Hora do referendo

Ter uma arma não é um direito, é concessão estatal

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21 de outubro de 2005, 14h50

Qualquer que seja o resultado do referendo deste domingo — sobre a proibição ou não do comércio de armas e munições — os brasileiros continuarão proibidos de andar armados. “Muitas pessoas estão afirmando que existe esse direito protegido na Constituição. Mas em nenhum lugar na Constituição está dito que você tem direito de andar armado”, explica o advogado Oscar Vilhena Vieira, especialista em direitos humanos.

Em entrevista na redação da revista Consultor Jurídico, Vilhena falou sobre o desarmamento, direitos humanos e controle de constitucionalidade. O segundo bloco deste bate-papo será publicado no domingo (23/10).

Para o especialista, o referendo acrescenta pouco no que diz respeito a uma política restritiva, pois o Estatuto do Desarmamento já cumpre esse papel. No entanto, o referendo apresenta um ponto importante que é possibilidade de estabelecer um controle muito mais intenso sobre o comércio de armas e munição. “A legislação brasileira já foi restritiva sobre arma de fogo. O que se discute agora é o quão restrito será o mercado de armas de fogo e esse é um ponto importante, porque se o mercado não for bem controlado, a lei não vai ter tanta eficácia”, afirma o advogado.

Vilhena, que é diretor executivo da Conectas, organização internacional de defesa dos direitos humanos, com sede em São Paulo, acredita que uma arma nas mãos de um cidadão que não está preparado para portá-la piora a situação da segurança pública.

O advogado se especializou em direito internacional dos direitos humanos na Escola de Relações Internacionais da Columbia University e é Master of Laws pela Faculdade de Direito da Columbia University (Nova Iorque). É também doutor em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, nas áreas de Direito Constitucional, direitos humanos e política.

Como bom defensor dos direitos humanos, Vilhena vai votar “sim” no dia 23 deste mês. “O referendo foi mal feito, mas uma vez que ele está mal feito, tendo que se posicionar, eu evidentemente que me posiciono pela restrição do mercado. Estou convencido de que quanto mais arma houver circulando na mão da população civil, num país de alta conflituosidade como o nosso, nós teremos desfecho de morte em número cada vez maior”.

Participaram da entrevista os jornalistas da ConJur, Márcio Chaer, Aline Pinheiro, Leonardo Fuhrmann e Maria Fernanda Erdelyi.

Leia a primeira parte da entrevista

ConJur — Temos, muito claramente, dois discursos no referendo do desarmamento. Um lado falando em direito individual e outro falando de direito coletivo. O senhor acha que esse ponto é a grande questão jurídica no momento?

Oscar Vilhena — A disputa de interesses coletivos e direitos fundamentais não é uma questão do momento. Ela é uma questão permanente, por exemplo, em meio ambiente, segurança pública, uso da propriedade. É ingênuo acreditar que direitos não colidem. Os direitos colidem o tempo todo. Toda vez que você aumenta uma carga de direito para alguém, está ao mesmo tempo imputando uma redução de direito para outra pessoa. É como o caso das cotas nas universidades. Há um claro conflito. De um lado está o direito à igualdade formal de ter um vestibular que traça um plano de competição meritório para todas as pessoas. De outro estão falando: “mas essas pessoas que estão competindo não são iguais, elas não tiveram o mesmo investimento educacional”. Assim, se eu quiser realmente fazer um vestibular igual, eu tenho que tratar diferente o garoto que sai da escola particular e o que sai da escola pública. Qualquer que seja o arranjo que façamos, teremos um direito em detrimento do outro. E no caso do desarmamento há esse tipo de colisão.

ConJur — Qual é a questão do momento no desarmamento?

Oscar Vilhena — É preciso fazer uma ponderação: não há o direito a andar armado. Muitas pessoas estão afirmando que existe esse direito protegido na Constituição. Mas em nenhum lugar na Constituição está dito que você tem direito a andar armado. Na Constituição americana está previsto o direito a manter armas. É uma situação diferente e, evidentemente, no século XVIII tinha uma razão muito clara, o temor de que o poder central usurpasse as competências dos Estados. Ainda nos Estados Unidos discute-se se o cidadão, individualmente, tem o direito de andar armado, porque ele não vai proteger a liberdade coletiva e sim se proteger. Em alguns Estados, esse direito é muito restringido.

ConJur — Como o senhor analisa a polarização nesse debate?

Oscar Vilhena — O debate está polarizado como se houvesse um direito fixo, pré-determinado constitucionalmente, de andar armado. E não há. O que há é um interesse por parte de algumas pessoas em andar armadas. E esse interesse pode ser legítimo, dada a situação de insegurança coletiva. A pessoa pode imaginar que armada estará mais protegida. E por outro lado, há um interesse coletivo da sociedade de reduzir o número de homicídios. Não estou colocando a questão em um patamar de conflito de direitos, e sim de conflito de interesses. Um interesse individual versus o interesse coletivo. É preciso ponderar e pensar se na realidade a arma de fogo aumenta a segurança coletiva ou não. Os dados estatísticos são muito fortes no sentido de que em uma sociedade conflitiva, a arma de fogo, não só na mão dos bandidos, mas na mão das pessoas comuns, tem o potencial de aumentar desfechos letais em conflitos ordinários. Pesquisas em São Paulo apontam que cerca de 47% dos homicídios se dão entre pessoas que não são criminosas até aquele momento, e sim entre pessoas que se conheciam, que estavam resolvendo um conflito como um empréstimo, uma briga de time de futebol ou de família. A arma não aumenta a conflituosidade social, ela aumenta o desfecho letal dos conflitos, ainda que manipulada por quem não é criminoso. Também há uma forte indicação de que as armas apreendidas pela polícia tiveram uma origem legal.


ConJur — O cidadão que compra uma arma não está mais protegido?

Oscar Vilhena — Uma arma portada por um cidadão que não está preparado para fazê-lo piora a situação de segurança pública. A arma, além de colocar em risco outras pessoas, coloca em risco o seu próprio portador e aqueles que estão próximos dele. O número de acidentes letais, de suicídios em famílias que têm arma de fogo é onze vezes maior do que em famílias que não têm. E, por fim, aquele que tenta se defender com a arma, de acordo com uma pesquisa da Secretaria de Segurança de São Paulo, tem uma tendência muito maior a ser morto. A não ser que você seja o James Bond, saiba usar arma e está em alerta total para o perigo, a qualquer momento, a medida que alguém bate com uma arma de fogo no vidro do seu carro, até você buscar a arma que está dentro do porta luvas, embaixo das coisas, a tendência é que você seja morto. Desarmar a população é um meio eficiente de preservar o direito a vida, não só da coletividade, como também daquele que anda armado.

ConJur — O que chama a atenção é a maneira como a discussão está sendo colocada: “nós, cidadãos de bem, eles bandidos”. Entra como se fosse um conflito entre dois grupos completamente separados.

Oscar Vilhena — Essa questão, em primeiro lugar, demonstra o seguinte: no quadro daqueles que tiram a vida dos outros, a divisão entre cidadãos de bem e criminosos não é muito clara. Quer dizer, muito cidadão de bem se torna criminoso porque estava com arma de fogo. É muito grande, muito expressivo o número. Dependendo da cidade isso vai variar, mas até 40%, 50% dos homicídios praticados são homicídios que não tem uma lógica criminal, não tem uma história criminal, eles são incidentes únicos na vida criminal daquela pessoa. Vamos falar sobre o argumento de que o governo só vai desarmar os homens de bem e não os bandidos. Ainda que isso fosse verdade, você mesmo assim teria uma boa razão para fazê-lo, porque esses homens de bem matam e muito. Ponto número um. E o segundo ponto é que as armas utilizadas pelos criminosos têm como fonte primordial no Brasil os homens de bem, ou seja, são as armas obtidas em furto, em roubo e no comércio ilegal, mas que tem uma origem legal.

ConJur — Com todas essas pesquisas, esses dados do governo, e o próprio Estatuto do Desarmamento, qual é a necessidade de um referendo?

Oscar Vilhena — A decisão fundamental já foi tomada: de restringir para a população civil o acesso à arma de fogo. O estatuto praticamente inviabilizou que as pessoas tenham armas. O referendo acrescenta pouco no que diz respeito a uma política restritiva. Ele tem uma coisa que é extremamente importante, que é a possibilidade de estabelecer um controle muito mais intenso sobre o comércio. Porque, na realidade, o comércio vai existir. No Brasil há mais polícia privada do que polícia pública e esses policiais vão continuar armados. Eles vão ter que comprar armas de fogo, eles vão ter que comprar munição e o mercado continuará existindo, mas será restrito e altamente controlado. Há uma certa confusão, pois as pessoas acham que no dia 23 vão votar se são contra ou a favor da arma de fogo. Não é isto. A legislação brasileira já foi restritiva sobre arma de fogo. O que se discute agora é o quão restrito será o mercado de arma de fogo e esse é um ponto importante, porque se o mercado não for bem controlado, a lei não vai ter tanta eficácia. Haverá mecanismos de burlar a lei e permitir que as pessoas comprem arma de fogo. Há uma enorme irresponsabilidade do Congresso Nacional que deveria tomar essa decisão de restringir o mercado. Mas não, ele toma parcialmente essa decisão e joga a discussão para a população, que está atemorizada, que não se sente protegida pela polícia.

ConJur — As pesquisas apresentadas principalmente pela frente do “sim” sobre o número de homicídios comparados ao crescimento da venda de armas estão sendo criticadas. Muitos dizem que não há relação nenhuma de uma coisa com outra.

Oscar Vilhena — Há seis anos, o secretário da segurança em São Paulo, José Afonso da Silva, deu uma ordem para todos os seus delegados: “não concedam arma de fogo a não ser em hipóteses realmente necessárias”. E isso teve impacto. É muito difícil dizer que foi isso que reduziu a criminalidade, ela caiu 18% na época. Isso é um componente, iluminação é outro, aumento de emprego é outro componente. É um conjunto de componentes, é uma política importante para reduzir o número de mortes.

ConJur — No ano passado, Abílio Diniz pediu à Justiça que garantisse a ele o porte de arma e a Justiça disse que não.

Oscar Vilhena — Não sei a situação do Abílio Diniz, mas um empresário como ele provavelmente tem uma empresa de segurança, com pessoas treinadas e que têm direito de andar armadas. Portanto não era razoável que ele tivesse a sua arma. Isso é a tradição republicana brasileira. Sempre foi um ato discricionário que comprova que o direito de andar armado nunca foi reconhecido pela ordem constitucional brasileira. O que se viu era uma autorização derivada da demonstração da necessidade. O artigo 10 do Estatuto do desarmamento permite que sejam concedidas autorizações para porte em situações extremas. Não há a proibição absoluta, mas uma restrição enorme.


ConJur — Por outro lado, nós temos uma conduta internacional de compartilhar com a população a responsabilidade de papéis tradicionalmente de Estado. Bancos, corretoras e, agora até os profissionais liberais, têm obrigação de notificar as autoridades de tomarem conhecimento de crimes. Não é contraditório que se compartilhe com o cidadão responsabilidades de Estado, mas não lhe dê meios para cumprir seu papel?

Oscar Vilhena — Essa é uma tendência que vem desde 1998, de romper esse dogma onde o cidadão tem direitos e o Estado tem obrigações. Na questão da educação, por exemplo, a Constituição diz: “a educação é direito de todos, obrigação do Estado, da família, da comunidade”. Isso significa que o nosso pacto social não é um pacto de natureza estritamente liberal. Ele é um pacto de natureza liberal e comunitária onde, na medida em que eu reivindico para mim uma série de direitos, eu automaticamente tenho que reconhecer as minhas obrigações derivadas do direito do outro. É a contrapartida imediata de qualquer direito. Tanto no plano econômico, quanto no plano social, quanto no plano da segurança pública, a Constituição já indicou em 1988 que há obrigações a serem compartidas pela população para colaborar na construção de um ambiente mais pacífico e ordeiro. É uma obrigação constitucional.

ConJur — Esse compartilhamento é uma evolução?

Oscar Vilhena — Eu considero que em sociedades contemporâneas e tão complexas como a nossa, não é possível o reinado do individualismo, no sentido menos político e mais filosófico, ou seja, onde eu tenho um conjunto de direitos que protegem a minha individualidade e que eu possa exercer isso de forma absoluta. Em um Estado plural e complexo como o nosso, os direitos têm que ser harmonizados de forma que o meu exercício não imponha a você um ônus insuportável. Isso significa também que eu tenho um conjunto enorme de obrigações para que as outras pessoas possam usufruir os seus direitos.

ConJur — Eu posso te delatar, você pode me delatar. Isso não é uma fonte de conflitos?

Oscar Vilhena — Por isso que eu disse que é uma sociedade complexa e plural. É a sociedade contemporânea, com o grau de complexidade que assumiu, com a perspectiva de que não há só o poder do Estado, mas há o poder econômico, e uma pluralidade de centros de poder. Esses que exercem poder dentro da sociedade, ainda que não sejam autoridades estatais, têm que ter obrigações como contrapartida. Só para não dizer que a gente está reinventando a roda, pega a CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas]. Ela é claramente uma legislação que mostra dentro das relações de trabalho a existência também de relações de poder. Evidentemente, quando a gente olha a CLT, fala: “o trabalhador tem uma série de direitos”. Há uma contrapartida, pois o trabalhador tem uma série de obrigações. Ele distribui obrigações e direitos em função da relação de poder existente dentro daquela relação. O que me parece que é importante na sociedade contemporânea é o reconhecimento da enormidade de centros de poder. Quando os poderes se tornam difusos, é preciso ter lógicas de imposição de obrigações a quem detém poder.

ConJur — Qual o limite entre o direito comunitário e a força do Estado? Se você concentrar todo o poder do grupo na mão do Estado, temos um Estado totalitário.

Oscar Vilhena — Toda vez que se constrói uma carta de direitos, se estabelece quais são os limites desse poder comunitário ou do poder do Estado. Imagine que você tem uma fazenda e nela não pode plantar mais do que determinada porcentagem de eucalipto. Há um interesse coletivo de que não se resseque o solo, que não haja danos ambientais, que a fauna local não fique desabrigada. Há um interesse coletivo, justificado, legítimo para que se restrinja o direito do dono daquela propriedade. Na medida em que se dá o direito, é preciso desenhá-lo de forma muito responsável, porque senão damos o direito para a pessoa, mas também damos o poder do Estado para restringir esse direito. A Constituição brasileira quando foi desenhada não criou nenhum direito absoluto, ela criou uma série muito extensa de direitos e a nenhum deles, talvez alguns raríssimos como a questão da tortura, criou restrições. Temos o direito de manifestação, desde que ela não seja com fins violentos. Veja, aí já tem uma restrição. Direitos podem ser restringidos por meio da deliberação democrática e da lei. A lei só pode restringir um direito com uma boa justificativa, com um bom fundamento e se demonstrar que está fazendo aquela restrição em homenagem a outro direito. O legislador é por excelência um ponderador. Ele fala que eu tenho direito à vida e à segurança. Como é que eu harmonizo esses dois direitos? O Estatuto do Desarmamento é uma ponderação onde eu restrinjo alguma liberdade em homenagem a outro direito.

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