Liberdade de locomoção

Leia a íntegra do voto de Velloso no HC a Flávio Maluf

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21 de outubro de 2005, 19h04

Não há súmula que possa valer diante de flagrante violação de direito. Esse foi o argumento do ministro Carlos Velloso para conceder o Habeas Corpus ao empresário Flávio Maluf e depois estendê-lo a seu pai, o ex-prefeito paulistano Paulo Maluf.

“Diante de flagrante violação à liberdade de locomoção, não pode a Corte Suprema, guardiã-maior da Constituição, guardiã-maior, portanto, dos direitos e garantias constitucionais, fechar os olhos, quedar-se inerte”, afirmou Velloso.

Assim, o ministro reinterpretou a Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘Habeas Corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘Habeas Corpus’ requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar”.

Para Carlos Velloso, principalmente depois que as testemunhas de acusação já foram ouvidas pela Justiça, não há porque manter os Maluf na prisão. “A prisão do paciente, a esta altura, constitui violência inaceitável, irreparável, no caso de resultar o paciente absolvido”, afirmou.

Para estender a liminar a Paulo Maluf, Velloso afirmou que o ex-prefeito está “adoentado, necessitando de tratamento médico, tratamento médico esse que, na prisão, há de ser deficiente. Estivesse condenado, deveria sujeitar-se, evidentemente, à prisão com as deficiências desta. Mas não seria preciso dizer que condenação, no caso, não existe. O que existe é prisão cautelar, por conveniência da instrução criminal”.

A defesa de Flávio Maluf foi feita pelos advogados José Roberto Batochio e Guilherme Octávio Batochio.

Leia a íntegra do relatório e do voto de Velloso

HABEAS CORPUS 86.864-9 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO

PACIENTE(S): FLÁVIO MALUF

IMPETRANTE(S): JOSÉ ROBERTO BATOCHIO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO HC Nº 47829 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO: – Trata-se de habeas

corpus, com pedido de liminar, impetrado pelo ilustre advogado JOSÉ ROBERTO BATOCHIO e outros em favor de FLÁVIO MALUF, da decisão do Sr. Ministro Gilson Gipp, do Eg. Superior Tribunal de Justiça, que indeferiu pedido de liminar formulado nos autos do HC 47.829/SP, no qual se postulava a revogação do decreto de prisão preventiva expedido contra o paciente.

Sustenta a impetração que o paciente está sofrendo constrangimento ilegal, decorrente de decisão denegatória de liminar ¾ proferida por autoridade judiciária incompetente ¾ que ratificou prisão manifestamente ilegal. Sustenta, mais, em síntese, o seguinte:

a) violação ao princípio do juiz natural, em razão da ausência de prevenção e da incompetência da autoridade coatora para o conhecimento do habeas corpus impetrado perante o STJ;

b) nulidade da decisão do TRF-3a Região que afirmou a prevenção da 1a Turma daquele Tribunal para conhecer da impetração, tendo em vista a incompetência do seu prolator e a ausência de fundamentação;

c) o Supremo Tribunal Federal, em casos de flagrante ilegalidade, tem admitido a impetração de habeas corpus contra decisão monocrática de relator que indefere liminar em outro habeas corpus (HC 85.185/SP);

d) nulidade dos elementos indiciários colhidos nos autos, uma vez que colhidos por autoridade manifestamente incompetente;

e) falta de fundamentação da decisão que decretou a custódia preventiva do paciente;

f) falta de justa causa para a decretação da custódia

preventiva.

Pede a concessão de medida liminar, para que o paciente

seja colocado em liberdade.

Autos conclusos em 06.10.2005.

Todavia, interposto, pelo paciente, agravo regimental da decisão do Exmo. Sr. Ministro Presidente, que determinou a redistribuição deste writ, por prevenção (fls. 405-406), determinei que se aguardasse o julgamento do citado agravo. Determinei, mais, que os autos fossem encaminhados ao Exmo. Sr. Presidente (fls. 407v.-408). Este meu despacho é de 10.10.2005.

Agora, os autos me vêm conclusos, por isso que o impetrante desistiu do recurso de agravo regimental, conforme despacho do Exmo. Sr. Presidente, que homologou citada desistência

(fl. 443).

É o relatório.

V O T O

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO (Relator): – A espécie pode ser assim resumida: a prisão preventiva do paciente foi decretada pelo Juiz Federal de 1º grau. Pediu-se, então, habeas corpus ao TRF/3ª Região. O Relator indeferiu a medida liminar. Contra essa decisão, foi requerido habeas corpus junto ao STJ. O Relator, eminente Ministro Gilson Dipp, indeferiu a liminar. Contra essa decisão impetra-se este writ.

O eminente Ministro Gilson Dipp, na sua decisão, depois de afastar da discussão questões relacionadas com a distribuição do habeas corpus no TRF e questões regimentais outras, deixou expresso:


“(…)

Quanto aos demais argumentos da inicial, nos termos do entendimento reiteradamente firmado por esta Corte, assim como pelo Supremo Tribunal Federal, não cabe habeas corpus contra indeferimento de liminar, a não ser em casos de evidente e flagrante ilegalidade, sob pena de indevida supressão de instância.

Tal entendimento, inclusive, encontra-se consolidado no verbete nº 691 da Súmula da Suprema Corte:

‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a

liminar.’

Faz-se mister destacar que, não obstante a discussão, pelo Plenário do STF, a respeito do eventual cancelamento do mencionado verbete da Súmula do Pretório Excelso, nos autos do HC nº 85.185-1, da relatoria do Ministro Cezar Peluso, tal proposta foi rejeitada, mantendo-se, por conseguinte, a aplicação de seu conteúdo (Informativo nº 396, 08 a 12/08/2005).

A conclusão da Suprema Corte foi de que o enunciado 691 não impede que o conhecimento de habeas corpus, se evidenciado flagrante constrangimento ilegal.

Entretanto, se não sobressai ilegalidade flagrante, o exame da controvérsia caracteriza supressão de instância, conforme se depreende dos seguintes julgados da Suprema Corte embasadores do verbete 691:

Habeas corpus.

– Esta Corte já firmou o entendimento (assim, a título exemplificativo, nos HC 76.347, 79.238, 79.748 e 80.287) de que ela não conhece de habeas corpus contra decisão de relator (ou de quem lhe faz as vezes) que, em outro habeas corpus, ainda em curso em Tribunal Superior, neste haja indeferido pedido de medida liminar, pela circunstância de que a antecipação pretendida ofende princípios processuais fundamentais, como o da hierarquia dos graus de jurisdição e o da competência deles. Habeas corpus não conhecido.’ (HC 80631/RS, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 06/04/2001)

‘Agravo Regimental em habeas corpus.

2. Porte ilegal de arma de fogo.

3. Alegação de ausência de fundamentação da decisão de 1ª instância, excesso de prazo e extinção da punibilidade.

4. Inadmissibilidade da impetração de habeas corpus na hipótese dos autos – habeas corpus contra decisões denegatórias de liminar em tribunais, antes do julgamento definitivo do writ (Súmula 691/STF).

5. Agravo Regimental improvido.’ (HC 85818 AgR/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ 26/08/2005)

(…).” (Fls. 127-128)

O eminente Relator passou, em seguida, a examinar a decisão do Juiz Federal que decretou a prisão preventiva do paciente.

A decisão do magistrado de 1º grau considerou necessária a prisão preventiva, argumentando, segundo transcrição posta na decisão do Ministro Dipp:

“(…)

Há nos autos prova da existência de crime e indícios de autoria, indicando a movimentação internacional de montante expressivo de dinheiro, através de diversos países e instituições financeiras, de acordo com o que, pelos menos até o momento, revelam documentos acostados aos autos.

E mais. Afirma a decisão ora impugnada que se constatou em diálogos telefônicos monitorados ‘uma séria de manobras por parte de Paulo Salim Maluf e Flávio Maluf para interferir na colheita, produção e resultado da prova que buscava se produzir no inquérito policial’. E acrescenta que a liberdade do paciente poderá comprometer a instrução do processo, ou ao menos, tumultuá-la.

Diferentemente do alegado na peça inicial, a decisão que recebeu a denúncia e decretou a prisão preventiva se mostra fundamentada, destaca fatos e os relaciona aos documentos juntados aos autos.

Em conseqüência, penso que os fatos apresentados neste habeas corpus não preponderam em favor do paciente Paulo Salim Maluf, pelo contrário, demonstram, em princípio, a personalidade voltada para a prática delitiva e a manifesta possibilidade de perseverança no comportamento delituoso, circunstâncias que autorizam a sua manutenção em cárcere, para a garantia da ordem pública. (…).” (Fl. 128)

O argumento básico, portanto, é este: constatou-se “em diálogos telefônicos monitorados uma séria manobra por parte de Paulo Salim Maluf e Flávio Maluf para interferir na colheita, produção e resultado da prova que buscava se produzir no inquérito policial”, pelo que “a liberdade do paciente poderá comprometer a instrução do processo, ou ao menos tumultuá-la.”


Esse argumento foi prestigiado pelo eminente Ministro Gilson Dipp, que escreveu:

“(…)

O decreto constritor, mantido pela decisão ora impugnada, refere que o paciente teria empreendido manobras para interferir na colheita de provas no inquérito policial.

Tal motivação, não obstante não fazer referência específica à conversa do paciente com o co-réu VIVALDO ALVES, é idônea para manter a custódia do paciente em sede de liminar contra indeferimento de liminar, até porque durante a instrução probatória serão ouvidas as testemunhas.

Dessa maneira, não se pode, neste momento e com base no que sustenta a inicial do writ, apartar o fundamento de necessidade da custódia para conveniência da instrução criminal, no âmbito da ponderação do pleito de urgência contra outro exame sumário realizado em 2º grau de jurisdição.

(…).” (Fl. 130)

S. Exa. examina, em seguida, argumentos postos na impetração: documentação juntada na impetração, ilegalidade da denúncia quanto ao crime de quadrilha, participação de particular no crime de corrupção passiva, imputação pela prática contra o sistema financeiro, art. 30 da Lei 7.492/86.

Realmente, conforme acima foi dito, a prisão preventiva foi decretada por conveniência da instrução criminal (CPP, art.

312).

É o que, na verdade, está na decisão do Juízo de 1º grau que decretou a prisão preventiva:

“(…)

Há nos autos prova da existência de crime e indícios de autoria, indicando a movimentação internacional de montante expressivo de dinheiro, através de diversos países e instituições financeiras, de acordo com o que, pelo menos até o momento, revelam os documentos acostados aos autos.

Verifica-se, também, que nos diálogos gravados no monitoramento telefônico autorizado por este Juízo houve, inegavelmente, uma série de manobras por parte de Paulo Salim Maluf e Flávio Maluf para interferir na colheita, produção e resultado da prova que buscava se produzir no inquérito policial. Essa interferência está sobejamente demonstrada, revelando, de forma inequívoca, que ambos, se em liberdade, comprometerão a instrução processual podendo, concretamente, tumultuá-la a ponto de torná-la completamente inviável e inútil.

(…).” (Fl. 135)

Invocou-se, também, o art. 30 da Lei 7.492/86, que dispõe:

“Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, (…) a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta Lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada.”

A invocação desse dispositivo legal, art. 30, da Lei 7.492/86, não me parece razoável. É que, conforme deixa claro a decisão, no caso há, apenas, “indícios de autoria” (fl. 135).

Na verdade, a questão situa-se no âmbito do art. 312 do CPP:

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência de crime e indício suficiente de autoria.”

No caso, conforme vimos, a prisão foi decretada por conveniência da instrução criminal (CPP, art. 312).

Os requisitos autorizadores da prisão, em tal hipótese, são, de regra, estes: a) aliciamento e constrangimento de testemunhas; b) aliciamento de jurados; c) réu que procrastina o julgamento; d) réu que muda de endereço e não comunica o novo endereço à Justiça; e) residência fora do distrito da culpa; f) réu com residência no estrangeiro.

No caso, alicerçou-se o decreto de prisão no fato de o paciente ter procurado aliciar um dos co-réus, o Sr. Vivaldo Alves, o que se constatou “nos diálogos gravados no monitoramento telefônico autorizado” pelo Juízo (fl. 135).

Interessante anotar que esses diálogos, obtidos mediante interceptação telefônica autorizada judicialmente, foram amplamente reproduzidos nos jornais, ao arrepio do disposto no art. 8º da Lei 9.296, de 24.7.1996, que manda preservar “o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”, estabelecendo, no art. 10, que constitui crime a quebra do segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei, crime esse punido com a pena de reclusão de dois a quatro anos, e multa.

Fui dos primeiros, nesta Casa, a sustentar o não-cabimento de habeas corpus contra decisão de relator que, nos Tribunais Superiores, denega habeas corpus. Sempre sustentei, entretanto, que, em caso de flagrante violação à liberdade de locomoção, o writ seria cabível.


No voto que proferi ao despachar o HC 80.288-MC/RJ, escrevi:

“(…)

Tenho sustentado, a partir da decisão que proferi no HC 79.924-RJ, em 24.12.99, entendimento que manifestei, em seguida, por exemplo, nos HHCC 80.316-RS e 80.287-RS, de que não cabe, de regra, deferir liminar em habeas corpus impetrado contra a decisão do Relator que, no Superior Tribunal de Justiça, denega medida liminar em pedido de habeas corpus. Ter-se-ia, com o deferimento da liminar, forma de subtrair do Superior Tribunal de Justiça competência constitucional para apreciar e julgar habeas corpus contra decisões de Tribunais de 2º grau (C.F., art. 105, I, c, redação da E.C. 22/99). Admito que, em casos excepcionais, em que esteja ocorrendo flagrante violação à liberdade de locomoção, seria possível entendimento diverso, vale dizer, entendimento no sentido da possibilidade do deferimento, no Supremo Tribunal Federal, de pedido de habeas corpus que objetivasse, na hipótese mencionada, a desconstituição da decisão proferida pelo Relator, no S.T.J., indeferitória da liminar. O caso, repita-se, haveria de ser excepcional, ocorrente, inclusive, a possibilidade de irreparabilidade do direito.

(…).”

A jurisprudência do Supremo Tribunal acabou consolidada na Súmula 691, a expressar que “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior indefere liminar.

A Súmula 691 admite, entretanto, abrandamento, ao que entendo: diante de flagrante violação à liberdade de locomoção, não pode a Corte Suprema, guardiã-maior da Constituição, guardiã-maior, portanto, dos direitos e garantias constitucionais, fechar os olhos, quedar-se inerte.

No HC 85.185/SP, Relator o Ministro Cezar Peluso, o Supremo Tribunal Federal discutiu a questão, rejeitando, é certo, o cancelamento da Súmula 691, mas ensejando o debate. O habeas corpus acabou deferido, por isso que o Supremo Tribunal, diante da flagrante ilegalidade, deferiu, de ofício, o writ. Isto ocorreu na sessão plenária de 10.8.2005.

Penso que a hipótese aqui versada enquadra-se na ressalva pela qual sempre propugnei: se há flagrante violência à liberdade de locomoção, deve o habeas corpus ser conhecido.

No caso, o paciente tem residência certa no distrito da culpa; não há notícia de que haja procrastinado o julgamento; tem profissão certa, é diretor de empresa em São Paulo. E, convém enfatizar, apresentou-se à prisão imediatamente após a decretação desta.

Mais: os diálogos que foram monitorados revelam conversa do paciente com outro co-réu e não com testemunha. Dir-se-á que isso seria irrelevante, porque teria havido tentativa de aliciamento em detrimento do interesse da Justiça. Mas a esse argumento poderia ser oposto este outro, que diz com o direito de defesa: o direito de os co-réus estabelecerem estratégia de defesa.

Deixemos de lado, entretanto, essa controvérsia. O que é certo é que o co-réu já foi ouvido pela Justiça. Ao que parece, as testemunhas de acusação já foram ouvidas.

A prisão do paciente, a esta altura, constitui violência inaceitável, irreparável, no caso de resultar o paciente absolvido.

Registre-se que o paciente e seu pai estão presos numa mesma cela. Os que somos pais podemos avaliar a intensidade do sofrimento de ambos. Noticiam os jornais, também, que o pai do paciente, o Sr. Paulo Maluf, está adoentado, necessitando de tratamento médico, tratamento médico esse que, na prisão, há de ser deficiente. Estivesse condenado, deveria sujeitar-se, evidentemente, à prisão com as deficiências desta. Mas não seria preciso dizer que condenação, no caso, não existe. O que existe é prisão cautelar, por conveniência da instrução criminal.

Do exposto, conheço do pedido e defiro a liminar requerida.

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