Decoro parlamentar

Leia voto de Celso de Mello negando recurso de Dirceu

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20 de outubro de 2005, 20h15

Membro do Congresso Nacional pode exercer cargos do Poder Executivo, como o de ministro, sem perder o mandato parlamentar, podendo inclusive optar por seguir recebendo o salário de parlamentar. Com base nestas faculdades previstas na Constituição, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal rechaçou o principal argumento apresentado pelo deputado José Dirceu no Mandado de Segurança para suspender o processo disciplinar contra ele na Comissão de ética da Câmara dos Deputados.

A defesa de Dirceu sustentou que não poderia ser processado na câmara por quebra de decoro parlamentar em função de atos praticados enquanto estava licenciado de seu mandato parlamentar. Segundo o ministro “o aspecto central do presente mandado de segurança reside na alegada impossibilidade constitucional de o membro do Congresso Nacional, regularmente licenciado de seu mandato para exercer cargo de Ministro de Estado incidir quando no desempenho dessa função no Poder Executivo, em conduta atentatória ao decoro parlamentar e sujeitar-se, em conseqüência, à perda do mandato legislativo

Celso de Mello citou o relatório do deputado Julio Delgado, relator do processo contra Dirceu na Câmara que defendeu o contrário: “Mesmo afastado do cargo de Deputado Federal, não deixou de ser representante do povo, estando apenas temporariamente licenciado. Ainda que estivesse fora das atividades parlamentares por motivo de saúde ou qualquer outro, não deixaria de ser membro da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional.”

Sustentou também que a Constituição “não exige que haja necessária relação de contemporaneidade entre o fato típico e a legislatura sob cujo domínio temporal teria ocorrido o evento motivador da responsabilização política do congressista por falta de decoro parlamentar”

O ministro destacou ainda o papel do Judiciário na defesa dos valores éticos que devem prevalecer na política: “A ordem jurídica não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos no desempenho da elevada função de representação política do Povo brasileiro”.

Leia o voto do ministro Celso de Mello

19/10/2005

TRIBUNAL PLENO

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.579-0 DISTRITO FEDERAL

V O T O

(s/ medida liminar)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O exame da plausibilidade jurídica da pretensão mandamental ora deduzida pelo impetrante impõe algumas reflexões que entendo imprescindíveis, no que me concerne, à formulação de um juízo de delibação em torno da controvérsia suscitada no presente mandado de segurança.

A desejável convergência entre ética e política nem sempre tem ocorrido ao longo do processo histórico brasileiro, cujos atores – e não me refiro ao caso concreto -, ao protagonizarem episódios lamentáveis e moralmente reprováveis, parecem haver feito uma preocupante opção preferencial por práticas de poder e de governo que se distanciam, gravemente, do necessário respeito aos valores de probidade, de decência, de impessoalidade, de compostura e de integridade pessoal e funcional.

Tais comportamentos, porque motivados por razões obscuras, por desígnios inconfessáveis ou por interesses escusos, em tudo incompatíveis com a causa pública, são guiados e estimulados por exigências subalternas resultantes de um questionável pragmatismo político, que, não obstante o profundo desvalor ético dos meios empregados, busca justificá-los, assim mesmo, em face de uma suposta e autoproclamada legitimidade dos fins visados pelos governantes.

Os membros do Poder Legislativo, quando assim atuam, transgridem as exigências éticas que devem pautar e condicionar a atividade política, que só se legitima quando efetivamente respeitado o princípio da moralidade, que traduz valor constitucional de observância necessária na esfera institucional de qualquer dos Poderes da República.

A ordem jurídica não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos no desempenho da elevada função de representação política do Povo brasileiro.

Foi por tal motivo que o Plenário desta Suprema Corte, atento aos altíssimos valores que informam e condicionam todas as atividades governamentais – não importando o domínio institucional em que elas tenham lugar -, veio a proferir o seu “dictum”, reconhecendo a possibilidade jurídico-constitucional de qualquer das Casas do Congresso Nacional adotar medidas destinadas a reprimir, com a cassação do mandato de seus próprios integrantes, fatos atentatórios à dignidade do ofício legislativo e lesivos ao decoro parlamentar, mesmo que ocorridos no curso de anterior legislatura, desde que, já então, o infrator ostentasse a condição de membro do Parlamento.

É que a Carta Política não exige que haja necessária relação de contemporaneidade entre o fato típico e a legislatura sob cujo domínio temporal teria ocorrido o evento motivador da responsabilização política do congressista por falta de decoro parlamentar, sendo inaplicável, por isso mesmo, a tal situação, o princípio da unidade de legislatura (MS 23.388/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – MS 24.458/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 12/03/2003).

Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções com total respeito aos postulados ético-jurídicos que condicionam o exercício legítimo da atividade pública. O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.

O sistema democrático e o modelo republicano não admitem, nem podem tolerar a existência de regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade.

Nenhum membro de qualquer instituição da República está acima da Constituição, nem pode pretender-se excluído da crítica social ou do alcance da fiscalização da coletividade.

A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos que importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato que assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dos dogmas essenciais da República, a plena apuração e o esclarecimento da verdade, tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes dos demais Poderes.

Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar culmina por atingir, injustamente, a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo, nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja – que se haja mostrado indigno da magna função de representar o Povo, ou de ostentar a condição de membro do Congresso Nacional, ou de formular a legislação da República ou, ainda, de controlar as instâncias governamentais de poder.

Não se poderá jamais ignorar que o princípio republicano consagra o dogma de que todos os agentes públicos – legisladores, magistrados, e administradores – são responsáveis perante a lei e a Constituição, devendo expor-se, plenamente, às conseqüências que derivem de eventuais comportamentos ilícitos.

Cumpre insistir na asserção de que a prática de atos atentatórios ao decoro parlamentar, mais do que ferir a dignidade individual do próprio titular do mandato legislativo, projeta-se, de maneira altamente lesiva, contra a honorabilidade, a respeitabilidade, o prestígio e a integridade político-institucional do Parlamento, vulnerando, de modo extremamente grave, valores constitucionais que atribuem, ao Poder Legislativo, a sua indisputável e eminente condição de órgão da própria soberania nacional.

É por essa razão que o eminente Professor MIGUEL REALE (“Decoro Parlamentar e Cassação de Mandato Eletivo”, “in” Revista de Direito Público, vol. X/89), ao versar o tema em questão, adverte que o ato indecoroso do parlamentar importa em falta de respeito à própria dignidade institucional do Poder Legislativo:

O ‘status’ do deputado, em relação ao qual o ato deve ser medido (e será comedido ou decoroso em razão dessa medida) implica, por conseguinte, não só o respeito do parlamentar a si próprio, como ao órgão ao qual pertence (…).

No fundo, falta de decoro parlamentar é falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez, etc) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente.

Não é por outro motivo que PINTO FERREIRA (“Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 3/28, 1992, Saraiva), em magistério lapidar sobre a matéria, assinala:

Outro motivo mencionado pela Constituição do País para a perda do mandato de deputado ou senador é o procedimento reputado incompatível com o decoro parlamentar. É, então, um poder discricionário que tem a Câmara de expulsar os seus membros, quando sua conduta venha a ferir a própria honorabilidade da Assembléia. Conquanto o deputado ou senador tenha todas as condições para continuar em seu cargo, a própria Câmara ajuíza que ele é indesejável ou intolerável, surgindo a cassação como uma medida disciplinar.

……………………………………………

(…) A desqualificação do parlamentar não impede que ele venha a candidatar-se novamente. Eventualmente pode reeleger-se. Mas sobra, ainda, à Câmara, o exercício do seu poder para cassar novamente o mandato do dito membro.” (grifei)

Em suma: a submissão de todos à supremacia da Constituição e aos princípios que derivam da ética republicana representa o fator essencial de preservação da ordem democrática, por cuja integridade devemos todos velar, enquanto legisladores, enquanto magistrados ou enquanto membros do Poder Executivo.

O aspecto central do presente mandado de segurança reside na alegada impossibilidade constitucional – consoante sustentado pelo impetrante – de o membro do Congresso Nacional, regularmente licenciado de seu mandato para exercer cargo de Ministro de Estado (CF, art. 56, I), incidir, quando no desempenho dessa função no Poder Executivo, em conduta atentatória ao decoro parlamentar e sujeitar-se, em conseqüência, em virtude do fato supostamente indecoroso, à perda do mandato legislativo, nos termos do art. 55, inciso II, da Constituição da República.

O impetrante sustenta, presente tal contexto, ter(…) direito líquido e certo de não ser submetido a julgamento pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados quanto a atos praticados na função de Ministro de Estado (…)”, devendo estar sujeito, ao contrário, a regime constitucional de responsabilidade diverso daquele a que ora está sendo submetido, pois entende que incide, na espécie, a norma de competência inscrita no art. 102, I, “c”, da Constituição.

O Senhor Deputado JÚLIO DELGADO, Relator do Processo nº 4/2005 (oriundo da Representação nº 38/2005), instaurado contra o impetrante e ora em tramitação perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, ao justificar a questionada competência da Câmara dos Deputados para o exame dos atos alegadamente atentatórios ao decoro parlamentar atribuídos ao autor do presente “writ” mandamental, assim fundamentou, no ponto, o seu entendimento:

A licença para o desempenho de múnus governamental não afasta nem restringe o vínculo do parlamentar com a instituição, senão estritamente no que concerne à prática dos atos inerentes ao exercício parlamentar no âmbito da respectiva Casa.

Inquestionável, porém, é que, se as prerrogativas continuam, também perduram as obrigações e os ônus.

Semelhante condição situará, sempre, o respectivo titular sob os ônus e as conseqüências anteriormente listadas no art. 55, que sujeita à perda de mandato em caso de abuso dessas prerrogativas, e de outras mais, que compõem o elenco próprio da Representação.

Em se cuidando da violação do decoro parlamentar, a caracterização dessa conduta prescinde de que o congressista se encontre no efetivo exercício do mandato no âmbito da Casa na qual tem assento, porque o atributo há de ser averiguado em relação à investidura, ou seja, à representação ou mandato eletivo, não somente quando no exercício deste, em função estritamente legislativa ou parlamentar, mas também quando esteja desempenhando cargo político no Poder Executivo, ou seja, no exercício de uma prerrogativa do mandato.

Ao fazer uso de qualquer prerrogativa, o agente público deve considerar que elas são excepcionalidades dentro do sistema de representação, diante do que ele certamente responderá pelo abuso das mesmas. Ainda que essa exorbitância ocorra nos lindes do Poder Executivo, no qual temporariamente se encontra o acusado, estará sujeito à perda do mandato que detém no Legislativo.

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Por essa forma, em razão de sua investidura parlamentar e do conjunto de prerrogativas do mandato representativo, o congressista que ocupa cargo de Ministro de Estado não fica isento da responsabilização ético-disciplinar, no que pertine ao decoro parlamentar.

Quando se cuida de violação do decoro parlamentar, a averigüação dessa infringência está condicionada tão-somente à condição de ser detentor de mandato parlamentar, como fato próprio da investidura congressual, ou seja, conseqüente à diplomação e posse, que repercute sobre a Instituição e o corpo legislativo, não estando adstrito à hipótese de o infrator se achar no efetivo exercício do mandato na respectiva Casa do Congresso Nacional.

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Ao assumir o ônus de Ministro de Estado, jamais poderia abandonar a conduta, a postura imposta pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados, devendo obrigatoriamente atentar para a questão da dignidade e da honra a qual todo homem está sujeito, principalmente o homem público. Isso porque a questão do decoro parlamentar encontra-se ligada diretamente a esses dois campos, sendo questão ética e moral, necessariamente.

A honra do homem público, especialmente o do que exerce mandato político, representação máxima da democracia, não é somente a imagem pessoal do próprio Representado para consigo mesmo. A questão da honra é muito mais ampla. Envolve a imagem perante terceiros, perante a sociedade e seus pares da Casa Legislativa. Assim, mesmo estando temporariamente fora do exercício do mandato, seus atos atingem diretamente todas as inserções sociais do sujeito – homem público – haja vista a necessidade premente de, em todas as circunstâncias da vida quotidiana, ter o mesmo uma conduta digna.

Mesmo afastado do cargo de Deputado Federal, não deixou de ser representante do povo, estando apenas temporariamente licenciado. Ainda que estivesse fora das atividades parlamentares por motivo de saúde ou qualquer outro, não deixaria de ser membro da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional.

Logo, não há que se falar em impossibilidade de punição do Representado por quebra do decoro parlamentar porque não estava no exercício do cargo. Se o Deputado José Dirceu estivesse afastado do cargo, não de forma temporária, mas definitiva, aí, sim, poderíamos concordar com sua argumentação de que não houve quebra do decoro parlamentar, pois não mais seria Deputado Federal.” (grifei)

Essa compreensão do tema, tão bem exposta pelo eminente Ministro PAULO BROSSARD no doutíssimo voto que proferiu no julgamento do MS 21.360/DF (RTJ 146/153, 166-174), e que se apóia no reconhecimento de que é prescindível o exercício do mandato legislativo para efeito de configuração do ato indecoroso, permite relembrar, a respeito de tal questão, entendimento anteriormente expendido pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que opinou, em 24 de maio de 1949, pela cassação do mandato legislativo do então Deputado EDMUNDO BARRETO PINTO, por haver este incidido, em 29/06/46 (em momento anterior, portanto, ao da própria vigência da Constituição de 1946), em procedimento incompatível com o decoro parlamentar:

“‘Procedimento incompatível com o decoro parlamentar’ é a conduta daquele que se torna indigno de participar da Casa do Parlamento.

A Constituição não se refere àquele que ‘praticar ato incompatível com o decoro parlamentar’, mas àquele que tiver ‘procedimento’, com essa incompatibilidade.

Também não restringe a aplicação da penalidade aos que tiverem tal procedimento ‘dentro da Câmara’ ouno exercício do mandato’ e, por isso, não têm razão os que entendem não poder a Câmara se preocupar com ‘conduta social’ do Deputado. Desde que o membro do Congresso tenha conduta que atente contra a respeitabilidade, a dignidade, o decoro, enfim, do parlamento, fica sujeito à perda do mandato.” (grifei)

Essa mesma percepção do significado de procedimento infringente do decoro parlamentar foi igualmente manifestada pelo então Deputado Federal MONSENHOR ARRUDA CÂMARA, que assim se pronunciou sobre o tema (“Inviolabilidade Parlamentar e Imunidade Processual”, p. 09, 1968, Imprensa Nacional):

Mas que é decoro parlamentar? O Regimento ainda não o definiu. Deverá fazê-lo em Projeto de Resolução, em que poderiam incluir-se propaganda de guerra ou contra regime, injúrias graves, ultraje à moral pública, calúnias, defesa de interesses próprios inconfessáveis – e aí estaria o caso de corrupção, ou lá fora comprando eleitores ou subornando cabos eleitorais – processos de corrupção, insulto a membros de outros Poderes.

Enfim, ao nosso ver modesto, contrário ao decoro é tudo aquilo que empana a essência, a dignidade, a majestade e a compostura do mandato parlamentar, dentro do seu exercício ou fora dele, mas tudo isto julgado pela própria câmara a que pertence o Congressista, não pelos outros Poderes.” (grifei)

O membro do Congresso Nacional pode exercer, excepcionalmente, sem perda do mandato parlamentar, determinados cargos na esfera institucional do Poder Executivo, dentre os quais o de Ministro de Estado (CF, art. 56, I), hipótese em que a própria Constituição da República, em norma expressa, permite-lhe optar pela remuneração do mandato legislativo (CF, art. 56, § 3º).

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, firmou orientação no sentido de que o congressista, quando licenciado para exercer cargo no âmbito do Poder Executivo, perde, temporariamente, durante o período de afastamento do Poder Legislativo, a garantia constitucional da imunidade parlamentar material e formal (RTJ 99/477, Rel. Min. DJACI FALCÃO – RTJ 99/487, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 166/133, Rel. Min. NELSON JOBIM – Inq 681/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – Pet 1.113/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

De outro lado, esta Corte Suprema também deixou estabelecido que, no sistema constitucional brasileiro, o membro do Congresso Nacional, mesmo afastado para exercer cargo público constitucionalmente permitido, preserva, em seu benefício, a garantia referente à prerrogativa de foro, perante este Supremo Tribunal, nas infrações penais comuns, ainda quando cometidas na condição de ocupante de funções junto ao Poder Executivo (RTJ 153/503, Rel. Min. MOREIRA ALVES RTJ 153/760, Rel. Min. MOREIRA ALVES).

Se é certo, de um lado, que o efetivo exercício do mandato legislativo traduz pressuposto essencial ao gozo da imunidade parlamentar (material ou formal), pois esta existe para proteger o desempenho independente do ofício congressual (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, tomo III/10 e 43, 2ª ed., 1970, RT; JOÃO BARBALHO, “Constituição Federal Brasileira”, p. 64, edição fac-similar, 1992, Senado Federal; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 2/625, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de 1988, vol. V/2624-2625, item n. 204, 1991, Forense Universitária; MICHEL TEMER, “Elementos de Direito Constitucional”, p. 129/130, item n. 5, 18ª ed., 2002, Malheiros, v.g.), não é menos exato, de outro, considerada a teleologia da norma constitucional garantidora da prerrogativa de foro, que a cláusula que a instituiu tem por finalidade dispensar “proteção especial à pessoa do parlamentar, independentemente do exercício do mandato” (RTJ 153/503, Rel. Min. MOREIRA ALVES).

O membro do Congresso Nacional – que se licencia para exercer determinados cargos no Poder Executivo (como o de Ministro de Estado), podendo, até mesmo, como já assinalado, optar pela remuneração do mandato legislativo – não se desvincula da Casa a que pertence, pois, embora temporariamente afastado do exercício da função congressional, não rompe os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento, tanto que continua a subsistir, em seu favor, a garantia constitucional da prerrogativa de foro em matéria penal, circunstância esta – consoante ressaltou, em seu voto, no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, o Deputado JÚLIO DELGADO – que torna ainda mais visíveis, quanto ao parlamentar licenciado, “a integridade e a continuidade do vínculo que se estabelece entre este e a Casa Legislativa a que pertence”.

Não é difícil concluir, desse modo, assentada tal premissa, que o fato de os Deputados ou Senadores estarem licenciados não os exonera da necessária observância dos deveres constitucionais (tanto os de caráter ético quanto os de natureza jurídica) inerentes ao próprio estatuto constitucional dos congressistas, que representa um complexo de normas disciplinadoras do regime jurídico a que estão submetidos os membros do Poder Legislativo, nele compreendidas – como ressalta o magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 1045, item n. 54.1, 2ª ed., 2003, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 536/537, item n. 17, 23ª ed., 2004, Malheiros; UADI LAMMÊGO BULOS, “Constituição Federal Anotada”, p. 770, 5ª ed., 2003, Saraiva; AURO AUGUSTO CALIMAN, “Mandato Parlamentar – Aquisição e Perda Antecipada”, p. 123/134, item n. 1.3.1, 2005, Atlas, v.g.) – as incompatibilidades negociais (ou contratuais), funcionais, políticas e profissionais definidas no art. 54 da Constituição.

Examinada a questão sob tal perspectiva, torna-se lícito reconhecer a possibilidade de perda do mandato legislativo, se e quando o parlamentar, embora exercendo cargo de Ministro de Estado, vier a incidir nas situações de incompatibilidade (CF, art. 54) e naquelas referidas no art. 55 da Lei Fundamental, com exclusão, unicamente, da hipótese a que alude a parte final do inciso III do art. 55 da Carta Política, eis que, por razões óbvias, o desempenho de funções no Poder Executivo não se mostra compatível com a exigência de simultâneo comparecimento às sessões ordinárias do Parlamento.

É por tal motivo, Senhor Presidente, que tenho por adequada a interpretação dada pelo eminente Advogado EDUARDO FORTUNATO BIM, em valioso trabalho, ainda inédito, que versa, precisamente, o tema ora em análise (“A Cassação de Mandato por Quebra de Decoro Parlamentar: Sindicabilidade Jurisdicional e Tipicidade”):

O poder de expulsar um membro não está reduzido a ofensas cometidas durante a sessão parlamentar (ou durante a legislatura), mas se estende a todos os casos nos quais a ofensa é tamanha que, a juízo da casa legislativa, desapropria-o de seus deveres parlamentares. A imposição de decoro parlamentar é uma defesa do parlamento, razão pela qual a condição de parlamentar é a que importa, não a temporariedade ou qualidade do ato tido como indecoroso.

……………………………………………

O fundamento do poder punitivo por atos incompatíveis com o decoro parlamentar está na maculação que o comportamento do parlamentar causa ou pode causar à dignidade da instituição parlamentar. Pouco importa se o parlamentar está ou não exercendo o mandato, estando afastado para assumir algum cargo executivo, em licença saúde ou para tratar de interesse particular. A dignidade do parlamento pode ser maculada de qualquer maneira enquanto o parlamentar for um membro do parlamento, ainda que esteja afastado ou licenciado (CF, art. 56). Lapidares as palavras de Carla Teixeira:

Na identidade parlamentar, o anonimato inexiste, seja enquanto ideal ou prática, pois a valorização do sujeito se dá a partir do seu pertencimento ao corpo de parlamentares; a pretensão/reconhecimento de uma imagem (prestígio e dignidade) é fundamental no desempenho de sua função; a condição de deputado federal integra todas as demais inserções sociais do sujeito (…). Pois é imprescindível à honra/decoro parlamentar que o sujeito tenha uma conduta digna em todas as circunstâncias da vida cotidiana: nas obrigações como pai, marido, filho, empresário/trabalhador, contribuinte e, por fim, representante político. Não é possível postular meia honra – em apenas uma esfera social -, pois a honra rejeita a fragmentação do sujeito; a honra é sempre pessoal.’

Admitir que o afastamento para assumir funções executivas exime o parlamentar de se comportar com decoro seria negar a própria condição de parlamentar, fato inocorrente, uma vez que a Constituição fala em afastamento e não em renúncia do mandato ou aposentadoria compulsória.

O argumento do STF é claro: os atos não foram praticados no exercício do mandato (que ainda existe), então não autorizam a imunidade constitucional, que só serve para quem está exercendo as funções de parlamentar. Quem está no executivo não exerce as funções de parlamentar, mas não perde o mandato, podendo ferir o decoro do parlamento, uma vez que ainda está vinculado ao parlamento. Não há que se confundir a imunidade com o poder disciplinar do parlamento.

Argumento que deve ser visto com cuidado é o risco de haver uma ingerência do Poder Legislativo através do processo de cassação do mandato, na política do Executivo, ferindo a separação de poderes. Não existe a alegada interferência, uma vez que a política do Executivo estará a salvo, não havendo como o parlamento influenciar nisso. Se o parlamentar for cassado, a pena não atingirá o cargo executivo, uma vez que a cominação de inelegibilidade não alcança cargos de confiança – cargos não elegíveis por natureza. O Executivo continuará com o seu ministro ou secretário, se quiser, não havendo nenhuma interferência entre os poderes da República.” (grifei)

Reconheço, ainda, tal como relembrado pelo ilustre Advogado EDUARDO FORTUNATO BIM, em seu já referido trabalho, que, hoje, ao contrário do que sucedia sob a égide da Constituição de 1946, quando a tipicidade em torno da noção de decoro parlamentar era extremamente aberta (art. 48, § 2º), o vigente ordenamento constitucional (art. 55, § 1º) “preceitua que o decoro parlamentar temque estar definido no regimento ou consistir em atos caracterizadores de abuso das prerrogativas asseguradas aos parlamentares ou em percepção de vantagens indevidas, aquelas que contrariam o direito. Sem a subsunção do ato tido como incompatível com o decoro parlamentar às definições constitucionais, ainda que indireta, no caso da previsão regimental, impossível a cassação de qualquer parlamentar à luz do inciso II do artigo 55 da CF/88. Existe, dessa forma, umatipicidade constitucional’ dos atos indecorosos perfeitamente controlável pelo Judiciário” (grifei).

Por tal motivo, esse mesmo autor, examinando a questão da tipicidade constitucional pertinente aos atos indecorosos, salienta, com absoluto acerto, que a Constituição de 1988, ao referir-se aodecoro parlamentar, ainda que remeta a sua definição ao regimento, não o faz de forma ilimitada, ‘não passa um cheque em branco ao legislador regimental’. Embora haja amplitude na definição dos atos incompatíveis com o decoro parlamentar, não há como ignorar o conteúdo mínimo da expressão como algo que minimamente fira a dignidade, a imagem ou a respeitabilidade do parlamento, sob pena de transformar a cassação pela quebra de decoro em uma desculpa para revogar mandatos legitimamente conferidos pelo povo. A teoria do cheque em branco ignora a força normativa dos vocábulos constitucionais, uma vez que o decoro parlamentar não pode ser encarado como uma desculpa qualquer para cassar o mandato parlamentar pela maioria; tal proceder compactua com a onipotência da maioria e com o arbítrio, violando diversos corolários do princípio democrático: proteção das minorias contra a maioria, contenção ao arbítrio estatal e preservação da representação do parlamentar eleito” (grifei).

A Representação nº 38/2005, oferecida pelo PTB, que deu origem ao Processo nº 4/2005, imputa, ao ora impetrante, a prática de conduta que o art. 4º, inciso IV, do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados qualifica como procedimento incompatível com o decoro parlamentar, punível com a perda do mandato, fazendo-o nos seguintes termos:

Art. 4º Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

…………………………………………….

IV fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação; (…).” (grifei)

Eis, no ponto, a imputação deduzida contra o ora impetrante:

Em depoimentos prestados ao Procurador-Geral da República, em poder da egrégia Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios e perante a própria CPMI, respectivamente, por MARCOS VALÉRIO FERNANDES DE SOUZA, a 14 Jul 2005 e d. RENILDA MARIA SANTIAGO FERNANDES DE SOUZA, a 26 Jul 2005, deu-se conta de que o Representado, JOSÉ DIRCEU, enquanto licenciado desta Casa para exercer as funções do cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil do Presidente da República, em conluio com o Secretário de Finanças do Partido dos Trabalhadores – PT, DELÚBIO SOARES, levantou fundos junto ao Banco Rural e Banco de Minas Gerais – BMG, tomados sob a intervenção e responsabilidade de MARCOS VALÉRIO, com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo.

À sua vez, tais fundos levantados como se empréstimos fossem, eram compensados pelo favorecimento aos Bancos mencionados – com cujos diretores, entre eles, FLÁVIO GUIMARÃES (BMG) e KÁTIA RABELO (Rural), esteve reunido JOSÉ DIRCEU – e empresas de que participa MARCOS VALÉRIO, em contratos governamentais, de sua administração indireta ou autárquica, garantidos pela influência do Representado, de modo que, embora tais mútuos não tenham sido honrados pelos tomadores, tampouco houvesse cobrança daquelas instituições financeiras de seu crédito.

Assim agindo, o Representado quebrou o decoro parlamentar, porquanto membro titular de mandato legislativo aí, valeu-se daquela atividade junto ao Poder Executivo, para interferir e fraudar o regular andamento dos trabalhos legislativos, alterando o resultado de deliberações em favor do Governo, infringindo a Constituição Federal, art. 55, inciso II e § 1°, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 244 e o Código de Ética e Decoro Parlamentar, art. 4°, inciso IV, pelo que se formula a presente Representação, a fim de que apresente a defesa que tiver, ‘até final perda do mandato’ que detém.” (grifei)

O exame de tal imputação não parece evidenciar que se teria registrado, no caso, transgressão à exigência de tipicidade concernente aos atos configuradores de quebra de decoro parlamentar.

Registre-se, finalmente, neste ponto, na linha do magistério jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte (RDA 189/271, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI), que a eventual qualificação criminal dos fatos imputados ao congressista não inibe o exercício, pela Casa legislativa a que pertence, de seu poder disciplinar, legitimando-se, em conseqüência, ainda que com base nesses mesmos fatos, a instauração de processo de cassação de mandato por transgressão à cláusula do decoro parlamentar.

Por tais razões, Senhor Presidente, é que entendo descaracterizada a plausibilidade jurídica da pretensão mandamental ora deduzida pelo impetrante.

Desse modo, e não obstante as doutas ponderações do eminente Relator, peço vênia para indeferir o pedido de medida liminar.

É o meu voto.

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