Improbidade administrativa

MP paulista processa Marta Suplicy por dívidas públicas

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18 de outubro de 2005, 14h21

A Promotoria da Cidadania do Ministério Público de São Paulo entrou na segunda-feira (17/10) com Ação Civil Pública contra a ex-prefeita paulistana Marta Suplicy (PT), por dívidas a pagar que teriam sido deixadas para a atual gestão quitar, sem que houvesse recursos previstos para tal.

A irregularidade, para os promotores, está no cancelamento de empenhos feito pelo Decreto 45.664/04, assinado pela prefeita e pelos então secretários de Negócios Jurídicos, Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, e de Finanças, Luiz Carlos Fernandes Afonso.

Segundo dados do TCM — Tribunal de Contas do Município, foram cancelados empenhos de R$ 588,1 milhões. Segundo uma auditoria feita em uma amostragem de R$ 241 milhões, 96% dos recursos foram aplicados em obras que haviam sido feitas.

Segundo o promotor Antônio Celso Faria, a gestão petista é acusada de ter cancelado os pagamentos para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Apesar das restrições, o TCM aprovou as contas por maioria de votos. Os empenhos devem ser cancelados quando há indícios que os serviços não foram feitos.

Além da condenação a pagar uma multa de até duas vezes o prejuízo causado pela medida, os promotores pedem que a prefeita e seus secretários tenham os direitos políticos por até oito anos e que fiquem proibidos de contratar direta ou indiretamente com o Poder Público por cinco anos.

A ação foi distribuída à 3ª Vara da Fazenda Pública. É a segunda ação que os promotores da Cidadania entram contra a ex-prefeita por improbidade administrativa. Na anterior, eles a acusam de irregularidades nas contas de 2003, quando teria aberto créditos suplementares sem previsão no orçamento.

O ex-secretário Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira defendeu a legalidade da atitude da então prefeita e disse que o ato do Ministério Público foi precipitado. "Se eles tivessem o cuidado necessário, teriam percebido que não assinei este decreto. Não por discordar de seu conteúdo, mas porque não tive como assinar. No meu caso, houve a chamada litigância temerária", acusou.

Leia a íntegra da Denúncia dos promotores da Cidadania

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 3ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL.

Distribuição por dependência à Ação Popular n. 053.05000799-0- cópia às fls. 249/272.

Autor: José Police Neto.

Réus: Município de São Paulo, Marta Suplicy, Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, Luiz Carlos Fernandes Afonso e Rui Goethe da Costa Falcão.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seus Promotores de Justiça que esta subscrevem, no uso de suas atribuições legais, legitimado pelos artigos 127, caput, e 129, inc. III, da Constituição Federal; art. 91 da Constituição Estadual; art. 25, inciso IV, alíneas “a” e “b”, da Lei Federal 8.625/93; art. 103, inciso VIII, da Lei Complementar Estadual 734/93; e com fulcro na Lei Complementar n. 101/00, e nas Leis Federais n. 8.429/92 e 4.320/64, à vista do apurado nos inclusos autos de Inquérito Civil n. 01/2005, vem, respeitosamente, a presença de Vossa Excelência ajuizar a presente AÇÃO DE RESPONSABILIDADE POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, de rito ordinário, em face de:

MARTA TERESA SUPLICY, ex-Prefeita Municipal de São Paulo, brasileira, casada, residente nesta Capital/S.P.;

LUIZ TARCISIO TEIXEIRA FERREIRA, ex-Secretário dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo, brasileiro, residente e domiciliado nesta Capital/S.P.; e

LUIZ CARLOS FERNANDES AFONSO, ex-Secretário das Finanças do Município de São Paulo, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado nesta Capital/S.P., pelos fatos e fundamentos a seguir descritos:

1. DOS FATOS

MARTA SUPLICY foi Prefeita do Município de São Paulo, no período de 2001 a 2004.


Ao assumir o mandato no início de 2005, a atual Administração apurou a existência de “Restos a Pagar”, consistentes em compromissos assumidos pela Administração anterior, existentes até a data de 31 de dezembro de 2.004, para os quais não foram deixados recursos em caixa para pagamento.

Considerando notícia publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, de 30 de dezembro de 2004 (Caderno Cotidiano, fls. 06/07), instaurou-se procedimento nesta Promotoria de Justiça, visando apurar a ocorrência de dano ao erário ou ofensa aos princípios da administração pública, em face do decreto municipal que determinou o cancelamento de gastos autorizados e não pagos e dos inúmeros credores que aportaram à Prefeitura de São Paulo para cobrar as dívidas (Inquérito Civil 001/2005), que instrui a presente.

Da prova positivada durante a investigação tem-se que os requeridos infringiram as normas do art. 37, caput e XXI, da Constituição Federal, dos artigos 75 e 77 da Lei n. 4.320/64 (Lei de Finanças Públicas), dos artigos 1º, 20, 42, 73 da Lei Complementar n. 101/200 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e dos artigos 65, II, “d” e 66 da Lei Federal n. 8.666/93 (Lei de Licitações), praticando, outrossim, ato de improbidade administrativa.

Senão vejamos.

Ao apreciar as contas do Município de São Paulo, relativas ao ano de 2004, os técnicos do Tribunal de Contas do Município de São Paulo constataram a existência de irregularidades nas contas de 2004, notadamente quanto ao cancelamento de empenhos promovido pelo Decreto n. 45.664/04, subscrito pelos demandados[1] (fls. 626/635, Vol. 3).

Em que pese a contundência dos pareceres acerca das irregularidades, as contas foram aprovadas por maioria de votos, manifestando-se pela rejeição apenas o Conselheiro Edson Simões.

Como se demonstrará, houve manifesta e evidente ofensa aos princípios da Administração, destacando o Conselheiro Simões, em seu voto de fls. 2479/2508, que:

“Assim sendo e considerado o espírito que norteou o legislador no respeitante ao controle de gastos e higidez das finanças públicas, especialmente, dos dispositivos da Constituição Federal, da Lei Federal n. 4.320/64 e da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo artigo 42, repita-se, veda expressamente a contração de obrigações a que extrapolem as disponibilidades de recursos financeiros nos últimos dois quadrimestres de mandato, conclui-se que o Executivo deixou de obedecer tais dispositivos” (fl. 2482).

Sobre o cancelamento de empenhos, destacou o Senhor Conselheiro que:

“Premidos pela situação financeira deficitária de então, a Administração Municipal recorreu a expedientes administrativos, tais como, o ato de bloquear liquidações de despesas, e da determinação para que os motivados empenhos fossem cancelados, embora tivessem vinculados a obrigações que se encontravam no estágio de processamento de suas liquidações. Ou seja, os compromissos contratuais passaram a não ser honrados no tempo certo.

“Dos empenhos cancelados pela administração anterior em final de mandato, no valor de R$ 588.100.000,00 (quinhentos e oitenta e oito milhões e cem mil reais), sejam pela expressividade dos valores, em números e quantidades, levou a Auditoria a realizar procedimentos para atestar a pertinência dos mesmos. Para tanto, utilizou-se de uma amostra no valor de R$ 241.400.000,00 (duzentos e quarenta e um milhões e quatrocentos mil reais), onde constatou que R$ 231.000.000,00 (duzentos e trinta milhões)- ou 96% (noventa e seis por cento) da mesma – referem-se a obras e serviços efetivamente realizados, portanto, empenhos indevidamente cancelados” (fls. 2493/2494).


Valendo-se de uma manobra imoral e ilegal, e procurando confundir dados técnicos da Lei de Responsabilidade Fiscal, os demandados editaram o Decreto Municipal n. 45.664/04 que, em 28 de dezembro de 2004, determinou em seu artigo 1º, o cancelamento de todos os empenhos não liquidados até o final de 2004, com exceção dos empenhos das despesas constitucionais e os referentes aos encargos gerais do município (fl. 573).

Apontou com clareza meridiana a Subsecretaria de Fiscalização e Controle do TCM:

“O cancelamento de empenhos promovido pelo Decreto n. 45.664/04 e Portaria SF n. 14/05 incluiu empenhos referentes a obras e serviços efetivamente executados/prestados. (item 4.5.2).

“Do total cancelado de R$ 588.144.825,07 foram selecionados por amostragem cancelamentos da ordem de R$ 241.409.291,26, sendo constatado que deste valor R$ 231.077.083,63 (95,72%) são referentes a obras e serviços efetivamente executados/prestados. (item 4.5.2).

“Entendemos que houve infringência aos artigos 65, II, “d” e 66 da Lei Federal n. 8.666/93 e ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal (fiel execução dos contratos e manutenção do equilíbrio econômico financeiro). (item 5.5.3.a e b).

“Entendemos que houve infringência ao art. 37 “caput” da Constituição Federal (princípio da moralidade). (item 4.5.3.b).

“Somos da opinião que deve ser retificado o Balanço do exercício de 2004, nele reincluindo os gastos cancelados que decorram de despesas efetivamente realizadas, para que fique demonstrada a real situação orçamentária, financeira e patrimonial da PMSP. (item 4.5.3.c).(fl. 626, item 4.5 do relatório anual- Cancelamento de Empenhos- Decreto n. 45.664/04).

Vale dizer que os demandados, sob a falaciosa alegação da necessidade decorrente de “Cancelamento de Empenhos”[2], cessaram o pagamento dos credores da Prefeitura Municipal de São Paulo e, o que é pior, usaram deste artifício para melhorar os resultados das contas de 2004.

O que os demandados fizeram, com a inacreditável aprovação de alguns Conselheiros do Colendo TCM, equivale a um pai de família economizar ao final de um mês boa parte de seu salário, simplesmente parando de pagar a escola dos filhos, plano de saúde, IPTU, despesas de supermercado etc. Evidente que esta “economia” é imoral, ilegal, ocasionando o prejuízo de toda economia, rompendo de maneira drástica a ética que deve reger as relações sociais e contratuais. Bem por isso que, no início da gestão do Prefeito José Serra, formaram-se imensas filas diante da Prefeitura Municipal de São Paulo em virtude do calote sofrido. Essa situação foi objeto de várias notícias acostadas aos autos[3].

No “jogo de responsabilidades”, os demandados alegaram que deixaram o caixa da Prefeitura com “crédito”, enquanto a administração sucessora mencionava um rombo de R$ 1,9 bilhão (fl. 15).

Analisados os dados técnicos reunidos pelo TCM e pelo assistente técnico do CAEX, conclui-se com absoluta certeza que os demandados “maquiaram” as contas de 2004, destacando-se o cancelamento dos empenhos, que obrigou o atual Secretário de Finanças, Mauro Ricardo Machado Costa, a editar a Portaria n. 014/2005, com a lista de todos os empenhos cancelados no final do exercício de 2004, publicada como suplemento do Diário Oficial do Município, do dia 18 de janeiro de 2005 (Apenso I, com original do DOM).


Com a edição do Decreto n. 45.664, de 28/12/2004, e conforme relatado no item 4.3 – liquidação de despesas do relatório anual de fiscalização do exercício de 2004 –, foi constatada a ocorrência de bloqueio imposto no Sistema NovoSEO, que impediu as unidades orçamentárias de efetuar regularmente as liquidações das despesas já realizadas e reconhecidas pela Administração Municipal (a esse respeito vide fls. 631 e seguintes- Vol. III).

Tal bloqueio foi operacionalizado a partir de meados de outubro de 2004, com o estabelecimento de um limite de liquidações para cada unidade orçamentária, mediante o controle por cotas financeiras.

A partir desse momento (outubro de 2004), a Administração passou a liberar somente a liquidação e o pagamento de algumas despesas, tais como folha de pagamento, serviço da dívida pública etc.

Este fato, como foi salientado por técnicos do TCM, implicou “diretamente no tema aqui abordado, visto que o Decreto n. 45.664/04 cancelou os empenhos não liquidados, ou melhor dizendo, que deixaram de ser liquidados, conforme ficou comprovado”.

Valendo-se de um sofisma na interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal, e alegando que o próprio Código Penal prevê a punição do administrador que deixa de promover o cancelamento do montante de restos a pagar inscritos em valor superior ao permitido em lei (art. 359-F do CP, acrescido pela Lei n. 10.028, de 19 de outubro de 2000), baixaram os demandados o Decreto n. 45.664/04, inserindo não só restos a pagar de empenhos não realizados, como também todos os empenhos (despesas) ocorridos principalmente a partir de outubro de 2004[4], de serviços fornecidos, realizados, liquidados, mas que, por “esperteza” ou por “precisão” (como diria Guimarães Rosa), foram matreiramente tratados da mesma forma que os montantes descritos no art. 359-F do Código Penal.

Esse aspecto fundamental da discussão que se travou no Tribunal de Contas do Município, como é esperado em tais situações, gerou argumentos jurídicos “fantásticos”, em que tudo se descreve e se “doura”, menos o aspecto que interessa à Administração, ou seja, a razão de ser da Lei de Responsabilidade Fiscal, qual seja, a moralidade na administração financeira do agente público, no caso, o Prefeito Municipal.

Nesse conjunto de meias-verdades, destaca-se o parecer do Prof. Márcio Cammarosano (fls. 1469/1498), ao iniciar a sua peroração dizendo que:

“Empenho é ato que integra procedimento que diz respeito à realização de despesa…”.

“A propósito, empenhos levados a efeito com ofensa à ordem jurídica devem ser anulados. Mas esse não é o único motivo que pode levar à extinção de empenhos. Não cumprimento de obrigação, pelo contratado, com a subseqüente rescisão do contrato, é um dos outros motivos ensejadores de extinção do empenho…”(fl. 1473).

“Cumpre anotar desde logo que em princípio à autoridade compete para expedir o ato de empenho de despesa (o ordenador de despesa) cabe verificar se o mesmo se sustenta ou não validamente em face das normas que o presidem” (fl. 1478).

Com todas as assertivas pertinentes, surge o sofisma consistente em “não encontrarmos na legislação pertinente à matéria – normas gerais de direito financeiro – dispositivo que defina competência para cancelamento de empenhos” (fl. 1479).

Considerando não haver definição sobre quais empenhos devam ser cancelados, incrivelmente sustentam os demandados, o parecerista e alguns conselheiros do TCM que o administrador cancela os empenhos “QUE BEM ENTENDER”. Volta-se ao pai de família que, para manter as contas da casa, “PAGA O QUE BEM ENTENDER”.


Como se destacou na imprensa, este seria o primeiro grande teste da Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, observou o jornalista André Ruzzante, “para o senso comum, não há muita dúvida sobre o assunto. Se os compromissos foram assumidos e se alguém tiver de honrá-los, alguma irregularidade terá sido cometida pelos administradores que encerraram o mandato em dezembro. Outra interpretação, mais favorável aos prefeitos que acabam de deixar o cargo, permitirá que novas bombas de efeito retardado sejam deixadas a futuros governantes” (fl. 92).

O que salta aos olhos no caso concreto é que os demandados, deliberadamente, e notadamente a partir do mês de outubro de 2004, PARARAM DE PAGAR AS CONTAS DO MUNICÍPIO, bem como impediram a inserção de vários empenhos no sistema NovoSEO. Ora, é evidente que qualquer interpretação teleológica da Lei da Responsabilidade Fiscal prevê o cancelamento de “restos a pagar” daquilo que supere o valor permitido em lei, evidenciando-se que as despesas corriqueiras da Administração, presume-se, estejam previstas no orçamento.

Os demandados cessaram inúmeros pagamentos de empenhos liquidados e, no final da gestão, justificaram tal conduta com o Decreto n. 45.664/04, que não guardou qualquer relação entre o conteúdo e a realidade das contas municipais. Assim, a Auditoria Extraplano (TC n. 72.006.984.04-02), em 13 de dezembro de 2004, constatou “a ocorrência de expressivo atraso nos prazos dos pagamentos, descumprindo-se o disposto no § 1ºdo artigo 10 do Decreto n. 44.289/04 e no item 1 da Portaria PMAT/SF 89/03” (fl. 603, Vol. 3).

A propósito, o art. 10, § 1º, do Decreto n. 44.289/04, estabelece que:

“§1º. Se o contrato não contiver definição do dia do vencimento da obrigação ou apenas estipular “pagamentos mensais”, a Unidade adotará, como data de vencimento de obrigação, 30 (trinta) dias contados a partir da data em que for atestado o fornecimento ou a prestação dos serviços, ou da data de aprovação da medição, ou da entrega da fatura ou da data final do adimplemento da obrigação, conforme determine cada contrato”.

Qualquer dona-de-casa ou pai de família sabe que despesas realizadas (escola dos filhos, dentista, aula de música), além de previsíveis, devem ser pagas no início do mês, sob pena de onerar os prestadores de serviço. Ora, como pondera Damásio E. de Jesus[5], ao comentar o art. 359-F do Código Penal, “o legislador preocupou-se com a administração das finanças públicas, regulamentando a transição dos agentes públicos. Exige-se que o gestor mantenha as contas públicas dentro da regularidade, evitando-se o efeito “bola de neve” nas sucessivas administrações. Essa intenção vem expressamente prevista no par. 1º. Do art. 1º. Da Lei Complementar n. 101/2000, quando menciona que “a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas…”.

Basta, portanto, um mínimo de bom senso para concluir que os cancelamentos de “Restos a Pagar” deveriam ocorrer apenas para empenhos não liquidados, sob pena de o Administrador enganar o prestador do serviço e enganar a população fazendo crer que a Administração encontra-se funcionando perfeitamente, com as contas em dia, e sem problemas de ordem financeira. Tanto os demandados conheciam plenamente a intenção do legislador que invocaram as normas gerais da Lei Federal n. 4320/64 e as diretrizes da Lei Federal n. 101/2000.

Como perfeitamente ponderou o Conselheiro Edson Simões, o propósito do legislador pátrio ao promulgar a Lei Complementar n. 101/2000 foi o de controlar a gestão fiscal de forma responsável e impor estratégias de combate ao déficit e à dívida do setor do Governo, em busca da visão econômica, hoje predominante, da estabilidade dos preços e dos juros. A referida Lei é um meio pelo qual se executa a política fiscal da Nação, contendo os seguintes princípios norteadores:


“1 – Buscar o equilíbrio entre os gastos com ações governamentais, de toda natureza e os recursos que a sociedade coloca à disposição dos governos, na forma de pagamento de tributos para atendê-las;

“2 – Executar uma gestão responsável dos recursos públicos, com destaque para a manutenção das dívidas e dos déficits em níveis prudentes;

“3 – Prevenir desequilíbrios fiscais estruturais e limitar gatos públicos continuados, compensando-se os efeitos financeiros decorrentes de aumento duradouro do gasto;

“4 – Propiciar transparência e amplo acesso da sociedade aos resultados fiscais obtidos, com o uso dos recursos públicos, através de incentivo à participação popular, realização de audiências públicas e publicações em meios eletrônicos”(fl. 2485).

O quadro elaborado pelo perito do CAEX (fl. 378), dá a dimensão exata dos restos a pagar na gestão da ex-Prefeita Marta Suplicy. Assim, do total de R$ 1.018.398.729,10, mais de um bilhão (R$ 1.002.989.365,97) correspondem ao exercício de 2004[6]:

CONTA

EXERCÍCIO

VALOR R$

RESTOS A PAGAR

2000

2.757.337,54

RESTOS A PAGAR

2001

395.590,03

RESTOS A PAGAR

2002

869.024,53

RESTOS A PAGAR

2003

11.387.411,12

RESTOS A PAGAR

2004

1.002.989.365

TOTAL

1.018.398.729


O montante despendido irregularmente não pode ser precisamente apontado, uma vez que são milhares de credores que procuraram a Prefeitura Municipal, o que demandaria o exame de cada contrato. Entretanto, o TCM analisou, por amostragem, os pagamentos cancelados, chegando à conclusão que 95,72% “ERAM REFERENTES A OBRAS E SERVIÇOS EFETIVAMENTE EXECUTADOS/PRESTADOS”.

Assim, “do total cancelado de R$ 588.144.825,07 (quinhentos e oitenta e oito milhões, cento e quarenta e quatro mil, oitocentos e vinte e cinco reais e sete centavos) foram selecionados, por amostragem, cancelamentos da ordem de R$ 241.409.291,26 (duzentos e quarenta e um milhões, quatrocentos e nove mil, duzentos e noventa e um reais e vinte centavos. Constatou-se que, desse valor, R$ 231.077.083,63 (duzentos e trinta e um milhões, setenta e sete mil, oitenta e três reais e sessenta e três centavos) – 95,72% – eram referentes a obras e serviços efetivamente executados/prestados”.

O TCM inclusive demonstrou os maiores valores cancelados:

– por projeto/atividade;

– por credor;

– por elemento de despesa; e

– por órgão.

Assim, os maiores prejudicados por projeto, por credor, por elemento de despesa e por órgão, estão relacionados nos documentos de fls. 628/630.

Apenas para ilustrar o volume de valores cancelados, por órgão, reproduzimos o quadro de fl. 630.

MAIORES VALORES CANCELADOS, POR ÓRGÃO

Em R$

Órgão

Valor Cancelado

%

Secretaria de Serviços e Obras

222.911.183,15

37,9

Secretaria Municipal de Transportes

134.255.982,23

22,8

Encargos Gerais do Município

28.260.129,74

4,8

Secretaria de Habitação e Desenv. Urbano

25.025.116,33

4,3

Secretaria de Infra-Estrutura Urbano

19.662.699,03

3,3

Séc. Municipal de Esporte, Lazer e Recreação

14.751.349,74

2,5

Secretaria Municipal da Cultura

13.548.046,39

2,3

Secretaria Municipal das Subprefeituras

10.854.764,21

1,8

Secretaria Mun. do Verde do Meio Ambiente

10.652.894,95

1,8

Secretaria de Finanças e Desenv. Econômico

10.339.735,88

1,8

Outras

97.882.923,42

16,6

Total Cancelado em 29.12.05

588.144.825,07

100

Essas irregularidades, portanto, são flagrantes e reprováveis, visto que contrariam os Princípios da Administração Pública, principalmente no tocante ao do Interesse Público.

2. DO DIREITO

Estabelecem os arts. 35 e 36 da Lei Orçamentária (Lei n. 4.320/1964), que:

“Art. 35. Pertencem ao exercício financeiro:

“I – as receitas nele arrecadadas;

“II – as despesas nele legalmente empenhadas.

“Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro, distinguindo-se as processadas das não-processadas.(grifo do autor).

“Parágrafo único. Os empenhos que correm a conta de créditos com vigência plurianual, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a Pagar no último ano de vigência do crédito”.

Assim, leciona Flávio da Cruz et alli que:

“De acordo com o art. 36 da referida Lei, consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro, os quais, tecnicamente, são distinguidos em duas categorias:

“a) os Restos a Pagar relativos a despesas processadas, ou seja, as relativas a empenhos executados e liquidados, cujo pagamento somente não se processou por insuficiência de recursos de caixa;

“b) os Restos a Pagar relativos a despesas não processadas, ou seja, as decorrentes de contratos em execução, cujas despesas ainda não foram liquidadas e para as quais não existe, ainda, o direito líquido e certo do credor.[7]

Esclarecem os referidos autores que, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no artigo 41 que foi vetado, “não utiliza expressões processadas ou não processadas para qualificar as despesas, mas, ao fazer referência a despesas legalmente empenhadas e liquidadas ou não liquidadas, mantém uma ordem de procedência para sua inscrição em Restos a Pagar” (…). Dessa forma, concluem: “a questão dos Restos a Pagar tem sido alvo de sucessivos e elevados Déficits Financeiros, constituindo-se sempre em restrição por parte dos órgãos de controle externo, corroborando para a rejeição das contas dos Administradores, já que a ausência de medidas voltadas a uma boa gestão financeira pode levar a entidade a endividar-se excessivamente, situação esta que não coaduna com os esforços voltados a promover ajuste fiscal”.[8]

Visando dar um basta aos abusos cometidos pelos administradores públicos, bem como viabilizar economicamente o País, impedindo a gastança desenfreada, estabeleceu a Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2004, normas para “a responsabilidade na gestão fiscal”.

Em seu artigo 42, estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal que:

Art. 42. É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos 2 (dois) quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este feito.

“Parágrafo único. Na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício”.

Valendo-se do veto do art. 41 da LRF, mas desconsiderando as normas gerais que regem as finanças públicas, deram os demandados a versão à lei que lhes convinha, gerando déficit orçamentário e dívidas a centenas de prestadores de serviços. Isso porque gastaram mais do que podiam.

Fazendo exatamente o contrário do que dispõem as normas gerais orçamentárias, e dando interpretação maliciosa ao disposto no art. 42 da LRF, os demandados baixaram no dia 28 de dezembro de 2004, o Decreto Municipal n. 45.664, fazendo referência aos “Restos a Pagar” (fl. 12).

Os demandados inseriram no referido decreto não só os empenhos “não liquidados”, mas também todas as despesas liquidadas no exercício financeiro de 2004, as quais foram inscritas como “restos a pagar processados” (art. 2º, par. 1º). Também as despesas liquidadas e não vencidas no exercício de 2004, foram inscritas em restos a pagar processados, com vencimento no exercício financeiro de 2005 (art. 2º, par. 2º).

Em defesa do ato manifestamente ilegal, também alegaram os demandados estar agindo de acordo com o art. 30 da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Nesse aspecto, mais uma vez foi preciso o Conselheiro Edson Simões ao dizer que:

Assim sendo, o Município de São Paulo, IGNORANDO os ditames do artigo 42 da Lei Federal Complementar n. 101 de 2000, Lei de regência da espécie, encaminhou à Câmara Municipal projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2004, projeto esse que sofreu modificações, dentre elas a inclusão do artigo 30 que DESNATUROU os comandos do referido artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, em AFRONTA aos lançamentos relativos às despesas públicas” (destaque nosso e, no original, em negrito – fl. 2489).

Configurado o “calote”, a atual Administração foi obrigada a baixar a portaria SF n. 014/2005, indicando prazo para que os credores comprovassem a realização dos serviços e indicassem os valores devidos (Apenso I).

Ao final desse “processo”, a Prefeitura Municipal constatou que os restos a pagar dos últimos cinco exercícios, ou seja, de 2000 a 2004, eram de R$ 1.018.398.729,10, sendo que desses totais não estavam incluídos os valores dos empenhos anulados pelo Decreto n. 45.664, nem das despesas realizadas sem empenho (fls. 313/314). Do total cancelado pelo Decreto n. 45.664/04, estima-se que 95,72% eram referentes a obras e serviços efetivamente executados e prestados (fl. 2316). Vale dizer que o dano ao erário é estimado em R$ 562.972.226,56 (quinhentos e sessenta e dois milhões, novecentos e setenta e dois mil, duzentos e vinte e seis reais e cinqüenta e seis centavos).

Só das empresas de limpeza, estima o SELUR – Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana do Estado de São Paulo, um “calote” de R$ 298.332.242,38, tratado como “restos a pagar”, conforme representação formulada contra a ex-Prefeita (fls. 29/37).

Ora, o artigo 37, caput, da Constituição Federal estabelece os princípios fundamentais pelos quais deve-se pautar o Administrador Público, que são os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Tais princípios constitucionais – conjunto de normas que alicerçam um sistema e lhe garantem a validade – constituem a síntese dos valores precípuos da ordem jurídica, pois consubstanciam as premissas básicas, indicando o ponto de partida, o ponto de chegada e os caminhos que devam ser percorridos pelo Administrador Público e pela Administração Pública, impedindo os abusos e as arbitrariedades, que causam desequilíbrio na sociedade.

Depreende-se do conjunto probatório que se gastou mais do que a receita permitia e não se providenciou crédito suficiente para saldar essa despesa, que foi lançada em Restos a Pagar.

Os demandados deveriam disponibilizar valores em caixa para honrar as obrigações de despesa dos últimos dois quadrimestres (Art. 42 da LRF),restando evidenciado que não o fizeram.

Além de provisionar receitas para o pagamento das despesas nos últimos dois quadrimestres, a Prefeitura deveria cancelar empenhos relativos a serviços não prestados, bem como evitá-los. Os demandados, valendo-se de artifícios absolutamente incoerentes com o espírito da LRF, consideraram indistintamente todos os empenhos gerando fictícia economia.

Não bastasse a flagrante ofensa ao art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, a conduta da requerida MARTA SUPLICY fragilizou ainda mais as contas da Prefeitura Municipal de São Paulo, contribuindo para o descrédito da Administração Municipal, inclusive fazendo com que dezenas de credores fossem obrigados a, vexatoriamente, demonstrar créditos e requerer pagamentos. A Prefeitura foi obrigada a parcelar as dívidas até 2012, gerando nova polêmica e reclamação por parte dos credores, atingindo inclusive a imagem da Municipalidade como má-pagadora.

Evidente que tal conduta fere a moralidade administrativa – o dever de honestidade – e a legalidade. Como assentou o relatório de auditoria do órgão de contas:

“DIANTE DE UMA SITUAÇÃO FINANCEIRA DEFICITÁRIA, FOI PROMOVIDO EXPRESSIVO CANCELAMENTO DE EMPENHOS COM BASE NO DECRETO N. 45.664/04, O QUAL INCLUIU DESPESAS RELATIVAS A OBRAS E SERVIÇOS EFETIVAMENTE REALIZADOS, INVIABILIZANDO AOS CREDORES O RECEBIMENTO DOS SERVIÇOS PRESTADOS NOS TERMOS CONTRATUAIS.

“A DÍVIDA RESULTANTE DESSE CANCELAMENTO FOI EXCLUÍDA DOS DEMONSTRATIVOS CONTÁBEIS E, PORTANTO, NÃO ESTÁ REFLETIDA NOS BALANÇOS APRESENTADOS, DISTORCENDO A REAL SITUAÇÃO ORÇAMENTÁRIA, FINANCEIRA E PATRIMONIAL DA PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO”.

O descontrole das contas evidenciou também o descumprimento das disposições gerais da lei orçamentária, notadamente os artigos 75, inciso I e 77[9]. A Lei n. 4.320/64, nas palavras de João Angélico, “constitui a carta magna da legislação financeira do País. Estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle de orçamentos de Balanços da União dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal”[10].

A moralidade administrativa não foi preservada porquanto desprezadas as regras da boa administração, compostas pelo conjunto das regras finais e disciplinares. O simples fato do administrador usar de suas atribuições para fins diversos daqueles conferidos por lei implica em uma violação direta ao princípio da moralidade. Consoante anota MARCELO CAETANO[11], "A moralidade está até certo ponto acautelada pela lei nos termos por esta estabelecidos. Não há, assim, possibilidade de não se reconhecer a sua supremacia".

O descumprimento das leis é injustificável no Estado Democrático de Direito, principalmente no caso brasileiro, onde o dinheiro público continua sendo muito mal aplicado, a ponto de as entidades governamentais estarem acumulando dívidas altíssimas, com o efeito de “bola-de-neve”, o que aliás foi descrito em outra ação civil pública proposta contra os demandados e outros, relativa a contas de 2003, em que, por artifícios jurídicos (créditos suplementares inexistentes), geraram grave déficit orçamentário.

Embora a presente ação se restrinja à inscrição indevida de “Restos a Pagar”, de despesas correntes no final de gestão da ex-Prefeita MARTA SUPLICY, o que a levou a tal descontrole certamente foi o conjunto de gastos, notadamente nos dois últimos anos de gestão[12]. Essa distorção ocorrida com a edição do Decreto n. 45.664/04 é a página final de uma gestão orçamentária desastrosa para os cofres municipais.

Assim, a conduta dos demandados, além de se valer de artifícios odiosos à gestão orçamentária municipal, é determinante para inviabilizar políticas públicas, atingindo gravemente os princípios constitucionais que devem balizar a administração pública.

Na lição de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO[13], "violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".

O regime democrático e o Estado de Direito requerem o governo das leis e não dos homens, razão pela qual os administradores têm o dever de cumprir as aspirações legais. "É próprio do Estado de Direito que se decline na regra geral e impessoal produzida pelo Legislativo, o quadro, o esquema, em cujo interior se moverá a Administração"[14].

Da Constituição Federal à legislação infraconstitucional aplicável existem previsões claras e objetivas nesse sentido, ademais não se permitindo alegação de ignorância no que se refere à impostergabilidade da obrigação de respeitar as leis que se impõem a todo e qualquer agente público.

Os demandados geraram significativo déficit nas contas públicas de sua gestão e, o que é pior, prejudicaram significativamente as gestões posteriores que terão sérias limitações para atender ao interesse público.

A responsabilidade fiscal tem hoje no Brasil importância decisiva na estabilidade econômica do País e na possibilidade do desenvolvimento nacional, como, aliás, é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme disposto no art. 3º, inciso II, da Constituição Federal. Essa “cultura da responsabilidade fiscal” é tão relevante que, em recente boletim publicado por uma das maiores instituições financeiras do País, à pergunta: “Podemos dizer que a economia brasileira está realmente blindada contra os efeitos da crise política?”, apresentou-se a seguinte resposta: “Dizer que a economia está totalmente protegida seria exagero. Mas é evidente que a impressionante reversão da balança comercial, a credibilidade da política monetária e a “cultura da responsabilidade fiscal” reduzem significativamente a sua vulnerabilidade em comparação com o quadro exibido durante a segunda metade dos anos 90 e os primeiros anos do século XXI”[15].

A notória irresponsabilidade fiscal dos demandados, caso não seja punida, certamente gerará prejuízos imensos ao Município de São Paulo e, porque não dizer, ao próprio País.

Tratando-se o Decreto Municipal n. 45.664/2004 de ato administrativo imoral e ilegal, notadamente quanto à forma como foi aplicado pelos demandados, deve ser declarado nulo. Desse modo, caracterizado o desvio de finalidade, o ato administrativo considerado é nulo porque não encontra amparo na lei e porque não visou o interesse público.

Na precisa lição de HELY LOPES MEIRELLES[16]:

“Anulação é a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. Baseia-se, portanto, em razões de legitimidade ou legalidade, diversamente da revogação, que se funda em motivos de conveniência e oportunidade e, por isso mesmo, é privativa da Administração.

(…)

“O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação do ato administrativo, não se restringe somente à violação frontal da lei. Abrange não só a clara infringência do texto legal como, também, o abuso por excesso ou desvio de poder, ou por relegação dos princípios gerais do Direito. Em qualquer dessas hipóteses, quer ocorra atentado flagrante à norma jurídica, quer ocorra inobservância velada dos princípios do Direito, o ato administrativo padece de vício de legitimidade e se torna passível de invalidação pela própria Administração ou pelo Judiciário, por meio de anulação” (grifo nosso).

Praticaram os demandados conduta ímproba e imoral do ponto de vista do Direito Administrativo, dando ensejo à propositura da presente ação civil pública.

3. DA RESPONSABILIDADE DOS DEMANDADOS E DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Todo aquele que gasta dinheiro público em desacordo com a lei incorre em evidente lesão, devendo arcar com o completo ressarcimento ao erário. Daí a Lei 8.429/92 estabelecer que:

“Art. 4º. Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.

“Art. 5º. Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano”.

A Constituição Federal, em seu artigo 37, parágrafo 4º, estabelece que: "os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".

O artigo 10, caput e IX, da Lei de Improbidade estabelece que:

“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no ART. 1º desta Lei, e notadamente:

(…)

“IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento;”

Nos termos do artigo 11, caput, da Lei 8.429/92:

"Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições".

Conforme demonstrado nos itens anteriores, os demandados praticaram, atos que, conforme disciplina a Lei 8.429/92, são considerados ímprobos e encontram-se subsumíveis nos artigos 10, caput e IX e 11 caput e I.

Evidente que os três demandados devem ser responsabilizados, pois, além de subscreverem o Decreto n. 45.664/04, contribuíram de maneira decisiva para a ocorrência de dano ao erário e ofensa aos princípios da Administração.

A ex-Prefeita MARTA SUPLICY, como chefe do Poder Executivo Municipal, acolheu o cancelamento de despesas apresentado por seu Secretário de Finanças. Com a “maquiagem” das contas municipais, confundiu os fornecedores e a sociedade, fazendo crer que o Município honraria as suas despesas. No penúltimo dia de sua gestão, ou seja, 29 de dezembro de 2004, surpreendeu a todos com a edição do Decreto n. 45.664/2004. Além dos danos materiais e morais causados à imagem da Prefeitura e aos fornecedores, a ex-Prefeita valeu-se do referido decreto para aprovar suas contas junto ao TCM, inclusive acusando a Administração posterior de fazer “malabarismo contábil” (fl. 17).

O Secretário de Finanças, LUIZ CARLOS FERNANDES AFONSO, que deveria preservar os princípios administrativos, notadamente aqueles relacionados à gestão orçamentária, mencionados a fls. 03/04 desta exordial, concorreu decisivamente para a edição do Decreto n. 45.664/2004, assumindo todos os “dados técnicos” das finanças municipais, inclusive mencionando em resposta a ofício da Promotoria, que “o fato da importância estar empenhada não significa obrigação de pagamento pelo Estado” (fl. 341/347).

Por fim, o Secretário de Negócios Jurídicos, LUIZ TARCÍSIO TEIXEIRA FERREIRA, deu seu aval ao decreto imoral, subscrevendo “considerandos” absolutamente inadequados à situação real da Fazenda Pública Municipal.

Destarte, em harmonia com o preceito constitucional, a Lei nº 8.429/92 sujeita os autores dos atos de improbidade administrativa, às penas do artigo 12, independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica.

4. DO PEDIDO

Diante de todo exposto, é a presente para requerer a Vossa Excelência:

1. o recebimento da presente inicial, instruída com o Inquérito Civil n. 01/2005, imprimindo ao feito procedimento ordinário;

2. a intimação da Prefeitura Municipal de São Paulo, para integrar a lide, nos termos do artigo 17, parágrafo 3º, da Lei n. 8.429/92;

3. a notificação dos demandados para apresentação de defesa preliminar e, recebida a petição inicial, sejam citados, para, querendo, oferecer respostas, no prazo legal e sob pena de revelia;

4. seja julgada PROCEDENTE a ação para:

a) declarar a nulidade dos efeitos do Decreto Municipal n. 45.664, de 28 de dezembro de 2004, que estabeleceu “normas relativas ao encerramento da execução orçamentária e financeira da Administração Direta, visando ao levantamento do Balanço Geral do Município de São Paulo do exercício de 2004”, de maneira ilícita, determinou o cancelamento de diversos empenhos liquidados, os quais foram irregularmente inscritos como “Restos a Pagar”, com vencimento no exercício financeiro de 2005;

b) condenar os demandados a ressarcirem ao patrimônio público municipal a importância relativa ao total das despesas efetivadas e inscritas indevidamente em “Restos a Pagar”, correspondendo a 95,72% dos valores cancelados de R$ 588.144.825,07, equivalendo a R$ 562.972.226,56, com a devida atualização monetária, contada da data do efetivo desembolso, além dos juros de mora calculados na forma da lei;

c) reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa previsto nos artigos 10, caput e inciso IX da Lei 8.429/92, e condenar os demandados às demais sanções estabelecidas pelo artigo 12, inciso II, da Lei 8.429/92, consistentes na perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

d) subsidiariamente, reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa previsto nos artigos 11, caput e I (norma de reserva), da Lei n. 8.429/92, e condenar os demandados às penas do artigo 12, III, do citado texto legal, consistentes em ressarcimento integral do dano, se houver; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos; pagamento de multa civil até cem vezes o valor da remuneração percebida pelos agentes e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual sejam sócios majoritários, pelo prazo de três anos.

5. a produção de todas as provas admitidas em direito, notadamente pericial e testemunhal, assim como depoimento pessoal dos demandados, a juntada de documentos e tudo o mais que se fizer necessário à completa elucidação e demonstração cabal dos fatos articulados na presente inicial.

6. a dispensa do pagamento de custas e emolumentos e outros encargos, desde logo, à vista do disposto no artigo 18 da Lei 7.347/85 e no artigo 87 da Lei 8.078/90.

Dá-se a presente ação o valor de R$ 562.972.226,56 (quinhentos e sessenta e dois milhões, novecentos e setenta e dois mil, duzentos e vinte e seis reais e cinqüenta e seis centavos)[17].

São Paulo, 17 de outubro de 2005.

ANTONIO CELSO CAMPOS DE OLIVEIRA FARIA

2º Promotor de Justiça da Cidadania

SAAD MAZLOUM

9º Promotor de Justiça da Cidadania

TÚLIO TADEU TAVARES

4º Promotor de Justiça da Cidadania

SÉRGIO TURRA SOBRANE

5º Promotor de Justiça da Cidadania


[1] Excluiu-se do pólo passivo da ação o ex-Secretário Rui Falcão, uma vez que se limitou a publicar o decreto, por força de atribuição do cargo.

[2] Para tanto, os considerandos do Decreto n. 45.664, de 28 de dezembro de 2004, invocam as normas gerais contidas na Lei Federal n. 4.320, de 17 de março de 1964 e as diretrizes fixadas na Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000.

[3] Não só notícias foram publicadas, como a inadimplência gerou ações contra a Municipalidade, conforme cópia de ação ordinária que compõe o Apenso III, Vol. I, onde o autor SINDVERDE – Sindicato das Empresas de Manutenção e Execução de Áreas Verdes Públicas e Privadas, advertia: “na realidade, busca a administração municipal através do não reconhecimentos dos créditos falsear a realidade sobre o valor da dívida do município, excluindo do passivo serviços regularmente prestados e recebidos pela administração para evitar o enquadramento nas sanções prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal” (fl. 04).

[4] Ao exame dos documentos do Apenso IV, Volume I, acerca do cancelamento de empenhos constantes do Sistema de Execução Orçamentária – NovoSEO, verifica-se o cancelamento de empenhos de despesas ocorridas em meses anteriores, algumas delas ocorridas em janeiro de 2004, como é o caso dos fornecedores Cia San Basico Est. S. Paulo (data: 22/01/2004, n. 2616, item de despesas – Água e Esgoto), Ela Empreendimentos Locação, Administração Imobiliária, Ltda. (data: 19/01/2004, n. 1416, item de despesas – Imóveis), A. Tonanni Constr. e Serv. Ltda. (data: 20/04/2004, n. 35.204, item de despesas – Vias Pavimentadas), dentre centenas de fornecedores.

[5] Código penal anotado, São Paulo : Saraiva, 2001.

[6] O déficit seria ainda mais expressivo se fossem incluídas as despesas declaradas como “Restos a Pagar”, nos termos do Decreto n. 45.664/04, conforme 3º parágrafo de fl. 20 desta inicial e menção feita em laudo do CAEx a fl. 382.

[7] Lei de responsabilidade fiscal comentada, São Paulo: Atlas, 2004, 4ª ed., p. 166.

[8] Op. cit., p.168.

[9] Art. 75. O controle da execução orçamentária compreenderá:

I. a legalidade dos atos de que resultem a arrecadação da receita ou a realização da despesa, o nascimento ou a extinção de direitos e obrigações; (…)

(…)

Art. 77. A verificação da legalidade dos atos de execução orçamentária será prévia, concomitante e subseqüente.

[10] Contabilidade pública, São Paulo: Ed. Atlas, 8ª edição, 1994, p. 15.

[11] Manual de direito administrativo, t. I, Lisboa, 1968, p. 465.

[12] Nesse sentido, o gráfico de fl. 2492 (Vol. VII) ilustra o grave descompasso entre a receita efetivamente arrecadada no ano de 2004 e as metas previstas, descumprindo-se também o art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal.

[13] Curso de direito administrativo, São Paulo: Malheiros Editores, 5ª ed., 1994, pág. 451.

[14] Desvio do poder, in RDP n. 89/24.

[15] Boletim “Em Alta”, do Banco Itaú. Ano 5, n. 23 – setembro de 2005.

[16] Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996, pp. 187/188.

[17] Correspondente a 95,72% dos débitos da Municipalidade indevidamente inseridos em “Restos a Pagar”, cujo valor total é de R$ 588.144.825,07, conforme relatório do TCM (fl. 2316) .

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