Preço da farsa

PMs são condenados a 17 anos de prisão por morte de dentista

Autor

19 de outubro de 2005, 12h06

O tenente Carlos Alberto de Souza e o soldado Luciano José Dias foram considerados culpados pela morte do dentista Flávio Santana. Os acusados também foram condenados por fraude processual, retenção e transporte ilegal de arma, o que resultou numa pena 17 anos e meio de prisão.

A morte de Santana está relacionada ao preconceito recorrente da polícia, que coloca todo negro na condição de suspeito. Santana não morreu porque era suspeito. Morreu porque era negro. Além de executar o dentista, os agentes do Estado montaram a cena do crime para fazer crer que ele era um assaltante e havia resistido.

O cabo Ricardo Arce Rivera também foi condenado pelos mesmos crimes, exceto o de homicídio, e teve pena de 7 anos e meio de prisão. Rivera não foi julgado por homicídio a pedido do Ministério Público, pois, segundo a denúncia, o policial estava dentro da viatura no momento em que os tiros foram disparados contra o dentista.

O julgamento dos três policiais militares de Guarulhos, na Grande São Paulo, terminou no início da madrugada desta quarta-feira (19/10), no Fórum Regional de Santana, na Zona Norte da capital paulistana. O julgamento começou na segunda-feira (17).

O juiz Marco Antônio Varga presidiu o júri. Atuaram na acusação o promotor Francisco Cembrali e o advogado Alberto Zacharias Toron, como assistente de acusação. A defesa dos policiais foi feita pelos advogados Marcos Ribeiro de Freitas e Eliezer Martins.

Flávio Santana foi assassinado na madrugada do dia 3 de fevereiro de 2004, quando voltava do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, onde deixou a namorada. Naquela madrugada, Santana foi abordado pelos policiais, que o acusavam de assaltar um comerciante. Ele não estava armado, não estava em atitude suspeita e o único motivo que o colocou na mira dos policiais foi o preconceito.

Antes de poder se explicar, Santana foi alvejado com dois tiros. Em seu bolso, os policiais colocaram os documentos do comerciante e uma arma com registro raspado, para simular resistência. No dia seguinte, a farsa foi descoberta quando o comerciante, que testemunhou a ação dos PMs, declarou que Flávio não era o assaltante.

Leia a íntegra da sentença

II TRIBUNAL DO JÚRI DA COMARCA DA CAPITAL

Processo – crime nº 001.04.005167-7

Controle nº 182/04

Vistos.

LUCIANO JOSÉ DIAS, CARLOS ALBERTO DE SOUZA SANTOS e RICARDO ARCE RIVERA, todos qualificados nos autos, foram pronunciados e submetidos a julgamento nesta data como incursos no artigo 121, parágrafo 2º, incisos I e IV, artigo 347 e parágrafo único, ambos do Código Penal e artigo 16, parágrafo único, da Lei nº 10.826/03, todos na forma prevista pelo art. 29, também, do Código Penal.

Na presente data, os senhores membros do Conselho de Sentença reconheceram a autoria e materialidade do crime de homicídio em relação aos acusados Luciano e Carlos Alberto, bem como afastaram as teses do excesso culposo da excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal e excesso culposo da legítima defesa putativa, quando negaram os quesitos relativos a essas teses defensivas. Os Senhores Jurados reconheceram a causa de diminuição afeta ao homicídio privilegiado do relevante valor social e moral aos acusados Luciano e Carlos Alberto, prejudicando, assim, a indagação da qualificadora do quesito afeto ao motivo torpe. Reconheceram, ainda, a qualificadora do recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Os Senhores Jurados negaram o quesito relativo à autoria e materialidade constante da série de votação do acusado Ricardo, prejudicando todos os demais quesitos relativos a este crime. O Conselho de Sentença afirmou os quesitos que indagavam sobre os crimes de fraude processual e de detenção e transporte ilegal de arma de fogo imputados aos três acusados. Em todas as séries de votação, a exceção do crime de fraude processual imputado ao acusado Luciano e a exceção dos crimes imputados ao acusado Ricardo, os Senhores Jurados afirmaram a existência de circunstância atenuante em favor dos acusados. Por fim, houve requerimento da Defesa no sentido de desistir da votação do quesito constante da série especial sobre o falso testemunho em relação à testemunha Antonio Alves dos Anjos.

Dessa forma, os Senhores Membros do Conselho de Sentença reconheceram que os acusados Luciano e Carlos Alberto praticaram um crime de homicídio privilegiado qualificado, bem como reconheceram que os três acusados praticaram o crime de fraude processual e o crime de detenção e transporte ilegal de arma de fogo.

Atento ao sobredito veredicto, resta-me a individualização da pena à cada acusado.

Nesse passo, em relação aos acusados Luciano e Carlos Alberto, observo que é forçoso reconhecer a inexistência de circunstâncias negativas contidas no artigo 59 do Código Penal que possam sopesar aquelas outras positivas também descritas pelo citado artigo e, por isso, a fixação da pena base deve ser estabelecida no mínimo legal, de modo que fixo a pena base em (12) doze anos de reclusão, nos termos do artigo 121, § 2º, inciso IV, do Código Penal. A agravante prevista pelo art. 61, inciso II, alínea “g”, do Código Penal acaba compensada pelo reconhecimento da atenuante reconhecida pelo Conselho de Sentença, nos termos do art. 67 do Diploma Penal. Agora, diante do reconhecimento do homicídio privilegiado pelo motivo de relevante valor social e moral, diminuo a pena anteriormente fixada em (1/6) um sexto, porquanto referida causa de diminuição não permite a redução em fração maior, ainda que permitido pela Lei penal por conta da conduta dolosa verificada, de modo que fixo a pena em (10) dez anos de reclusão, para o crime de homicídio duplamente qualificado imputado aos acusados Luciano e Carlos Alberto.

Com relação ao crime de fraude processual, constato que os acusados agiram para o crime em questão de modo igualitário nas respectivas condutas e sem que se pudesse aferir uma maior organização dos atos executórios de um deles em detrimento dos outros. Nesse diapasão, constato que a ação delituosa é grave, sobretudo por ter sido realizada pelos acusados no exercício da função pública creditada a eles pela Sociedade e representando a ilibada corporação da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Verifico, ainda, que os motivos e circunstâncias do referido crime recomendam a fixação da pena base aos acusados, como forma adequada de reprovabilidade social, seja fixada em (01) um ano e (06) seis meses de detenção e (150) cento e cinqüenta dias-multa, no valor unitário mínimo legal, observada a regra contida pelo art. 347, “caput”, do Código Penal. Agora, nos termos do parágrafo único do referido art. 347 do mencionado Código Penal, a pena anteriormente fixada deverá ser dobrada e, assim, estabelecida em (03) três anos de detenção e (300) trezentos dias-multa no valor unitário mínimo legal a cada acusado, para o crime de fraude processual. Destaca-se que a agravante e a atenuante reconhecidas pelo Conselho de Sentença ao acusado Carlos Alberto ficam compensada nos termos do artigo 67 do Código Penal.

Ao crime de detenção e transporte ilegal de arma de fogo, observados os mesmos argumentos desenvolvidos para fixação da pena base do crime de fraude processual, sobretudo a efetiva aderência deles nas condutas delituosa, bem como a qualidade funcional dos acusados e a função pública que estavam investidos no momento do delito sob apreço e já observada a agravante reconhecida pelo Conselho de Sentença, fixo-lhes a pena em (04) quatro anos e (06) seis meses de reclusão e (100) cem dias-multa no valor unitário mínimo legal, a cada acusado, nos termos do artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/03, para o crime de detenção e transporte ilegal de arma de fogo. Destaca-se, novamente, que a agravante e a atenuante reconhecidas pelo Conselho de Sentença ao acusado Carlos Alberto ficam compensada nos termos do artigo 67 do Código Penal.

Finalmente, nos termos do artigo 69, “caput”, as penas serão somadas, de modo que aos acusados Luciano e Carlos Alberto a pena privativa de liberdade fica fixada em (14) quatorze anos e (06) seis meses de reclusão e (03) três anos de detenção, além do pagamento de (400) quatrocentos dias-multa, no valor unitário mínimo legal e ao acusado Ricardo a pena fica fixada em (04) quatro anos e (06) seis meses de reclusão e (03) três anos de detenção, além do pagamento de (400) quatrocentos dias-multa, no valor unitário mínimo legal, porque foram fixadas penas privativas de liberdade de reclusão e detenção e, assim, converto as penas fixadas em definitiva por não encontrar nenhuma outra circunstância modificadora aplicável.

Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a presente ação penal que a Justiça Pública move contra LUCIANO JOSÉ DIAS, CARLOS ALBERTO DE SOUZA SANTOS e RICARDO ARCE RIVERA, todos qualificados nos autos, e, por via de conseqüência, CONDENO-OS à pena de:

a) (14) quatorze anos e (06) seis meses de reclusão e (03) três anos de detenção, além do pagamento de (400) quatrocentos dias-multa, no valor unitário mínimo legal, a cada um dos acusados LUCIANO JOSÉ DIAS e CARLOS ALBERTO DE SOUZA SANTOS, dando-os como incursos no artigo 121, parágrafos § 1º e 2º, inciso IV, artigo 347 e parágrafo único, ambos do Código Penal e artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/03, todos na forma prevista pelo art. 29, “caput”, também, do Código Penal, bem como

b) (04) quatro anos e (06) seis meses de reclusão e (03) três anos de detenção, além do pagamento de (400) quatrocentos dias-multa, no valor unitário mínimo legal ao acusado RICARDO ARCE RIVERA, dando-o como incurso no artigo 347 e parágrafo único, ambos do Código Penal e artigo 16, parágrafo único, da Lei nº 10.826/03, todos na forma prevista pelo art. 29, também, do Código Penal.

Os acusados Luciano e Carlos Alberto cumprirão as penas privativas de liberdade fixada ao crime de homicídio privilegiado qualificado em regime inicial fechado, nos termos do artigo 33, § 2º, alínea “a”, do Código Penal.

Para os crimes de detenção e transporte ilegal de arma, observada, também, a gravidade da conduta criminosa e os motivos destacados para fixação da pena base, nos termos do artigo 33, parágrafo 3º, do Código Penal, deverão iniciar o cumprimento das penas privativas de liberdade em regime fechado. No entanto, observado que o acusado Ricardo encontra-se recolhido por aproximadamente dois anos, poderá cumprir inicialmente a pena do crime de detenção e transporte no regime semi-aberto. Ao crime de fraude processual, com a mesma observância feita anteriormente, deverão cumprir a pena em regime semi-aberto, executando-se primeiro a pena fixada ao crime de homicídio e, após, a pena fixada à detenção e transporte ilegal de arma de fogo para, posteriormente, ser executada a pena fixada ao crime de fraude processual.

Considerando os regimes de penas fixados aos acusados e porque deverão desde já iniciar o cumprimento das reprimendas, não lhes faculto a possibilidade de recorrerem em liberdade.

Após o trânsito em julgado lancem-se os nomes dos acusados no rol dos culpados e providencie-se o encaminhamento de ofício para efetivação da perda do cargo público exercido pelos acusados, por força das hipóteses previstas pelo art. 92, I, alíneas “a” e “b”, do Código Penal, em face do quantum da pena privativa de liberdade fixada, sobretudo pelo abuso de poder, as quais ficam declarados nesta sentença.

Cumpra-se, também, o Provimento nº 770/02 do Egrégio Conselho Superior da Magistratura.

Expeçam-se mandados de prisões em desfavor dos acusados por força desta sentença, bem como se expeçam guias de recolhimentos provisórias, caso haja recurso interposto por qualquer das partes, encaminhando-a ao Juízo das Execuções Criminais competente.

Publicada em plenário, saem as partes intimadas.

Registre-se e comunique-se.

Sala secreta do Segundo Tribunal do Júri da Comarca da Capital, em 19 de outubro de 2005, às 02.00 horas.

MARCO ANTONIO MARTIN VARGAS

Juiz de Direito

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!