Escândalo do mensalão

Leia a íntegra do voto que pede a cassação de Dirceu

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18 de outubro de 2005, 20h06

O deputado Júlio Delgado (PSB-MG) pediu nesta terça-feira (18/10) a cassação do deputado José Dirceu (PT-SP). O petista é acusado de envolvimento no esquema de compra de votos de parlamentares da base aliada do governo.

Delgado apresentou seu relatório e o seu voto ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados. Para ele, a tese de que Dirceu não pode ser cassado porque teria cometido os atos dos quais é acusado enquanto era ministro não é válida.

Segundo o relator, “deputado licenciado continua sendo deputado e, portanto, está sujeito a todas as penas desde que contrarie a ética e o decoro parlamentar”.

A votação no processo de cassação foi interrompida por pedido de vista e deve ser retomada na sexta-feira (21/10).

CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR PROCESSO No 4, DE 2005

(Representação no 38, de 2005)

Representante: Partido Trabalhista Brasileiro — PTB

Representado: Deputado JOSÉ DIRCEU

Relator: Deputado JÚLIO DELGADO

I – RELATÓRIO

Representação do Partido Trabalhista Brasileiro — PTB

Em 2 de agosto deste, o Partido Trabalhista Brasileiro, por meio de seu presidente Flávio Martinez, dirigiu a este Conselho representação requerendo a instauração de processo disciplinar em face de JOSÉ DIRCEU, Deputado Federal pelo PT/SP, como incurso na provisão do art. 55, inciso II, e § 1º da Constituição Federal, combinado com o art. 244 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e art. 4º, inciso IV, do Código de Ética e Decoro Parlamentar, por considerar que o Deputado fraudou o regular andamento dos trabalhos legislativos, visando a alteração do resultado das deliberações em favor do Governo, praticando atos incompatíveis com o decoro parlamentar.

Arrima-se em depoimentos prestados ao Procurador-Geral da República e à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios por Marcos Valério Fernandes de Souza e Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza, em 14 e 16 de julho de 2005, respectivamente. Segundo a Representação, os depoentes informaram que o Deputado José Dirceu, “enquanto licenciado dessa Casa para exercer as funções do cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, em conluio com o Secretário de Finanças do Partido dos Trabalhadores — PT, DELÚBIO SOARES, levantou fundos junto ao Banco Rural e Banco de Minas Gerais — BMG, tomados sob a intervenção e responsabilidade de MARCOS VALERIO, com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo.”

A Representação afirma que esses fundos, “levantados como se empréstimos fossem, eram compensados pelo favorecimento aos Bancos mencionados — cujos diretores, entre eles, FLÁVIO GUIMARÂES (BMG) e KATIA RABELLO (Rural), estiveram reunidos com JOSÉ DIRCEU — e pelo favorecimento às empresas de que participa MARCOS VALÉRIO, em contratos governamentais, de sua administração indireta ou autárquica, garantidos pela influência do Representado, de modo a que, embora tais mútuos não tenham sido honrados pelos tomadores, tampouco houvesse cobrança daquelas instituições financeiras de seu crédito”.

O Representante acosta, como prova, considerando-as “elementos da notoriedade dos fatos imputados”, as matérias publicadas, em 27.07.05, nos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Correio Braziliense e O Globo, intituladas, respectivamente,: “Dirceu sabia dos empréstimos, diz mulher de Valério”; “Dirceu sabia de empréstimos ao PT, diz Renilda; ele nega”; “Mulher de Valério liga Dirceu a empréstimos”; “Renilda envolve Dirceu e apressa sua convocação”.


Requer, ainda, cópia dos depoimentos prestados por Marcos Valério Fernandes de Souza ao Procurador-Geral da República, em 14.07.05 e por Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza à CPMI dos Correios, em 26.07.05; remessa de cópia da Representação à CPMI dos Correios, a fim de que outros documentos julgados relevantes sejam remetidos ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar; depoimento pessoal do Representado; oitiva do testemunho de Marcos Valério Fernandes de Souza, Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza, Kátia Rabello e Flávio Guimarães, diretores dos bancos Rural e BMG, que estiveram tratando do assunto com o Representado, em Belo Horizonte e Brasília; admissão e produção de todo o gênero de prova.

Notificação ao Deputado José Dirceu

Recebida a representação na mesma data, 2 de agosto de 2005, pelo Presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, Deputado Ricardo Izar, foi por este determinada a imediata remessa à Mesa da Casa para as providências preliminares de numeração e publicação. Em 10 de agosto o Presidente instaurou o processo disciplinar, nos termos da Resolução nº 25, de 2001, Código de Ética e Decoro Parlamentar, bem como de seu Regulamento. Determinou a notificação do Deputado José Dirceu, na qualidade de Representado, com a entrega de cópia integral da respectiva representação e dos documentos e elementos de prova que a instruem para apresentação de defesa em cinco sessões (art. 8º do Regulamento).

O Presidente Ricardo Izar indicou-me Relator do feito, decisão esta comunicada ao plenário deste Conselho na reunião ordinária ocorrida em 10 de agosto deste ano, ocasião na qual o presidente também deu, oficialmente, conhecimento ao plenário da Representação nº 38, de 2005 e a conseqüente instauração do Processo disciplinar nº 04, de 2005.

Dando cumprimento às determinações do Sr. Presidente, e conforme dispõe o art. 14, § 4º, II, do Código de Ética, a Secretaria do Conselho notificou o deputado representado na tarde de 15 de agosto (fls. 80/81), comunicando-o da instauração do processo e do prazo para apresentar defesa, documentos e indicar provas.

Defesa apresentada

Dentro do prazo regulamentar, o Deputado José Dirceu apresentou sua defesa (fls. 83/229), nos termos do art. 8º do Regulamento do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.

Em síntese, a defesa alega, em sede preliminar, a incompetência do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar para julgar atos atribuídos ao Representado praticados fora do exercício do mandato de Deputado Federal, do qual estava licenciado para exercer cargo no Poder Executivo. A seu juízo, se tivessem realmente ocorrido, tais atos “estariam sujeitos ao controle administrativo ou judicial, nunca ao juízo político da quebra do decoro parlamentar, que pressupõe o exercício do mandato”.

Transcreve o artigo 231 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados para destacar que “no exercício do mandato, o Deputado atenderá às prescrições constitucionais e regimentais e às contidas no Código de Ética e Decoro Parlamentar, sujeitando-se às medidas disciplinares nelas previstas”.

Contesta o parecer do Dr. José Theodoro M. Menck, da Consultoria Legislativa da Câmara, considerando que “o mencionado parecer, além de investir contra o Regimento da própria Casa Legislativa, incide em manifesto equívoco, pois as hipóteses por ele invocadas são diferentes, visto que nos três casos referidos discute-se tão-somente a possibilidade de o parlamentar responder, em uma legislatura, por quebra de decoro em razão de ato praticado no exercício de mandato em legislatura anterior, situação completamente diversa daquela que ora se apresenta”.


Analisa aspectos dos processos de cassação dos Deputado Hildebrando Pascoal, Talvane Albuquerque e Feres Nader e conclui que esses precedentes examinaram situações diversas e que, no caso do Deputado Federal Feres Nader, ficou devidamente registrada a tese defendida de “que somente quem estiver no exercício do mandato parlamentar poderá agir de forma a agredir a honorabilidade da Casa Legislativa”.

Reproduz opinião de especialistas publicada no jornal O Globo de 03.08.05, corroborando a tese esposada pela defesa de que estando afastado das funções de deputado, não há como falar em quebra de decoro.

Argúi, ainda em sede de preliminar, a inépcia da representação, uma vez que, no seu entender, a petição inicial não conteria os elementos mínimos à identificação da conduta que se pretende ter como indecorosa, não indicaria qual ou quais trabalhos legislativos teriam tido seu regular andamento fraudado, qual ou quais deliberações teriam tido seu resultado alterado, nem quais os parlamentares teriam sido favorecidos.

A representação, segundo a defesa, limita-se a noticiar que “Marcos Valério Fernandes de Souza e sua mulher Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza, em depoimentos prestados à CPMI dos Correios, teriam afirmado que o representado, em conluio com Delúbio Soares, à época Secretário de Finanças do Partido dos Trabalhadores, teria levantado fundos junto ao Banco Rural e ao Banco de Minas Gerais para pagar parlamentares a fim de que, na Câmara dos Deputados, votassem a favor do Governo”.

Argumenta, amparando-se em ilustres juristas, que a forma genérica da acusação “impede que o Representado seja específico em relação a algum caso particular, na medida em que a defesa deve estar, necessariamente, relacionada aos fatos apontados pela acusação”.

Quanto ao mérito, nega que tenha participado de qualquer conluio com a finalidade de levantar fundos para pagar parlamentares, a fim de que votassem projetos a favor do governo.

Considera que, ao contrário do afirmado na acusação, uma leitura dos depoimentos prestados por Marcos Valério e sua mulher Renilda mostra que nunca houve levantamento de fundos para pagar parlamentares. O que existiu foi a realização de empréstimos junto a instituições bancárias para saldar obrigações de campanhas eleitorais.

Esses empréstimos, de acordo com o declarado por Delúbio Soares e Marcos Valério, teriam sido tomados a partir de fevereiro de 2003, após o Representado haver se afastado das funções partidárias, em razão dos relevantes encargos que assumiu no Governo do Presidente Lula. Não teve nenhuma participação, quer em relação à decisão de buscar recursos no mercado, quer no que diz respeito à concretização de tal decisão.

Afirma que as pessoas referidas pela representação se limitaram a dizer que tinham sido informadas por terceiros de que o Deputado José Dirceu tinha conhecimento desses empréstimos: “Marcos Valério disse que Delúbio Soares lhe havia dito isso, mas Delúbio não confirmou tal fato. Pelo contrário, declarou que nunca tratou desse assunto com o Representado. Renilda, por sua vez, disse que seu marido comentou que alguém lhe havia dito que o Deputado José Dirceu sabia, mas foi contraditória ao informar quem teria sido essa terceira pessoa, ora Delúbio Soares (que nega), ora diretores de banco (que também negam)”.

Assevera que todas as pessoas relacionadas com os empréstimos obtidos foram unânimes em informar que os recursos obtidos com os empréstimos destinavam-se a saldar dívidas de agremiações políticas, ligadas a campanhas eleitorais.


No seu entender, o Deputado Roberto Jefferson, ao procurar vincular os recursos destinados ao pagamento de dívidas relacionadas com campanhas eleitorais a um suposto pagamento de propinas em troca de apoio em votações de projetos de interesse do governo, é voz isolada nas referências a essa atividade irregular, da qual não foi apresentada nenhuma prova e que, de qualquer modo, nunca contaria com o apoio ou a concordância do Representado.

Declara que não se ocupou da parte financeira da campanha eleitoral de 2002, tendo sido um dos coordenadores políticos da campanha presidencial e também candidato no pleito proporcional federal, no Estado de São Paulo. Encerrada a campanha, o Representado participou ativamente da montagem do novo governo e após a posse do Presidente Lula assumiu importante cargo, cujas funções ocupavam todo seu tempo, impossibilitando qualquer participação nas decisões executivas do Partido dos Trabalhadores. Pelas mesmas razões também não teve nenhuma participação na administração financeira das campanhas municipais de 2004, o que seria incompatível com as elevadas funções de que se ocupava.

Considera, portanto, não ser razoável supor que o Representado pudesse ter conhecimento das condições e dos detalhes dos empréstimos obtidos ou das dívidas existentes. Apenas sabia, genericamente, que o Partido dos Trabalhadores estava com problemas financeiros e que buscava empréstimos junto a bancos, mas não conhecia os detalhes e não participou de qualquer negociação relativa a empréstimos, nem prometeu favores aos bancos envolvidos.

Sobre seus contatos com esses bancos, registra que participou de algumas reuniões com seus dirigentes, mas nunca tratou de empréstimos para o Partido dos Trabalhadores ou para Marcos Valério, fato que as duas instituições confirmaram, conforme documentos anexos à peça de defesa (nota do Banco Rural e declaração do Dr. Sérgio Bermudes, advogado do Banco BMG).

Por fim, tece considerações sobre o processo político, acerca de sua decisão de não renunciar ao mandato e de sua história de luta e ideais. Preocupa-se com a possibilidade de se cassar o mandato de um parlamentar apenas pelo que ele representa, o que afetaria o processo democrático. Transcreve partes de seu depoimento como testemunha no processo contra o Deputado Roberto Jefferson.

Arrola as seguintes testemunhas para sua defesa: Márcio Thomaz Bastos, Ministro da Justiça; os Deputados Federais Aldo Rebelo, Eduardo Campos e Arlindo Chinaglia e o jornalista Fernando de Morais.

Ordem dos trabalhos

Este Conselho de Ética, ao longo de todo o processo, preocupou-se com a segurança das partes e testemunhas. Sempre que entendeu conveniente ou quando foi solicitado, requereu a assistência do Departamento de Policia Judiciária da Câmara, no que foi prontamente atendido. O Conselho preservou e garantiu, em todas as suas reuniões, a mais estrita ordem e tranqüilidade em seus trabalhos, e o mais absoluto respeito às normas regimentais e legais atinentes.

Nas reuniões houve sempre a preocupação com a garantia do direito da ampla defesa e do contraditório, o que se pode verificar, entre outros, pela concessão da palavra ao Representado, ou aos seus procuradores, para inquirir testemunhas ou para formular requerimentos diversos, envio de cópias dos autos e o pleno acesso ao processo e às reuniões do Conselho, tendo os mesmos sido devidamente intimados de todas as reuniões realizadas.


As decisões que implicaram a fixação do procedimento a ser adotado, que influíram no andamento do processo e na condução da instrução probatória, foram tomadas nas reuniões ordinárias deste Conselho, tendo sido, registre-se, sempre o defensor e o próprio Representado intimado das reuniões.

De todas as reuniões foi o Deputado José Dirceu intimado com antecedência, seja pessoalmente ou por seus advogados, por carta com aviso de recebimento, correio eletrônico ou fax.

Todas as testemunhas prestaram compromisso de dizer a verdade antes dos depoimentos e foram inquiridas pelo relator, demais membros do Conselho e advogados de defesa.

Como testemunhas de defesa, prestaram depoimento os Deputados Federais Aldo Rebelo, Eduardo Campos e Arlindo Chinaglia e o jornalista Fernando de Morais. O Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos respondeu, por escrito, às perguntas encaminhadas pelos conselheiros e pelos advogados de defesa.

Somente a Sra. Kátia Rabello, presidente do Banco Rural depôs como testemunha de acusação. Marcos Valério Fernandes de Souza, Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza e Flávio Guimarães, apesar de diversas vezes convidados, não compareceram para prestar depoimento.

Foi ouvido, a pedido desta Relatoria, o ex-deputado José Genoíno.

O Partido Trabalhista Brasileiro protocolou pedido de retirada da representação contra o Deputado José Dirceu para que “os julgamentos feitos pela Câmara dos Deputados sejam adotados com base nos elementos colhidos pelas Comissões de Inquérito, por entender serem mais amplos e originários de procedimento e apuração, juridicamente mais eficazes”. Na reunião de 21.09.2005, o pedido foi indeferido pelo Conselho em razão de parecer normativo aprovado considerando a irretratabilidade da representação. O Representado apresentou recurso à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania contra a decisão do Conselho, não julgada até a presente data.

Foram juntadas cópias fornecidas pela Polícia Federal dos depoimentos prestados por: Sr. Delúbio Soares, Sr. Marcos Valério Fernandes de Souza e Sr. Sílvio Pereira.

Juntaram-se, ainda, cópias dos seguintes depoimentos prestados na CPMI dos Correios: Sr. Marcos Valério Fernandes de Souza, Sra. Renilda Maria Santiago Fernandes de Souza, Sra. Simone de Vasconcelos, Sr. Delúbio Soares, Sr. Ricardo Guimarães e do Sr. José Eduardo Cavalcanti de Mendonça, conhecido como Duda Mendonça. Juntaram-se, também, cópias do depoimento do Deputado Roberto Jefferson na CPMI da Compra de votos.

Constam dos autos cópias, encaminhadas pela CPMI dos Correios, dos contratos de empréstimos firmados pelos bancos Rural e BMG para o Partido dos Trabalhadores e para as empresas do Sr. Marcos Valério Fernandes de Souza; fax de autorização de saque para o Sr. Roberto Marques; CD-rom contendo dados telefônicos e bancários do Representado, do Sr. Delúbio Soares, do Sr. Sílvio Pereira e do Sr. Marcos Valério Fernandes de Souza.

O Presidente declarou na reunião de 11 de outubro, a requerimento do Relator, encerrada a fase instrutória e regimentalmente abriu prazo de cinco reuniões para apresentação do relatório.

Não é demais lembrar que as reuniões plenárias do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, bem como todos os trabalhos realizados pela secretaria, foram consignados nos autos e constam das atas que o instruem.

É o relatório.

II — VOTO


DAS PRELIMINARES

Da competência da Câmara dos Deputados

Segundo os termos da defesa, os atos atribuídos ao Representado teriam sido praticados fora do exercício do mandato de Deputado Federal, do qual estava licenciado para exercer cargo no Poder Executivo, o que o colocaria, sob sua ótica, fora do juízo político de quebra de decoro parlamentar, que pressupõe o exercício do mandato, na literalidade do art. 231 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

Sobre essa questão focal, instada a manifestar-se pelo Sr. Presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, a Consultoria Legislativa da Casa concluiu no sentido de que "o Deputado Federal investido no cargo de Ministro de Estado continua deputado, não perdendo seu mandato. Assim sendo, fica sujeito a todas as restrições e impedimentos decorrentes de seu status de parlamentar".

Em reforço de raciocínio, a peça técnica menciona que a Câmara dos Deputados já examinou "a tese de que atos cometidos antes do exercício de mandato podem constituir quebra de decoro parlamentar", vitoriosa em três casos (Deputados Talvane Albuquerque, Hildebrando Pascoal e Feres Nader).

E conclui o parecerista: "…em que pese a argumentação adversa, acreditamos que existem razões jurídicas suficientes para dar seguimento à representação oferecida em desfavor do Deputado José Dirceu, com a conseqüente instauração do processo por quebra de decoro parlamentar".

Em sua defesa, buscou o Representado desmerecer a manifestação da Consultoria Legislativa da Casa, sobretudo quanto à invocação dos três supostos precedentes, sob a alegação de que as hipóteses ali versadas são diferentes porque nelas se teria discutido tão-somente a possibilidade de o parlamentar responder, em uma legislatura, por quebra de decoro em razão de ato praticado no exercício de mandato em legislatura anterior; ao passo que, no presente caso, os atos atribuídos ao Deputado José Dirceu teriam sido por este praticados quando afastado do exercício do mandato.

A análise parcial e seletiva dos processos citados, realizada pela defesa, prejudica a compreensão do tema. Em suma, o que se pretende resgatar através dos mesmos, é o raciocínio neles desenvolvido, conectando-os analogamente à situação que ora se propõe.

Não julgamos despiciendo, nesse ponto, recordar a ponderação apresentada no Mandato de Segurança 20.313-STF, pela Dra Odylia da Liz Oliveira, Subprocuradora-Geral da República, em parecer acolhido pelo Procurador-Geral, Dr. Aristides Junqueira, e transcrito no processo de cassação do Suplente Feres Nader, in verbis:

“I – a potencialidade do exercício do mandato é, portanto, suficiente para criar as incompatibilidades e acionar as vedações: o suplente já reúne todos os pressupostos desse exercício (certa votação, diplomação), bastando apenas um fato objetivo para determiná-lo (morte, renúncia, perda do mandato, licença do titular). Em síntese, o status do suplente é político.”


Após essa citação, continua o documento:

“É inconteste caber à Câmara dos Deputados – e só a ela, Câmara dos Deputados – a obrigação de zelar pela sua dignidade. No caso em exame, não há como falar em controle judicial: o Senhor Feres Nader já foi diplomado pela Justiça Eleitoral. Não há como tentar encontrar alguma solução regimental capciosa: esta Casa já tomou e aceitou, na legislatura em curso, o compromisso do Representado. Assim, ocorrendo vaga, o Sr. Nader tomará posse automaticamente, pois esta Câmara ver-se-á obrigada a convocá-lo: a convocação é ato vinculado, que não dá margem a qualquer conformação por parte da Mesa diretora desta Casa.”

Se assim se argumentou com um Suplente, enquanto estava na suplência, o que não poderíamos dizer de um Deputado licenciado, cuja volta à Casa depende inteiramente de seu livre alvedrio.

Além disso, o deslinde da questão envolve não apenas a literalidade das normas constitucionais e regimentais que informam o denominado Estatuto do Parlamentar, sua pauta de direitos e prerrogativas, de deveres e obrigações inerentes ao mandato, ou dele decorrentes. A intelecção do conjunto normativo aplicável demanda interpretação sistêmica integrativa e teleológica, em contexto político-institucional.

Preceitua nossa Lei Maior, consoante a regra do inciso II do art. 55:

"Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II — cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

A esse respeito, acrescenta o § 1° do mesmo dispositivo:

"§ 1° — É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.”

Ora, no elenco de prerrogativas inerentes ao mandato parlamentar, figura expressamente a ressalva estatuída no inciso do art. 56 da mesma Carta Política, a qual — excetuando o princípio da não cumulatividade de cargos ou funções em mais de um Poder — propicia ao congressista exercer, sem perda do mandato, diversos cargos políticos na administração do Estado. Trata-se, por consegüinte, de uma das mais relevantes prerrogativas, até excepcional, ressalvada a representação popular.

“Art. 56 — Não perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I – investido em cargo de Ministro de Estado (…)”


Mais ainda, além de excepcionalizar a dúplice investidura, firmando o entendimento de que uma não anula a outra, a sistemática constitucional admite a opção pela remuneração do mandato ao Deputado ou Senador, investido em qualquer dos cargos do Poder Executivo, tornando ainda mais visível a integridade e a continuidade do vínculo que se estabelece entre este e a Casa Legislativa a que pertence.

Essa hipótese dos autos, nos quais há declaração do Representado de que, como faculta a Lei Maior, optou pela remuneração do mandato legislativo.

A licença para o desempenho de múnus governamental não afasta nem restringe o vínculo do parlamentar com a instituição, senão estritamente no que concerne à prática dos atos inerentes ao exercício parlamentar no âmbito da respectiva Casa.

Inquestionável, porém, é que, se as prerrogativas continuam, também perduram as obrigações e os ônus.

Semelhante condição situará, sempre, o respectivo titular sob os ônus e as conseqüências anteriormente listadas no art. 55, que sujeita à perda de mandato em caso de abuso dessas prerrogativas, e de outras mais, que compõem o elenco próprio da Representação.

Em se cuidando da violação do decoro parlamentar, a caracterização dessa conduta prescinde de que o congressista se encontre no efetivo exercício do mandato no âmbito da Casa na qual tem assento, porque o atributo há de ser averiguado em relação à investidura, ou seja, à representação ou mandato eletivo, não somente quando no exercício deste, em função estritamente legislativa ou parlamentar, mas também quando esteja desempenhando cargo político no Poder Executivo, ou seja, no exercício de uma prerrogativa do mandato.

Ao fazer uso de qualquer prerrogativa, o agente público deve considerar que elas são excepcionalidades dentro do sistema de representação, diante do que ele certamente responderá pelo abuso das mesmas. Ainda que essa exorbitância ocorra nos lindes do Poder Executivo, no qual temporariamente se encontra o acusado, estará sujeito à perda do mandato que detém no Legislativo.

Façamos aqui referência ao período em que o Deputado José Dirceu esteve no Conselho Administrativo da Petrobrás, entre 02 de janeiro de 2003 e 01 de fevereiro deste mesmo ano.

Embora o Representado considere que não houve ofensa à ordem legal, trazendo como paradigma o exercício da Presidência do Conselho Administrativo da Petrobrás e de outros Conselhos pelo Excelentíssimo Senador José Jorge, quando Ministro de Estado de Minas e Energia, a atitude do Parlamentar da Casa maior certamente não justifica infringir dispositivo Constitucional, de cuja redação, se pode inferir que o gozo da prerrogativa de acumular o mandato eletivo e o cargo no Poder Executivo não o exime de observar certos limites.

A infração constitucional persiste independentemente da Legislatura em que ocorra. Com efeito, o Deputado José Dirceu não poderia incorrer em nenhum dos dispositivos do art. 54 desde a expedição do diploma, fato ocorrido em dezembro de 2002, data anterior à assunção da função de membro do Conselho Administrativo da Petrobrás. Vejamos a literalidade do dispositivo constitucional:

“Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão:


I – desde a expedição do diploma:

a) firmar ou manter contato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;

b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis ad nutum, nas entidades constantes da alínea anterior…”

No dia 31 de janeiro de 2003, o Deputado José Dirceu foi exonerado pelo Presidente Lula para assumir o mandato nesta 52ª Legislatura, no dia 1° de fevereiro daquele ano, solicitou seu desligamento do Conselho Administrativo da Petrobrás. Se precavia, naquela oportunidade, para não configurar a referida incompatibilidade na legislatura atual, manifestando consciência da ilicitude que advinha do acúmulo do mandato, cargo e função que exercia na época.

Por essa curta passagem de trinta dias como membro do Conselho Administrativo da Petrobrás, constam dois recebimentos por parte do Deputado José Dirceu, um no dia 28/01/03, no valor de R$ 2.359,24, e outro no dia 07/02/2003, no valor de R$ 2.318,88, data esta já na 52ª Legislatura.

Por essa forma, em razão de sua investidura parlamentar e do conjunto de prerrogativas do mandato representativo, o congressista que ocupa cargo de Ministro de Estado não fica isento da responsabilização ético-disciplinar, no que pertine ao decoro parlamentar.

Quando se cuida de violação do decoro parlamentar, a averigüação dessa infringência está condicionada tão-somente à condição de ser detentor de mandato parlamentar, como fato próprio da investidura congressual, ou seja, conseqüente à diplomação e posse, que repercute sobre a Instituição e o corpo legislativo, não estando adstrito à hipótese de o infrator se achar no efetivo exercício do mandato na respectiva Casa do Congresso Nacional.

Dispensada, por ora, a análise do sistema jurídico infraconstitucional, pode-se enfatizar que, se a posse no mandato parlamentar e o exercício do cargo de Ministro de Estado constituem prerrogativa excepcional do congressista, permanece este submisso à exigência também constitucional de respeito ao decoro parlamentar, como congressista e como Ministro, sendo o abuso dessa prerrogativa motivação bastante, per se, para colocar o parlamentar sob o do inciso II, combinadamente com o § 1° do art. 55 da Lei Maior.

Desçamos à exegese regimental, que se mostra em evidente sinergia e harmonia com a hermenêutica constitucional.

Com efeito, na redação atual do art. 244, introduzida pela Resolução n° 25, de 2001, a Lei Interna preceitua:

"Art. 244. O Deputado que praticar ato contrário ao decoro parlamentar ou que afete a dignidade do mandato estará sujeito às penalidades e ao processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro Parlamentar, que definirá também as condutas puníveis."

Em nenhum quadrante se vincula, estritamente, ao exercício efetivo no âmbito da Casa Legislativa a tipificação da violação do decoro parlamentar ou da prática atentatória da dignidade do mandato.


As disposições do Código de Ética e Decoro Parlamentar, aprovadas pela citada Resolução n° 25, de 2001, permitem firmar conclusão em sentido análogo; desde as normas constantes do art. 1° e seu parágrafo único, de que deriva a competência do colegiado respectivo para a instauração, a instrução e a deliberação de processo ético-disciplinar no caso de descumprimento das normas relativas ao decoro parlamentar.

Ressalte-se o art. 17 do capítulo VI do referido diploma, que trata do Sistema de Acompanhamento e Informação do Mandato Parlamentar da seguinte forma:

“O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar deverá organizar e manter o Sistema de Acompanhamento e Informação do Mandato Parlamentar, mediante a criação de arquivo individual para cada deputado, onde constem os dados referentes:

I – ao desempenho das atividades parlamentares, e em especial sobre:

a) cargos, funções ou missões que tenha exercido no Poder Executivo, na Mesa, em comissões ou em nome da Casa durante o mandato”.

Ao dispor em capítulo específico sobre a criação de sistema de acompanhamento e informação do mandato parlamentar, mesmo que haja eventual desatualização de dados, fica clara a preocupação do legislador em elaborar norma interna corporis que preveja um sistema de acompanhamento às atividades do parlamentar.

É inconcebível que ao elaborar o nosso Código de Conduta, tenhamos atribuído ao Conselho o dever de acompanhar com especial interesse o desempenho das atividades do parlamentar investido em cargo no Poder Executivo, transferindo competência para julgar os desvios éticos e morais exercidos no desempenho dessas atividades para outro Poder que não este. O dever de acompanhar e vigiar não pode estar desligado do poder de fiscalizar e julgar tais desvios.

Afinal, uma norma expressa não pode ser ociosa; não se pode criar mecanismo de controle sem resultado.

Por fim, cabe dizer que o Deputado José Dirceu assumiu o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, não só pelo seu conhecimento político, capacidade ou amizade com o Excelentíssimo Senhor Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas por ser Deputado Federal apto a realizar articulação política, efetuando contato direto entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Jamais deixou de ser Deputado Federal.

Ao assumir o ônus de Ministro de Estado, jamais poderia abandonar a conduta, a postura imposta pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados, devendo obrigatoriamente atentar para a questão da dignidade e da honra a qual todo homem está sujeito, principalmente o homem público. Isso porque a questão do decoro parlamentar encontra-se ligada diretamente a esses dois campos, sendo questão ética e moral, necessariamente.

A honra do homem público, especialmente o do que exerce mandato político, representação máxima da democracia, não é somente a imagem pessoal do próprio Representado para consigo mesmo. A questão da honra é muito mais ampla. Envolve a imagem perante terceiros, perante a sociedade e seus pares da Casa Legislativa. Assim, mesmo estando temporariamente fora do exercício do mandato, seus atos atingem diretamente todas as inserções sociais do sujeito – homem público — haja vista a necessidade premente de, em todas as circunstâncias da vida quotidiana, ter o mesmo uma conduta digna.


Mesmo afastado do cargo de Deputado Federal, não deixou de ser representante do povo, estando apenas temporariamente licenciado. Ainda que estivesse fora das atividades parlamentares por motivo de saúde ou qualquer outro, não deixaria de ser membro da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional.

Logo, não há que se falar em impossibilidade de punição do Representado por quebra do decoro parlamentar porque não estava no exercício do cargo. Se o Deputado José Dirceu estivesse afastado do cargo não de forma temporária, mas definitiva, aí sim, poderíamos concordar com sua argumentação de que não houve quebra do decoro parlamentar, pois não mais seria Deputado Federal.

Da argüição da inépcia da peça inicial

Não procede a alegação do Representado de inépcia, pela omissão de qual ou quais trabalhos legislativos teriam tido seu regular andamento fraudado, nem qual ou quais deliberações teriam tido seu resultado alterado.

O Parlamentar defendente busca, com a argüição, transpor para o processo político e o juízo ético de órgão congressual pressupostos institutos e formalidades próprios da ação penal, o que se revela um equívoco. A natureza do processo de mandato parlamentar é outra, atendendo a regras e conceitos diferentes.

O Representado tem clara consciência disso, tendo deixada anotada sua plena convicção de que "responde a um processo político, no qual as questões jurídicas não possuem o mesmo valor e importância que teriam em um processo judicial".

De fato, as contribuições doutrinárias e jurisprudenciais bem distinguem conceitual e normativamente os crimes comuns dos crimes políticos.

Como se sabe, o próprio Supremo Tribunal Federal não apontou a prática de delito criminal pelo Sr. Collor de Melo, o que não impediu o Congresso Nacional de cassar-lhe o mandato sob a injunção do desmando político e do esquema de corrupção e pilhagem montado à sombra do supremo mandatário do País.

A Representação não é inepta, descrevendo fatos que, efetivamente, podem conduzir à aplicação da penalidade de perda de mandato, e indicando elementos suficientes para a instauração do processo.

Da pretensa inversão do rito processual

Finalmente, quanto à solicitação feita pela defesa momentos antes de declararmos encerrado o processo no sentido de que se permitisse nova oitiva de suas testemunhas – pelo fato de o depoimento prestado por uma testemunha arrolada pelo Representante ter se dado depois das testemunhas de defesa -, cumpre-nos observar que a decisão da Presidência no sentido do indeferimento pareceu-nos de todo acertada, evitando, a tal altura do feito, conceder medida que, no caso específico aqui examinado, seria meramente protelatória.

Cumpre lembrar que, como já havíamos nos manifestado anteriormente por ocasião do primeiro protesto do advogado sobre a ordem em que deveriam ser ouvidas as testemunhas, entendemos que o processo de perda de mandato de deputado obedece a regras próprias, as do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Casa, tendo nas regras de processo civil ou penal fontes apenas subsidiárias do procedimento. O fato, por exemplo, de o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar não ter poder de autoridade judicial e não dispor de meios para conduzir coercitivamente as testemunhas arroladas pelas partes nos processos, é suficiente para demonstrar que a regra consagrada no art. 401 do Código de Processo Penal — no sentido de serem ouvidas, antes das de defesa, as testemunhas de acusação – não se compatibiliza com os poderes do Conselho. Esse tipo de procedimento, que deve estar concluído em prazo certo, não pode ficar completamente à mercê da disponibilidade para oitiva em primeiro lugar das testemunhas de acusação. Se não há gravame ou prejuízo não cabe anulação, pois o processo não foi maculado.


Ainda assim, no caso específico ocorrido no presente processo, considerando a possibilidade de que a defesa pudesse ter se sentido efetivamente prejudicada, de algum modo, pelo depoimento prestado pela Sra. Kátia Rabello, arrolada pelo Representante, após a oitiva de suas cinco testemunhas, este Relator solicitou ao Presidente a abertura de prazo para que a defesa pudesse se manifestar, por escrito inclusive, sobre o conteúdo do testemunho. Isso, afinal, não foi feito pela defesa, que optou por requerer, momentos antes do encerramento da instrução, nova oitiva de depoimentos, indeferida pela Presidência.

É de se observar que o conteúdo do depoimento prestado pela testemunha do Representante não poderia, efetivamente, ser contraditado por nenhuma das testemunhas da defesa, que declararam perante o Conselho, quando ouvidas, não ter conhecimento dos empréstimos feitos pelo Banco Rural ao Partido dos Trabalhadores e à empresa SMP&B, nem da eventual participação do Deputado José Dirceu nessas transações, principal objeto do depoimento prestado pela Sra. Kátia Rabello no processo. Não tendo havido contestação, na oportunidade aberta à defesa, de nenhum dos pontos abordados, concluímos não ter havido também nenhum prejuízo efetivo decorrente do depoimento, ou da ordem em que foi tomado no processo. Aliás, a ausência de prejuízo pela oportunidade que teve a defesa de reagir ficou evidente, não só ao se abrir o prazo para manifestação por escrito, mas também pelo fato de o Representado ter deposto perante o Conselho em último lugar, tendo tido, portanto, prévio conhecimento e toda a liberdade de corroborar ou contraditar cada afirmação feita pela testemunha, Sra. Kátia Rabello.

Postas todas essas considerações de caráter preliminar, passemos ao exame dos fatos apurados no curso do presente processo.

DO MÉRITO

Da ética e decoro parlamentar

A Câmara dos Deputados é um órgão representativo do Poder Legislativo, sem qualquer hierarquia ou subordinação funcional em relação a outro Poder. É também conhecida como órgão primário de Estado porque detém e exerce propriamente as funções políticas de legislar e fiscalizar os outros poderes. Atipicamente, desenvolve outras atividades administrativas e judiciais outorgadas pela Carta Política vigente para serem desempenhadas por seus membros, segundo normas especiais e regimentos.

O Deputado Federal, agente político, se vincula diretamente ao Estado por meio de procedimento legal — ato administrativo -, denominado investidura política, que se realiza através de eleição direta mediante sufrágio universal. O fundamento da investidura política no cargo — mandato eletivo — é o pleno gozo dos direitos políticos, não existindo necessidade de qualificação profissional, permanecendo em princípio no cargo durante período determinado — o período do mandato eleitoral.

Os parlamentares só podem perder seus mandatos políticos de duas formas. A primeira é administrativa, efetuada pelos seus pares no Plenário da Casa Legislativa, através de votação secreta, tratando-se de “processo político”. O referido procedimento é um ato legislativo. A segunda é através da via judicial, se condenados por prática de crime, improbidade administrativa ou crime eleitoral. É um ato judiciário.

Denomina-se processo legislativo o conjunto de estudos relativos à atividade política, especificamente à sistemática de seus trabalhos. Tal conceituação é falha, no sentido de que não existe uma palavra mais adequada para exprimir o alcance total das produções inerentes às atividades do Parlamento. Prova de tal assertiva é que inexiste ato político como entidade autônoma. Para evitar confusões e erros daí oriundos, a mais acertada denominação deveria ser procedimento parlamentar ou processo parlamentar, pois que processo político geralmente confunde-se com processo legislativo ou procedimento legislativo.


No caso do ato político, este será sempre um ato administrativo de caráter executivo, legislativo ou judiciário, com a ressalva de que existirá sempre um fundamento político a embasá-lo. Logo, o veto é um ato executivo com fundamento político; a lei é um ato legislativo com fundamento político; a suspensão condicional da pena será um ato judiciário com fundamento político.

A diferença entre processo político de perda de mandato e processo jurídico de perda de mandato é que, no primeiro, não temos juízes togados e, no segundo, sim. Com relação à invalidação do ato administrativo político decidido pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, somente a própria Câmara dos Deputados tem autonomia para revogar o ato no Plenário. O mesmo princípio se aplica ao Poder Judiciário que deve revogar seus atos administrativos, sentenças ou acórdãos quando forem atos eivados de vício, ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Logo, o processo político de cassação ou ato administrativo parlamentar de perda de mandato por quebra de decoro parlamentar é ato administrativo disciplinar típico — portanto, privativo da Câmara dos Deputados -, pelo qual, o Poder Legislativo determina a punição do agente político por infração ao conjunto de regras morais, legais e éticas aplicáveis aos titulares de mandato eleitoral.

Com efeito, no julgamento político, ao lado dos elementos de convicção, que alicerçam a consciência do julgador, comparece a dimensão da conveniência para o bem social e das instituições que possa advir do juízo político. Ambos os elementos são importantes, embora o segundo tenha um componente subjetivo. Mas qualquer deles, melhor ainda, a conjugação de ambos, dará legitimidade ao pronunciamento do órgão político por uma eventual decisão condenatória.

A fundamentação da ética e decoro aqui refletida, se baseia em estudo do professor Oswaldo Ferreira de Melo, que define o emprego da palavra ética nos meios acadêmicos com três acepções:

Numa, faz referência a teorias que têm como objeto de estudo o comportamento moral, ou seja, como entende Adolfo Sanchez Vazquez; "…a teoria que pretende explicar a natureza, fundamentos e condições da moral, relacionando-a com necessidades sociais dos homens." Teríamos, assim, nessa acepção, o entendimento de que o fenômeno moral pode ser estudado racional e cientificamente por uma disciplina que se propõe a descrever as normas morais, ou mesmo, com o auxílio de outras ciências, ser capaz de explicar valorações comportamentais.

Um segundo emprego dessa palavra é considerá-la uma categoria filosófica e mesmo parte da Filosofia, da qual se constituiria em núcleo especulativo e reflexivo sobre a complexa fenomenologia da moral na convivência humana. A ética, como parte da Filosofia, teria por objeto refletir sobre os fundamentos dos fatos morais.

Numa terceira acepção, a ética já não é entendida como objeto descritível de uma ciência, nem tampouco como fenômeno especulativo. Trata-se agora da conduta esperada pela aplicação de regras morais no comportamento social, o que se pode resumir como qualificação do comportamento do homem enquanto ser em situação.

Nessa visão, os valores morais dariam o balizamento do agir e a ética seria assim a moral em realização, pelo reconhecimento do outro como ser de direito, especialmente de dignidade.

Essa terceira possibilidade do uso da palavra ética guarda conexão com enunciado proposto pelo cientista político Max Weber como ética social ou de responsabilidade: é o agir consciente daquele que sabe das conseqüências de suas escolhas atitudinais, especialmente quando as normas éticas estão formando o núcleo axiológico da atributividade jurídica.


Significa então dizer que, sob esse aspecto, se a ética de convicção pode servir de critério para a pessoa emitir juízos e julgar os conflitos de seus próprios valores, será a ética social o critério para julgar o procedimento de cada um nas relações interpessoais. Embora a Ética, a Política e o Direito sejam categorias diferentes, são todas interagentes da conduta humana: "Cabe à Ética decidir qual seja a resposta sobre o que é moralmente correto; ao Direito sobre que seja racionalmente justo e à Política, sobre o que seja socialmente útil." Seriam esses três caminhos, aqueles que apontariam uma forma racional de buscar o bem, o bom e o belo na vida social.

No que diz respeito especificamente à ética e ao decoro parlamentar, trazemos a lume interessante contribuição da professora de Antropologia da UnB, Carla Costa Teixeira, em artigo intitulado “Decoro Parlamentar: a Legitimidade da Esfera Privada no Mundo Público”.

Segundo o ali exposto, a conceitualização de decoro parlamentar dá-se, portanto, em torno de dois eixos: tipificação de atos impróprios ao exercício do mandato e avaliação da (in)dignidade ou (des)honra do comportamento parlamentar. O primeiro limita-se a normatizar o desempenho de um papel social específico – o de representante político; o segundo pretende abarcar a totalidade da conduta do sujeito em questão, esteja ele ou não no exercício de suas funções políticas. Nesse sentido é que propõe ser a figura do “decoro” potencialmente redefinidora de um espaço para a esfera privada e pessoal na vida política brasileira. O que, ao contrário dos “favorecimentos” políticos, vem reforçar o funcionamento das instituições representativas nos termos das chamadas democracias modernas.

Tendo como pano de fundo esse arcabouço teórico aos fatos trazidos ao conhecimento deste Conselho pelos depoimentos, documentos e alegações acostadas aos autos.

Do apurado

A peça de defesa escrita trazida aos autos pelos ilustres advogados do Representado limitou-se, quanto ao mérito, a negar formalmente as acusações constantes da Representação, consideradas “delirantes”. Segundo ali aduzido, “ao contrário do afirmado na leviana acusação, uma leitura atenta (ou mesmo superficial) dos depoimentos prestados por Marcos Valério e sua mulher Renilda mostra que nunca houve levantamento de fundos para pagar parlamentares. O que existiu, segundo as declarações das pessoas diretamente envolvidas nos episódios – e o Representado só veio a conhecer os detalhes disso recentemente – foi a realização de empréstimos junto a instituições bancárias para fazer frente a obrigações de campanhas eleitorais.” (grifamos)

Ora, com todas as vênias de estilo, parece-nos que delirante estava a defesa ao apresentar tais alegações ao Conselho. Então, nunca houve levantamento de fundos para pagar parlamentares? Então, a realização de empréstimos junto a instituições bancárias para fazer frente a obrigações de campanhas eleitorais era uma prática perfeitamente legal e aceitável? Então, tudo o que estamos vivenciando há cerca de cinco meses, e que tem estarrecido o País e chocado a opinião pública, é uma ilusão? Convenhamos, nem o próprio Representado parecia certo disso, tendo-se manifestado mais de uma vez, durante os depoimentos prestados, no sentido da necessidade de o PT fazer uma autocrítica, de apurar as responsabilidades, de se empenhar pela reforma política.

A defesa, na verdade, não enfrentou efetivamente as questões importantes que emergem dos fatos narrados na Representação, como a quase total impossibilidade de que o esquema alcunhado como ‘valerioduto’ pudesse ter sido orquestrado exclusivamente pelas mãos do ex-tesoureiro Delúbio Soares. A defesa também não enfrentou a notória liderança e influência que continuou a exercer o Representado na condução da vida partidária, mesmo após ter deixado a Presidência do PT, em dezembro de 2002, e a relação por ele estabelecida com o indigitado Sr. Marcos Valério de Souza, principal pivô de todo esse esquema de corrupção que vem sendo desvendado em diversas instâncias.


Lembramos que foi o próprio Representado quem admitiu (no depoimento prestado ao Conselho na condição de testemunha, no Processo nº 1/05), quando questionado pelo Deputado Edmar Moreira, que parecia inverossímil, não parecia “crível, pelo papel que eu tive na Presidência do PT durante sete anos, na Secretaria-Geral, cinco, na história do PT”, que não tivesse tido conhecimento de “todos esses empréstimos, de todas essas, entre aspas, trapalhadas, cometidas pela Executiva Nacional do PT”, para usar as palavras do nobre Deputado Edmar Moreira em seu questionamento. Com efeito, não se consegue conceber, ninguém de bom senso o conseguiria, que, tendo sido o ex-Ministro José Dirceu o homem-forte do Governo Lula na área política durante trinta meses, o “capitão do time”, nas palavras do Presidente da República, o responsável direto pela articulação da base aliada no Congresso, o chefe, enfim, de toda a costura política do governo, pudesse ter estado alheio ao gigantesco esquema de repasse irregular de verbas entre o PT e outros partidos da base aliada. Para usar novamente as palavras do Deputado Edmar Moreira, não era crível que “essa rapinagem aos cofres públicos da Nação, aos órgãos públicos federais, estatais e as vizinhanças de tal possa ter ocorrido, que esses mirabolantes empréstimos bancários contratados pelo Sr. Delúbio Soares, em parceria com o Sr. Marcos Valério” pudessem ter sido feitos sem o conhecimento do Representado.

O que se pôde apurar ao longo do processo, sem dúvida nenhuma, reforçou todas as convicções nesse sentido.

Entre as testemunhas arroladas pela defesa, a única pertencente ao Partido dos Trabalhadores, o Deputado Arlindo Chinaglia, quando perguntado por este Relator se acreditava ser possível que um escândalo de tamanha amplitude pudesse ser montado, articulado e dirigido por um membro de menor expressão partidária como o Sr. Delúbio Soares, afirmou ser “público e notório que o Delúbio não poderia ter feito, e da forma como o fez, comprometendo a própria credibilidade do PT e nos colocando na condição de ter de dar explicações daquilo que a gente não conhece.” Mais adiante, questionado sobre a real influência do Deputado José Dirceu nas orientações do comando do PT após ter deixado a Presidência, respondeu que ele detinha, sim, “um peso político bastante grande”.

O próprio Representado, no depoimento prestado no Processo nº 1/05, acabou reconhecendo a manutenção de laços muito fortes com o partido e seus principais dirigentes, entre eles o Sr. Delúbio Soares. Confira-se um trecho:

Eu mantive sempre uma relação de lealdade e franqueza com o Deputado Genoino, que foi Presidente do PT, com o Silvio Pereira e com o Delúbio Soares. Não é verdade que os abandonei. Simplesmente, chegamos à conclusão juntos, eu e o Genoíno, de que era hora de o Genoíno se afastar, porque os fatos eram mais do que evidentes que ele tinha que se afastar da presidência. Não tenho esse tipo de relação com meus companheiros de partido, com minhas companheiras de partido. Minha relação é leal, é fraterna. Também com o Silvio Pereira e com o Delúbio Soares” (…)

O Sr. Delúbio Soares, conforme admitiu o Representado em seu depoimento, freqüentava regularmente a Casa Civil: uma vez a cada dois meses, estimou ele. Talvez um pouco mais, já que essa proximidade entre os dois pôde ser constatada também por outra testemunha da defesa, o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que, apesar de não ser filiado ao PT, conviveu com o Representado no governo, tendo declarado a este Consselho: “É evidente que pude presenciar a relação pessoal e institucional entre o Deputado José Dirceu e o ex-Secretário de Finanças do Partido dos Trabalhadores Delúbio Soares. Vinculação natural entre uma pessoa que foi presidente de um partido por muitos anos e outra que foi tesoureiro do mesmo partido.”


O Ministro Márcio Thomaz Bastos afirma categoricamente sua desvinculação em relação ao Partido dos Trabalhadores, e destaca seu desconhecimento a respeito de qualquer de suas atividades internas. Se isso se aplica ao presente, quando o Dr. Márcio Thomaz Bastos ocupa uma das pastas ministeriais de maior destaque no Governo Federal, maior ainda era seu distanciamento à época do fechamento das alianças feitas pelo Partido dos Trabalhadores visando às eleições de 2002.

Ocorre que, segundo o que quer fazer crer o Deputado José Dirceu, sua relação com o Sr. Delúbio Soares, e por conseqüência, sua influência nas questões que tocam às finanças do PT, se encerraram após as referidas eleições.

O fato é que o poder e a influência do Representado dentro do Partido dos Trabalhadores, na verdade, parece nunca ter deixado de existir. O recente episódio envolvendo os candidatos à eleição interna do partido é uma evidência disso, tendo comprovado a força política do Deputado José Dirceu dentro do chamado Campo Majoritário, afastando do cenário da disputa o também influente ex-Ministro e então candidato a Presidente Tarso Genro.

Os elementos probatórios constantes dos presentes autos convergem, ainda, para um outro ponto inegável: a existência de uma relação entre o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza e o Deputado José Dirceu, à época Ministro da Casa Civil, que se não era de amizade, estava baseada, no mínimo, em interesses comuns.

O Deputado José Dirceu é bastante claro e convicto em seu primeiro depoimento:

“Deputado JOSÉ DIRCEU – Eu conheço o Sr. Marcos Valério. Não me recordo onde o conheci, em alguma atividade social. Não tenho relação pessoal com ele de amizade, não tenho nenhuma relação com ele de Governo. Ele esteve na Casa Civil acompanhando a diretoria do Banco Rural e esteve mais uma vez na Casa Civil – e não é fato que eu me comunicava com ele por telefone”.

Mais adiante, tal convicção não é tão clara assim:

“Deputado JAIRO CARNEIRO – É porque eu faria a seguinte indagação que seria sobre contatos telefônicos que foram objeto de declarações da Sra. Karina em seus depoimentos. V. Exa. nega….

Deputado JOSE DIRCEU – nego…

Deputado JAIRO CARNEIRO — … a existência dessas conversas telefônicas?

Deputado JOSÉ DIRCEU — …. da forma como ela disse, que telefonava para a secretária do Delúbio; a secretária do Delúbio ligava para mim. Todo mundo que me conhece sabe que não é preciso fazê-lo para falar comigo. (grifamos)

Deputado JAIRO CARNEIRO – E nunca houve conversas de V. Exa. com o Sr. Marcos Valério por telefone?

Deputado JOSÉ DIRCEU – Não posso dizer isso. Estou dizendo que não tinha contatos telefônicos regulares, que eu não tinha relação com ele regular, que eu não tinha nenhuma relação pessoal de amizade com ele, muito menos de qualquer tipo de tratamento que não fosse a ida dele à Casa Civil e os meus encontros sociais com ele”.


No depoimento prestado à CPMI dos Correios, a Sra. Renilda Souza, esposa do Sr. Marcos Valério, afirmou que o então Ministro José Dirceu participou de reuniões com diretores do banco BMG. E que o Representado tinha efetivo conhecimento dos empréstimos realizados pelo Sr. Marcos Valério junto a esse banco, e sobre o repasse dos recursos para o PT. É o que se depreende do trecho a seguir transcrito:

“O SR. RELATOR (Osmar Serraglio.PMDB – PR) – Qual a vantagem que ele estava tendo em pôr todo o patrimônio a risco?

A SRª RENILDA MARIA SANTIAGO FERNANDES DE SOUZA – Não, ele falou que vantagem nenhuma e que ele se preocupou só em não ter desvantagens. O medo dele seria perder as contas que já possuía há anos com o Banco do Brasil, como acabou perdendo. Quer dizer, não adiantou nada.

E a única coisa que ele me falou foi que o Dr. – na época Ministro – José Dirceu sabia dos empréstimos. E eu perguntei como ele sabia. Ele falou que houve uma reunião da direção do Banco Rural, em Belo Horizonte, no Hotel Ouro Minas, com o então Ministro José Dirceu, para resolver sobre o pagamento desses financiamentos feitos no Banco Rural. E que houve uma reunião em Brasília, da direção do BMG, não sei os nomes, ele só me disse assim, uma reunião em Brasília, não sei onde essa, para acertar o pagamento das contas, porque o banco também quer receber.”

Em seu depoimento a este Conselho de Ética, a Sra. Kátia Rabello, Presidente do Banco Rural, foi bastante clara sobre a facilidade de trânsito do Sr. Marcos Valério junto à Casa Civil. Confiram-se alguns trechos:

“O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Agora, pelo que eu entendi, o Sr. Marcos Valério participou dessa reunião.

A SRA. KÁTIA RABELLO — Ele participou.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Em que condição?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Na condição de acompanhante do banco.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Acompanhante do Banco Rural?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Do Banco Rural. É, ele foi um convidado nosso, já que tinha sido ele o facilitador do encontro.


O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Ele também foi o facilitador? Ele fez a mediação para esse encontro do Banco Rural com a Casa Civil?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Sim.“

E mais adiante:

“O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Esse segundo encontro, se não me engano, é um jantar em Belo Horizonte com o Ministro?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Sim.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR — Também foi agendado pelo Sr. Marcos Valério? Foi ele quem falou da possibilidade que o Ministro estaria em Belo Horizonte? Foi o Sr. Marcos Valério?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Sim.”

E ainda:

“A SRA. KÁTIA RABELLO — Não, na verdade o Marcos era um facilitador de… Era um marcador de encontros, digamos assim. Ele não demonstrava, através disso… Eu nem sei se era ele quem marcava. Eu não sei qual que era o relacionamento que ele tinha com essas pessoas, entende? Ele era uma pessoa que transitava dentro do banco com alguma assiduidade, conhecia os desejos, enfim, os pleitos do banco, e se oferecia para, através dos contatos dele, criar essa interlocução.”

Em outro trecho do depoimento, essa facilidade do Sr. Marcos Valério marcar o encontro é melhor explicada.

“Deputada ANGELA GUADAGNIN – E a senhora acha difícil marcar… Um empresário marcar uma agenda com o Ministro?

Sra. KÁTIA RABELLO – Acho

Deputada ANGELA GUADAGNIN – e especificamente com o ministro José Dirceu, quando então ministro?

Sra. KATIA RABELLO – Eu não posso dizer que seja difícil ou não porque nós não tentamos anteriormente. Então, eu não posso dizer. Mas, de uma maneira geral, acho que não é fácil, principalmente para nós que temos a nossa sede em Belo Horizonte. É um banco relativamente pequeno. Não é fácil, não”.


Sobre o encontro do pai da Sra. Kátia Rabello, Sr. Sabino Rabello, com o então Ministro:

“O SR. DEPUTADO CARLOS SAMPAIO — Foi ele que pediu ao Marcos Valério?

A SRA. KÁTIA RABELLO — Eu não tenho certeza de que foi ele que marcou, que foi ele que agendou, mas eu sei que ele era o ponto em comum entre o partido e o Banco Rural. Então eu imagino que tenha sido através dele, mas pode ter sido através de… ele através de uma outra pessoa, entende, eu não participei disso.” (grifamos)

O depoimento à CPMI dos Correios do Sr. Ricardo Guimarães, Presidente do Banco BMG, também é revelador desse papel de “facilitador” exercido pelo Sr. Marcos Valério de Souza junto à Casa Civil e ao então Ministro José Dirceu. O depoente afirmou ter sido ele o responsável pela marcação de uma audiência entre o banco e o Ministro:

“O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet) A primeira pergunta – e eu queria perguntar desta coincidência: no dia 20 de fevereiro de 2003, houve uma reunião da diretoria do BMG com o Ministro-Chefe da Casa Civil, José Dirceu.

O SR. RICARDO GUIMARÃES – Sim.

O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet) Qual foi o objeto dessa reunião?

O SR. RICARDO GUIMARÃES – O objeto foi uma inauguração que nós… de uma empresa alimentícia de produtos enlatados que a minha família tem na cidade de Luziânia. A gente ia fazer uma inauguração, e foi a oportunidade para convidar o Ministro José Dirceu para estar presente.

O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet) – E o Marcos Valério e o Delúbio acompanharam essa audiência?

O SR. RICARDO GUIMARÃES – Sim. Os dois.

O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet) – Os dois. E comentaram sobre esse empréstimo? Há coincidência de um empréstimo ter sido três dias antes, e o outro, quatro dias depois?

O SR. RICARDO GUIMARÃES – Não.

O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet) – E quem marcou a audiência na Casa Civil?


O SR. RICARDO GUIMARÃES — Marcos Valério.“

Esse trecho, aliás, contém uma revelação interessante: a presença do Sr. Delúbio Soares, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, numa reunião supostamente destinada apenas a convidar o então Ministro José Dirceu para a inauguração de uma empresa alimentícia. Coincidência relevante quando se tem em conta que, apenas três dias antes, esse mesmo tesoureiro conseguira o empréstimo, em nome do PT, junto ao mesmo banco, e quatro dias depois, a empresa do Sr. Marcos Valério levantaria novo empréstimo, também de interesse do PT. Se o assunto tratado na reunião era de caráter institucional, ou ligado às funções exclusivamente de governo do Ministro José Dirceu, o que o Sr. Delúbio Soares estaria fazendo lá?

Ainda em relação ao depoimento do Sr. Ricardo Guimarães, destacamos um trecho em que confirma o pedido de emprego feito pelo Sr. Marcos Valério em favor da Sra. Maria Ângela Saragoça, ex-mulher do Deputado José Dirceu. In verbis:

“O SR. PRESIDENTE (Gustavo Fruet. PSDB-PR) Como é que ela foi apresentada? Quem solicitou a contratação da Srª Maria Ângela?

O SR. RICARDO GUIMARÃES – Quem pediu foi o Sr. Marcos Valério.”

E mais adiante:

“O SR. ARNALDO FARIA DE SÁ (PTB-SP) – Mas quem pediu? Foi o Zé Dirceu?

O SR. RICARDO GUIMARÃES – Quem pediu foi o Marcos Valério.”

Sobre esse assunto e também sobre o empréstimo do Banco Rural à sua ex-mulher, o Deputado Dirceu, assim se manifestou durante seu último depoimento ao Conselho: "Não participei, não fui informado, não fui consultado”, uma vez que “minha ex-esposa tem vida pessoal, profissional e familiar própria. Há mais de 15 anos estou separado”.

No entanto, em nota divulgada pela Sra. Ângela Saragoça, ela relata que procurou o ex-marido, então Ministro da Casa Civil da Presidência, José Dirceu, “no segundo semestre de 2003”, para pedir ajuda, pois não tinha renda suficiente para adquirir um apartamento maior. E, a partir daí, tudo começou a mudar em sua vida aceleradamente. Na nota, a Sra. Ângela conta que, naquele mesmo segundo semestre de 2003, foi apresentada ao Sr. Marcos Valério pelo então Secretário-Geral do PT, Sílvio Pereira, que, comumente, despachava com o Ministro Dirceu no Palácio do Planalto. Já em outubro do mesmo ano, o BMG a “convidou” para trabalhar lá, conforme confirmou o Sr. Ricardo Guimarães em depoimento à CPMI dos Correios, em 21 de setembro de 2005, conforme transcrito anteriormente. Até hoje, a Sra. Ângela Saragoça trabalha no Departamento de Recursos Humanos do BMG, em São Paulo.


Ainda de acordo com a nota divulgada pela Sra. Ângela Saragoça, em novembro de 2003, apenas cerca de dois meses depois de ter, como disse, conhecido o Sr. Marcos Valério, o sócio do empresário numa de suas empresas, Sr. Rogério Lanza Tolentino, o mesmo que tomou um dos empréstimos para o PT, de R$ 10 milhões ao BMG, comprou o apartamento da Sra. Ângela, localizado em São Paulo. Segundo o Sr. Tolentino, foram pagos R$ 115 mil pelo imóvel. Vale ressaltar que, até aquele momento, o Sr. Tolentino, que mora em Belo Horizonte, nunca tinha se interessado por um apartamento em São Paulo.

O fato da compra e venda do apartamento foi relatado neste Conselho de Ética, pelo Deputado Carlos Sampaio, e confirmado pelo Representado, conforme se lê do seguinte trecho da audiência de 27/09/05:

“O SR. DEPUTADO CARLOS SAMPAIO – Já finalizando, Sr. Presidente, eu apenas trago ao conhecimento de V. Exa. e do depoente que o advogado Rogério Tolentino, agora na Subcomissão dos Correios, ele, como sócio do empresário Marcos Valério, disse, há pouco, em depoimento à Subrelatoria de Movimentações Financeiras, que sabia, no fim de 2003, que havia comprado um apartamento da ex-mulher do Deputado José Dirceu, então Ministro Chefe da Casa Civil, Maria Ângela Saragoça, na Capital paulista: “Me foi colocado que o apartamento era de uma ex-mulher do José Dirceu” — afirmou Tolentino. “É claro que, quando me foi solicitado que comprasse esse apartamento, estava embutido que essa transação estaria nos ajudando”.

É ele falando por ele, evidentemente não envolvendo diretamente V. Exa., mas é mais um a afirmar isso. E o próprio Presidente do BMG confirma que realmente atendeu a um pedido de Silvio Pereira para empregá-la. Eu só queria que V. Exa. tivesse conhecimento disso, porque em que pese…

O SR. DEPUTADO JOSÉ DIRCEU – Eu tenho conhecimento….”

Depois que o Sr. Toletino comprou às pressas o apartamento de Sra. Ângela Saragoça, logo em seguida, o Banco Rural — outra instituição financeira que emprestara dinheiro ao PT por interveniência do Sr. Marcos Valério — emprestou à ex-mulher do Sr. Dirceu R$ 42 mil para ela comprar outro apartamento. O próprio empresário Marcos Valério declarou ao Ministério Público Federal que ajudou a Sra. Ângela Saragoça naqueles meses.

A presidente do Banco Rural, a Sra.Kátia Rabello, reconhece que o empréstimo à Sra. Ângela Saragoça foi um pedido feito pelo Sr. José Augusto Dumont, vice-presidente do Banco Rural, falecido em abril de 2004. No entanto, é preciso levar-se em conta que aquele dirigente do banco, conforme dito pela Sra. Kátia, “tinha uma relação muito forte com Marcos Valério”, a mesma pessoa que se disponibilizou a obter esse empréstimo. “O José Augusto ficava em Belo Horizonte e eu tenho conhecimento de um telefonema do José Augusto para a pessoa que operacionalizaria esse empréstimo em São Paulo”, afirma a Sra. Kátia Rabello.

Outro fato importante neste caso é que, conforme a Sra. Kátia Rabello, não era prática e rotina do banco oferecer esse tipo de empréstimo. Tal operação fugia do nicho de mercado do banco, destinado às médias e pequenas empresas. “É um valor mínimo, apenas não faz parte do foco de negócio do banco e foi feito a pedido do Zé Augusto, que tem relações íntimas com Marcos Valério”.


Ou seja, bastou que a Sra. Ângela Saragoça pedisse ajuda ao ex-marido, o então todo-poderoso Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu, para que em aproximadamente três meses sua vida desse uma volta de cento e oitenta graus, ficando, pelo menos financeiramente, resolvida.

Diante da participação do Sr. Marcos Valério nesses episódios da vida particular do Sr. José Dirceu, é inconteste a proximidade entre ambos.

Para o Deputado José Dirceu, o dinheiro destinado a esses pagamentos, proveniente do chamado ‘valerioduto’, é produto de empréstimos feitos pelo PT e pelo Sr. Marcos Valério para pagar campanhas eleitorais. Mas, conforme disse o Deputado Dirceu em recente entrevista à “Folha de São Paulo”, o problema é que não se quer aceitar essa “tese”. Ora, “tese”? Como “tese”? O Deputado não deveria estar lidando com fatos? Fatos são todos verdadeiros. Tese, nesse caso, foi ato falho do Deputado Dirceu, pois “tese” pode ser verdadeira ou falsa. Tese é algo que se tenta construir; tese serve como justificativa de defesa.

É importante lembrar também que o Sr. Marcos Valério e sua mulher, a Sra. Renilda Maria Santiago de Souza, em depoimentos na CPMI dos Correios, afirmaram e confirmaram reuniões entre o Sr. José Dirceu e dirigentes dos bancos Rural e BMG. O Sr. Marcos Valério ressaltou, já em depoimento à Procuradoria-Geral da República, que os empréstimos para o PT feitos pelos bancos Rural e BMG foram avalizados pelo então Ministro José Dirceu: “O Sr. Delúbio esclareceu que o então Ministro José Dirceu e o Secretário Sílvio Pereira eram sabedores dessa operação de empréstimo para o Partido e, em alguma eventualidade, garantiriam o pagamento junto às empresas do declarante”.

Segundo levantamento das CPMIs dos Correios e da Compra de Votos, já foram rastreados pelo menos R$ 55 milhões que circularam pelo ‘valerioduto’, desaguando em parlamentares e partidos políticos.

De acordo com o Representado, em seu depoimento em 27/09/05, "aceitar o relatório das CPIs é aceitar que se organizou no Brasil o sistema do ‘mensalão’, o sistema de nomeações para alimentar o ‘mensalão’ ou os partidos". Ou seja, de acordo com ele próprio, o esquema de repasse de recursos para parlamentares, provado pelas CPMIs em curso no Senado depois do cruzamento de uma série de depoimentos e de dados sigilosos, é inverossímil. O Sr. José Dirceu, então, estaria disposto a desmerecer, a menosprezar, a desmentir todo o trabalho feito até agora por três comissões do Congresso Nacional que, entre parlamentares e técnicos, reúnem umas duzentas pessoas ou mais? Além disso, ao realizarmos o cruzamento entre os sigilos bancários e telefônicos e as datas das votações de interesse do governo na Câmara dos Deputados, percebemos que se encaixam.

Em junho de 2004, o ‘valerioduto’ despejou R$ 247 mil nos cofres do PT. Entre janeiro e maio de 2004, tinham sido R$ 9.622.806,94. Nesse período, foram votadas no Congresso Medidas Provisórias que enfrentavam muitas resistências, como a do PIS-Pasep, do Cofins; as MPs nº 177 e 144 e 145; a da Biossegurança, a da antecipação da Cide.

Outra história interessante rastreada no que está disponível nas quebras de sigilo telefônico ocorreu em maio de 2003. No mês em que o governo conseguiu aprovar no Congresso a polêmica Medida Provisória n° 131, que liberou o plantio dos transgênicos. No dia 13 de maio de 2003, a MP acabou sendo retirada de pauta na última hora porque o governo viu que iria perder a votação. No dia 12 de maio de 2003, de acordo com a quebra de sigilo telefônico do Sr. Marcos Valério, ele faz, de Belo Horizonte, uma ligação para a Presidência da Câmara dos Deputados. O Presidente da Casa, então, era o Deputado João Paulo Cunha (PT-SP). No dia seguinte, 13 de maio de 2003, o Sr. Marcos Valério faz outra ligação para a Presidência da Câmara dos Deputados. Dessa vez, de São Paulo. Nesse mesmo dia, ainda de São Paulo, o Sr. Marcos Valério telefona para o diretório nacional do PT, em São Paulo. Novamente, no dia 14 de maio de 2003, agora falando de Brasília, o Sr. Marcos Valério telefona seis vezes distintas para o diretório nacional do PT, em São Paulo. Nesse mesmo dia 14 de maio de 2003, ainda estando em Brasília, o Sr. Marcos Valério telefona para o Banco Rural. Ainda nesse dia 14 de maio de 2003, a MP dos transgênicos é aprovada no plenário da Câmara dos Deputados. No dia 15 de maio de 2003, já de volta a Belo Horizonte, o Sr. Marcos Valério telefona para o Sr. Delúbio Soares. E no dia 19 de maio de 2003, o Sr. Marcos Valério faz nova sucessão de telefonemas, a partir de São Paulo: para o diretório nacional do PT, para o Sr. Delúbio Soares, para a Presidência da Câmara dos Deputados, para a Multi-Action Empreendimentos Ltda., uma de suas empresas, e para os bancos Rural e BMG. Para o BMG, o Sr. Marcos Valério telefonou duas vezes nessa data. Em maio de 2003, de acordo com o cruzamento de dados feito pela CPMI dos Correios, o ‘valerioduto’ derramou R$ 750 mil no PT e R$ 250 mil no PTB. Ao todo, naquele mês, foram identificados vinte e nove telefonemas do Sr. Marcos Valério para os bancos Rural e BMG, para a Presidência da Câmara dos Deputados, para o Sr. Delúbio Soares e para o diretório nacional do PT.


Além disso, a CPMI dos Correios já detectou, de setembro de 2004 a junho de 2005, mais de duzentas e quarenta ligações entre a sede nacional do PT e a SMP&B, localizada em Belo Horizonte. Apesar de só ter sido identificado, até agora, um último repasse de dinheiro das contas do Sr. Marcos Valério para parlamentares e partidos políticos em setembro de 2004.

Sobre a denúncia constante da Representação apresentada pelo PTB, declarou o Deputado José Dirceu, durante seu último depoimento a este Conselho: "Estou cada vez mais convencido de minha inocência". Como se inocência tivesse gradações variadas. Inocência é inocência. Culpa é culpa. Ou o Sr. Dirceu é inocente ou é culpado. Nesse mesmo depoimento, ele afirma que irá responder “no Supremo Tribunal Federal por crime de responsabilidade, por improbidade administrativa, por qualquer outro crime”. Então sua inocência não estaria tão clara assim?

Falando em sua defesa, o Deputado Dirceu se embasa nas declarações do Sr. Delúbio Soares, dos bancos, da Sra. Renilda e do Sr. Marcos Valério para afirmar que nunca levantou fundos junto aos bancos. Mas não confere credibilidade ao Sr. Marcos Valério e à Sra. Renilda quando esses afirmam que ele sabia dos empréstimos e que, por isso, haveria uma garantia de que tais empréstimos seriam quitados junto ao Sr. Valério. O Sr. Delúbio nega tal fato, mas não podemos esquecer que por mais uma coincidência deste processo, ele é uma pessoa de confiança do Representado. Além disso, mais uma vez o Representado se vale das declarações do Sr. Marcos Valério e da Sra. Renilda para afirmar que nenhum dos dois jamais confirmou que os recursos levantados junto aos bancos seriam para pagamento de parlamentares.

A maioria dos nomes de sacadores desses valores são de parlamentares ou de pessoas ligadas a eles, e as datas de liberação de recursos coincidem com as votações de interesse do governo na Câmara. Somente o BMG emprestou ao PT R$ 2,4 milhões, em 17 de fevereiro de 2003, e R$ 40,4 milhões às empresas de Marcos Valério, entre 2003 e 2004. Esses R$ 40,4 milhões também teriam sido repassados ao partido. Em 20 de fevereiro de 2003, três dias depois do primeiro empréstimo ter sido concedido pelo BMG, a diretoria do banco teve uma audiência com o então Ministro da Casa Civil, José Dirceu. E aí, outros três dias depois, em 24 de fevereiro de 2003, a SMP&B, a empresa do Sr. Marcos Valério responsável pela maioria dos saques no esquema do caixa dois, fechou a primeira operação financeira com o BMG, no valor de R$ 12 milhões.

A Sra. Kátia Rabello, Presidente do Banco Rural, respondeu assim quando indagada sobre se o Deputado José Dirceu tinha conhecimento do empréstimo feito pelo Banco Rural ao PT: "Do meu conhecimento, não, mas não posso falar pelos demais dirigentes do Banco Rural." Segundo a Sra. Kátia Rabello, esse empréstimo, no valor de R$ 3 milhões, concedido em maio de 2003, é bastante normal, com juros de mercado, e de uma quantia relativamente pequena em relação aos ativos do banco. Mas é importante notar que essa foi a primeira vez que o banco celebrou empréstimo diretamente com um partido político.

Ela demonstrou surpresa ao ser perguntada sobre o uso, por uma funcionária da SPM&B, de uma sala reservada dentro do Rural para efetuar os pagamentos a parlamentares e seus assessores. Para a Presidente do Banco Rural, tal fato é "absolutamente anormal". O procedimento, segundo a Sra. Kátia Rabello, só é normal para pagamentos realizados por funcionários do banco a seus clientes, mas não quando se trata de terceiros.

Em 1998, o Sr. Marcos Valério já havia se utilizado do expediente de solicitar empréstimos ao Banco Rural para abastecer campanhas políticas, mas não conseguiu pagar a dívida de R$ 9 milhões. Por isso, o banco celebrou um acordo com o devedor: recebeu R$ 2 milhões e o restante seria pago com serviços de publicidade. Segundo a Sra. Kátia Rabello, isso estava de acordo com a política adotada pelo Sr. José Augusto Dumont, de “salgar carne podre”, ou seja, de receber aquilo que é possível de um cliente que não está tendo condições de pagar. A decisão de emprestar dinheiro novamente às empresas do Sr. Marcos Valério foi tomada mediante o crescimento de sua movimentação financeira. No entanto, as garantias aceitas foram frágeis, as mesmas do empréstimo mal-sucedido anteriormente — contratos das empresas do Sr. Marcos Valério com um governo. Segundo a Sra. Kátia, o que mais chamou a atenção foi o contrato com o Banco do Brasil, que aumentou de valor no governo atual.


No depoimento que prestou ao Conselho em 27/09/05, consta o relato da ida do então ex-Ministro da Casa Civil à casa do então Deputado Roberto Jefferson. O objetivo da visita, que contou com a participação do Deputado José Múcio (PTB), do Ministro Mares Guia (PTB) e do então articulador político Deputado Aldo Rebelo, era convencer o Sr. Roberto Jefferson a retirar sua assinatura do documento que pedia a instauração da CPMI dos Correios. O Representado justifica assim sua participação: “Fiz a demanda porque julgava correta, porque julgava que a CPI dos Correios não era necessária, porque nós já estávamos fazendo uma investigação” (grifamos). O Deputado Jefferson retirou sua assinatura.

Isso demonstra que o Deputado José Dirceu continuou trabalhando na articulação política do governo ainda que dele não mais fizesse parte.

Em seu primeiro depoimento ao Conselho de Ética (02/08/05), como testemunha no processo 1/2005, que culminou com a cassação do Sr. Roberto Jefferson, e, portanto, tendo prestado compromisso de falar somente a verdade sobre o que lhe foi perguntado, o Deputado José Dirceu afirma ter responsabilidade política sobre todos os erros cometidos pelo Partido dos Trabalhadores por ser membro de seu Diretório Nacional. O Deputado Dirceu afirma, ainda, não poder ser responsabilizado pelos empréstimos feitos junto às empresas do Sr. Marcos Valério, “aliás, as diretorias dos bancos (BMG e Rural) já afirmaram isso. Já discutiram isso comigo”. (Grifamos) Pode-se depreender disso, que os empréstimos, em algum momento, foram discutidos pelo Representado e os responsáveis por estes bancos.

Estes empréstimos podem ter sido boas garantias para intensificar tais relações bem sucedidas e que frutificaram até o Palácio do Planalto. No pretérito beneficiaram ao PT, sendo judicioso ao conceder empréstimos que o Banco Central determinou o provisionamento dos mesmos por descumprimento de normas regulamentares, mas trazendo outros dividendos que compensariam aqueles. A dívida foi pedra fundadora de incremento de vínculos dos Bancos com instituições públicas, partido político, pessoas importantes do governo, do PT e do meio publicitário. Os bancos investiram dinheiro para que esses vínculos prosperassem. Foi o marco zero rumo a melhores negócios – a contrapartida — evidenciado pelo fato de que, sem ter havido pagamentos dos empréstimos, os bancos não tomaram as normais providências para receber seus créditos até que todo esse escândalo viesse à tona.

É importante esclarecer aqui que, conforme noticiado na imprensa nacional e já averiguado pela CPMI dos Correios, os bancos Rural e BMG tiveram pontuais benefícios no governo Lula. O BMG, por exemplo, lidera o mercado de crédito consignado (empréstimo descontado em folha de pagamento) para aposentados no País. E o histórico dessa operação deixa algumas dúvidas quanto à lisura do processo. Como é de conhecimento, em 17/02/03, o BMG concede empréstimo de R$2,4 milhões. Três dias depois, a diretoria do banco é recebida pelo ex-ministro na Casa Civil. Alguns meses depois, em 18/09/03, o governo edita a Medida Provisória que permite instituições financeiras diferentes daquela onde o cliente tem conta operarem com o crédito consignado, “evidentemente para aumentar a concorrência”, como explicou o Deputado José Dirceu no dia 02/08/05 ao Conselho de Ética. No caso do nicho voltado aos aposentados, o BMG foi o primeiro banco privado a fechar o acordo, com uma vantagem de cinco meses sobre os demais interessados. Segundo o Representado, tal fato é explicado, pura e simplesmente, porque o banco tinha know how nessa área, em que já atuava em Minas Gerais. Mas, é preciso lembrar que, depois de entrar nesse setor, o BMG cresceu 233% e passou a figurar entre as 50 maiores instituições financeiras do País.

O Banco Rural viu os investimentos dos fundos de pensão de empresas estatais crescerem em sua carteira, conforme informado pelo deputado Carlos Sampaio durante depoimento da Sra. Kátia Rabello. No caso da Petros, o fundo de pensão da Petrobrás, não havia qualquer investimento no banco durante o governo passado. No início do Governo Lula, foi aplicada a quantia de R$ 5 milhões, aproximadamente. Já no segundo semestre de 2003, a Petros aumentou esse investimento em cerca de 371%, já com o investimento de R$ 24 milhões.


Um fator bastante interessante na relação entre o Representado e os bancos BMG e Rural diz respeito ao teor assumido pelas partes dos encontros que ocorreram dentro e fora da Casa Civil. Em sua grande maioria, eles diziam respeito a assuntos de responsabilidade do Banco Central e do Ministério da Fazenda, não sendo, portanto, de competência da Casa Civil. Por exemplo, o destino da massa liquidanda do Banco Mercantil de Pernambuco em poder do Banco Central. De acordo com a Sra. Kátia Rabello em seu depoimento ao Conselho de Ética, no governo anterior cabia apenas ao Banco Central tratar de tal assunto.

Aliás, o assunto “Banco Mercantil de Pernambuco” é também ponto de contradição no depoimento prestado pelo Representado no dia 27/09/05, já que Dirceu afirma que jamais o Banco Rural e Mercantil propuseram algo com relação ao Banco Mercantil de Pernambuco. No entanto, vários trechos de seu depoimento mostram justamente o contrário. Ele tratou sim de tal assunto com a Sra. Kátia Rabello.

E como acontece em várias passagens desse processo, mais uma coincidência diz respeito à agenda do então Ministro José Dirceu no dia 11/01/05. Nesta data, conforme amplamente divulgado pelos jornais nacionais, o Representado recebe em seu gabinete o presidente do Banco Espírito Santo, Sr. Ricardo Espírito Santo, que por acaso é acionista majoritário da Portugal Telecom. Ainda coincidentemente, a audiência é agendada pelo Sr. Marcos Valério e também acompanhada de perto pelo publicitário mineiro.

Como bem dito pelo Representado no dia 27/09/05, nunca houve relação dele com a Portugal Telecom, de nenhum tipo, nem administrativa, nem funcional, mas, como diz neste mesmo depoimento, “nos termos que o deputado Roberto Jefferson colocou, eu não tenho nada a ver. Não participei do que ele está dizendo. Se eu recebi ou não a Portugal Telecom, ou se eu estivesse em Portugal em reuniões com empresários e que a Portugal Telecom estivesse presente é outra questão” (grifamos).

Outro episódio relevante envolve a figura do Sr. Roberto Marques e a autorização da SMP&B e do Banco Rural para o saque no valor de R$ 50 mil. Segundo o Representado, o caso é de “uma plantação de um documento não reconhecido pela CPI que não corresponde aos documentos oficiais. Não há saque e o saque foi realizado no mesmo dia, no mesmo número de cheque, no mesmo valor por Luiz Carlos Mazano”. No entanto, conforme documentos da própria CPMI dos Correios e integrantes deste processo, o que aconteceu na verdade foi a troca dos nomes dos recebedores, ainda que não seja explicado o porquê.

Se lançarmos ainda um olhar bem atento aos sigilos telefônicos dos envolvidos no caso do ‘valerioduto’, poderemos constatar que em junho de 2004, há uma série de ligações entre personagens da história acima citados. O então tesoureiro Delúbio Soares telefonou para o Sr. Roberto Marques, funcionário da Assembléia Legislativa de São Paulo e na sua própria definição em depoimento à CPMI dos Correios, em 2 de agosto de 2005, “assessor informal” do Sr. José Dirceu. O Sr. José Dirceu também telefonou para o Sr. Roberto Marques, nesse mesmo período. Em 15 de junho de 2004, a SMP&B autorizou o Banco Rural a liberar R$ 50 mil para o Sr. Roberto Marques. Em 16 de junho de 2004, a mesma SMP&B determinou ao Banco Rural que substituísse o nome autorizado do Sr. Roberto Marques pelo do Sr. Luiz Mazano, motorista da corretora Bônus-Banval, acusada de lavagem de dinheiro do ‘valerioduto’. Entre junho de 2004 e junho de 2005, de acordo com o relatório da CPMI dos Correios sobre as ligações feitas nos últimos cinco anos, o Sr. José Dirceu falou com o Sr. Roberto Marques nove vezes, nos telefonemas que foram possíveis de identificar. Para se ter uma idéia, entre novembro de 2002 e março de 2003, aparecem, na quebra de sigilo telefônico do Sr. Delúbio Soares apenas dez telefonemas para o Sr. José Dirceu. Isso, tratando-se do relacionamento do presidente nacional do PT e em seguida o ministro mais poderoso da República, com o tesoureiro do partido que tinha acabado de ganhar a eleição presidencial e estava tratando da montagem do novo governo, nomeações, pagamento de dívidas de campanha etc.


Essa mudança de nomes é atestada pela Gerente Financeira da SMP&B, Sra. Simone Vasconcellos, em depoimento na CPMI dos Correios. Ela afirma que a mudança de nomes do Sr. Roberto Marques para o Sr. Luiz Carlos Mazano, realizada pela Sra. Geisa, aconteceu somente com a autorização do Sr. Marcos Valério, sob orientação do Sr. Delúbio Soares.

Outra troca importante, diz respeito à postura do representado frente ao papel que Roberto Marques desempenha. De assessor informal e amigo em 02/08/05, passa a apenas amigo e funcionário da Assembléia Legislativa de São Paulo em 27/09/05, menos de dois meses depois. Além disso, como afirma o Representado, se for tomado como verdade a afirmação do Sr. Valério sobre a colocação, e a retirada no dia seguinte, do nome de Roberto Marques da lista, ainda assim “não houve crime, ilícito nenhum”. No entanto, fica patente a intenção de que fosse ele o receptor de tal quantia.

Como coordenador da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, o Representado afirma que ficou responsável pela contas partidárias, mas que a dívida final foi de R$ 600 a 700 mil. As contas às quais o Sr. Delúbio se refere, de R$ 20 milhões, são dívidas estaduais e, portanto, fora de sua responsabilidade. Mas não foi ele o responsável por fechar as contas da campanha presidencial, onde faltavam, segundo ele, serem pagos entre R$ 600 a 700 mil? Como também faltaram, como se descobriu depois, serem pagos R$ 10,5 milhões para o publicitário Duda Mendonça, realizados no exterior?

Em seu depoimento, o representado com muita tranqüilidade afirma ter sido coordenador da campanha do Presidente Lula, mas que o responsável pelo fechamento dos contratos financeiros era o Sr. Delúbio Soares. Agora, além de ter sido autorizado a resolver os problemas financeiros do PT sozinho e de forma autônoma, Sr. Delúbio Soares também tinha liberdade para fazer o que queria e julgava necessário, sem qualquer consentimento, na campanha do presidente Lula. “Tomei conhecimento que o Sr. Duda Mendonça estava sendo contratado; não tomei conhecimento especificamente dos valores ou como seria pago”. É interessante, porque o Deputado José Dirceu trabalhou árdua e pessoalmente nas campanhas do atual Presidente, e justo naquela onde o candidato petista apresentava reais chances de ganhar, onde todo o discurso e imagem do PT ganharam um novo formato para a campanha, formato este a cargo de um publicitário recém-contratado, enfim, neste momento decisivo, ele apenas toma conhecimento de que esse profissional seria o Sr. Duda Mendonça? Diante da biografia do Sr. José Dirceu, dos vários depoimentos das testemunhas de defesa dizendo que ele é uma pessoa detalhista, esse fato lhe seria apenas comunicado? Como pode o Deputado José Dirceu afirmar que todos, inclusive o Presidente Lula, participaram da elaboração da “Carta ao povo brasileiro”, do programa de governo, do projeto de governo, mas não discutiram a respeito do profissional contratado para orquestrar a forma como tais decisões iriam ser levadas aos eleitores?

Em outro trecho do seu depoimento, o deputado José Dirceu nos leva a apontar mais uma contradição. Mesmo negando peremptoriamente que não participou do acordo fechado com o publicitário Duda Mendonça e muito menos do pagamento realizado a este senhor, o Deputado Dirceu afirma: “Aliás, o Duda Mendonça afirmou isso também na CPI dos Correios, onde ele depôs, que eu jamais discuti com ele ou participei de qualquer atividade com relação às finanças, particularmente depois que deixei a presidência do PT”. Se o cargo de presidente foi entregue em dezembro de 2002 e os contratos com o Sr. Duda Mendonça celebrados no início da campanha presidencial, portanto, durante sua gestão na presidência do partido, podemos entender que, em algum momento, ao contrário do que vem sido dito pelo representado, ele e o Sr. Duda trataram dos valores destes contratos.


Em seu depoimento ao Conselho, o Representado nega ainda que tenha participado de negociações financeiras para que deputados trocassem de partido, especificamente para aqueles que são da base aliada. Mas admite que existiu sim estímulo político para que essas trocas acontecessem, e vejam que coincidência, foram beneficiados justamente os partidos que fizeram acordos financeiros como o PT: o PTB cresceu 100%; o PL também cresceu 100%; e o PP, 30%.

Com relação ao acordo firmado entre o PT e o PL na campanha presidencial, o Deputado José Dirceu, então Presidente do PT, disse ter participado apenas das tratativas no âmbito político e eleitoral. O acordo que evolvia repasse de recursos não foi acompanhado por ele, segundo resposta dada ao relator. Quando novamente perguntado podemos observar certa contradição:

Deputado JULIO DELGADO – Então, V. Exa., do acordo de 2002, que foi feito quando V. Exa. estava na Presidência do PT, que celebrou a união com o PL para evitar prejuízos, V. Exa., ao participar desse acordo, depois delegou ao Delúbio Soares?

Deputado JOSE DIRCEU – Sim que era o tesoureiro e o responsável pelas finanças. Veja bem, eu quero repetir: o Sr. Valdemar Costa Neto e o Sr. Delúbio Soares declararam na CPMI do mensalão que eu não tive participação na discussão do acordo com relação a recursos, que eram recursos do comitê, uma participação numa porcentagem do que fosse arrecadado na campanha do presidente Lula pelo comitê financeiro do presidente Lula”.

A resposta foi clara. Ele delegou as contas ao Sr. Delúbio por ser ele o tesoureiro e isso aconteceu depois do acordo ter sido fechado. Ainda que se limitassem à arrecadação do comitê, fica claro que o Deputado José Dirceu discutiu e negociou valores, enquanto Presidente do PT e coordenador da campanha do Presidente Lula.

Se tais acordos são naturais, não o seria também que o coordenador da campanha e também presidente do partido cujo candidato era o cabeça da chapa à Presidência da República também soubesse desses acordos? Mas no caso do PT não. O Sr. Delúbio Soares fechava tudo sozinho, sem comunicar nada a seus superiores. Aliás, como bem colocado pelo Deputado José Dirceu, ele esteve na casa do Deputado Paulo Rocha, onde foi fechado o acordo de R$ 10 milhões para o PL, mas justamente na hora de fechar os valores ele não mais estava na reunião, como atestado pelo Sr. Delúbio Soares e Sr. Valdemar Costa Neto. No entanto, ao contrário de seu homem de confiança, o Sr. Costa Neto afirma que apenas o Presidente Lula e o Senador José Alencar não participaram do fechamento desse acordo. Há uma contradição aqui. Mas precisamos observar que o próprio Representado se vale da fala do Sr. Valdemar como sendo prova da verdade e a verdade amplamente divulgada por ele é que apenas o Presidente Lula e o Senador José Alencar não participaram do acordo.

Ao fazer também um breve levantamento das audiências realizadas na agenda do ex-Ministro, entregue ao Conselho espontaneamente por ele, realizamos as seguintes deduções: comprova, através das audiências, que, mesmo na função de Chefe da Casa Civil, ele não perdeu, como disse, os contatos e nem o controle do comando do PT. Desenvolveu, nos trinta meses que esteve no governo, uma agenda privilegiada com as pessoas envolvidas no escândalo de corrupção que levou à instalação de três CPIs no Congresso. O destaque mais claro negado pelo Deputado José Dirceu, a todo o momento, é que ele se desincumbiu das atividades de articulação política, atividade repassada para o Deputado Aldo Rebelo, em janeiro de 2004, e que desconhecia, a não ser pela notícia do “Jornal do Brasil”, algo relacionado ao escândalo do repasse de recursos. Porém, em seu depoimento, o ex-Deputado Roberto Jefferson afirma que alertou o então Ministro José Dirceu, mais de dez vezes, sobre a existência dos repasses. Além disso, a agenda da Casa Civil registra encontros reservados do então Ministro com lideranças partidárias, como o ex-Deputado Roberto Jefferson, e os Deputados José Janene, Pedro Correa, José Borba, entre outros, confirmando a continuidade das atividades de articulação política no período em que esta atribuição estaria a cargo do Ministro Aldo Rebelo.


O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados exerce uma missão essencial no estado de direito: promover a justiça e garantir a ordem institucional. E tem o dever de fazê-lo respondendo com altivez aos anseios da sociedade, passando a limpo a história do Parlamento Brasileiro. Ao apreciar o relatório produzido ao longo deste processo, é possível perceber que o que está em julgamento não é apenas e tão somente a conduta ética de um de nossos pares.

A Câmara dos Deputados, inegavelmente, curvou-se a um esquema de corrupção ardilosamente arquitetado com o intuito de manipular a atuação de bancadas e partidos. É lastimável. Mas temos de ter a coragem de reconhecer e admitir que este esquema de “governabilidade de amor remunerado” só alcançaria êxito em ambiente promíscuo.

Ambiente que temos o dever de sanear para recuperar a nossa auto-estima e a credibilidade desta instituição que tanto prezamos. A sociedade brasileira espera isso de nós. E exige de nós respostas contundentes. Não podemos nos apequenar frente ao corporativismo ou seguir o caminho fácil das condenações levianas.

Afinal, estamos aqui para julgar um político como nós, eleito como nós, deputado como nós. Todavia, poucos entre nós podem ostentar uma biografia tão rica e uma folha de serviços prestados a esta nação como o deputado José Dirceu de Oliveira e Silva.

O Deputado José Dirceu foi líder do movimento estudantil durante a ditadura militar. Preso no dia 12 de outubro de 1968, em Ibiúna (SP), durante a realização do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), teve sua nacionalidade cassada e foi banido do País.

Trabalhou e estudou em Cuba até retornar ao Brasil em 1975, para viver clandestinamente em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná, depois de ter feito cirurgia plástica e adotado nova identidade. Retornou a São Paulo em dezembro 1979, beneficiado pela Lei da Anistia, para ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).

Participou ativamente do movimento pela anistia e da campanha pelas eleições diretas para Presidente da República, em 1984. Foi ele o autor, juntamente com o Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), do requerimento que criou a Comissão Parlamentar de Inquérito, tornando-se figura fundamental para o levantamento das denúncias sobre o “esquema PC” e a apuração de irregularidades que levaram ao impeachment de Collor.

Em 1995, o Deputado José Dirceu assumiu a Presidência do PT, sendo reeleito sucessivamente até concluir com êxito a sua histórica missão de coordenador-geral da campanha de Lula à Presidência da República.

Durante a transição institucional de governo, o Deputado José Dirceu assumiu, por delegação do Presidente eleito, o cargo de coordenador político da equipe de transição, com a tarefa de coordenar as articulações com partidos políticos a fim de formar uma base de sustentação para o novo governo. Na Chefia da Casa Civil, manteve como responsabilidades fundamentais da Pasta a articulação política do governo e a coordenação da ação governamental. Por reconhecido merecimento, o Deputado José Dirceu tornou-se o homem chave do governo, a quem o Presidente Lula chamava de “capitão do meu time”.

Como líder estudantil, o Deputado José Dirceu tornou-se referência para ideólogos de esquerda. Como comandante do PT, construiu a organização e assumiu, juntamente com os integrantes do Campo Majoritário, o controle hegemônico do partido, que era admirado por defender a ética na vida pública e por possuir a mais poderosa máquina partidária do País. Como Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu assumiu a gestão do dia-a-dia do governo.


E é esta relação entre PT, Governo Federal e partidos aliados a responsável por esse esquema de negociatas denunciado no País e que tinha como objetivo garantir ao PT uma hegemonia de longa duração.

E o meio pelo qual se buscava esta hegemonia era através da liberação de pagamentos em dinheiro vivo a parlamentares da base aliada, em períodos em que ocorriam votações de medidas importantes para o governo. Tudo leva a crer que a alta cúpula do PT levou para dentro do Governo Lula dois conceitos marxistas: que os fins justificam o uso de meios reprováveis e que o partido está acima do Estado.

A denúncia que chegou a este Conselho é de que o grande arquiteto deste espetáculo de corrupção seria o poderoso homem forte do governo e o principal comandante do PT, Deputado José Dirceu de Oliveira e Silva. A lógica humana nos permite, através do acúmulo de evidências irrefutáveis, afirmar que o Deputado José Dirceu tinha poderes para ser o autor intelectual de todo este esquema ou, pelo menos, poderes suficientes para impedir que tais práticas prosperassem.

A antiga lenda de Fausto, aquele que negociou com o Diabo para receber em troca poderes sobre-humanos, se resume no fato de ele ter perdido a noção de seus limites. É isto que temos constatado ao longo deste processo. A ausência total de limites e a crença infundada de que a manutenção do poder permite quaisquer tipos de ilicitudes, colocando homens acima do bem ou do mal.

Aquele Sr. José Dirceu, que era líder estudantil revolucionário da chamada geração de 68, que lutou bravamente contra a ditadura militar, que foi treinado pela inteligência cubana, que viveu clandestinamente no Brasil e construiu o maior partido de esquerda deste País, não é mais o mesmo.

Esta nova personalidade do Sr. José Dirceu foi ressaltada pelo Senador Cristovam Buarque, em discurso proferido no dia 9 de agosto de 2005: “Quando levei ao Ministro José Dirceu uma proposta de lei que garantisse vaga na escola a toda criança no dia em que fizesse 4 anos, segundo as promessas feitas durante a campanha, ele me apresentou vários argumentos contrários. Entre eles, a alegação de que isso incomodaria os prefeitos. E ele não queria incomodá-los, porque buscava seu apoio para a reeleição”.

Este fenômeno de transfiguração ética pelo deslumbre exercido pelo poder político não é uma novidade. Nicolau Maquiavel o conhecia e o explicava de maneira magistral:

Daí a conveniência de parecer clemente, leal, humano, religioso, íntegro e, ainda de ser tudo isso, contanto que, em caso de necessidade, saiba tornar-se o inverso.

(…)Os homens em geral formam as opiniões guiando-se antes pela vista do que pelo tato; pois todos sabem ver, mas poucos sentir. Cada qual vê o que parecemos ser; poucos sentem o que realmente somos.” (O Príncipe, Nicolau Maquiavel, Senado Federal, 1998, Tradução de Mário e Celestino da Silva).

É esta lógica pragmática que passou a prevalecer nas relações do governo do PT. E para torná-la operacionalmente viável foram escalados o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o Sr. Marcos Valério. Os serviços prestados pelo Sr. Valério ao PT incluíam desde o pagamento da festa da posse do Presidente Lula, até o repasse de recursos financeiros a agentes políticos indicados pelo Sr. Delúbio. Aquele que, segundo o Sr. Marcos Valério, prestava fidelidade canina ao Sr. José Dirceu.


As evidências aqui destacadas compõem um contexto probatório que indica e aponta o envolvimento do Deputado José Dirceu com esta fórmula heterodoxa de relacionamento entre partido político, governo e Parlamento.

Se de um lado há demonstrações inequívocas de que o Deputado José Dirceu jamais se afastou do trato das questões político-partidárias afetas à relação Governo-base de apoio no Congresso Nacional, de outro, nota-se que, ao contrário do que afirmou, seu nível de relacionamento com as estâncias partidárias não foi menor nem mais distante durante o período em que ocupou a Chefia da Casa Civil.

Esta posição estratégica por si só revela o poder e a ascendência do Deputado José Dirceu tanto numa esfera quanto na outra. Por conseguinte, quando se tornam públicos os detalhes da relação que se desenvolveu entre o Partido dos Trabalhadores e alguns parlamentares desta Casa, a participação do Deputado José Dirceu na construção desta relação exurge como uma hipótese concreta.

Esta hipótese se confirma na medida em que nos aprofundamos na análise dos dados minuciosamente relatados acima. Eles nos permitem perscrutar o seu grau de envolvimento e forma de participação neste esquema atentatório ao livre desenvolvimento da democracia brasileira.

Neste Conselho e nesta Casa estamos diante de uma tarefa nobre e árdua. Estamos enveredando pelos caminhos da Ética e da Política, ou melhor, da Ética na Política. Desta forma, os fatos, os depoimentos e as alegações não têm como parâmetro a Política como ela é, mas a Política com ela deve ser em seu sentido mais puro.

Queremos alertar com isso que, neste caso, há de se valorizar toda evidência e indício na formação íntima do convencimento, bem como todos os argumentos que as correlacionam no sentido de validar um raciocínio.

Afinal, num processo que tem por escopo a avaliação moral das condutas, todos os argumentos são axiologicamente orientados, ou seja, os fatos não são confrontados somente com regras jurídicas, sejam elas procedimentais ou substanciais. Mais do que isso, eles são colocados face a face com os valores morais mais caros ao espírito humano: o bem, o justo e o ideal.

É disso que se está a tratar neste processo, quando se fala em Ética e Decoro Parlamentar não podemos nos contentar com a simples alegação do que era juridicamente exigível do Deputado José Dirceu à época dos fatos, o critério de julgamento deste Conselho sói ser mais apurado, devemos confrontar todo este contexto probatório já mencionado com o que era eticamente desejável por parte de um parlamentar que ocupava posição tão expoente no cenário político nacional.

A respeito da conduta ética na política, desta relação entre o poder e o agir ético, vale a pena trazer aos autos um questionamento levantado pelo cientista político Max Weber:

“Saber que influi sobre outras pessoas, que toma parte no poder que está acima delas e, sobretudo, a sensação de ter em suas mãos o rumo de acontecimentos historicamente importantes podem ajudar o político profissional a superar a rotina quotidiana, mesmo quando ocupar cargos secundários no plano formal. Porém, a questão que se coloca agora é a seguinte: quais são as qualidades que lhe permitem estar à altura do poder que possui (por menor que seja) e, por conseqüência, à altura da responsabilidade que tal poder lhe impõe? Isso nos leva ao terreno das questões éticas em que está implícita a exigência: que tipo de personalidade é necessário ser para poder interferir na roda da história?”


Diante do qual ele mesmo conclui:

“Podemos dizer que três qualidades são decisivas para o político: paixão, sensação de responsabilidade e sentido das limitações.” (A Política como Vocação, Max Weber, Ed. UnB, 2003, Tradução de Maurício Tratgenberg.)

A paixão, no discurso de Weber, se refere à devoção a uma causa. Quanto a esta qualidade, a biografia do Deputado José Dirceu se encarrega de credenciá-lo, a ponto de haver fatos relativos à sua vida pessoal, que são de domínio público, que foram colocados a serviço da redemocratização do Brasil e da luta ideológica dos movimentos de esquerda.

A sensação de responsabilidade diz respeito à consciência de que de todos os atos podem advir as mais variadas conseqüências, e que sejam elas boas ou más, controláveis ou imprevisíveis, a responsabilidade pelas mesmas recai e é de antemão assumida por quem praticou o referido ato. Neste ponto, parece nítido o comprometimento do Deputado José Dirceu com seus deveres, tanto que ele não só se afastou de suas funções oficiais junto ao Governo para responder pelos seus atos, como tem repetido que quer ser julgado pelos seus erros políticos.

Faltou, contudo, sentido das limitações, compreensão de que há barreiras éticas que não se pode romper impunemente. Isto se aplica a todos os políticos, e no contexto sócio-cultural brasileiro, principalmente aos membros desta Casa. Exige-se de toda autoridade conduta moral ilibada, sejam em seus atos, palavras, relacionamentos ou negócios. Quanto maior o cargo ocupado maiores serão as cobranças, consideradas tão extensas quanto as responsabilidades. Uma vez alçado à condição de Deputado Federal o parlamentar tem o dever moral e legal de honrar a posição ocupada pela importância do que ela representa, devendo manter obrigatoriamente credibilidade inatacável perante o público. Do contrário sua conduta servirá de achincalhe para a reputação dos demais parlamentares contribuindo para o demérito da honrada atividade política.

A construção de um nome, de um trabalho digno leva anos ou até mesmo uma vida para se realizar. Malgrado um simples deslize, por menor que seja, gera mácula destruindo o bom nome bem como a honradez daquele que errou.

Na maior parte das vezes, isto repercute negativamente, atingindo seus pares e, em última análise, o próprio parlamento, o que dissemina no seio da sociedade o descrédito das instituições democráticas e a desesperança, muito embora ainda acreditemos que a “grande esperança”, aquela que deveria vencer o medo, tenha sido frustrada, mas não destruída.

As constatações do italiano Giovani Sartori que se seguem, parecem relatar este cenário no qual estamos atuando:

“(…) E em muitos países a desilusão e a desconfiança chegaram hoje a um crescendo de frustração, raiva e, por fim, à completa rejeição da política. Finalmente, estamos confrontados com um surto de antipolítica, o que poderíamos chamar de política da antipolítica.

O que aconteceu? Há uma variedade de explicações para essa rejeição. (…) Mas a melhor explicação isolada é, no meu entender, a corrupção política. É verdade que a atividade política nunca foi, e provavelmente nunca será, imaculada; a corrupção nessa área não é nova, mas nos últimos anos atingiu dimensões sem precedentes, chegando ao ponto de corromper a própria política.” (Giovanni Sartori in Como mudam as Constituições, Ed. UNB, 1996, Tradução de Sérgo Bath – Comparative constitucional engineering). (grifamos)


Poucas vezes, os parlamentares foram tão aclamados como indivíduos privilegiados e gozadores das mais variadas regalias. Cabe lembrar que, em contrapartida, somos homens e mulheres sobre os quais pesam deveres éticos e morais que não são exigidos do homem comum.

Ao mencionarmos os deveres que estes limites nos impõem, constatamos que faltou ao Deputado José Dirceu reconhecer que não era eticamente aceitável que ele tivesse facultado acesso privilegiado a pessoas como o empresário Marcos Valério.

Além disso, não é eticamente concebível e muito menos crível que um parlamentar com tamanho poder de decisão e capacidade de articulação em seu partido e no governo tenha permitido que o maior esquema de corrupção do sistema político pelo sistema econômico de que o país tem notícia, tenha sido idealizado e praticado por correligionários seus e pessoas de seu relacionamento sem que ele soubesse, controlasse e coibisse.

Ora, admitir que o Deputado José Dirceu não conhecia as minúcias deste esquema, significa que ele não seria mais do que uma embalagem sem conteúdo. Seu papel na articulação dos acordos político-partidários se resumiria ao de uma estampa de poder vazia. Enfim, estaríamos comparando as atitudes do Deputado José Dirceu aos gestos de um fantoche sem controle dos próprios movimentos, característica que não se afina com o seu histórico de participação ativa nas decisões fundamentais do PT.

No caso presente, por cumplicidade comissiva ou omissíva, em meio à ação de coordenação política do governo, a engenharia política arquitetada e conduzida sob o comando do ex-Chefe da Casa Civil, por quase dois anos, ideou e construiu o que vulgarmente, nos escaninhos do Congresso, se rotulou de "governabilidade do amor remunerado" — sobre a qual se expandiu a base de sustentação do Governo na Câmara Federal.

Testemunhas afirmam, e os fatos convergem nesse sentido, que a estratégia espúria era executada pelo Sr. Delúbio Soares (Tesoureiro do PT) e pelo Sr. Sílvio Pereira (Secretário-Geral) e alguns outros da intimidade palaciana, da cúpula partidária ou apenas da confiança do Representado, ou do Presidente do PT.

Pouco importa, nada convencem os protestos escapistas de desconhecimento dos fatos e das ações subalternas, transferidos invariavelmente à responsabilidade de outros nomes; dada a relevância dos poderes de que se achava investido o titular da Casa Civil e o nível ou extensão das informações privilegiadas de que dispõe, afigura-se inverossímil e pueril a apregoada inocência e alheamento aos fatos.

Diante desse conjunto tão expressivo de evidências, que no campo da Ética e do Decoro Parlamentar constituem-se em provas contundentes de desprezo do Deputado José Dirceu pelo sentido de limitação que deve pautar a atuação de um mandatário público, sua cassação se impõe como meio de restaurar a dignidade e a credibilidade desta Casa.

Há um forte equívoco quando se afirma que a arena própria para discussão e julgamento dos erros políticos é somente o pleito eleitoral, ele pode ser a principal, mas não a única. Dependendo da extensão e gravidade deste “erro”, ele se torna passível de análise e julgamento aqui, na Casa do Povo. É aqui que, utilizando um termo do constitucionalista Ferdinand Lassale, “os fatores reais de poder” se correlacionam, que o processo político se realiza diariamente, devendo estar imune a influências deletérias como a exercida por este esquema de repasse de recursos a parlamentares.

Os ditos acordos políticos realizados entre alguns partidos políticos e o Partido dos Trabalhadores sob os auspícios do Deputado José Dirceu, seu Presidente à época, tinham um forte viés econômico. Tratava-se de uma aliança política que envolvia a participação dos partidos na definição das diretrizes estratégicas de governo, mas muito mais do que isso, envolvia um esquema de patrocínio de despesas de campanha e de incentivos financeiros à fidelidade no Parlamento que retiram do Poder Legislativo a autonomia e isenção necessárias para o exercício de suas atividades típicas.

A verdade que insiste em lançar luzes sobre toda penumbra na qual estes acordos foram firmados e na forma de sua operacionalização, mostra que seja como autor ou articulador, a conduta do Deputado José Dirceu foi capaz de fraudar o regular andamento dos trabalhos desta Casa, influenciando em suas deliberações e votações.

Ante o exposto, pelos fatos e direito apresentados, concluímos nosso voto no sentido da procedência da Representação nº 38/2005, recomendando a aplicação da penalidade de perda de mandato, nos termos previstos no art. 55, II e § 1º da Constituição Federal, combinado com os arts. 240 e 244 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e com o art. 4º, IV, do Código de Ética e Decoro Parlamentar, ao Deputado José Dirceu, nos termos do projeto de resolução ora anexado.

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