravam seus mortos em urnas cerâmicas. Adotavam um comportamento bem diferente, enterrando os mortos em valas, com a sepultura coberta por terra em forma piramidal (BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1995, pp. 264-265). Em recente dissertação de mestrado foram resumidos os ritos funerários dos Kaingangs (DIAS, Jefferson Luciano Zuch. A Tradição Taquara e sua ligação com o índio kaingang. Dissertação de mestrado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004, pp. 135-141), comparando a Tradição Taquara com o índio Kaingang quanto ao modo de enterrar os mortos: “outro item que utilizamos comparativamente entre a tradição Taquara e o índio Kaingang é maneira de enterrar os mortos. A tradição Taquara dispunha de duas maneiras para enterrar seus mortos, uma registrada mais freqüentemente ao longo das pesquisas, no interior de abrigos sob rocha e outra que vem sendo recentemente explorada em regiões em que parece haver menos grutas, sendo os enterros feitos em campo aberto, formando estruturas circulares (montículos), mais ou menos similares em suas dimensões. Já o índio Kaingang conforme os registros indicam, erguia túmulos (montículos) em locais pré-determinados nas matas onde habitava. A pesquisa arqueológica dá conta de que, no primeiro caso, os corpos seriam depositados no interior dos abrigos sob rocha, diretamente sobre o piso rochoso, sem maiores cuidados, quando muito sobre uma esteira feita com fibras vegetais. Em outros casos, o corpo era coberto por pequeno aterro feito com vegetais e terra” (DIAS, Jefferson Luciano Zuch. A Tradição Taquara e sua ligação com o índio kaingang. Dissertação de mestrado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004, p. 168, grifou-se).

Afastando qualquer dúvida a respeito, a excelente tese de doutorado de SERGIO BAPTISTA DA SILVA aborda as representações sobre a morte e padrões de sepultamento dos Kaingangs (SILVA, Sergio Baptista da. Etnoarqueologia dos Grafismos Kaingan: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. Tese de doutorado apresentada ao PPGAS da FFLCH da USP. São Paulo, junho de 2001, pp. 141-162), trazendo fotos de sepulturas e de objetos cerâmicos encontrados junto às mesmas, mas nada mencionando sobre a deposição dos cadáveres dentro de urnas funerárias semelhantes àquela encontrada no Morro do Osso em 1943.


Ou seja, aquele achado arqueológico nas proximidades do Morro do Osso (uma urna funerária) não seria evidência da existência de um cemitério indígena Kaingang no local, embora pudesse indicar um cemitério guarani.

Ora, não bastaria apenas a existência de um cemitério indígena no local para que a terra pudesse ser reivindicada pelos Kaingangs. Se o cemitério for guarani, não se pode presumir que existisse vínculos dos Kaingangs com aquela terra. Não se pode dizer que o art. 231 da CF/88 desconsidera a diversidade existente entre as etnias e grupos indígenas, assegurando a terra indiscriminadamente a todo e qualquer grupo indígena. A ligação que deve existir com a terra não se refere genericamente à terra indígena, mas é preciso uma ligação da comunidade indígena que a ocupa ou reivindica com a área reivindicada. Sem evidências antropológicas conclusivas, não poderia esse Juízo presumir que a possibilidade de um cemitério indígena guarani no local permitisse relações da comunidade Kaingang com aquela área.

Nono, há também a informação nº 18/DCGID, de 29/06/05, apresentada por NADJA HAVT BIRNDÁ, Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação da Fundação Nacional do Índio — FUNAI (fls. 242-268). Embora a impugnação veemente do Ministério Público Federal e do NIT-UFRGS contra esse documento, esse Juízo entende que a informação técnica não contém nenhum vício ou nulidade, merecendo ser valorado como prova. Embora não prevista expressamente a elaboração da informação preliminar, não parece ilegal a conduta da FUNAI, determinando que seja realizado um estudo preliminar a respeito da ocupação indígena de determinada terra, para então decidir se instaura ou não o processo demarcatório. A FUNAI não está obrigada a instaurar o processo demarcatório diante de toda e qualquer pretensão indígena. Parece que fica reservado um mínimo de discricionariedade, que permite não instaurar o processo demarcatório quando nada indicar a existência da terra tradicional indígena. É uma questão juridicamente delicada, que não será exaurida nesse momento por esse Juízo, porque é justamente o mérito da ação ordinária ajuizada pela Comunidade Indígena, e em nada altera a questão possessória discutida na presente liminar. Mesmo que a terra seja indígena, sua retomada deve observar o devido processo legal e não está nenhuma comunidade indígena autorizada a invadir o que ainda não foi declarado como sendo terra tradicional indígena. A própria Comunidade dá mostras disso, ao respeitar a ordem jurídica e buscar o reconhecimento judicial do seu direito, honrando o Poder Judiciário com o ajuizamento da ação ordinária e depois respeitando a ordem liminar deferida nessa ação possessória, quando voluntariamente retirou a construção erguida no interior do Parque. Nesse momento, o que interessa a esse Juízo é apenas verificar se existem indícios de que o Morro do Osso tenha sido terra tradicionalmente ocupada pelos Kaingangs, não importa se num passado remoto ou próximo. Ora, quanto a isso a informação preliminar apresentada pela FUNAI não traz nada de diferente daquilo que esse próprio Juízo pode constatar: não existe ainda evidência histórica, arqueológica, antropológica, etnológica da ocupação das terras do Morro do Osso pelos Kaingangs.

A informação técnica da FUNAI está adequadamente elaborada, é fundamentada, apresenta a respectiva metodologia (expondo-se às críticas dos que a impugnam, como foi o caso do NIT-UFRGS) e apresenta de forma concreta os elementos em que baseou suas conclusões.. É diferente, por exemplo, das manifestações do NIT-UFRGS trazidas aos autos pelo Ministério Público Federal (fls. 181-206), que acabam evidenciando envolvimento com uma das partes, recorrendo seguidamente a argumentos de autoridade e não indicando de forma clara e conclusiva quais seriam os dados concretos e objetivos, quais os estudos, quais as fontes, quais as pesquisas, que embasariam o que pretende afirmar: que o Morro do Osso foi ocupado em tempos remotos por índios Kaingangs. Não parece suficiente que se recorra apenas à memória dos próprios Kaingangs, como feito pelo NIT-UFRGS para determinar a tradicionalidade da ocupação da terra, porque isso importaria naquela interpretação do art. 231 da CF/88 que esse Juízo já afastou, quando entende necessária uma relação da comunidade indígena com a terra que reivindica, e que essa relação não pode se dar apenas em relação ao presente e ao futuro, mas é preciso um vínculo concreto e objetivo com o passado. Talvez os argumentos e as conclusões desse Juízo sejam equivocados ou não tenham sustentação nos resultados das pesquisas científicas mais recentes, mas então provavelmente elas servirão para provocar pesquisadores e estudiosos a trazerem aos autos outros elementos, conclusivos e objetivos, quanto à ocupação indígena do Morro do Osso, que então certamente serão considerados por esse Juízo no momento da sentença dessa ação possessória e da outra ação ordinária. Mas, agora, a partir do que consta dos autos, trazido pela FUNAI (fls. 242-268) de um lado e pelo NIT-UFRGS de outro (fls. 181-206), a esse Juízo não sobre espaço para outra conclusão do que aquela que esboçou até agora: o Morro do Osso não parece ter sido área de ocupação tradicional Kaingang.


Retornando à informação preliminar da FUNAI, percebe-se que houve um esforço da servidora em comparecer ao local e manter contato com as lideranças da Comunidade, procurando a origem do seu interesse pelo Morro do Osso, o que ficou documentado nas entrevistas que realizou, onde inclusive entrevistou o líder político da Comunidade Indígena que se instalou no Morro do Osso, dando conta de como chegou à conclusão de que o Morro do Osso seria terra indígena: “Cacique Jaime: É porque outros morros não tinha nada de história, né? Mas esse aqui tinha história. A gente … Então foi assim, ó: eu li. … Hoje se tu vê agora lista telefônica, tu não encontra mais história do Morro. Pode ler novamente e você não encontra mais, de 2005. E de 2004 a 2003, né? — De 2003 a 2004 existia um, o, a lista telefônica contando que o Morro do Osso, ele abrigaria cemitério indígena. E a gente tava com falta disso aqui, da área aonde que nós poderia preservar a nossa cultura, a nossa tradição, o nosso idioma. E aí a gente (?) Então se, já que tão dizendo que é nosso, nós vamos ocupar até que … (…) Eu fui ali na Prefeitura, não sei o que fui fazer, ali na Prefeitura. Daí eu pedi o número de telefone duma firma, não lembro mais. Ou o número do telefone da Prefeitura, uma coisa assim, dos Direitos Humanos. E aí a guria demorou me atender, daí (?) [pedi a lista um instante?], digo, dá licença? — Daí fui vendo as páginas, né? — Pontos históricos, né? — Do Município, e aonde que a gente encontrou o Morro do Osso. E eu pedi pra guria: ‘Então, tu poderia me dar xerox disso aqui? — Pra mim ter um histórico do Município; eu fiquei preocupado com isso, não preocupado tanto, mas eu quero estudar esses pontos turísticos da cidade, né? — Esse que é um ponto turístico da cidade. E aí, ela me passou, depois ela queria negar. Digo, não, mas já tá na minha sacola, que não vou devolver. Aí, naquilo ali já fui saindo, já saí” (fls. 255-256 dos autos).

Sobre essas entrevistas, a informação da FUNAI concluiu: “Não considero possível estabelecer coerência interna entre vários elementos históricos de cada fala. Mais difícil ainda é estabelecer coerência entre os diferentes relatos, naquilo em que eles se referem a um histórico de ocupação Kaingang no Morro do Osso. As afirmações relativas à pretérita presença Kaingang no Morro do Osso são genéricas e vagas, bem como sobre a presença Kaingang em Porto Alegre de modo geral. A ênfase das respostas e narrativas recai na citação a parentes ascendentes em diversos graus. Aliado a isso, não nos foram apontados locais de uso e moradia antigos (não foi possível identificar tais locais sem indicações dos índios). A exceção fica por conta dos pontos de onde teriam sido retiradas urnas funerárias. Visitei ainda um local a respeito do qual o Cacique Jaime sugeriu que teria uso para algum tipo de reunião ou encontro de antigos ocupantes indígenas do Morro do Osso. A visita a este ponto não me permitiu descartar ou acolher a hipótese sugerida pelo Cacique Jaime” (fls. 261).

Além de a informação técnica examinar outros elementos da ocupação Kaingang no local, chamou atenção desse Juízo a conclusão de que “é provável que o tratamento mais adequado à questão passe por entender que o Morro do Osso se constitui muito mais numa possibilidade de revigoração do xamanismo entre os Kaingang que se viram obrigados a residir em Porto Alegre, do que na retomada de possíveis locais de antigos acampamentos (dados sobre a localização de tais acampamentos não foram encontrados e não podem ser deduzidos das falas dos Kaingangs). Trata-se, portanto, de um projeto de futuro e não da recuperação de um fato passado. Por outro lado, o passado, a tradição e a cultura servem de fundamento para as permanentes elaborações culturais, inclusive aquelas que operam no âmbito do xamanismo. Por isso não é possível tratar a questão dos espíritos ancestrais no Morro do Osso como um falso argumento; no entanto, é preciso admitir que a atualização da lógica do xamanismo, tal como vemos entre as famílias no Morro do Osso, não se assenta necessariamente sobre fatos ocorridos, os quais devemos igualmente buscar para compor um relatório de identificação e delimitação de terra indígena tradicionalmente ocupada. Que fatos ocorridos seriam esses? — Os dados de ocupação e uso antigos e atuais, ou, como já foi dito, dados sobre remoção forçada e esbulho. Encerrando este ponto: dificilmente poderíamos trocar o objeto do estudo de ocupação, substituindo um grupo social, seu modo de vida e meios de existência pelo argumento exclusivo quanto à presença de espíritos ancestrais, ainda que isso seja defendido pelo próprio grupo como algo inquestionável” (fls. 265, grifou-se).

A conclusão da informação preliminar da FUNAI é que: “1- As famílias Kaingang em Porto Alegre buscam fortalecer vínculos sociais e culturais e a solidariedade que julgam comprometida pela vida urbana. A demanda pela regularização do Morro do Osso como terra indígena está pautada por essa expectativa — em consonância com esse fato, vemos que há forte ênfase na argumentação de que a terra indígena estaria plenamente justificada sob o argumento da reprodução física e cultural; 2- Não foi possível encontrar nos relatos, artigos e documentos consultados elementos relativos à ocupação Kaingang no Morro do Osso, seja antiga ou atual. Entendo que a falta desses elementos tornaria extremamente frágil a argumentação da terra indígena com base no art. 231 da CF, estando tal argumentação praticamente restrita à tese das famílias Kaingang sob liderança do Cacique Jaime de que a demarcação do Morro do Osso lhes permitiria fortalecer vínculos sociais e culturais capazes de resguardar sua reprodução enquanto grupo social diferenciado” (fls. 267, grifou-se).


Se essa conclusão é correta ou não, é questão que será resolvida no momento oportuno, após a adequada instrução probatória e razões finais das partes, na ação ordinária. O que importa agora é que, na falta de outros elementos conclusivos trazidos até agora aos autos, essa conclusão da FUNAI aponta para a presença de verossimilhança na reivindicação possessória do Município de Porto Alegre contra a Comunidade Indígena, não restando esse Juízo convencido da existência de elementos que permitam, nesse momento, caracterizar a área do Morro do Osso como terra tradicionalmente indígena para os fins do art. 231 da CF/88.

Décimo, deve considerar esse Juízo que o Ministério Público Federal trouxe documentos elaborados pelo NIT-UFRGS, impugnando a metodologia utilizada e criticando duramente as conclusões da informação técnica da FUNAI. Entre outros argumentos, alegou o Ministério Público Federal que (a) somente a FUNAI poderia realizar o processo demarcatório e somente depois de realizado esse processo demarcatório, com a constituição de grupo de trabalho e observando a regulamentação pertinente, é que se poderia concluir se a área ocupada é ou não terra indígena para os fins do art. 231 da CF/88. Também alegou que aquela informação preliminar da FUNAI não poderia ser aceita porque: (b) não encontra respaldo no ordenamento jurídico porque não está previsto na regulamentação da FUNAI; (c) não se baseou “nos elementos etnográficos, arqueológicos e na questão da ancestralidade consubstanciada na presença de cemitério indígena, os quais foram avaliados pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais — NIT da UFRGS” (fls. 173); (d) é precário e não foi realizado por um grupo técnico e multidisciplinar; (e) foi realizado em viagem de poucos dias a Porto Alegre, atendendo apenas a demandas governamentais e desatendendo à autodeterminação dos povos indígenas (fls. 173-177).

Entretanto, não vejo como esses óbices apontados possam justificar o indeferimento da liminar possessória nessa ação, uma vez que não servem para trazer indícios que apontem que o Morro do Osso seria terra indígena Kaingang. Quanto ao argumento (a), não há dúvida que somente a FUNAI pode realizar o processo demarcatório através de grupo de trabalho que observe o devido processo. Como dito por esse Juízo, essa é questão de mérito da ação ordinária, onde esse Juízo já rejeitou a preliminar da FUNAI no sentido de que a ação seria juridicamente impossível. A ação ordinária ajuizada pela Comunidade Indígena não é juridicamente impossível, sendo matéria de mérito decidir se a FUNAI deve ou não iniciar o processo demarcatório no caso do Morro do Osso. Mas isso não interfere sobre a manutenção da Comunidade Indígena na posse da área, que é objeto dessa ação possessória. Justamente porque é a FUNAI quem deve reconhecer a tradicionalidade da terra indígena, é que a Comunidade Indígena não poderia ter ocupado a área sem esse prévio reconhecimento, não tendo a Comunidade Indígena o poder de se auto-atribuir as terras que lhe interessam. Se não houve reconhecimento pela FUNAI, se a FUNAI elabora um documento preliminar apontando para a não existência de terra tradicional Kaingang no Morro do Osso, e mesmo que isso seja objeto de discussão na ação ordinária, isso não significa que possa ser mantida a posse indígena até o julgamento final daquela ação. Se houvesse forte probabilidade de que a terra indígena do Morro do Osso fosse terra tradicional Kaingang, talvez se pudesse pensar em manter juridicamente a posse indígena que decorreu da ocupação da área em 2004. Mas não existem indícios que permitam essa conclusão. Não parece que o Morro do Osso seja terra tradicional Kaingang, o que então justifica a atuação possessória do Município de Porto Alegre e invalida o argumento do Ministério Público Federal. Quanto ao argumento (b), mesmo que a informação preliminar não esteja expressamente prevista na regulamentação da demarcação de terras indígenas, a FUNAI não estava impedida de determinar o estudo prévio e preliminar quanto à viabilidade do procedimento demarcatório. Não é qualquer reivindicação indígena de demarcação de terras que deve ser atendida, mas somente aquelas que se mostrarem minimamente viáveis. A informação preliminar parece que serviu para justificar a decisão da FUNAI de não instaurar o processo demarcatório. Não parece argumento suficiente para autorizar a permanência da Comunidade Indígena no local ou para invalidar a informação preliminar como ato administrativo que é. Quanto ao argumento (c), a informação preliminar da FUNAI se baseou nos elementos que apontou e foram explicitados no referido relatório. Se esse enfoque dado à questão é o melhor para o equacionamento da questão, esse Juízo não tem condições de afirmar ou negar. É matéria própria para uma perícia antropológica, quem sabe. O certo é que o documento da FUNAI se baseou em evidencias concretas e objetivas, para fundamentar suas conclusões quanto à inocorrência de terra Kaingang, atual ou antiga, na área do Morro do Osso. Se alguma instituição de referência ou centro de estudos entende que aquela não é a melhor metodologia ou a melhor conclusão, poderá realizar estudos ou apresentar pareceres, demonstrando a impropriedade, sendo que eles poderão ser juntados aos autos e certamente serão apreciados por esse Juízo ao sentenciar. Mas não basta apenas a impugnação veemente contra as conclusões da FUNAI, se aquela estiver desacompanhada de elementos concretos e objetivos, precisos e conclusivos, para evidenciar que o Morro do Osso é terra indígena tradicional Kaingang. Quanto ao argumento (d), não há dúvida que as conclusões da FUNAI são precárias e não foram realizadas por grupo técnico e multidisciplinar, mas isso será objeto de decisão na sentença de mérito da ação ordinária, quando se examinará a conduta da FUNAI em negar-se a iniciar o processo demarcatório. Por ora, o que interessa é a aparência do direito, e quanto a isso as conclusões da informação da FUNAI são semelhantes ao restante dos elementos de convencimento (provisório e precário) desse Juízo. Quanto ao argumento (e), não parece que o documento esteja a priori viciado por desvio de finalidade, visando apenas atender as demandas governamentais e desatender a autodeterminação dos povos indígenas. Se for assim, a presente decisão liminar também terá cometido os mesmos equívocos do documento da FUNAI, também estando comprometida com o atendimento de demandas governamentais e desrespeitando o direito das comunidades indígenas porque defere liminar contra a Comunidade Indígena. Não há dúvida que a informação da FUNAI é desfavorável à permanência da Comunidade Indígena no Morro do Osso, mas isso não significa que só por isso esteja comprometida com interesses diferentes daqueles que devem nortear a atuação da FUNAI na defesa das comunidades indígenas.


Décimo-primeiro, existe manifestação técnica de vários antropólogos e estudiosos vinculados ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT-UFRGS), favoráveis à manutenção da posse Kaingang na área do Morro do Osso. Esses pesquisadores integram um núcleo sério e comprometido com o estudo e conhecimento das questões indígenas, sendo desnecessário tecer qualquer outra consideração a respeito. Entretanto, esse Juízo examinou a documentação produzida pelo NIT-UFRGS e trazida pelo MPF (fls. 181-206) e não restou convencido de que ali tivessem sido apresentados elementos concretos e conclusivos que autorizassem o reconhecimento da área do Morro do Osso como terra indígena Kaingang para os fins do art. 231 da CF/88.

Isso porque não cabe a esse Juízo resolver a questão indígena nem assegurar espaços para que possam se reproduzir física e culturalmente. Isso é tarefa dos demais Poderes da República e da sociedade, a quem compete decidir sobre políticas públicas e sobre a destinação de áreas e alocação de recursos públicos. O que cabe a esse Juízo é tão-somente decidir a controvérsia que é trazida, e para isso só pode se valer da lei e da Constituição. Não cabe a esse Juízo decidir se é ou não conveniente manter o Morro do Osso como Parque Natural ou se ele seria melhor utilizado como Terra Indígena. Essas são opções políticas que fogem do âmbito de atuação desse Juízo, que tem os arts. 5º-XXII e 231 da CF/88 como limites às suas decisões. Os documentos produzidos pelo NIT-UFRGS parecem evidenciar a intenção de resolver o problema indígena e de lhes atribuir os espaços que necessitam para reprodução de sua cultura. Mas isso não é o que pode fazer esse Juízo nos autos. Cabe a esse Juízo decidir se o art. 231 da CF/88 alcança ou não o atual Parque Natural do Morro do Osso, mas não cabe aumentar ou restringir o alcance da norma constitucional. Não pode pensar apenas no presente ou apenas no futuro, deve buscar elementos também no passado.

As manifestações do NIT-UFRGS são inquestionáveis quanto às metodologias que emprega, sendo de destacar a excelência do conhecimento científico que a Universidade Pública está apta a produzir e vem produzindo, contribuindo em muito para a construção e fortalecimento de um Estado Democrático de Direito. Talvez ainda venha a ser realizado algum estudo profundo sobre a ocupação indígena no Morro do Osso, com a qualidade das dissertações e teses que são anualmente produzidas no e pelos pesquisadores do NIT-UFRGS. Mas não parece que existam ainda esses elementos concretos e objetivos que justifiquem a permanência da Comunidade Indígena no Morro do Osso, frente ao art. 231 da CF/88 e ao que mais esse Juízo indicou nessa decisão.

Por exemplo, o relatório antropológico complementar de fls. 181-197 parece ir além do art. 231 da CF/88 porque não se preocupa com o passado, não demonstra o vínculo que existiu entre os Kaingangs e o Morro do Osso. Explora apenas o vínculo recente, justifica porque o Morro do Osso seria um espaço apropriado para os Kaingangs, com boas condições de permitir sua sobrevivência física e reprodução cultural. Entretanto, não se trata aqui de decidir quais são as melhores terras para os indígenas. Cabe decidir apenas se aquela terra reivindicada se enquadra na opção política feita pelo constituinte do art. 231 da CF/88. Prevalecendo o entendimento posto no documento, qualquer área poderia ser reivindicada pelos indígenas, a partir do que entendessem apropriado ou necessário para satisfação de suas expectativas e demandas culturais. Processos psicológicos e culturais estariam criando direitos. Poderiam mais do que a própria Constituição, tendo direito a se sobrepor a outros interesses — também constitucionalmente relevantes — do restante da sociedade. Esse Juízo entende que é preciso que exista algo de concreto no mundo que justifique o vínculo dos indígenas com a terra que reivindicam. Esse algo concreto não pode estar baseado apenas na crença da utilidade ou no desejo de se apropriar daquele espaço. Os outros brasileiros também têm direitos, e esse Juízo deve se preocupar em decidir não apenas para atender aos interesses da comunidade indígena, mas também do restante da sociedade brasileira, em especial da comunidade porto-alegrense. O documento do NIT-UFRGS vê os fatos apenas da perspectiva da comunidade indígena, sendo possível que a pesquisa universitária tenha essa liberdade de parcialidade em relação às questões concretas e à autonomia universitária. Mas não é possível que esse Juízo veja a questão apenas a partir de um dos ângulos, deixando de apreciar os demais aspectos envolvidos. Talvez na ação ordinária em que se discute o domínio indígena sobre o Morro do Osso essas considerações trazidas pelo NIT-UFRGS no documento de fls. 181-197 sejam pertinentes, mas não nessa ação possessória.


Também o documento de fls. 199-201, em que o NIT-UFRGS se coloca à disposição da FUNAI em 2004 para o processo demarcatório, nada traz de concreto que justificasse a permanência da Comunidade Indígena no Morro do Osso. É louvável o trabalho que o NIT-UFRGS vem realizando para o conhecimento das comunidades indígenas gaúchas, parecendo a esse Juízo que seria bastante fácil ao NIT-UFRGS comprovar a existência de elementos concretos que justificassem o vínculo da Comunidade Indígena Kaingang com o Morro do Osso, se eles efetivamente existissem. A pesquisa que realizam data de vários anos e é bastante abrangente, pelo que consta da documentação apresentada. Se nada de concreto foi trazido para comprovar a vinculação da Comunidade Indígena Kaingang com o passado do Morro do Osso, isso reforça a convicção de que não existe essa ligação pretérita que justificaria o Morro do Osso como terra tradicional Kaingang.

Por fim, o “relatório arqueológico (nota técnica)” de fls. 202-203 e o relatório “ocupações tradicionais indígenas na área do Parque Natural do Morro do Osso — Porto Alegre” de fls. 204-206 são pouco conclusivos para evidenciar a presença pretérita de Kaingangs no Morro do Osso. Quem assina o documento é o Professor SERGIO BAPTISTA DA SILVA, antropólogo e professor do NIT-UFRGS, de quem esse Juízo teve acesso à tese de doutorado sobre os Kaingangs, apresentada na USP em junho de 2001, sobre “Etnoarqueologia dos Grafismos Kaingan: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais”. Mesmo para o leigo que examine a referida tese, é possível perceber a qualidade do trabalho e a enorme contribuição que trouxe à comunidade científica, abordando temas relativos à compreensão da cultura indígena Kaingang e sendo rica em argumentos e encadeamento lógico dos mesmos para embasar as conclusões. Ora, se efetivamente o Morro do Osso pudesse ser caracterizado como área tradicional indígena Kaingang, isso poderia ser facilmente afirmado e demonstrado pelo referido professor na nota técnica que elaborou, já que dispõe de conhecimento invejável a respeito dos grupos Kaingangs. Mas a nota técnica é cautelosa e vaga, e o relatório que a acompanha não parece ter sido publicado em nenhuma revista especializada, não trazendo nenhum dado conclusivo a respeito da ocupação pretérita do Morro do Osso pelo grupo Kaingang. Também não afirma que seja provável a ocupação pretérita do Morro do Osso por índios Kaingang, limitando-se a concluir com uma questão: “O que levou os Kaingangs até o Morro do Osso?” (fls. 206). Ora, não há dúvida que “segundo eles, lá existe um cemitério indígena kaingang, que precisa receber os cuidados rituais que seu sistema xamânico-cosmológico prescreve tradicionalmente” (fls. 206, grifou-se). Ora, segundo os índios Kaingang, existe um cemitério. E segundo o pesquisador, que assina a nota e o relatório, existem evidências desse cemitério Kaingang? O documento não esclarece. Como o referido professor foi arrolado como testemunha na ação ordinária (fls. 1160 do processo 2004.71.00.021504-0), provavelmente teremos em breve condições de ver respondida a questão. Por enquanto, entretanto, nada de concreto foi trazido nos documentos mencionados que justificasse o reconhecimento da área, mesmo provisório, como cemitério indígena Kaingang.

Décimo-segundo, os estudos arqueológicos e etnológicos a que esse Juízo teve acesso dão conta de que os índios pré-históricos do Rio Grande do Sul, naquilo que interessa à presente ação, dividiram-se em três grupos distintos, localizados geograficamente em áreas distintas, tendo sido o grupo guarani o que ocupava a região de Porto Alegre e suas imediações.

Esses índios pré-históricos dividiam-se em: “Os Kaingang — antigos Guayaná, prováveis moradores das casas subterrâneas do Planalto, com extensão para os demais estados da Região Sul. São encontrados também em Misiones, Argentina. Eram índios coletores, especialmente de pinhão, caçadores, pescadores e pequenos horticultores. Os Charruas e Minuano — são provavelmente os construtores dos cerritos nas regiões dos campos do Sudoeste e Sudeste do estado com extensão para o pampa uruguaio e argentino. Eram caçadores, pescadores e coletores. Os Guaranis — do grande grupo lingüístico Tupi-Guarani, ocuparam as áreas florestadas próximas dos grandes rios como o Uruguai, o Jacuí, o Camaquã e partes do litoral atlântico e lagunar. Eram agricultores e bons ceramistas” (BECKER, Ítala Irene Basile. O que sobrou dos índios pré-históricos do Rio Grande do Sul. In: Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, pp. 331-332, grifou-se).

Vistos pelo prisma da arqueologia, esses grupos de povoadores pré-históricos são agrupados em “tradições”, a partir das cerâmicas e fases líticas que deixaram. Deixando de lado a Tradição Umbu, a Tradição Humaitá e a Tradição dos sítios litorâneos, que não nos interessam por serem anteriores às possibilidades discutidas nessa ação, restam as Tradições Vieira, Taquara e Tupi-Guarani: “sabemos que os três sistemas em estudo adaptaram-se, de maneira bastante eficaz, a ambientes ecológicos distintos. Os sítios da Tradição Taquara são encontrados, principalmente, nas áreas altas do Planalto, associados à mata mista com pinheiros; os sítios da tradição Vieira apresentam uma distribuição que coincide, por um lado, com as áreas da Campanha e, por outro, as áreas alagadiças em torno das grandes lagoas litorâneas; finalmente, os sítios da tradição Tupiguarani distribuem-se ao longo das áreas cobertas por mata subtropical, que ocorrem principalmente nas várzeas férteis das bacias dos Rios Uruguai e Jacuí. O Estado do Rio Grande do Sul representa um dos limites meridionais dos sistemas ecológicos relacionados à mata de pinheiros e a floresta subtropical que, por sua vez, se encontram com o sistema de campos que tem seu limite norte, aproximadamente, na altura do vale do Jacuí, à medida que esse inflete para o leste. Certamente não é por acaso que as populações portadoras das tradições Taquara, Vieira e Tupiguarani ocuparam tais sistemas ambientais específicos. Ao que tudo indica, continuaram a reproduzir um modo de vida cuja adaptação principal, em ambientes semelhantes, já havia ocorrido: o Planalto Central do Brasil, no primeiro caso; a região do pampa e litoral argentino e uruguaio, no segundo e a floresta amazônica no terceiro (…). Assim, a expansão daquelas tradições cerâmicas parece ter-se dado acompanhando tais sistemas ambientais e ajustando-se a eventuais diferenças desde suas áreas de origem. Nesse sentido, da mesma forma que o território sul-riograndense apresenta-se como uma área de confluência para esses três grandes sistemas ambientais, também o é para os sistemas socioculturais relacionados àquelas tradições cerâmicas” (ROGGE, Jairo Henrique. Fenômenos de fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições cerâmicas pré-históricas no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004, p. 16, grifou-se).


Grosso modo, os Charruas e Minuanos relacionam-se à Tradição Vieira; os Guaranis à Tradição Tupiguarani, e os Kaingangs à Tradição Taquara. Como já dissemos, a ocupação guarani ocorria nas áreas de mata subtropical, que se estende ao longo do Rio Uruguai e seus afluentes, ao longo do Rio Jacuí e seus afluentes, e ao longo da costa marítima e suas lagoas: “ao tempo da colonização européia, no séc. XVI e XVII, todas as áreas de mata subtropical ao longo da costa, na borda do planalto, na serra do Sudeste e ao longo dos rios estavam ocupadas pelos agricultores guaranis” (SCHMITZ, Pedro Ignácio. Migrantes da Amazônia: a Tradição Tupiguarani. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 303). Eles haviam descido da Amazônia para o sul pelos caminhos hidrográficos da bacia platina, tendo se instalado desde o sul do Mato Grosso e do Trópico de Capricórnio, até a foz do rio da Prata, ocupando ainda o litoral brasileiro, mas deixando intocadas as alturas do planalto meridional e o pampa. Através do vale do rio Jacuí, eles atingem os litorais sul-brasileiro e uruguaio, instalando-se nas matas que bordejam as lagoas, as lagunas e os pequenos rios da costa atlântica e as encostas da Serra do Sudeste, no Rio Grande do Sul (KERN, Arno Alvarez. Antecedentes Indígenas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994, pp. 104-107, onde consta um mapa sobre “área de dispersão dos sítios e da cerâmica dos Guaranis” às pp. 108-109). São eles que chegaram à região de Porto Alegre (GAULIER, Patrícia Laure. Ocupação pré-histórica guarani no município de Porto Alegre: Considerações preliminares e primeira datação do sítio arqueológico [rs-71-c] da Ilha Francisco Manoel. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira. São Paulo, nº 14/15, 2001-2002, pp. 57-73).

Os Kaingangs são relacionados à Tradição Taquara (DIAS, Jefferson Luciano Zuch. A Tradição Taquara e sua ligação com o índio kaingang. Dissertação de mestrado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004). Essa designação de Tradição Taquara serve para identificar “aqueles sítios arqueológicos que têm cerâmica de uma certa característica: ela é pequena, composta de potes e tigelas, com decoração impressa variada, onde são facilmente distinguíveis negativos de cestaria, depressões regulares produzidas por pontas de vários formatos, ou das unhas, incisões lineares etc. A identificação da tradição é feita principalmente pela cerâmica, totalmente diferente da Tupi-guarani e bastante diferente da Vieira. Mas esta tradição se caracteriza também, com relação às outras duas tradições ceramistas indígenas do estado, por seus trabalhos de engenharia de terra. Nela se encontram casas subterrâneas, galerias nas encostas dos morros, taipas fechando espaços à semelhança de fortificações, terraços de terra e pedra, além de montículos mortuários e/ou cerimoniais. A primeira impressão que dela se possuía era de um grupo coletor-caçador e pequeno plantador que, devido a condições mais precárias de ambiente e solo, ocuparia, em termos econômicos, uma posição muito inferior ao Tupiguarani. Fazendo agora um novo balanço, com mais informações e melhor ponderação das mesmas, esta diferença parece diminuir, percebendo-se uma economia equilibrada, capaz de manter um grupo relativamente numeroso desde o séc. II de nossa era até o embate da conquista européia. Hoje há uma idéia absolutamente dominante de que a população sobreviveu mesmo a este, embora com nomes cambiantes (Guaianá, Coroado, Kaingang) e em condições cada vez menos satisfatórias devido à progressiva redução de seu território e, com isso, de seu potencial de abastecimento, estando representada hoje por grupos Kaingang das reservas indígenas do nordeste e noroeste do estado” (SCHMITZ, Pedro Ignácio; BECKER, Ítala Irene Basile. Os primitivos engenheiros do planalto e suas estruturas subterrâneas: a Tradição Taquara. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, p. 252, grifou-se).

Quando se examinam as diferentes fases da Tradição Taquara (SCHMITZ, Pedro Ignácio; BECKER, Ítala Irene Basile. Os primitivos engenheiros do planalto e suas estruturas subterrâneas: a Tradição Taquara. In: Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1997, pp. 256-267) ou se especula sobre como apareceu e de onde surgiu o grupo que integrava essa tradição (op. cit., pp. 275-279), não há menção à região de Porto Alegre como tendo relação com a história desses grupos. O mesmo se pode dizer quando se examinam as migrações e os assentamentos de grupos Kaingangs no Estado, não havendo relação em passado distante com a região de Porto Alegre (BECKER, Ítala Irene Basile. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1995, pp. 59-89).


Então o reconhecimento de que o Morro do Osso é terra tradicional indígena Kaingang, com um passado que vincule aquela área à Comunidade Indígena Kaingang que a reivindica seria algo que modificaria a concepção que se tem da distribuição das tradições arqueológicas e grupos indígenas na pré-história do Rio Grande do Sul. Não que isso seja impossível, mas é muito difícil reconhecer isso numa ação judicial, quando não existem evidências mínimas nem estudos conclusivos que corroborem essa hipótese.

Décimo-terceiro, não podem ser ignoradas as regiões de fronteira e contato entre os diferentes grupos indígenas. Considerando que os guaranis ocupavam a região do Rio Jacuí e o Guaíba, quem sabe não existisse ali também ocupação Kaingang, criando uma zona de contato entre os diferentes povos?

Se tivesse havido contato entre Guaranis e Kaingangs na pré-história de Porto Alegre, deveria existir registros históricos ou arqueológicos disso. Mas o que temos nos autos é apenas uma vaga possibilidade, mencionada na nota técnica do Prof. Sérgio Baptista da Silva, a respeito da memória guarani sobre uma aldeia Kaingang: “Conforme depoimento de antigo morador do bairro limítrofe ao Parque, neste período um índio proveniente da cidade gaúcha de Cruz Alta, com o qual conviveu intensamente durante todo esse período, fixou moradia no Morro do Osso, exercendo atividades tradicionais de caça (com vários tipos de armadilhas e por intermédio de arco e flecha), coleta de frutas, raízes e plantas, além da confecção de artefatos para realizar suas atividades cotidianas e de sustentabilidade no local (feitura de arco e flecha e pontas de projéteis líticas). Este mesmo índio, que além de falar português, expressava-se em ‘língua estranha’, fez constantes referências a uma antiga tekoá (aldeia) de seus parentes, que há várias décadas atrás teria existido no Morro do Osso. Sobre esta aldeia histórica (algum momento entre o século XIX e XX?), a memória social dos atuais Mbyá-Guarani das várias tekoá do Rio Grande do Sul e Santa Catarina tem informações consistentes, compartilhadas por diversos interlocutores Guarani. Segundo eles, no tempo do avô de um atual xamã Guarani nonagenário, hoje estabelecido em aldeia no Estado de Santa Catarina, havia no Morro do Osso uma tekoá guarani” (fls. 205-207 dos autos, grifou-se).

Isso não é suficiente para autorizar o reconhecimento do Morro do Osso como terra indígena Kaingang, porque seria necessário que essa possibilidade fosse melhor explorada em estudos a respeito, produzindo uma prova consistente do que dela decorre: uma zona de contato entre os diferentes grupos. Isso não seria nada de extraordinário, porque o tema dos contatos e das fronteiras entre os grupos já foi objeto de estudos, como por exemplo uma tese de doutorado apresentada recentemente na UNISINOS (ROGGE, Jairo Henrique. Fenômenos de fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições cerâmicas pré-históricas no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004).

Ora, tivesse havido o contato entre guaranis e kaingangs na região de Porto Alegre, certamente teríamos algo possível de ser evidenciado, como ocorreu nessa tese de doutorado. Ela esmiuçou pontos de contato encontrados na Bacia do Rio Pardo (entre portadores das Tradições Tupiguarani, Taquara e Vieira), no Baixo Rio Camaquã (entre os portadores das Tradições Tupiguarani e Vieira, no Litoral Central no Balneário de Quintão (entre os portadores das Tradições Tupiguarani e Taquara), no Alto Rio Uruguai (entre os portadores das Tradições Tupiguarani e Taquara) (ROGGE, Jairo Henrique. Fenômenos de fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições cerâmicas pré-históricas no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado apresentada na UNISINOS. São Leopoldo, 2004, pp. 38-42), mas nada mencionou sobre zonas de fronteiras ou pontos de contato entre a Tradição Taquara e a Tupiguarani na região de Porto Alegre.

Não é absurdo esse Juízo concluir, então, que não existe evidência de que a região de Porto Alegre, onde se localiza o Morro do Osso, tenha sido uma dessas zonas de contato entre duas tradições, a justificar a possibilidade de reconhecer ocupação tradicional Kaingang no Morro do Osso. Se houvesse essa zona de fronteira, provavelmente existiriam registros que permitiriam uma reconstrução mínima da existência do contato. Mas só o que veio aos autos foi a nota técnica de fls. 205-207, que é imprecisa, não menciona nomes, não menciona estudos, não contém referências que pudessem ser objetivamente constatáveis.

Décimo-quarto, no seu parecer o Ministério Público invoca os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, que justificariam a permanência da Comunidade Indígena Kaingang na área do Morro do Osso, até que a questão fosse resolvida de forma definitiva pelo Poder Judiciário, concluindo que “não se pode de modo algum se determinar a retirada da Comunidade Indígena Kaingang do local sem antes ter-se segurança jurídica para tanto. E se realmente o Morro do Osso constitui terra indígena de acordo com os ditames constitucionais? Em se verificando posteriormente que para tal questionamento a resposta é afirmativa, ao proceder-se ao despejo dos integrantes da Comunidade Indígena no local, no presente momento, estar-se-ia cometendo-se uma atrocidade sem proporções, tolhendo-se um direito fundamental. Ao despejá-los sem um mínimo de prova contrária aos seus anseios, sem ao menos verificar se a permanência àquela terra teria respaldo em ocupação tradicional, estaria se negando vigência ao texto constitucional” (fls. 170 dos autos).


Entretanto, todo esforço que esse Juízo fez para fundamentar sua decisão mostra que não está agindo de forma irresponsável nem está a cometer uma atrocidade contra a Comunidade Indígena. O respeito aos direitos fundamentais não pode ser válido apenas em relação a uma categoria de pessoas, mesmo que essas sejam merecedoras de especial proteção do Estado. Todos têm direito a igual proteção do Poder Judiciário. Esse Juízo diuturnamente sempre tem procurado isso: reconhecer a todos os seus direitos. Olhar os fatos de todas as perspectivas que consegue, procurar a imparcialidade e a isenção, reconhecendo sempre que há uma ordem jurídica, legitimada por todos e necessária para todos nós. Não pode esse Juízo proteger esse ou aquele grupo apenas porque acredite que eles mereçam uma proteção especial. Todos têm direito a uma igual proteção. Isso não é negar vigência a direitos humanos ou desconsiderar a dignidade que cada ser vivo é portador.

Não duvido nem questiono as crenças da Comunidade Indígena. Nossa mentalidade urbana e européia não consegue compreender a riqueza da cultura indígena, sua diversidade, suas diferenças, as dificuldades para sobreviver e os problemas ao se adaptar. Esses problemas das comunidades indígenas, decorrentes do contato com a dita “civilização”, não devem ser motivos para querermos que se aculturem ou abdiquem de suas tradições e crenças, mas motivo para que se faça o possível para deixá-los em paz, para deixá-los continuar produzindo sua cultura e se perpetuando enquanto comunidades tradicionais e guardiãs de uma forma diferente de ver o mundo e valorizar as coisas. Mas isso não significa que eles não estejam subordinados à mesma ordem jurídica a que estamos. Não significa que eles possam livremente escolher os locais em que vão reproduzir sua cultura. O direito não é absoluto, como nenhum direito é absoluto. Não pode estar apenas no imaginário ou nas crenças da comunidade indígena a justificativa para ocupação do Morro do Osso. É precisa que exista algo externo e pretérito que a justifique. É isso que estabelece o art. 231 da CF/88. No caso dos autos, esses elementos ainda não foram apresentados de forma conclusiva. Se não foram, o fumus boni júris está em favor do Município, pela manutenção do Morro do Osso como unidade de conservação ambiental municipal, submetida a ocupação da área e do entorno ao respectivo plano de manejo.

Por isso, reconheço que existe grande probabilidade de que a pretensão do Município de Porto Alegre retomar a área do Parque Natural do Morro do Osso venha a ser acolhida judicialmente, considerando os fatos e conhecimentos a que esse Juízo teve acesso até esse momento. Por isso, reconheço que há fumus boni juris na pretensão possessória do Município de Porto Alegre, primeiro requisito para o deferimento da liminar postulada.

Sobre o periculum in mora, interessa aqui examinar a preservação dos interesses que estão sendo discutidos, evitando que sofram danos irreversíveis ou que se percam. Se no tocante ao fumus boni júris prevaleceu o exame da questão cultural (arts. 215-216 da CF/88) e da natureza tradicional das terras indígenas (art. 231 da CF/88), o que deve ser pesado agora é o risco de dano ambiental e de dano para a integridade física da própria Comunidade Indígena. Entre os interesses em conflito, cabe a esse Juízo adotar as providências que melhor os preservam até a decisão final da lide.

Considerando o que foi alegado e está provado nos autos, esse Juízo entende que é prudente e necessário determinar a desocupação da área do Parque Natural do Morro do Osso pela Comunidade Indígena Kaingang, adotando as providências necessárias para que sejam provisoriamente acomodados em outra área, até solução judicial definitiva. Essa conclusão se baseia nos elementos a seguir indicados e analisados:

Primeiro, a área do Morro do Osso é um “santuário cercado pela cidade“, como está resumido e descrito no Atlas Ambiental de Porto Alegre: “o Morro do Osso, com 143 m, faz parte da Crista de Porto Alegre e localiza-se próximo à margem do Lago Guaíba. Possui aproximadamente 220 hectares de área natural e constitui um importante reduto biológico, praticamente isolado pela crescente urbanização dos bairros Tristeza, Ipanema, Camaquã e Cavalhada, adjacentes ao morro. Esse patrimônio natural destaca-se pela biodiversidade, tanto em ambientes de campo como de mata, e contempla áreas de apurada beleza paisagística e valor arqueológico. Até o momento, foram encontradas nas diversas formações vegetais cerca de 360 espécies de 80 famílias de plantas fanerógamas. (…) O Morro do Osso apresente, ainda, algumas espécies arbóreas sob possível ameaça de extinção tanto regional quanto nacionalmente. Segundo a Sociedade Botânica do Brasil, a canela-preta (Ocotea catharinensis) enquadra-se na categoria vulnerável, pois está sujeita à destruição de seu habitat em sua área de ocorrência. O Decreto-Lei 29.019 de 1979 limita o corte de espécies vegetais consideradas em via de extinção no Estado. Dessas, estão presentes no morro a corticeira-da-serra (Erythrina falcata) e as figueiras do gênero Fícus, em questão, F. enormis (figueira-branca), F. insípida e F. organensis (figueira-de-folha-miúda). Além disso, ocorrem espécies com distribuição muito restrita em Porto Alegre, destacando-se o sobraji (Colubrina glandulosa) e Eugenia florida (até o momento encontrado somente neste local do município), juntamente com a caroba (Jacarandá micrantha), o pau-de-malho (Machaerium paraguariense) e o pau-gambá (Albizia austrobrasilica). Essas matas, além de sua raridade e importância paisagística, abrigam uma fauna significativa, principalmente aves, pequenos mamíferos, répteis e anfíbios” (Atlas Ambiental de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998, p. 80, grifou-se). A área é identificada como de vulnerabilidade muito alta e de vulnerabilidade alta no mapa de vulnerabilidade à ocupação urbana contido no Atlas Ambiental de Porto Alegre (op. cit., pp. 155-156).


Também basta passarmos os olhos pelas páginas coloridas da publicação “Flora e Fauna do Parque Natural Morro do Osso”. (MIRAPELHETE, Simone Rodrigues (Coord. e Org.). Flora e Fauna do Parque Natural Morro do Osso. Porto Alegre: SMAM, 2001) para se concluir que a área é bela, mas também frágil. Ali a natureza luta para sobreviver, preservar-se e adaptar-se à cidade, tal qual a Comunidade Indígena que ocupa a área, sendo um ponto estratégico de fronteira entre cidade e natureza: “o Morro do Osso representa uma área estratégica, tanto do ponto de vista ambiental, pois demarca o limite entre a zona urbanizada e as áreas de preservação, quanto do ponto de vista histórico e cultural” (op. cit., p. 14).

Sendo parte integrante do bioma Mata Atlântica, goza de reconhecimento constitucional como patrimônio nacional (art. 225-§ 4º da CF/88) e está exposta à fragilidade que é inerente ao restante da Mata Atlântica brasileira: “É inquestionável a importância da Mata Atlântica para o país, por abrigar em seu domínio a maior parte da população brasileira e por possuir um dos maiores índices de diversidade biológica do planeta. O bioma, distribuído ao longo do litoral, com presença mais acentuada nas regiões Sudeste e Sul, encontra-se bastante fragmentado, possuindo apenas 7,84% de sua área original, devido a um processo histórico de ocupação predatória. Mesmo assim, a floresta ainda contribui enormemente para a preservação de mananciais, o abastecimento de água potável à população e a regulação climática da região. O futuro da Mata Atlântica depende da preservação de seus remanescentes e de ações de recuperação, para que se atinja um índice de 30 a 35% de áreas florestais, considerado ideal para a manutenção da qualidade de vida humana” (SCHAFFER, Wigold. B. e PROCHNOW, Miriam (org.). A Mata Atlântica e Você: como preservar, recuperar e se beneficiar da mais ameaçada floresta brasileira. Brasília: Apremavi, 2002, p. 5).

Isso tudo é suficiente para evidenciar a fragilidade e a importância da preservação ambiental daquela área do Morro do Osso, que parece essencial não só para preservação dos ecossistemas lá estabelecidos, como também para manutenção da qualidade de vida na cidade de Porto Alegre.

Segundo, a permanência da Comunidade Indígena no entorno e no interior do Parque, sem que essa ocupação observe o plano de manejo existente, certamente contribui para que sejam causados danos ambientais. O meio ambiente local é frágil e a ocupação pela Comunidade Indígena, dada a forma como iniciou e a falta de assistência apropriada pelos órgãos competentes (já que não se trata de ocupação autorizada ou reconhecida), pode trazer conseqüências graves não apenas para o meio ambiente, mas também para os próprios integrantes da Comunidade Indígena. Basta mencionar que a Lei 9.605/98, que trata dos crimes contra o meio ambiente, continua vigente e alcança as condutas praticadas no interior daquela unidade de conservação municipal, não importando se os infratores são ou não integrantes de grupos indígenas. O documento trazido por um grupo de ambientalistas aos autos (fls. 319-321) traz considerações a respeito, devendo servir de alerta para que a Comunidade Indígena evite certas práticas no interior do Parque que poderiam acabar resultando em mais problemas com as autoridades responsáveis, inclusive no âmbito criminal. A presença humana na área do Parque Natural do Morro do Osso deve observar o plano de manejo do parque, ao menos enquanto não for desconstituído, judicial ou administrativamente, o título que detém o Município de Porto Alegre. Já foram realizados estudos, por exemplo, mostrando que existe um forte impacto na manutenção de trilhas sobre a vegetação do Parque: “o plano de manejo de um parque deve considerar, entre outros tópicos, a visitação do parque através de trilhas. Estas, porém, não podem ser utilizadas de forma indiscriminada evitando um impacto muito grande sobre as formações vegetais e, conseqüentemente, sobre as comunidades animais presentes. A fragmentação de um habitat, no caso, causado por trilhas aumentam drasticamente a quantidade de borda acarretando diminuição de área núcleo nos fragmentos. Levando em consideração a diferença do microambiente da borda em relação ao centro do fragmento, plantas e animais adaptados às condições encontradas no interior da mancha poderão ter sua densidade diminuída ou poderão até ser eliminados pelo efeito da fragmentação. O presente trabalho tem por objetivo espacializar o impacto das trilhas sobre as formações vegetais encontradas no Parque Municipal Morro do Osso no município de Porto Alegre (…). Resultados preliminares indicam que as trilhas atuais têm impacto sobre 61,75% da área total do parque. A formação vegetal com maior impacto é o campo (81,2%) e o menor impacto é observado na mata densa (45,7%)” (HASENACK, H; CORDEIRO, J. L. P. Impacto de trilhas sobre a vegetação do Parque Municipal Morro do Osso. Obtido na Internet em: sap.ucpel.tche.br. Acesso em: outubro de 2005). A presença humana dentro e no entorno do parque pode resultar em prejuízos semelhantes ao ambiente local.


Terceiro, o local é inapropriado para a permanência da Comunidade Indígena, como reconhece o próprio NIT-UFRGS ao se dirigir à FUNAI: “A parentela que reivindica o Morro do Osso enquanto Terra Kaingang consiste de cerca de 22 famílias, com um contingente de 80 crianças, além de velhos e mulheres grávidas. As condições do acampamento Kaingang no Morro do Osso são extremamente precárias. A aproximação do inverno, o tráfego urbano e a ausência de saneamento são agravantes relevantes” (fls. 201 dos autos). Basta também examinar as fotos da ocupação, trazidas pelo Município de Porto Alegre, para se concluir que as instalações são inapropriadas para os que lá estão alojados.

Quarto, tem havido conflitos entre os integrantes da Comunidade Indígena e os moradores das imediações, e também com agentes públicos municipais. Nem as autoridades municipais nem os moradores da região reconhecem a ocupação do Morro do Osso pela Comunidade Indígena, com risco de serem acirrados os ânimos e acabar ocorrendo situação de enfrentamento entre eles, como já aconteceu — e foi amplamente divulgado pela imprensa — num incidente havido na Semana do Meio-Ambiente nesse ano, quando houve atrito entre Secretário Municipal e integrantes da Comunidade Indígena. Independente de quem tenha razão no episódio, isso está a demonstrar que o local não é apropriado para uma ocupação provisória e que fatos mais graves podem acabar acontecendo. O Município, por exemplo, dá conta do deslocamento de uma cancela pela Comunidade Indígena, e sua colocação na via pública, para impedir o acesso de cidadãos às ruas (petição de fls. 229-230 e foto de fls. 223). Independente da comprovação ou não desse fato, fica evidente que a presença da Comunidade Indígena no local está expondo não apenas o meio ambiente a risco de danos, mas também a própria Comunidade e os agentes municipais responsáveis pelo Parque. Também há inconformismo dos moradores da região, que inclusive encaminharam a esse Juízo reclamação formal quanto a isso (fls. 333-393). Sem entrar no mérito de quem tem razão, é certo que a ocupação pela Comunidade Indígena não foi autorizada pela Administração Municipal nem pelo Poder Judiciário, nem existem indícios de que se trate de posse do art. 231 da CF/88, o que recomenda então que se providencie imediatamente na desocupação da área para evitar um conflito de maior proporção entre os envolvidos (Comunidade Indígena, moradores da região, agentes públicos municipais, etc).

Quinto, a desocupação da área pela Comunidade Indígena não terá repercussões sobre sua pretensão reivindicatória e demarcatória que consta da ação ordinária, porque o julgamento daquela outra ação não depende de posse atual da área. Na outra ação, haverá ampla discussão e instrução probatória, assegurando às partes produzirem suas provas e formularem suas alegações, julgando-se o feito de acordo com as regras do devido processo, com um julgamento justo e imparcial para ambas as partes, com possibilidade de ampla defesa e submissão ao duplo grau de jurisdição. O julgamento da ação ordinária não dependerá de boa vontade ou injunções políticas, porque se vive num Estado democrático de Direito e o Poder Judiciário deve ser independente. O julgamento da ação dependerá então do art. 231 da CF/88, já existindo norma positivada em favor da pretensão da Comunidade Indígena, discutindo-se apenas se essa norma é ou não aplicável a situação fática pretendida. Seria diferente se não existisse uma norma como o art. 231 da CF/88, quando então a Comunidade Indígena teria que lutar pelo reconhecimento de sua existência e do direito de continuarem sendo diferentes, sendo então talvez legítimo recorrerem a outros meios de pressão política para que a solução fosse resolvida. Mas existe a norma constitucional e tudo se resume em identificar a origem da ocupação daquele local no passado. Ou seja, permaneçam ou não os índios Kaingang naquele local, isso não interfere no julgamento da ação ordinária. Da mesma forma, a presente liminar não encerra a discussão a respeito, apenas procura preservar ambos os interesses (preservação do meio ambiente, pelo Município; preservação da cultura indígena, pela Comunidade Indígena) até decisão judicial final na ação ordinária, sujeita ainda aos recursos próprios.

Sexto, por fim deve ponderar esse Juízo que o Município de Porto Alegre não pretende deixar desabrigada a Comunidade Indígena Kaingang, também reconhecendo sua importância na formação cultural do povo gaúcho. Anteriormente, em fevereiro de 2003, foi repassada a quarenta e cinco famílias de índios Kaingangs uma área de seis hectares na Lomba do Pinheiro, gastando-se cerca de R$ 100.000,00 para aquisição da área (“Caingangues passarão a ocupar espaço na Lomba do Pinheiro”, obtida na Internet, em www.agirazul.com.br/fsm4/_fsm/000000b8.htm. Acesso em: 13.10.05). Agora, o Município de Porto Alegre ofereceu à Comunidade Kaingang que ocupa o Morro do Osso uma área de 10 hectares, avaliada em cerca de R$ 300.000,00 (fls. 230 e 308). Isso mostra o empenho do Município de Porto Alegre em resolver a questão, constituindo-se uma solução viável para provisoriamente atender ao interesse de ambas as partes, enquanto não se resolve definitivamente a questão da propriedade da área do atual Morro do Osso na ação ordinária. Portanto, há um local para alojamento provisório da Comunidade Indígena, mostrando-se o Poder Público Municipal empenhado em resolver a questão, oferecendo um local adequado para a acomodação provisória da Comunidade, enquanto se discute no devido processo quem tem direito definitivo à terra.


Sétimo, e talvez o mais importante, não há como deixar de reconhecer que a luta da Comunidade Indígena pela ocupação do Parque Natural do Morro do Osso despertou a cidade para a importância ambiental (Mata Atlântica) e cultural (sítios arqueológicos) da área do Morro do Osso, obrigando a que os Poderes Públicos e agentes municipais se comprometessem efetivamente com a preservação daquela área, o que talvez venha a colocá-la a salvo da especulação imobiliária e da sua urbanização para atender a uns poucos privilegiados que lá poderiam construir suas residências. O Poder Público Municipal, nessa e nas administrações passadas, parece que foi obrigado a despertar para a importância da área, sendo cobrado por parcelas expressivas da população de Porto Alegre quanto à necessidade de adotar providências urgentes e efetivas para defesa ambiental e cultural daquela área, inclusive quanto à ampliação da área da unidade de conservação municipal que lá existe. Toda a discussão que existe sobre a ocupação indígena do Morro do Osso tem contribuído para que as posições dos diversos agentes políticos sejam conhecidas na cidade e que compromissos sejam feitos no sentido de preservar a área. A pressão da sociedade e o conhecimento público das razões dessa decisão é importante para que no futuro se possa cobrar dos agentes políticos responsáveis a destinação que deram ao Morro do Osso, seja por sua atuação política, seja por sua omissão em prosseguir no que prometeram. A ocupação indígena do Morro do Osso parece que fez com que Porto Alegre, sua população, sua imprensa, sua sociedade despertasse para o “santuário cercado pela cidade” que existe dentro da área urbana da cidade. E esse Juízo acredita que o Município de Porto Alegre certamente levará em frente a luta de anos para implantar e aumentar o Parque Natural do Morro do Osso, não se correndo o risco de que, daqui a alguns anos, a especulação imobiliária tenha conseguido soterrar os sítios arqueológicos e a biodiversidade ambiental da área. Seja como for, a Comunidade Indígena contribuiu para que os agentes políticos municipais se manifestassem publicamente e se comprometessem com essas manifestações no sentido de preservar e salvar o Morro do Osso de qualquer outro interesse que não o de preservação ambiental. Caberá então à sociedade cobrar que a preservação ambiental prometida seja observada e que o Poder Público Municipal se empenhe efetivamente com a ampliação da área do Parque Natural do Morro do Osso.

Por tudo isso, reconheço que existe uma situação de grave risco com a manutenção da ocupação indígena no Morro do Osso como vem ocorrendo, expondo a risco o meio ambiente (fragilidade do ambiente) e a própria Comunidade Indígena (hostilidade do ambiente), e havendo alternativa razoável para acomodação provisória da Comunidade Indígena enquanto aguarda o julgamento definitivo da ação ordinária que ajuizou para buscar o reconhecimento do domínio indígena Kaingang sobre o Morro do Osso. Por isso, reconheço que há periculum in mora na pretensão possessória do Município de Porto Alegre, requisito derradeiro para o deferimento da liminar postulada.

Sobre as providências que devem ser adotadas para reintegração na posse, não poderia esse Juízo simplesmente determinar a reintegração do Município na posse da área ocupada no Morro do Osso, sem se preocupar com a retirada e acomodação dessas pessoas em outro local dentro de Porto Alegre, evitando que seja causado um grave dano à sua integridade cultural e que fiquem completamente desabrigadas. É certo que a Comunidade Indígena, se assim quiser, poderá se remover para outro local ou então retornar para o local de origem, ficando assegurada sua liberdade de locomoção e não cabendo interferência desse Juízo quanto a isso. Entretanto, caso não pretenda se deslocar para outro local ou se faça necessário o cumprimento forçado da ordem judicial da reintegração, cabe a esse Juízo determinar que a parte autora providencie no que for necessário para acomodação e transporte dessas pessoas para local apropriado, juntamente com seus objetos e pertences, que também devem ser removidos da área do Morro do Osso. Como existe empenho do Município de Porto Alegre em resolver a questão, certamente reconhecendo a importância cultural da presença Kaingang em Porto Alegre e como estão avançadas as tratativas para aquisição de uma área bastante razoável e dotada da infra-estrutura necessária para que a Comunidade Indígena seja ali instalada, à semelhança do que já fora feito na Lomba do Pinheiro, determina esse Juízo que então a Prefeitura de Porto Alegre providencie a aquisição dessa área no Canta-Galo e na construção na mesma da infra-estrutura necessária para abrigar adequadamente, mesmo que provisoriamente, a Comunidade Indígena quando da desocupação do Morro do Osso. Caso o Município não concorde com essa providência e venha recorrer contra a determinação, fica também determinado que, reformada ou suspensa a determinação de aquisição daquela área do Canta-Galo pelo TRF4ªR, o Município de Porto Alegre deverá providenciar uma outra área dentro de Porto Alegre onde possa ser acomodada provisoriamente a Comunidade Indígena, com seus bens e pertences, com adequada infraestrutura e o necessário para assegurar o mínimo existencial à comunidade.


Sobre a liminar, existindo autorização legal para tanto (arts. 273-I e 924 do CPC; art. 5º-XXXV e LXXVIII da CF/88), tendo havido requerimento expresso quanto a isso (petições do Município de Porto Alegre) e estando presente o duplo requisito que autoriza essa providência judicial, defiro parcialmente a liminar requerida pelo Município de Porto Alegre para determinar: (a) que o Município seja reintegrado na posse daquelas áreas do Parque do Morro do Osso e das vias públicas adjacentes ocupadas pela Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso; (b) que em 30 dias a Comunidade Indígena Kaingang desocupe a área dentro e no entorno do Parque Natural do Morro do Osso, inclusive vias públicas, sob pena de ser compulsoriamente removida; (c) que o Município de Porto Alegre providencie no que for necessário para cumprimento dessa decisão judicial por Oficial de Justiça, disponibilizando os meios materiais e humanos necessários para transporte das pessoas e remoção de todos os bens, pertences e objetos existentes na área atualmente ocupada; (d) que o Município de Porto Alegre providencie na aquisição da área de terras de 10 hectares no Canta-Galo oferecida na petição de fls. 230 e na audiência de fls. 308, dotando-a da infra-estrutura necessária à acomodação da Comunidade Indígena Kaingang (infraestrutura semelhante àquela da Lomba do Pinheiro, inclusive com água, luz e escola bilíngue) e para lá providenciando o transporte e a remoção da Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso, se essa não indicar, em dez dias contados da intimação dessa decisão, outro local dentro de Porto Alegre para onde deseje e possa ser removida, com seus bens e pertences; (e) que o Município providencie, se o TRF4ªR reformar ou suspender o item anterior dessa liminar, uma outra área dentro do Município de Porto Alegre onde possa ser acomodada provisoriamente a Comunidade Indígena, com seus bens e pertences, com adequada infraestrutura e o necessário para assegurar o mínimo existencial à comunidade.

Sobre o prazo de cumprimento da liminar, é conveniente que seja concedido prazo de 30 dias para desocupação voluntária da área pela Comunidade Indígena porque, durante esse prazo: (a) será possível que as partes e o Ministério Público interponham os recursos que entenderem apropriados contra essa decisão; (b) será possível que o Município de Porto Alegre adote as providências necessárias para aquisição da área para acomodação da Comunidade Indígena, inclusive dotando-a da infraestrutura necessária.

Sobre a liminar deferida no início do processo, ficam mantidos, continuam vigendo e devendo ser imediatamente cumpridas as determinações desse Juízo contidas no item 4 de fls. 70-72, onde se deferiu liminar possessória em favor do Município para: “(a) impedir que novas construções sejam feitas ou edificadas no interior do Parque do Morro do Osso ou no local atualmente ocupado pela Comunidade Indígena que ocupa o pólo passivo; (b) determinar àquela Comunidade Indígena que se abstenha de fazer novas construções ou edificações naquelas áreas, sob pena das mesmas serem compulsoriamente removidas; (c) determinar a retirada e remoção da construção localizada no interior do Parque do Morro do Osso (aquela casa solitária da foto de fls. 54, marcada com uma seta vermelha, na parte inferior da foto, distante da cancela), a ser cumprida por Oficial de Justiça passadas pelo menos 48 horas da intimação da parte ré quanto à presente decisão, com fornecimento dos recursos e dos meios materiais necessários pelo Município de Porto Alegre e com requisição de força pública se assim se fizer necessário, respeitando-se as normas legais e constitucionais vigentes para essa espécie de medida; (d) fixar multa diária de R$ 100,00 por dia de descumprimento do interdito proibitório aqui determinado, caso sejam feitas novas construções pela Comunidade Indígena no interior ou no entorno do Parque do Morro do Osso”.

Sobre o desentranhamento de documentos (fls. 395-396), os documentos mencionados pela Comunidade Indígena devem permanecer nos autos, porque são elementos relevantes para formação do convencimento do Juízo. Um deles constitui documento técnico elaborado pela FUNAI, dando conta de exame preliminar realizado quanto à ocupação indígena no Morro do Osso. Esse documento foi valorado nessa decisão e, como tal, é prova relevante, que deve permanecer nos autos. Do contrário, tivesse esse Juízo que desentranhá-lo, também teria de fazer o mesmo em relação aos documentos juntados com o parecer do Ministério Público, que também muito se aproximam, na forma (mas com muito menos fundamentação), daquele documento elaborado pela FUNAI. É conveniente que todos esses documentos permaneçam nos autos, submetidos que foram ao contraditório e passíveis de serem valorados judicialmente. O outro documento, embora elaborado por quem não é parte no processo, deve permanecer nos autos também como subsídio para apreciação das questões postas na ação, uma vez que representa segmento da sociedade civil (movimento ambientalista), que também tem direito a manifestar-se e a expressar sua opinião. Aliás, seria contraditória a postura desse Juízo se determinasse o desentranhamento daqueles documentos: a contestação da Comunidade Indígena foi apresentada intempestivamente, fora do prazo legal, e nem por isso esse Juízo determinou o desentranhamento. Essa ação é relevante para os destinos da Comunidade Indígena e afeta vários segmentos da população de Porto Alegre, justificando-se então que esse Juízo mantenha nos autos os documentos que entender relevantes, mesmo que apresentados fora do prazo ou por quem não seja parte. Por isso, indefiro o pedido de fls. 395-396 e mantenho os documentos nos autos.


3. DECISÃO:

Por essas razões, com fundamento nos arts. 273-I e 924 do CPC e no art. 5º-XXXV e LXXVIII da CF/88, ratificando o que foi anteriormente determinado (item 4 de fls. 70-72), defiro parcialmente a liminar requerida pelo Município de Porto Alegre para determinar: (a) que o Município seja reintegrado na posse daquelas áreas do Parque do Morro do Osso e das vias públicas adjacentes ocupadas pela Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso; (b) que em 30 dias a Comunidade Indígena Kaingang desocupe a área dentro e no entorno do Parque Natural do Morro do Osso, inclusive vias públicas, sob pena de ser compulsoriamente removida; (c) que o Município de Porto Alegre providencie no que for necessário para cumprimento dessa decisão judicial por Oficial de Justiça, disponibilizando os meios materiais e humanos necessários para transporte das pessoas e remoção de todos os bens, pertences e objetos existentes na área atualmente ocupada; (d) que o Município de Porto Alegre providencie na aquisição da área de terras de 10 hectares no Canta-Galo oferecida na petição de fls. 230 e na audiência de fls. 308, dotando-a da infra-estrutura necessária à acomodação da Comunidade Indígena Kaingang (infraestrutura semelhante àquela da Lomba do Pinheiro, inclusive com água, luz e escola bilíngue) e para lá providenciando o transporte e a remoção da Comunidade Indígena Kaingang do Morro do Osso, se essa não indicar, em dez dias contados da intimação dessa decisão, outro local dentro de Porto Alegre para onde deseje e possa ser removida, com seus bens e pertences; (e) que o Município providencie, se o TRF4ªR reformar ou suspender o item anterior dessa liminar, uma outra área dentro do Município de Porto Alegre onde possa ser acomodada provisoriamente a Comunidade Indígena, com seus bens e pertences, com adequada infraestrutura e o necessário para assegurar o mínimo existencial à comunidade, nos termos da fundamentação.

Para cumprimento da decisão, também determino o seguinte:

(1) expeçam-se os mandados de intimação dos termos dessa decisão para partes e interessados (Município de Porto Alegre, Comunidade Indígena, FUNAI e União);

(2) inclua-se em nota de expediente, com brevidade, para intimação do procurador da parte ré;

(3) remetam-se ao Ministério Público Federal, para que fique ciente dessa decisão;

(4) após, feitas as intimações e comunicações, aguarde-se o decurso do prazo de desocupação voluntária;

(5) após, decorrido o prazo, intime-se o Município de Porto Alegre para que requeira em cinco dias o que entender quanto ao prosseguimento, inclusive devendo colocar à disposição desse Juízo os meios necessários para cumprimento da medida liminar caso pretenda a desocupação forçada da área a ser reintegrada.[Tab]

Porto Alegre, 17 de outubro de 2005.

Candido Alfredo Silva Leal Junior

Juiz Federal

RECEBIMENTO

Recebi os presentes autos do(a) Juiz(íza) Federal.

Em

p/Diretor(a) de Secretaria _________________

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