A lei do jogo

O esporte também tem de seguir o devido processo legal

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16 de outubro de 2005, 6h00

Por duas vezes o advogado Carlos Miguel Aidar esteve na iminência de assumir a pasta do esporte no governo federal. Nas duas vezes teve de ceder o lugar para um craque do futebol. Na primeira, o presidente Fernando Collor o convidou mas nomeou o ex-jogador Zico para a Secretaria Especial de Esporte que acabara de criar. Na segunda, Fernando Henrique Cardoso também fez chegar a ele um convite, mas chamou Pelé para o recém-criado posto de ministro do Esporte.

Carlos Miguel não virou ministro, mas nem por isso deixou de influir no esporte, tanto em seu lado político quanto no jurídico. Foi ele o cérebro atuante na elaboração das principais leis da matéria nos últimos anos. Desde a Lei Zico (Lei 8.672/1993), passando pela Lei Pelé (Lei 9.615/1998) que a substituiu, e chegando ao Estatuto do Torcedor (Lei 10.673/2003). “Só não participei diretamente da elaboração do Código Brasileiro de Justiça Desportiva”, diz o advogado.

É com a autoridade de especialista em legislação esportiva e em Direito Civil que ele garante o direito de o torcedor ser indenizado pelos prejuízos sofridos com as fraudes dos jogos do Campeonato Brasileiro de futebol promovidas pelo árbitro Edílson Pereira de Carvalho. “É um caso claro de dano moral e material”, diz Aidar. “Tanto o torcedor que foi ao estádio, como o que pagou pay-per-view para ver os jogos na televisão têm direito”. Da mesma forma, os clubes que se sentiram prejudicados poderiam acionar a Confederação Brasileira de Futebol na Justiça para serem ressarcidos. “Só não fazem isso porque o poder da CBF é muito grande”, diz.

Nesta entrevista à Consultor Jurídico, Aidar fala ainda de como funciona a Justiça Desportiva, das relações trabalhistas dos jogadores de futebol e, a todo momento, de legislação esportiva. “Tivemos uma grande vitória em 1988 quando conseguimos colocar o esporte como matéria constitucional”. E cita o artigo 217: “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais como direito de cada um”.

A paixão pelas leis e pelo jogo político colocaram Aidar na presidência do São Paulo Futebol Clube e da seccional paulista da Ordem dos Advogados. Mesmo sem cargo formal na OAB-SP, continua sendo liderança respeitada da advocacia paulista. A um ano das próximas eleições da seccional, ele garante que não é candidato, mas está atento ao desenrolar dos acontecimentos. “Quando o quadro estiver mais definido, vou apoiar um candidato”. Que pode muito bem ser de oposição: “Se as oposições se unirem, não tem para ninguém”, diz ele.

Participaram da entrevista o diretor de redação Márcio Chaer, o editor executivo Maurício Cardoso, o editor Rodrigo Haidar e os repórteres Maria Fernanda Erdelyi e Leonardo Fuhrmann.

Leia a entrevista

ConJur — No caso da anulação das partidas do Campeonato Brasileiro que foram fraudadas pelo árbitro Edílson Pereira de Carvalho, cabe um pedido de indenização por danos morais para os torcedores?

Carlos Miguel Aidar — Eu não tenho a menor dúvida. Nenhum clube vai processar a CBF, porque aí é um problema de temor reverencial, mas o torcedor pode processar a CBF pelos danos materiais das partidas anuladas e pelos danos morais que ele sofreu. Não é o dano moral puro. É o dano moral decorrente da existência concomitante do dano material. Qualquer torcedor pode procurar o Juizado Especial Cível e pedir indenização à CBF. Só precisa provar que foi ao jogo.

ConJur —E o torcedor que não foi ao estádio, tem algum direito a reclamar?

Carlos Miguel Aidar — O comprador do pay-per-view com certeza também tem direito a indenização por dano material, porque pagou por um evento que não valeu. Ele tem direito à reposição do produto que comprou. Se é a emissora de TV ou a CBF que vai pagar é outra briga jurídica, porque no Juizado Especial não existe a denunciação. Você elege um réu e esse réu não pode chamar o outro. Pode até satisfazer a obrigação e depois acionar de regresso o outro. Vai ser muito interessante essa discussão.

ConJur — E o direito difuso?

Carlos Miguel Aidar — Uma entidade corporativa ou uma entidade preservadora de relações de consumo, como o Procon ou o Idec, teriam de entrar com uma ação indenizatória. Não sei se isto vai acontecer. Sei que três torcedores paulistas, com um advogado de São Paulo, entraram com uma ação no Rio para anular a decisão do Luiz Zveiter [presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, da CBF, que anulou as 11 partidas sob suspeita do Campeonato Brasileiro].

ConJur — O que eles alegaram?

Carlos Miguel Aidar — Argumentaram que não houve o devido processo legal, que a instrução foi sumária, que a decisão foi monocrática. Alegaram também que o Zveiter não poderia, como desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, exercer outra atividade, senão a de magistério. O inciso primeiro, parágrafo primeiro do artigo 95 da Constituição dispõe que o magistrado só pode ter uma outra atividade — apenas mais uma e tem de ser de magistério. O Zveiter tem outra atividade no STJD [Superior Tribunal de Justiça Desportiva]. Ele já foi questionado por isso no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ganhou.


ConJur — O presidente do STJD decide anular 11 jogos do Campeonato Brasileiro numa manhã de domingo e está decidido. É assim que funciona a Justiça Esportiva?

Carlos Miguel Aidar — Foi a melhor solução possível. A outra solução era simplesmente anular o campeonato. Aí ficaríamos todos nós sem futebol no domingo. Prejudicou mais uns do que outros? Não tenho a menor dúvida, mas isso é contingência. O sujeito [Edílson Pereira de Carvalho, árbitro de futebol que confessou ter fraudado jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol] é bandido. Declara e assina depoimento na Polícia Federal, diz que recebeu dinheiro para fazer a armação de esquema de aposta na internet, falava com o cidadão, pedia mais dinheiro. Se ele mexeu ou não mexeu na partida não importa, porque tudo é interpretação subjetiva. Não existe recurso tecnológico no futebol para tirar dúvida. Tira-teima só funciona na televisão.

ConJur — A decisão do presidente do STJD tem fundamento jurídico?

Carlos Miguel Aidar — Não, não tem fundamento jurídico. Tem fundamento desportivo só. O que deveria ser feito? É o que vai ser feito em São Paulo. O Marco Polo del Nero, presidente da Federação Paulista de Futebol, me ligou: “Carlos Miguel, me ajuda aqui. O que você acha? Dá a sua opinião”. Falei: “Marco, não pode fazer o que o Luiz Zveiter [presidente do STJD] fez: tomar para si a decisão isoladamente”. Tem de instaurar um procedimento e mandar para a comissão de arbitragem. A comissão de arbitragem faz a instrução sumária e manda um parecer para o presidente da Federação, que encaminha ao TJD. O presidente do Tribunal distribui para a Câmara, que é o primeiro grau, a Câmara julga e decide. Deixa todo mundo recorrer, o caso vem para o Tribunal Pleno e o Pleno julga. Acabou. Ou seja, faz o devido processo legal, que não houve na STJD.

ConJur — A Justiça Desportiva não tem nenhuma regra que obrigue a seguir esse trâmite legal.

Carlos Miguel Aidar — Tem, é assegurado o contraditório. O estatuto do torcedor fala da relação com a Justiça Desportiva:

[lendo] “É direito do torcedor que os órgãos da Justiça Desportiva observem os princípios da impessoalidade, da moralidade, da celeridade, da publicidade e da independência. As decisões proferidas pelos órgãos da Justiça Desportiva devem ser motivadas e ter a mesma publicidade que as decisões dos tribunais federais. Não correm em segredo de justiça os processos em curso perante a Justiça Desportiva. Aí vem o Código Brasileiro da Justiça Desportiva que assegura o amplo direito de defesa e do contraditório. “O processo Desportivo obedece, ademais, ao princípio constitucional do devido processo legal colhido no artigo 5, inciso 54 da Constituição Federal, nela compreendendo o direito a não ser acusado sem conhecer a acusação, a citação para se defender e produzir prova, a igualdade, a indeclinabilidade da prestação jurisdicional contraditória, defesa plena e aos meios recursais”. Então, obedece os mesmos princípios da Constituição brasileira.

ConJur — Nesse caso o direito de defesa foi zero.

Carlos Miguel Aidar — Foi zero. Como o presidente do STJD decidiu unilateralmente, alguns clubes disseram que vão recorrer. Só que o presidente do tribunal já adiantou que o recurso não vai adiantar nada, porque ele é quem vai decidir. O Zveiter é um ditador, é a personalidade dele. Ele decidiu que não cabe recurso.

ConJur — Depois disso caberia recurso à Justiça comum?

Carlos Miguel Aidar — Cabe, mas ninguém vai fazer isso com medo de ser punido pela Federação Internacional. Na verdade existe um sistema internacional que se sobrepõe à Constituição brasileira. À brasileira, à americana, à russa, a qualquer Constituição de qualquer país do mundo. O estatuto da Fifa, que é a entidade internacional que rege o futebol, tem um dispositivo que prevê a desfiliação da entidade prática, (este é o nome técnico que se dá ao clube, federação e confederação) que buscar o Poder Judiciário para fazer valer os direitos que não foram contemplados no âmbito esportivo. Então imagina o que pode acontecer: um clube tem um problema com a federação e recorre ao Judiciário para questionar. A entidade internacional simplesmente tira este clube de atividade.

ConJur — Quais as conseqüências deste ato?

Carlos Miguel Aidar — Você mata o clube, o time, o atleta de uma modalidade individual. Ele não terá a menor chance de competir contra outra entidade filiada, fica excluído de toda competição. E os atletas que estão sob contrato de trabalho profissional com o clube ficam livres para se transferir para onde quiser. É muito forte o poder de uma Fifa, de uma FIA [Federação Internacional de Automobilismo], de uma Fiba [Federação Internacional de Basquete], de uma Iaaf [Federação Internacional de Atletismo].


ConJur — Se a Justiça comum tiver alguma decisão em contrário, o que acontece?

Carlos Miguel Aidar — O clube pode fazer prevalecer a decisão no âmbito brasileiro, mas está sujeito a uma punição de caráter internacional que a Justiça brasileira não é competente para apreciar.

ConJur — O clube fica sem ter onde competir.

Carlos Miguel Aidar — Existiu um time na Colômbia, na década de 1950, o Millonarios de Bogotá, que era um verdadeiro dream team do futebol. Eles contrataram os maiores jogadores de futebol do mundo, como os argentinos Di Stefano, Pedernera e Nestor Rossi. Montaram uma seleção do mundo. Só que não conseguiram se filiar à Fifa. Faziam exibições pelo mundo inteiro,

mas não podiam disputar campeonatos. E mais, se um clube organizado jogasse um amistoso com esse Millonarios de Bogotá, era punido também pela Fifa. É impressionante a força desse sistema.

ConJur — A Justiça Desportiva na verdade tem um funcionamento bem diferente da Justiça comum.

Carlos Miguel Aidar — A Justiça Desportiva foi institucionalizada na Constituição de 1988. Eu cito o artigo 217, incisos 1 a 4: “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados: a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento”. Aí diz no parágrafo primeiro: “O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei”. E diz o parágrafo segundo: “A Justiça Desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final”. Então, o que acontece? Ninguém pode ir ao Poder Judiciário antes de esgotar a instancia desportiva, que tem 60 dias para decidir.

ConJur — Como é que funciona o processo esportivo?

Carlos Miguel Aidar — Terminou a partida, o árbitro preenche a chamada súmula, onde descreve os detalhes e ocorrências do jogo: times, local do jogo, horário, árbitro, auxiliares de arbitragem, equipes, registro dos jogadores. E as ocorrências: quem fez gol, foi advertido com cartão amarelo, foi expulso. Essa súmula é o espelho escrito de uma partida. O árbitro tem prazo de quatro horas depois do jogo para entregá-la na secretaria da federação. Da secretaria, a súmula vai para o registro, valida os pontos, as partidas, os gols, a artilharia, os cartões amarelos e vermelhos. Depois volta para um auditor que anota as ocorrências que devem ser levadas ao Tribunal Desportivo. Chega no Tribunal, é autuado, o procurador denuncia. Aí marca uma sessão de julgamento. Na sessão de julgamento, você leva o vídeo, leva testemunhas, leva o jogador que recebeu a falta. Você mostra a cena para os julgadores, ouve as testemunhas. Ela tem o princípio da oralidade, celeridade, informalidade.

ConJur — Por que o STJD fica no Rio de Janeiro e todos os juízes do tribunal são do Rio? Os times do Rio não acabam favorecidos?

Carlos Miguel Aidar — Não convêm por uma questão de economia e praticidade que os juízes estejam fora da sede do Tribunal. Mas num Tribunal como o da CBF, que tem interesse nacional, seria razoável haver juízes de fora do Rio de Janeiro para que não sofram pela influência da sua paixão particular. Porque todo mundo que está lá é apaixonado por futebol. A composição do Tribunal está prevista aqui no Estatuto: “O Superior Tribunal de Justiça Desportiva e os Tribunais de Justiça Desportiva serão compostos por nove membros, dois indicados pela CBF, dois indicados pelos clubes da primeira divisão, dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil, um representante dos árbitros e dois representantes dos atletas”.

ConJur — Esses representantes precisam ter formação jurídica?

Carlos Miguel Aidar — Não precisa ter formação jurídica, mas na maioria são advogados, promotores, juízes. É o caso do Zveiter, que é presidente do STJD e é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio. O vice-presidente do STJD é o Rubens Approbato Machado, que é advogado em São Paulo, ex-presidente da Ordem de São Paulo e ex-presidente do Conselho Federal da Ordem.

ConJur — Qual é o alcance da Justiça Desportiva?

Carlos Miguel Aidar — Até a Constituição de 1988, o esporte não havia sido tratado do ponto de vista constitucional. Na Constituição de 1988 tem o artigo 217, que cita como dever do Estado fomentar as práticas desportivas formais e não formais como benefício ao cidadão. Esse artigo foi fruto de um trabalho do qual eu e mais um monte de gente participou. Foi logo em seguida a criação do Clube dos 13 [grupo que reuniu os principais clubes de futebol do país] em 1987. Nós, dirigentes de futebol, fizemos lobby no Congresso Constituinte. Íamos lá e levávamos atletas. Deu certo porque não havia um deputado, um senador que não quisesse tirar uma foto ao lado de um jogador.


ConJur — Quem era o Ronaldinho da época?

Carlos Miguel Aidar — Nós levamos o Pelé, que não jogava mais. Era a seleção brasileira da época. Eu levei o pessoal do São Paulo, o Careca, o Oscar. Valdir Peres, Renato, Zé Sergio. Então conseguimos inserir um artigo na Constituição. Foi uma grande vitória, porque deu autonomia de organização e funcionamento aos clubes. Até então vigorava a legislação do regime militar. Havia um modelo único de organização. Tanto faz que fosse o Corinthians, que tem a maior torcida de São Paulo, ou o Asa de Arapiraca. Todo mundo tinha que se organizar igual e tinha a mão do Estado a reger a relação. Então nós conseguimos essa autonomia. Em função dela era necessário fazer uma nova lei, e aí veio a chamada Lei Zico. Montamos um projeto de lei e entregamos para o Leopoldo Collor de Mello, irmão do futuro presidente, já eleito mas ainda não empossado, Fernando Collor. Mostramos a importância do esporte como veículo de integração social, inclusive de marketing para o próprio governo. O Leopoldo vendeu para o presidente a idéia de desvincular o esporte do Ministério da Educação e criar uma Secretaria Especial de Esportes. O Zico foi o primeiro secretário de Esportes do Brasil, só que não conseguiu aprovar aquele projeto de lei, que acabaria levando o seu nome.

ConJur — Foi aí que se autorizou o bingo no Brasil.

Carlos Miguel Aidar — Foi nesse momento, em 1993, que se legalizou a atividade de bingo no Brasil. Então, nós tínhamos a Constituição Federal que dava autonomia de organização e funcionamento e nós tínhamos uma nova lei do esporte. Com isso cada clube procurou seguir o seu modelo societário, como se organizar, como trabalhar. Quando o Fernando Henrique assumiu, ele extinguiu a Secretaria Especial de Esportes e criou o Ministério Extraordinário dos Esportes e chamou o Pelé para ministro.

ConJur — E a Lei Zico virou Lei Pelé.

Carlos Miguel — Um dia o Pelé me chamou e disse: “Eu preciso deixar uma marca no ministério. Eu quero acabar com o passe. Faz um projeto para mim”. Aí eu chamei dois advogados, um de São Paulo e um do Rio, e a gente escreveu a Lei Pelé. O que era a Lei Pelé? Era uma cópia da Lei Zico com modificações para adequação do modelo de gestão profissional. Escrevi a lei sem nenhuma pretensão de querer ser constitucionalista porque não é o meu negócio. Aí fomos a uma pessoa em Brasília, o Gilmar Ferreira Mendes [hoje ministro do Supremo Tribunal Federal], que era procurador lotado no gabinete civil da Presidência da República. Ele era encarregado de dar a roupagem jurídica às medidas provisórias para adequá-las ao princípio constitucional. Então, o Gilmar ficou um mês e pouco trabalhando em cima disso e finalmente ficou pronto o anteprojeto. O próprio Pelé foi ao Congresso Nacional e fez lobby pessoalmente. E aí nasceu a chamada Lei Pelé, vigente até hoje. E acabou o passe do jogador de futebol.

ConJur — O que é o passe?

Carlos Miguel Aidar — O passe é um vinculo esportivo não trabalhista que prendia o atleta ao clube, mesmo depois de encerrado ou rescindido o contrato de trabalho. Um absurdo. O passe é o chamado atestado liberatório que vale mesmo sem contrato de trabalho. Isso não fazia sentido e foi derrubado.

ConJur — E como ficou esta questão?

Carlos Miguel Aidar — Com as modificações na Lei Pelé, criou-se uma coisa chamada indenização de formação. Ou seja, o clube tem o direito de assinar o primeiro contrato com o atleta que ele formou. Mas se o jogador não assinar com este clube e quiser assinar com outro, este vai ter de indenizar o outro pelo investimento feito na formação do jogador. Tem uma fórmula matemática para calcular isso.

ConJur — Foi o que aconteceu na transferência do Ronaldinho Gaúcho do Grêmio para o Paris Saint-Germain?

Carlos Miguel Aidar — Isso. O Ronaldinho não quis continuar no Grêmio, procurou o time de Paris que fez um contrato com ele, mas teve que pagar uma indenização ao Grêmio pelo trabalho e pelo investimento que fez na formação do jogador. Isso está na lei.

ConJur — O problema do passe é que deixava o atleta na condição de trabalhador escravo. Mas hoje os clubes reclamam que o jogador não é mais patrimônio do clube.

Carlos Miguel Aidar — Mas não pode ser propriedade. Isso já tem julgado internacional, e aqui no Brasil. O caso do Claudinho, da Ponte Preta, que foi representado por um advogado especialista nessa área, chamado Heraldo Panhoca. Foi ele que fez o primeiro caso Bosman [Jean Marc Bosman, jogador de futebol belga que ganhou na Justiça o direito de se transferir livremente de um clube para outro pondo fim ao passe na Europa] do Brasil.

ConJur — E como se dá a transferência de um jogador de um clube para outro, hoje?

Carlos Miguel Aidar — Hoje tem contrato de trabalho e multa indenizatória pela rescisão antecipada do contrato. Pelo Código Civil a indenização não pode superar o valor da obrigação principal. Abriu-se uma exceção. Na legislação esportiva, a indenização pode sim superar o valor da obrigação principal. Então as multas são estabelecidas em função daquilo que as partes acordarem. Se a transferência for internacional não tem limite. Assinou o contrato, acabou, vale o que está escrito.


ConJur — Foi essa a discussão no caso Robinho?

Carlos Miguel Aidar — Exatamente. Era uma indenização imensa, só que o Robinho tinha direito a 40% e o Santos tinha direito a 60% do valor da indenização. O Real Madrid depositou o correspondente a 60% referente ao clube, mas o Santos, para valorizar ainda mais, disse: “não, precisa depositar os 100%, eu pago os 40% para ele”. Mas no fim fizeram acordo porque a pressão é irresistível. Não temos condição econômica de concorrer com o futebol europeu.

ConJur — Hoje os jogadores ganham muito mais pelo contrato de imagem do que pelo contrato de trabalho. Como funciona isso?

Carlos Miguel Aidar — O contrato de trabalho é onerado com todos os encargos securitários e previdenciários. O contrato de imagem não implica nesse tipo de pagamento, porque não é um contrato de trabalho. É o que se chama de contrato de cessão onerosa para exploração de imagem. Então o atleta cede a imagem para o clube e o clube explora essa imagem comercialmente. Na prática, os clubes começaram a por 90% da remuneração na imagem e 10% no contrato de trabalho. A Receita Federal e o INSS entenderam que o contrato de imagem é uma forma disfarçada de salário e começaram a autuar os clubes.

ConJur — Mas a relação de emprego se dá pelo contrato de trabalho ou pelo contrato de imagem?

Carlos Miguel Aidar — A lei fala que o não pagamento de três meses consecutivos de salário implica na rescisão do contrato do jogador. A advogada Gislaine Nunes levantou a tese de que contrato de imagem é salário disfarçado. Sendo salário e estando três meses atrasados gera o mesmo direito. E começou a obter um monte de liminar na Justiça do Trabalho, ganhou até no STJ.

ConJur — O senhor concorda com esta tese?

Carlos Miguel Aidar — Não, se respeitar um limite. A Fundação Getulio Vargas fez um estudo e chegou à conclusão de que a imagem não pode superar 30%, eventualmente 40% do salário. O contrato principal é o contrato de trabalho. Se não tiver o contrato de trabalho, jamais vai ter a imagem agregada ao contrato de trabalho. O principal é o trabalho, a imagem é um acessório. Quando você inverte, faz a imagem principal e o trabalho secundário em termos de valor de remuneração, você está literalmente burlando a lei.

ConJur — Como é vista a punição esportiva do ponto de vista trabalhista?

Carlos Miguel Aidar — Há um conflito de legislação entre o código esportivo, que prevê punições de até dois anos de suspensão, com a legislação trabalhista, em que a suspensão do contrato por mais de 30 dias implica em rescisão indireta do contrato de trabalho. Esse conflito faz com que seja dado efeito suspensivo aos recursos. O sujeito é punido por dois anos pela justiça esportiva, dá-se o efeito suspensivo, ele já cumpriu não sei quanto meses de pena, e volta a jogar até julgar o mérito.

ConJur — Está é uma das questões do futebol que mais tem causado polêmica na Justiça do Trabalho.

Carlos Miguel Aidar — Sem dúvida, mas fora do âmbito trabalhista a grande discussão hoje é sobre a autonomia de organização e funcionamento a que se refere à Constituição Federal, no inciso 1 do artigo 217, e ao novo Código Civil, nos artigos 58 e 59. Pelo novo Código Civil, a competência para uma série de atos que antes era do conselho deliberativo passou para a assembléia geral: reformar estatuto, eleger presidente, aprovar contas, fazer orçamento. Eu comecei a defender os clubes nesse aspecto, porque sempre sustentei a tese de que esse dispositivo do Código Civil não se aplica às associações esportivas. Aí fiz o projeto de reforma do estatuto do Santos, sustentei isso na Justiça, e ganhei. Fiz também para o Palmeiras e para o São Paulo.

ConJur — Para o Corinthians não?

Carlos Miguel Aidar — No Corinthians tem um ditador. O Dualib está lá e não sai.

ConJur — E por que não sai?

Carlos Miguel Aidar — Pela lei antiga, só cabia uma reeleição e o mandato tinha no máximo três anos. Com a autonomia de organização e funcionamento dada pela nova Constituição, cada clube reformou o estatuto do jeito que quis. Tem clube que não tem limite de reeleição. Caso do Palmeiras e do Corinthians.

ConJur — No São Paulo tem limite?

Carlos Miguel Aidar — É uma reeleição só e o mandato é de dois anos.

ConJur — E quem assume a responsabilidade quando os torcedores fazem quebra-quebra na avenida Paulista?

Carlos Miguel Aidar — Quem assume a responsabilidade da violência que existe na rua? Não é um problema meu, é um problema de segurança pública. E tem essa porcaria desse desarmamento aí. Eu sou absolutamente a favor do desarmamento, depois que desarmar o bandido. Mas antes de desarmar o bandido não. Eu quero ter guardado um revólver em casa. Pelo menos, me dá um conforto moral. Nunca usei, não sei atirar, nem sei se funciona ainda, mas eu quero ter aquela arma em casa enquanto o bandido estiver armado. Então é isso. Quem é que faz segurança pública?


ConJur — Mas é justo que a coletividade fique com os custos e os clubes e os jogadores fiquem com os lucros?

Carlos Miguel Aidar — O custo fica para o próprio contribuinte. Quem é que vai pagar esse custo? O clube que é dono do estádio? Ele construiu o estádio no local certo? Era possível? Era. Está dentro do zoneamento? Está. Ou você acaba com o esporte ou o tira o estádio e vira um clube social. Só tem um jeito de mudar isso. É pegar o torcedor que não respeita a lei. Agora foi criado o Juizado Especial Criminal dentro do Morumbi. O juiz de Direito, que é o diretor do Fórum da Barra Funda, fica lá de plantão, tem também o promotor, o delegado, o carcereiro, o escrivão. Prende, julga e apena na hora. O Estatuto do Torcedor tem a pena que proíbe o fulano de ir aos jogos. Então, no dia do jogo, ele tem que se apresentar na delegacia de polícia uma hora antes do jogo começar e fica até uma hora depois que acaba.

ConJur — E essa responsabilização dos clubes pelos atos de seus torcedores dentro dos estádios.

Carlos Miguel Aidar — Está absolutamente correto. É a historia do cara que joga lata de cerveja no campo, joga sapato, pedra, pilha do rádio. Machuca. Aí interdita o estádio por um período e o time vai ter de jogar em outro lugar, com portão fechado. É desse jeito que você pega o torcedor delinqüente. Do jeito que foram pegos os vândalos na Europa. Com monitoramento. Pelo Estatuto do Torcedor é obrigado instalar câmeras no estádio para monitorar a torcida. Com isso, a Polícia tem uma quantidade de informação muito grande. Ela sabe quem é o baderneiro. No próximo jogo, localiza o cara, vai lá e pega.

ConJur — O Palmeiras entrou com ação pedindo indenização para os torcedores que provocaram a interdição do seu estádio.

Carlos Miguel Aidar — É valido, porque o Palmeiras foi punido financeiramente, esportivamente por conta de meia dúzia de torcedores irresponsáveis. Quando foram identificados os torcedores, o Palmeiras foi buscar a indenização. Eu pergunto: esses torcedores vão repetir isso? Nunca mais. Então, você começa a dar exemplos através da punição.

ConJur — Quem é o torcedor?

Carlos Miguel Aidar — A lei define que torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie, se associe ou acompanhe uma entidade ou modalidade esportiva. Então é torcedor tanto quem compra pay per view dos jogos, quem lê jornal, quem ouve as transmissões dos jogos pela TV ou pelo rádio, quanto quem é sócio do clube ou freqüenta o estádio.

ConJur — Quais os direitos do torcedor?

Carlos Miguel Aidar — Para todos os efeitos legais, o artigo 3º do Estatuto do Torcedor o equipara aos termos da lei 8.078, que é o Código de Defesa do Consumidor. A entidade responsável pela organização da competição, bem como entidade esportiva detentora do mando do jogo, são equiparados aos fornecedores. O torcedor é o consumidor do produto futebol. Tem um capítulo específico que cuida da relação com a arbitragem. Está no artigo 30: “É direito do torcedor que a arbitragem das competições esportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões”. Então, é uma relação de consumo que se estabelece por conta do Estatuto do Torcedor.

ConJur — Com essas alterações na legislação esportiva e também com a transformação do esporte em atividade econômica, estimou-se que haveria um incremento no mercado para o advogado da área esportiva. Aconteceu isso?

Carlos Miguel Aidar — Aconteceu. Há 20, 30 anos, havia o Valed Perry que era uma referência, o Álvaro Mello Filho que estava começando e mais dois ou três nomes. Todos estavam no Rio de Janeiro. Com o desenvolvimento do esporte, os clubes perceberam a necessidade de ter seus próprios departamentos jurídicos. Hoje todos os grandes escritórios, sem exceção, têm um grupo de Direito Esportivo. É uma equipe com alguém do societário, outro do trabalhista, do civil, do penal. O que é o Direito Esportivo? Só o Código Brasileiro de Justiça Desportiva é Direito Desportivo puro. O resto são os ramos do Direito aplicados ao esporte. Tem trabalho à vontade. Fora as defesas nos tribunais esportivos onde atua meia dúzia de advogados como o José Zanforlin, que é jornalista também. Já tem até o IBDD — Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, que é mais ou menos como a associação dos advogados para o esporte.

ConJur — O ex-ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto está atuando nesta área.

Carlos Miguel Aidar — Quando foi presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ele promoveu um seminário muito interessante sobre a evolução das relações de trabalho no âmbito esportivo. A partir daí, ele viu que isso é um campo fértil. E esta é uma área que tem pouca gente atuando.

ConJur — Mudando do futebol para a advocacia: o senhor é candidato à presidência da OAB de São Paulo?

Carlos Miguel Aidar — Não.

ConJur — Quem o senhor deve apoiar?

Carlos Miguel Aidar — Depende de saber se o [Luiz Flávio Borges] D’Urso vai sair candidato à reeleição. Na realidade, o que eu acho é o seguinte: o D’Urso está fazendo uma gestão muito boa para efeito externo, mas internamente, nas subsecções, o pessoal tem se queixado dele. O Conselho do D’Urso é um saco de gatos. São quatro correntes distintas que se uniram para ganhar a eleição. É o poder pelo poder. Não tinha proposta de governo, tinha proposta de poder. Tanto isso é verdade que há uma queixa generalizada nas subsecções.

ConJur — E a oposição, que chance tem?

Carlos Miguel Aidar — Se as oposições se unirem não tem para o D’Urso, não tem para ninguém. Põe aí o Clito Fornacciari, Walter Uzzo, [Antônio Cláudio] Mariz [de Oliveira], Carlos Miguel, Rosana Chiavassa, Vitorino Antunes. Mas acho que é um pouco difícil unir as oposições, porque são coisas que não dão liga. Tem gente que é do óleo e tem gente que é da água. E água e óleo não se misturam.

ConJur — Acaba de sair um manifesto assinado por Alberto Rollo, Euro Bento Maciel, Cyro Kuzano, Roberto Ferreira e mais alguns. Qual a importância desse grupo?

Carlos Miguel Aidar — Tem o Aloísio [Lacerda Medeiros] também. Eu, da minha parte, não quero participar mais. Eu sei que a Rosana tem pretensões, sei que o Rui Fragoso tem pretensões. O D’Urso uma hora dizem que é candidato, outra hora dizem que ele não é candidato.

ConJur — Poderia ser também a Márcia Melaré [atual vice-presidente].

Carlos Miguel Aidar — Seria a primeira mulher, e ela conta com o apoio importante do Rubens Approbato [Machado], que é o pai dela. O Roberto Ferreira é um eterno candidato. Está sempre dizendo “não vou mais”, mas na hora H ele vai. Esse quadro deve começar a se definir lá para março, abril do ano que vem. Tem um pouco de chão pela frente. Até lá não me comprometo.

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