O Supremo

Especialista diz que Constituição deu superpoder ao STF

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23 de outubro de 2005, 6h00

Nunca na vida política brasileira um tribunal teve o poder que hoje tem o Supremo Tribunal Federal. Em todas as grandes discussões que ocuparam a vida nacional nos últimos anos, a última palavra coube aos onze ministros do STF. “A Constituição de 1988 regulou todos os campos da vida social brasileira. Ao fazer isso, todo conflito suscitado na sociedade passou a ter natureza constitucional e tomou o rumo do Supremo”.

A constatação é do advogado Oscar Vilhena Vieira em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico.Diretor executivo da Conectas, organização internacional de defesa dos direitos humanos e um estudioso da Constituição e do STF, Vilhena não vê problema nesta concentração de poderes: “É positivo termos uma Constituição tão compromissária e um judiciário que esteja todo o tempo colocando pressão sobre o sistema democrático. Acredito que essa é a Constituição adequada para nós”

Na sexta-feira (21/10), a ConJur publicou a primeira parte da entrevista com Vilhena, na qual ele abordou de modo estudado a questão do armamento da população civil e o referendo sobre o comércio de armas e munição. Nesta seqüência, além da Constituição e do papel do Judiciário na vida nacional, Vilhena trata também de direitos humanos e da responsabilidade social dos advogados: “Com a entrada no Brasil da advocacia pro bono, os profissionais do direito estão tendo a oportunidade de cumprir com sua responsabilidade social através daquilo que melhor sabem fazer”, diz.

Participaram da entrevista com Vilhena os jornalistas Márcio Chaer, Leonardo Fuhrmann, e Aline Pinheiro.

Leia a entrevista

ConJur — Como é que o senhor vê o papel do Supremo Tribunal Federal hoje no país?

Oscar Vilhena — O Supremo vem assumindo um papel cada vez maior no Brasil. As competências que foram dadas a ele a partir da Constituição de 1988, são muito largas. Ele pode fazer o controle de constitucionalidade por via concentrada, por via difusa, pode fazer o controle das emendas da Constituição.

ConJur — Hoje o Supremo governa?

Oscar Vilhena — Eu diria que o Supremo tem passivamente a última palavra em todos os temas quentes da pauta política brasileira. Reforma da Previdência. Quem deu a última palavra não foi o Congresso, foi o STF dizendo que é constitucional. Quem dará a última palavra sobre o desarmamento sequer será o plebiscito. Será o Supremo que irá dizer se ter ou não arma de fogo é um direito. Quem dará a última palavra sobre o aborto, provavelmente será o Supremo. Sem dúvida nenhuma, o Supremo hoje tem um papel incomparável na história brasileira, de profundo destaque, uma arena de decisão política muito forte.

ConJur — O senhor concorda que o STF nos últimos anos passou a produzir construções jurídicas que lhe dão um papel menos passivo e mais ativo — de maneira que grandes modificações têm sido feitas pela via da interpretação e não pela formulação legislativa?

Oscar Vilhena — Eu concordo integralmente, na medida em que questões importantes como essas que mencionamos chegam ao Supremo, e na medida em que temos uma Constituição que é ao mesmo tempo muito prolixa e muito principiológica. A Constituição traz muitos termos de natureza aberta: o princípio da dignidade humana, da desigualdade, da liberdade, da moralidade pública, da eficiência, que foi incluído com a reforma administrativa. Quando um termo deste entra na Constituição, está transferindo a responsabilidade para que o intérprete determine qual é o seu significado. Isso deu poder demais o Supremo. A Constituição é muito pretensiosa, regulou todos os campos da vida social brasileira. Ao fazer isso, cada vez que há um conflito na sociedade brasileira normalmente esse conflito tem natureza constitucional e vai para o Supremo. Hoje, se a discussão é tributária, previdenciária, de processo penal, de ordem moral, de ordem social está na agenda do Supremo, porque tudo isso está na agenda da Constituição. Houve, sem dúvida nenhuma, uma judicialização da política brasileira a partir de 1988.

ConJur — E isso é positivo?

Oscar Vilhena — Isso é uma decorrência da nossa desconfiança na democracia. Quanto mais você confia no seu sistema representativo, menor vai ser aquilo que você protege constitucionalmente, porque de certa forma, confia que as decisões que o processo democrático toma são, necessariamente, boas. Os países que têm Constituições muito fortes, como é o caso do Brasil, da Alemanha, dos Estados Unidos, são países que tem algum tipo de desconfiança na sua democracia. No Brasil a nossa desconfiança é a de que o legislador não cumpra suas obrigações funcionais. Deu-se ao Ministério Público e à magistratura um poder enorme de fiscalizar as instâncias governativas. É positivo nós termos uma Constituição tão compromissaria, engajada, e um judiciário que esteja todo o tempo colocando pressão sobre o sistema democrático. Acredito que essa é a Constituição adequada para nós. Inclusive, tem cláusulas, por exemplo, que eram impensáveis no constitucionalismo que se tornaram cláusulas magníficas: 25% da arrecadação dos estados e dos municípios deve ser investida em educação. Onde é que se viu colocar isso na Constituição? O país sai de um patamar de 80% das crianças na escola e vai para 98%, independentemente da vontade das autoridades que estão lá. É uma Constituição com um monte de defeitos, problemas de redação, técnicos, mas era necessária para um país com uma democracia que não tem a capacidade de entregar aquilo que ela promete.


ConJur — O senhor concorda que houve nos últimos sete, oito anos a germanização do controle concentrado? E que efeito teve?

Oscar Vilhena — É um processo muito curioso. Adotamos o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil pelo decreto que cria a Justiça Federal em 1890, que diz o seguinte: os juízes do novo regime não serão servos da lei, mas antes de aplicá-la eles deverão verificar a sua legitimidade. Quando Rui Barbosa montou a Justiça brasileira falou: “o juiz aqui tem direito de controlar a constitucionalidade das leis”. O controle difuso é uma coisa centenária no Brasil. Os juízes aqui sempre tiveram o poder de aplicar ou não uma lei no caso concreto, em vista dessa lei ser ou não compatível com a Constituição. Isso é forte, porque não está escrito na Constituição que o juiz tenha esse poder. Isso é algo atávico à estrutura do sistema constitucional brasileiro. No Brasil, nunca houve o princípio do direito anglo-americano onde a decisão tomada pelo juiz vincula ele próprio e todos aqueles que estejam abaixo da sua jurisdição. Esse é o principio da decisão vinculante. No início da Republica no Brasil, o Supremo declarava uma norma inconstitucional, e não podia tirar a norma do ordenamento jurídico. Essa norma continuava sendo aplicada. Nós não tínhamos o princípio da vinculação, que tivemos de construir ao longo do século.

ConJur — E como se deu isso?

Oscar Vilhena — Em 1934 criou-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, pela qual se declarava a inconstitucionalidade de lei estadual e a suprimia do ordenamento. Em 1965, os militares criaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade, dando o poder concentrado na medida em que o Supremo declara a inconstitucionalidade, e tira a lei do ordenamento jurídico. Em 1988, isso foi fortalecido. Em 1993, é criado o efeito vinculante na ADI. E agora, com a emenda 45, a gente cria a Súmula Vinculante. É um processo de concentração. Não sei se de germanização, mas é uma europeização do sistema. O sistema reduz um pouco os poderes dos juízes de primeira e segunda instância e transfere esses poderes para o STF. Não sou a favor de uma completa europeização no Brasil, onde se viola a Constituição sem cerimônia. Quanto maiores forem as possibilidades de controlar o abuso do poder, melhor. Concentrar o controle do abuso de poder só no Supremo, significa menos instâncias controladoras. Quando o prefeito de Pindamonhangaba pode fazer isso, ainda que dentro de sua esfera de abrangência, isso garante mais o Estado de Direito. A Súmula Vinculante já é um problema de natureza maior que sim pode limitar o controle difuso da constitucionalidade.

ConJur — Na Alemanha tem Súmula Vinculante?

Oscar Vilhena — Tem a necessidade de ter súmula vinculante, porque na Alemanha se você entra com uma ação e tem um incidente de inconstitucionalidade, o juiz pára o julgamento e encaminha o processo para a corte constitucional. Se a corte constitucional diz “é constitucional”, o processo volta para ele e o julgamento segue tendo em vista que a lei é constitucional. Se ele diz “é inconstitucional”, o julgamento segue como se a lei fosse inconstitucional.

ConJur — O professor Peter Häberle afirmou na recente Conferência da OAB, em Florianópolis que ficou impressionado com o que ele viu sobre a adoção dos institutos recentes e disse que a cópia ficou melhor que o original. O senhor acha que foi retórica ou é isso mesmo?

Oscar Vilhena — Eu não ouvi a fala dele, mas diria que o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil é muito sofisticado. É complicado, mas é sofisticado. Essa conjugação entre controle difuso, que dá a mais de 20.000 juízes a possibilidade de deixar de aplicar uma lei por entenderem que ela é inconstitucional somado a uma corte constitucional extremamente forte como é o Supremo, é um sistema invejável. Este sistema tinha problemas muito fortes e a correções que foram feitas a partir da EC 45 ajudam a resolver alguns desses problemas. Tenho uma apreciação pela Argüição de Repercussão Geral. Porque se tinha no Brasil a idéia de que o Recurso Ordinário é um direito subjetivo. Ou seja, toda pessoa que se sentia violada, podia ir ao Supremo. Não é isso. O direito de ir ao Supremo é um benefício que o sistema te dá, mas fundamentalmente para corrigir deficiências do próprio sistema jurídico. Na Suprema Corte alemã, por exemplo, onde não tem o Recurso Ordinário, mas tem Ação Direta Popular Constitucional, menos de 2% das ações que são propostas pelas pessoas são recebidas pela corte. A Corte serve para organizar o sistema. Ela não é uma corte de cassação, não é um tribunal de terceira instância. E como estava sendo utilizado o Recurso Extraordinário até a EC 45, era um disparate, ter um Supremo Tribunal Federal julgando 140 mil casos por ano. Isso é contraproducente, porque as questões importantes não são julgadas. Espero que o Supremo tenha uma mão-de-ferro em relação aos Recursos Extraordinários e que seja muito suave no uso da Súmula Vinculante. Se ele tiver esta postura em relação aos Recursos Extraordinários, fortalecerá as instâncias inferiores. Até a Emenda 45, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, era um entreposto judicial. Tinha um efeito postergatório enorme no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo. Com a possibilidade do Supremo dizer “eu não vou receber isso daqui”, no fundo está fortalecendo o juiz de primeira e segunda instância, porque as decisões dele serão daqui para frente cada vez mais importante. Porém a súmula vinculante fortalece o Supremo em detrimento do juiz de primeira e segunda instância. O legislador constituinte deu uma no ferro e uma na ferradura, mas a repercussão geral fortalece a base.


ConJur — Para os direitos humanos, os tribunais internacionais são mais eficientes do que os nacionais?

Oscar Vilhena — Eu não acho. Sou daqueles advogados de direitos humanos que entendem que os direitos humanos estarão melhor protegidos quando os tribunais, os órgãos domésticos, o policial da esquina agirem corretamente. Os tribunais internacionais são órgãos absolutamente subsidiários que devem ser procurados em última circunstância. Temos um sistema legal, um Estado de Direito em funcionamento, que tem falhas, mas que podem ser supridas. E nós precisamos é desafiar esse Estado de Direito, levar essas ações ao Judiciário, fazer com que a máquina funcione de acordo com aquelas obrigações que lhe foram impostas pela Constituição. Sou um radical entre os advogados de direitos humanos até, daqueles que querem judicializar a questão internamente. E é isso que a Conectas tem feito.

ConJur — Muita gente enxerga nos direitos humanos um meio de proteção do bandido. Como é que nós podemos nos opor a isso?

Oscar Vilhena — Essa interpretação não é absurda. As pessoas foram levadas a uma interpretação como essa, porque se vinculou muito a idéia dos direitos humanos à idéia daqueles que são torturados pelo poder repressivo do Estado. Isso é mentira? Não, isso é verdade. Quem se preocupa com direitos humanos deve se preocupar com que as pessoas sobre a custódia do Estado não sejam torturadas. Se essas pessoas são bandidas ou não é outra história. Se um professor estava sendo torturado no regime militar, era um problema de direitos humanos. Se hoje quem está sendo torturado, em uma unidade da Febem, é um garoto que cometeu ou não um delito, isto é um erro igualmente. Uma política de direitos humanos em relação ao sistema penitenciário é altamente útil para a sociedade. A pessoa que é colocada no sistema prisional pode apanhar, ser submetida à violação sexual, ser torturada. Evidentemente, que ela vai sair de lá imensamente pior do que entrou. As pessoas que são contra os direitos humanos deviam pensar o seguinte: direitos humanos é uma forma muito boa de melhorar o sistema carcerário e permitir que as pessoas saiam de lá reeducadas, ou pelo menos que não saiam de lá piores.

ConJur — O que engloba os direitos humanos? Qual é o trabalho do Conectas nesse sentido?

Oscar Vilhena — A luta pelos direitos humanos é imensamente maior do que a luta pela não tortura. Nós temos, no nosso escritório de direitos humanos, a defesa das pessoas que querem receber as drogas do HIV e não têm dinheiro para comprar; dos deficientes que querem acessar o mercado de trabalho; da comunidade negra que quer ter acesso à educação. Estamos trabalhando hoje para que haja uma distribuição mais adequada de recursos para a área de educação fundamental. Direitos humanos é tudo aquilo que diz respeito à realização dos planos existenciais das pessoas. Tortura é direitos humanos? Evidente que é. Direitos humanos não é direito de bandido. Direitos humanos é o direito de todos nós. É o seu direito de ter a sua privacidade preservada, de ter educação, de ter um bom plano de saúde, de não ser discriminado porque é homossexual, ou por uma questão racial. Mas também é o seu direito de não ser torturado, porque você está sobre a custódia do Estado.

ConJur — Mas como é que se chega nesse meio termo nessa relação punir e garantir um direito?

Oscar Vilhena — É aplicando a lei. O meio termo é claramente determinado. Uma pessoa suspeita da prática de um ato criminal deve ser punida, e se há uma coisa que hoje é cada vez mais forte no movimento dos direitos humanos, é a luta pelo fim da impunidade. Seja impunidade do criminoso comum, seja a impunidade da autoridade pública. A impunidade é uma das propulsoras das violações dos direitos humanos. Qualquer militante de direitos humanos responsável quer que a lei penal seja aplicada rigorosamente a todos aqueles que cometem delitos, e que a lei processual penal seja rigorosamente aplicada para a apuração se aquela pessoa cometeu ou não delito.

ConJur — Mas como é que você pune sem violar?

Oscar Vilhena — É evidente que a punição é uma restrição de direito. Nós temos uma série de restrições de direitos: que a pessoa continue exercendo a profissão, que continue circulando na rua etc. São diversas formas de restrição e de imposição de obrigação sobre as pessoas e isso não é uma violação dos direitos humanos. Porque a sua liberdade está sendo restringida na medida em que você quebrou o pacto e desrespeitou a liberdade do outro. Mas não está escrito que a punição é você ser torturado, é ficar em um sistema de corrupção que te tire dinheiro, enfim, isso não é parte do pacote. Eu não vejo nenhuma tensão entre essas duas coisas.

ConJur — Pensando no interesse coletivo e individual, nós estamos reescrevendo os parâmetros dos direitos humanos?

Oscar Vilhena — Você tem três lógicas a respeito dessa pergunta. Uma delas eu chamaria de liberal fundamental, para não falar fundamentalista. Por essa lógica, um direito significa um trunfo imbatível em um confronto com interesses coletivos. Logo, se eu tenho a liberdade de expressão, essa liberdade é um trunfo e nenhum outro interesse coletivo se sobrepõe a ela. Ou seja, o interesse agregado das outras pessoas não se sobrepõe ao meu direito. A propriedade sendo um direito fundamental, quando o estado me cobra o imposto de renda, ele está, na realidade, me escravizando. É trabalho escravo, porque se eu ganho R$ 10 mil por mês, 27,5% eu deixo para o fisco, 27% do meu tempo eu estou trabalhando para o governo. Isso é ilegítimo. Isso é uma intervenção arbitrária no meu direito. Essa é uma visão, o chamado neoliberalismo. Mas tem gente que diz: “não existe direito absoluto. Os direitos devem ser harmonizados”. Sempre que houver conflito será preciso fazer uma ponderação e ver qual das medidas a serem tomadas restringem os direitos em menor medida possível. O aborto é um caso clássico. Eu vou restringir o direito da mãe de determinado destino sobre o próprio corpo ou da sua existência, ou eu vou restringir o potencial direito do feto se ele vingar. É uma luta duríssima, porque é uma luta entre direitos. Temos uma outra corrente que poderíamos chamar de utilitarista ou coletivista, ou comunitarista, que você mede o benefício geral. Aqui, o que traz mais benefício geral prevalece sobre o que gera menos benefício geral. A posição da Constituição Brasileira é intermediária. Ela está dizendo que direitos não perdem para interesses coletivos, mas direitos podem ser restringidos em face de interesses coletivos. Agora, quando você tem luta de direito versus direito, a coisa fica mais complicada, porque daí é preciso encontrar uma alternativa que assegure em maior medida possível ambos os direitos.


ConJur — No que diz respeito à reparação pelos direitos e busca dos direitos, o que o senhor acha da ação que pede indenização aos descendentes dos escravos?

Oscar Vilhena — Isso é um problema do pacto intergeracional. Vamos pensar a seguinte situação: O seu avô tinha uma fazenda que foi desapropriada para que ali fosse feito o Parque Estadual da Serra do Mar. Essa desapropriação se deu em 1954. E aí, os governos de lá para cá vêm judicialmente postergando o pagamento e depois de 51 anos a tua família começa a receber essa indenização. Seu avô não está mais aqui, eventualmente, os seus pais também não, e a terceira geração começa a receber. Quem está pagando essa indenização? Somos todos nós que estamos vivendo hoje em São Paulo, que pagamos ICMS quando compramos qualquer coisa. A geração atual está pagando por decisão tomada há 50 anos. Isso é absolutamente legítimo dentro do sistema brasileiro. Agora, temos um conjunto de pessoas que foram tiradas violentamente de seus países, traficadas para o Brasil há séculos e durante três gerações foram escravizadas. Fazendo analise econômica da coisa: o fruto do trabalho delas foi transferido das mãos deles para as mãos dos seus proprietários com autorização do Estado brasileiro. Será que eles podem ser indenizados pelo mal que lhes foi praticado? Você tem uma dificuldade técnica de reparação. Porque Rui Barbosa, no inicio da República, preocupado não com a indenização que iria ser pedida pelos escravos, mas preocupado com a indenização que iria ser pedida pelos donos que estavam perdendo a sua propriedade, queimou os arquivos. Assim nós não sabemos tecnicamente quem foi escravo e quem não foi escravo. Eu não vejo nenhum problema que uma sociedade muitos anos depois, quando se conscientiza de que houve um processo de exploração brutal de um grupo pelo outro, que ela crie mecanismos de indenização. Evidente que tem complicações técnicas, e tem prescrição. O Brasil tem uma dívida moral com aqueles que foram trazidos de forma violenta e do qual nós nos beneficiamos. Eu, como família branca há 300 anos no Brasil, provavelmente sou beneficiário de mão-de-obra escrava.

ConJur — Mas isso se aplica também, por exemplo, para os presos da ditadura?

Oscar Vilhena — Sem dúvida nenhuma. Eu acho que é muito razoável que a coletividade como um todo pague pelos erros que a comunidade fez naquele momento. É evidente que não era uma democracia no regime militar, mas há um princípio básico do direito internacional da continuidade do Estado. O Estado Brasileiro hoje, ainda que o regime tenha mudado, é o mesmo Estado que estava presente no porão torturando e matando Vladimir Herzog. Alguém tem que ser responsável por isso. Não há dúvida que o mal praticado pelo Estado no passado pode e deve ser minimizado por intermédio de indenizações. Eu acho que no caso da comunidade afro-descendente difícil dar dinheiro, mas tem que criar políticas de ação afirmativa. As pessoas foram privadas de educação, da propriedade e da liberdade. Quando começa o jogo republicano essas pessoas não estavam em pé de igualdade, não tinham uma cidadania completa, ainda que libertas. As escolas públicas eram predominantemente para pessoas brancas. A sociedade pode ser hipócrita: “isso foi passado, aconteceu. Embora eu seja beneficiário, eu não tenho nada a ver com isso”. Ou falar: “Eu quero ser uma sociedade moralmente sustentável e, portanto, nós temos responsabilidades por aquilo que nos beneficiou”.

ConJur — O que o senhor acha da criação de um fundo para compensar direitos difusos?

Oscar Vilhena — Eu acho muito positivo. Ações judiciais, coletivas, de interesse difuso podemcorrigir o sistema que tem perpetrado aquele tipo de violação. Quando entramos com ações coletivas de reparação por tortura na Febem uma parte disso vai para as vítimas. A outra parte é uma espécie de sanção ao Estado, para que ele não continue fazendo aquela prática. Esse recurso vai ser disponibilizado para corrigir aquilo ou outras violações de direito. Isso demonstra que o objeto da ação não é meramente egoístico, mas sim a reconstrução de uma política pública e a alteração das práticas que levam a violações sistemáticas.

ConJur — E quando o prefeito de São Paulo manda fechar a parte debaixo das pontes da cidade para impedir que os moradores de rua façam casa no lugar? Como fica isso?

Oscar Vilhena — Morar em baixo da ponte não é um problema, mas olhar é terrível. Há um Estado, mas há diversos governos. Quando a gente está falando de responsabilização, a gente está falando que o Estado é responsável pelos erros feitos por governos anteriores. E nós estamos falando de um pacto intergeracional do governo do século XIX para o governo do século XXI. E Estado é o mesmo e vai ter que reparar aquele mau feito por um governo lá atrás. O que me parece é que existem governos que vão em uma direção e entendem que um tipo de política de reparação é uma política correta e tem outros governos que não entendem que essa política é correta. Eles vão entender que a política adequada é aumentar a eficiência do sistema econômico e ele naturalmente vai alterar a posição dos atores. Temos aqui uma discussão, desde o começo, dando voltas, do conceito de Estado e de direitos. Os direitos não são simplesmente instrumentos pelos quais eu estou protegido de uma intervenção do Estado. Os direitos muitas vezes demandam uma obrigação do Estado em agir a meu favor. Evidentemente que se a Constituição garante o direito à moradia, a prefeitura, o estado, a união têm obrigações em relação às pessoas que se encontram na rua. Ele está desalojando aquela senhora que mora há 15 anos na ponte. Qual é a opção que o Estado está dando para ela. No fundo ela não mora debaixo da ponte porque ela quer, porque ela gosta, ela mora debaixo da ponte porque é o local que ela encontrou para ter o mínimo de proteção, estabilidade. Está errado o Estado que não age, não toma as medidas necessárias para assegurar um direito fundamental a dignidade humana.


ConJur — Quando a política de cotas bate na Justiça, vemos liminares derrubando a medida. Como o senhor vê essas questões dentro da Justiça?

Oscar Vilhena — É uma questão muito forte de separação de poderes, de modelo político adotado. Existem algumas sociedades que optam por um modelo prevalentemente majoritário. Aquilo que a maioria escolhe, determina a conduta das pessoas. Um exemplo clássico disso é a Inglaterra. Lá tem um sistema com uma construção flexível, não escrita, onde todas as decisões são tomadas pelo parlamento. O parlamento é soberano. Se ele decide que vai fazer uma lei que suspende as garantias do processo penal para os terroristas, ele faz a lei e não há nenhum problema do ponto de vista constitucional. Tem certos países que não dão ao parlamento esse poder. É o caso do Brasil, dos Estados Unidos, e da Alemanha. O Judiciário, o Legislativo, o Executivo têm certa autonomia, mas as decisões deles tem que estar pautadas em outro parâmetro que foi decidido na Constituição. Assim, o nosso regime não é puramente democrático. A democracia tem um código a ser obedecido no exercício do seu poder, tem limitações substantivas a respeito do que pode fazer. O artigo mais importante da Constituição para um advogado é o inciso 35 do artigo 5: “nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá deixar de ser apreciada pelo poder judiciário”. Isso significa que toda vez que o lado majoritário democrático do governo toma uma decisão que afeta direito, a constituição diz que a última palavra sobre aquele tema é do Judiciário. Ele é o guardião daquele direito. Todos os temas quentes do último ano no Legislativo estão pendentes no Judiciário. Cotas, armas, aborto dos anencéfalos: dependem de uma decisão do Supremo. Temos um sistema político onde se deu ao Poder Judiciário, especialmente em face do inciso 35 do artigo 5 da Constituição, enorme poder de substituir a vontade democrática pela sua própria vontade, desde que ela tenha respaldo na Constituição. Isso não é pouca coisa. O nosso regime é fortemente Judiciário. Os poderes dados aos juízes são enormes. Os poderes dados ao Supremo Tribunal Federal são maiores do que em 99% de outros países. O STF no Brasil tem o poder de controlar a forma mais ampliada de manifestação da vontade democrática que é a emenda à Constituição.

ConJur — Um caso que chama a atenção é o dos direitos dos homossexuais, que ficou parado no Congresso. A Justiça passou a reconhecer a união estável de pessoas do mesmo sexo de forma que a lei se tornou desnecessária antes de ser feita.

Oscar Vilhena — Muito embora, a sociedade brasileira ainda não tenha chegado a um consenso sobre isso e o projeto da Marta Suplicy ainda não tenha sido aprovado, o fato é que os juízes extraíram do direito à dignidade humana e à liberdade o direito das pessoas constituírem uma união familiar. O direito à dignidade dos homossexuais está triunfando ao olhar do Poder Judiciário sobre o interesse moral da coletividade. A coletividade ainda acha que os homossexuais não podem se unir, ou sequer que eles possam ser homossexuais. Os juízes, que são uma força contra-majoritária, não são decorrentes do processo democrático, a função deles é proteger a Constituição, não é atender a vontade da maioria. O nosso sistema equilibra a lógica democrática majoritária com a lógica dos direitos, que é uma lógica às vezes anti-majoritária, porque eu posso me proteger da agregação de interesses coletivos que a democracia faz.

ConJur — Uma advogada garante que para um casal homossexual adotar uma criança teria que haver uma mudança na Constituição. Isso procede?

Oscar Vilhena — A Constituição diz no artigo 227, que os direitos da criança devem ter prevalência. Ou seja, no conflito entre o interesse do adulto e o interesse da criança, o da criança tem prevalência. E essa criança não pode ser objeto de negligência e nem de violência. O que significa uma criança ficar na fila para a adoção durante dois, três, quatro anos? Nós sabemos o seguinte: quanto mais velha fica essa criança, menores serão as suas possibilidades de adoção. Além do dano emocional de crescer em um abrigo. Isso cria uma pressão sobre as varas da criança dizendo “você deve no tempo mais rápido possível conseguir um lar para essa criança”. Isso é uma ordem constitucional que é dada ao juiz. Aí, vem um casal de homossexuais e a discussão é muito forte, porque a questão é se a criança vai estar melhor com um casal heterogêneo. Mas o casal de homossexuais é uma possibilidade. Esse casal vai colocar a criança fora de uma negligência, discriminação, exploração, violência etc. O puro fato de eles serem homossexuais não exclui que eles sejam uma possibilidade.

ConJur — Mas o juiz que concedesse essa adoção não estaria contrariando o Código Civil?

Oscar Vilhena — Quando o juiz tiver um caso concreto e entender que a melhor forma de salvaguardar aquela criança é aquela adoção, a Constituição prevalece sobre o Código Civil. A questão é: se, em uma circunstância concreta, a criança ao não ser adotada vai ficar em uma situação de maior negligência ainda, deve prevalecer a Constituição ou o Código Civil? Eu entendo que deva prevalecer a Constituição.


ConJur — Costuma-se dizer que pobreza é um fator que não influencia no bem estar, no interesse da criança. Influencia?

Oscar Vilhena — Não necessariamente. Se você for falar de miséria, talvez ela tenha um impacto muito forte sobre a criança. Agora, a pobreza dentro de uma família onde essa criança possa ser acolhida com amor é muito melhor do que a pobreza no abrigo. Se eu tenho uma criança deficiente, que tem problemas, que está mais velha, que ninguém quer adotar, e vem um casal pobre, mas com intuito realmente afetivo e que demonstra uma capacidade de acolher essa criança, é evidente que temos uma criança tirada de uma situação de negligência que lhe foi deixada pelos pais. Não estou nem dizendo que o Estado foi negligente. O Estado abrigou, mas o Estado não ama. O Estado tem a responsabilidade, tem que dar educação, mas não é capaz de suprir o amor.

ConJur — O que diríamos então da Febem?

Oscar Vilhena — A Febem é um caso dramático de negligência do Estado brasileiro e do estado paulista especificamente. Ela abriga um número muito pequeno de pessoas. São cerca 5.000 que se encontram hoje na Febem. E há 20 anos, a Febem não consegue construir uma metodologia, um modelo para que essas pessoas entrem, passem, sejam sócio-educadas, como diz o estatuto e voltem para a vida comum. A Febem tem sido assim: quem passou por lá, dificilmente volta para a vida comum. Está fadado a ser marginalizado. Assistimos todos os dias denúncias de maus tratos, de tortura, de rebeliões, de corrupção interna. A Febem é um problema não resolvido. Eu não sei porque, pois ela não é um problema de dimensões monstruosas. O sistema penitenciário paulista tem mais de 100 mil presos e foi redimensionado em oito anos. O governo Covas e o governo Alckmin construíram novas prisões, acabaram com as que eram absolutamente fora de controle, remodelaram, treinaram gente. É evidente que nenhum sistema penitenciário é maravilhoso, mas houve uma reforma de um negócio gigantesco.

ConJur — E qual é o problema com a Febem?

Oscar Vilhena — Na Febem, há uma dificuldade uma vez que o Ministério Público ocupa uma dupla posição. Por um lado, o MP põe os jovens na Febem, e às vezes, por razões que não deveria colocar. Há uma política de encarceramento muito forte da parte do MP também correspondida pela Justiça paulista. Assim, garotos que poderiam estar em liberdade assistida vão para dentro da Febem, com as conseqüências que nós sabemos. Por outro lado tem o MP que controla os arbítrios e o abuso que acontece dentro da Febem. É uma situação um pouco esquizofrênica, que atinge também a Justiça. Tem casos de tortura coletiva, transferência coletiva de adolescentes para prisões e nos encontramos um pouco de mãos amarradas, porque os processos judiciais no Brasil não chegam a um termo satisfatório, ao menos ao olhar das organizações internacionais de direitos humanos. Nesse momento é que vai se buscar o sistema interamericano, que é uma forma política de pressionar o Estado brasileiro, e é uma forma jurídica de impor ao Estado que se comporte de um determinada jeito. É um procedimento legítimo, porque os direitos humanos não são contra o Brasil. Os direitos humanos são a favor do povo brasileiro e eventualmente contra o Estado que está negligenciando a sua função de protetor dos direitos humanos. O Estado deveria se antecipar e se submeter às regras que ele próprio se impôs. Foi o Estado brasileiro que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente, e ele desrespeita aquilo que ele criou. Ele está criando uma situação de descompromisso consigo mesmo e com as gerações posteriores, e nós vamos colher os frutos disso.

ConJur — O terceiro setor é um mercado para o profissional. Esse segmento pode pagar um advogado?

Oscar Vilhena — Existem dois vetores. Cada vez mais o terceiro setor é ativo dentro do sistema econômico, ou seja, existe circulação de riqueza ali dentro e, portanto, há empregos. Há empregos para economistas, administradores, secretárias, advogados. Como não produz riqueza, é muito parecido com o Estado. O Estado cobra imposto. O terceiro setor não cobra imposto, mas vive de algum tipo de doação, que vem do setor industrial ou do setor de serviços. É um mercado de trabalho muito pequeno onde atuam profissionais de Direito. O que me parece novo no cenário brasileiro é o que nós poderíamos chamar de advocacia pro bono ou advocacia de interesse público. É aquela pessoa que toma uma decisão profissional pelo mercado, trabalha em um grande escritório, no entanto, dedica uma parcela do seu tempo para causas de interesse público. Com essa entrada no Brasil da advocacia pro bono, você pode fazer uma opção mais tranqüila do ponto de vista existencial: “vou trabalhar, vou conseguir o meu sustento, mas isso não significa que eu não tenha como exercer a minha responsabilidade social por intermédio daquilo que eu sei fazer”. Essa é a grande novidade. Há aí um enorme crescimento dentro da comunidade jurídica com atividades de interesse público.

ConJur — Se o advogado quiser participar de um sistema organizado de pro bono, o que ele deve fazer?

Oscar Vilhena — No instituto Pro Bono tem um banco de advogados voluntários, onde ele pode se inscrever e vai disponibilizar atividades de acordo com a sua área de competência técnica. Funcionamos como uma casa de passagem. Temos um amplo contato com o terceiro setor, com a sociedade civil, com as ONGs, que nos procuram para resolver problemas que podem ser desde, de um quilombo cuja terra precisa ser demarcada, até um estatuto que não foi ainda atualizado ao novo Código Civil. Depois é buscar dentre esses advogados que estão inscritos voluntariamente, quem tem competência técnica e está disposto a ajudar naquele tipo de causa. É um negócio muito simples. E nós ajudamos o advogado, porque fazemos a triagem básica: “essa ONG existe, é séria, funciona de verdade”. É importante destacar que a advocacia pro bono no Brasil não pode ser feita para indivíduos, só pode ser feita para organizações não governamentais.

ConJur — A OAB apóia?

Oscar Vilhena — A OAB paulista fez uma resolução regulando o pro bono em São Paulo. O pro bono em São Paulo pode legalmente ser prestado para organizações sem fins lucrativos que não estejam ligadas a grupos econômicos. Por exemplo, a Fundação Bradesco não pode receber serviços pro bono. Mas uma ONG pode. É evidente que houve uma pressão muito forte por parte de setores da classe de advogados, que entenderam que isso iria criar uma competição injusta, mas isso foi superado, pelo menos em São Paulo. Há uma restrição, que é exatamente o atendimento de causas individuais, porque a OAB tem um convênio com o estado de São Paulo pelo qual ele repassa recursos para os advogados que exerçam advocacia para pessoas carentes.

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