Liberalidade da lei

Empregada que se recusa a cumprir aviso prévio é indenizada

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16 de outubro de 2005, 6h01

A empregada doméstica se sentiu humilhada ao ser despedida pelo patrão e se recusou a cumprir o aviso prédio. Mesmo assim a Justiça do Trabalho mandou que o patrão a dispensasse de trabalhar e pagasse metade do valor correspondente ao período. A decisão é do juiz Grijalbo Fernandes Coutinho, da 19ª Vara do Trabalho de Brasília que condenou o patrão Aerson Santana de Andrade a pagar o correspondente a 50% do aviso prévio à empregada doméstica Maria da Glória Pereira. Cabe recurso.

O patrão alegou que a trabalhadora simplesmente se recusou a cumprir o aviso prévio, sem explicar o motivo. Ele chegou a publicar um edital de convocação no jornal Correios Brasiliense, mas a empregada não compareceu.

Em depoimento, Maria da Glória disse que soube de sua demissão por telefone. No dia seguinte, quando deveria retornar ao trabalho, conversou com o patrão na portaria do prédio, que a dispensou de cumprir o aviso prévio.

Um dia depois, Aerson Santana se arrependeu da decisão e a convidou a cumprir o aviso. Ela recusou o pedido “diante do clima criado após a comunicação da dispensa”.

O juiz entendeu que ambos contribuíram para que o aviso prévio não fosse cumprido. “O reclamado valeu-se da Lei. Desprezou, no entanto, a possível incompatibilidade na prestação laboral durante o período em que a empregada já sabia do seu destino”.

O juiz entendeu que “o caso concreto não pode ser resolvido pela letra fria do dispositivo legal que dispõe sobre o aviso prévio, sem tomar em consideração a realidade da prestação de serviços domésticos”. E tomou partido. “Sinceramente, quando avaliamos a postura da reclamante, temos que a sua atitude, ao se recusar a trabalhar durante o aviso prévio, sabendo que a partir daquele momento estaria convivendo pela última vez com as crianças que deve ter guardado afeto e carinho, é absolutamente normal (racional). Por outro lado, também não posso deixar de considerar o fato de que o reclamado, enquanto empregador, buscou cumprir a legislação trabalhista em sua exata literalidade”, entendeu o juiz.

Porém, por reconhecer a “responsabilidade parcial de cada um dos litigantes na ausência do cumprimento do aviso prévio (culpa recíproca), com base na eqüidade (CLT, artigo 8º)”, o juiz determinou ao patrão o pagamento do valor correspondente a 50% do aviso prévio, como indenização, atualizado a partir da época dos fatos.

Processo 00757-2005-019-10-00-0

Leia a íntegra da decisão

A T A D E A U D I Ê N C I A

PROCESSO: 00757 2005 019 10 00 0

RECLAMANTE: AERSON SANTANA DE ANDRADE

RECLAMADA: MARIA DA GLÓRIA PEREIRA

Aos trinta e um dias do mês de agosto do ano de 2005, perante a Eg. 19ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA DF, sob a direção do MM. Juiz do Trabalho Titular GRIJALBO FERNANDES COUTINHO, realizou se a audiência relativa ao processo identificado em epígrafe.

A audiência teve início às 17h34, momento em que foram apregoadas as partes.

Presentes os que assinam esta ata.

SENTENÇA

Dispensado o Relatório, na forma do artigo 852-I, da CLT.

FUNDAMENTOS

1- ROMPIMENTO DO CONTRATO – NÃO CUMPRIMENTO DO AVISO PRÉVIO – EFEITOS

A reclamante alega que foi admitida em 17 de julho de 2003, na função de empregada doméstica, mediante remuneração mensal de R$ 500,00 ( quinhentos ) reais, tendo sido dispensada, injustamente, em 18 de julho de 2005, com ausência de quitação das verbas rescisórias.

Defendendo-se, o reclamado, em síntese, aduz que a autora, ao tomar conhecimento da dispensa, no dia 17 de julho de 2005 ( no seu último dia de férias ), “se recusou a cumprir o aviso prévio, não obstante as tentativas que empreendeu para demovê-la da ação”, tendo, inclusive, publicando “Edital de Convocação” em jornal de grande circulação, sem sucesso, no entanto. Assegura que a autora não mais retornou ao emprego após o dia 17 de julho de 2005.O empregador trouxe aos autos os documentos de fls 21( notificação para cumprimento de aviso prévio), 22( aviso prévio do empregador, não assinado pela empregada) e 23 ( anúncio publicado no Jornal Correio Braziliense).

Em sua réplica ( fl 55), a reclamante afirma que foi dispensada do cumprimento do aviso prévio.

Ao prestar depoimento pessoal, a reclamante diz que foi comunicada da dispensa no dia 17 de julho de 2005, via contato telefônico. No dia seguinte ( 18 de julho de 2005), quando deveria retornar ao trabalho, conversou com o reclamado na portaria do prédio, ocasião em que foi dispensada do cumprimento do aviso prévio. Mas logo no dia 19 de julho de 2005, afirma a reclamante que o reclamado reviu decisão anterior e a convidou para cumprir o aviso prévio,proposta recusada diante do “clima criado após a comunicação da dispensa e o interesse do reclamado, na primeira ocasião, em dispensar a depoente do cumprimento do aviso prévio” ( fl 58 ).


O reclamado manteve a versão da defesa, sem que houvesse qualquer confissão ( fls 59/60).

A única testemunha ouvida, Rosângela de Sousa, declarou que foi contratada para substituir a reclamante no seu período de férias, durante uma semana ( de 11 a 18 de julho de 2005 ), assegurando, ainda, que a prestação de serviços teve continuidade diante do não comparecimento da reclamante ao trabalho a partir da referida data ( fl 60 ).

A prova dos autos revela que o reclamado dispensou a autora, tendo adotado várias medidas para que o aviso prévio fosse cumprido. A própria reclamante declarou que no dia 19 de julho de 2005,um dia depois do término do período de férias, recebeu a proposta de cumprimento do aviso prévio,a qual não foi aceita.

Há, ainda, clara demonstração patronal no sentido de que a reclamante retornasse ao local de trabalho para cumprir o aviso prévio ( fls 21/23).

Além do mais, a testemunha ouvida confirmou que a sua prestação de serviços estava programada para ser suspensa durante o período do cumprimento do aviso prévio, pela reclamante.

A dispensa obreira, num país de alarmante desemprego e de profunda crise social, deve, realmente, estabelecer um clima de insatisfação e de revolta, por parte da empregada, ainda mais pelos naturais laços que foram estabelecidos na prestação de serviços domésticos. No entanto, em tese, o empregador tem a opção de exigir o cumprimento do aviso prévio, por mais que a medida se revele inadequada nesse tipo de relação, tão próxima.

Na audiência instrutória, houve o reconhecimento de que a controvérsia, depois da apresentação da defesa e documentos, estava limitada ao aviso prévio, parcela que a reclamante pretendia receber. Ao final dos depoimentos, formulei a proposta de acordo, com a indicação da importância de R$ 200, 00 ( duzentos reais), havendo clara tendência, de sua aceitação, pelo reclamado, sobretudo após a manifestação de sua esposa, senhora gestante que estava presente naquele ato.A Advogada da autora, Dra Deborah Rodrigues Afonso, de maneira peremptória, não aceitou sequer discutir qualquer valor que não traduzisse a totalidade do aviso prévio ( R$ 500,00 ),afirmando, então, que preferia aguardar a presente decisão.

Formulei a proposta por vislumbrar que não obstante o conflito mais acirrado entre as partes ( numa relação doméstica é quase sempre assim, ao término do contrato), a reclamante, uma jovem trabalhadora, de olhar firme,segura, convicta de suas posições, tinha credenciais e bons serviços prestados à família do reclamado, especialmente aos filhos do casal.Isso quer dizer muito. A sua determinação elogiável não lhe permitiu que simplesmente cumprisse aviso prévio numa casa que permaneceu durante dois anos como se fosse o seu próprio lar.

Por outro lado, vislumbro a intenção do reclamado, ao lado de sua esposa, em cumprir a velha Consolidação das Leis do Trabalho e a Legislação aplicável às relações de trabalho desenvolvidas no âmbito doméstico. Casal de classe média, residente no Setor Cruzeiro, que deve enfrentar as mesmas dificuldades da imensa maioria do povo brasileiro,contratou uma jovem trabalhadora para auxiliar nos serviços domésticos,com o devido registro do ato na CTPS ( fls 21/23) , recolhimento da contribuição previdenciária( fls 27/53 ),concessão regular de férias ( fl 26), pagamento do 13º salário ( fl 24) e do saldo de salário em audiência ( fl 14), quando esta parcela sequer foi reivindicada, além de acautelar-se, inclusive de forma exagerada, quanto ao cumprimento do aviso prévio. Agiu, pois, o jovem casal do Cruzeiro, de forma correta, ao contrário de muitos dos ricos desta capital federal, que lesam os trabalhadores domésticos sem nenhum pudor,usando os valores pertencentes aos empregados super-explorados para a satisfação de suas vaidades pessoais, desde o passeio turístico ao velho mundo aos cuidados dedicados ao corpo e à aparência, cuja mente não é nada sã.

Enfim, estive na presença de partes dignas e honradas. A pequena divergência existente entre elas não as diminui enquanto pessoas cumpridoras de suas obrigações, merecedoras da minha admiração.

Talvez não tardará o tempo em que as futuras gerações questionarão como fomos capazes de, em pleno século XXI, explorar a mão-de-obra humana, dos nossos semelhantes, iguais em liberdade, para o desempenho de tarefas que eram exclusivamente nossas. A trabalhadora doméstica deixa a sua família para cuidar de outra, para criar os filhos que não seus, para suportar o mau humor dos patrões e para, muitas vezes, perder a sua referência de mundo, não tendo sequer acesso ao conhecimento que verdadeiramente liberta o ser humano. Lamentavelmente, alguns traços da velha escravidão estão presentes na relação de trabalho doméstica: do senhor da casa servido o tempo todo pelo trabalhador que lhe deve obediência e respeito.


Alguns, cinicamente rasgariam a infeliz frase: “o que tenho com isso, se posso pagar alguém para realizar as minhas tarefas domésticas”? No regime capitalista, é verdade, o dinheiro é a mola propulsora da mercantilização de quase tudo, ou como diz Caetano Veloso é “ a força da grana que ergue e destrói coisas belas” ( letra de Sampa ), não podendo jamais, porém, comprar a dignidade do mais humilde trabalhador.O mínimo de senso humanitário fará de qualquer um de nós sentir-se na pele do carrasco senhor da senzala moderna.

Também não posso desprezar a responsabilidade do Estado ao não oferecer trabalho digno e decente ao seu povo. Se fosse possível estabelecer uma economia de pleno emprego ou com pequena taxa de desemprego, o trabalho doméstico teria os dias contados em nosso país. Nos ditos países civilizados é insignificante a mão-de-obra remunerada utilizada em trabalho doméstico e, mesmo quando ocorre, não tem os laços de aprisionamento presentes aqui.

A escravidão na Grécia democrática era justificada até mesmo pelo espírito libertário político de um Aristóteles, a partir da falsa premissa de que havia necessidade de maior tempo disponível aos cidadãos ( os escravos não eram cidadãos) para que estes pudessem pensar o destino da pólis,aventurar-se no descobrimento da filosofia e para que cuidassem de tarefas menos desgastantes e mais voltadas para o desenvolvimento do intelecto. Nada justifica a escravidão. Ressalto, porém, que estamos falando de um modo de vida de dois mil e quatrocentos anos atrás.

Não estou afirmando que o serviço doméstico atual seja igual ao trabalho escravo, da Grécia e da Roma antiga ou do Africano no Brasil durante mais de três séculos,apesar de considerar que o elemento da disponibilidade ao “senhor e à sua família” ainda esteja presente nas relações desempenhadas no âmbito doméstico, além do respeito e à obediência cega ao patrão, tudo a nos envergonhar frente ao lema libertário de mais de dois séculos atrás da fantástica Revolução Francesa, aqui encampado pelo nosso bravo Tiradentes.

A modernidade, nessa seara, definitivamente, não chegou ao Brasil. A revolução da microeletrônica e outras maravilhas da era da cibernética são vistas em terras tupiniquins do mesmo modo e na mesma ocasião em que são apresentadas nas nações do primeiro mundo. As relações de trabalho mais democráticas, todavia, a nossa “nobreza” prefere não importar ou imitar porque diz ser a medida exageradamente dispendiosa e por demais contemplativa.

Faço tal registro para dizer que o caso concreto não pode ser resolvido pela letra fria do dispositivo legal que dispõe sobre o aviso prévio,sem tomar em consideração a realidade da prestação de serviços domésticos. Sinceramente, quando avaliamos a postura da reclamante, temos que a sua atitude, ao se recusar a trabalhar durante o aviso prévio, sabendo que a partir daquele momento estaria convivendo pela última vez com as crianças que deve ter guardado afeto e carinho, é absolutamente normal (racional). Por outro lado, também não posso deixar de considerar o fato de que o reclamado, enquanto empregador, buscou cumprir a legislação trabalhista em sua exata literalidade.

Ambos têm razão. Ambos contribuíram para que o aviso prévio não fosse cumprido.

O reclamado valeu-se da Lei.Desprezou, no entanto, a possível incompatibilidade na prestação laboral durante o período em que a empregada já sabia do seu destino. Há culpa recíproca.

A reclamante arrancou a força libertária da alma feminina humana trabalhadora para não admitir uma condição de labor por ela considerada humilhante, cuja reflexo desse admirável sentimento humano o legislador ainda não foi capaz de colocar no papel, mas que o juiz tem o dever de levá-lo em consideração, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal ( artigo 1º, inciso III).

Agiu a reclamante, naquele 18 de julho de 2005, pronta para defender a sua dignidade de trabalhadora, como se estivesse no 08 de março de 1857,celebrado como Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, muito embora a máquina ideológica busque deturpar o fato histórico como se fosse o dia de qualquer mulher receber rosas, presentes e outras futilidades que não se ajustam às guerreiras,escamoteando, assim, a lembrança dos muitos corpos queimados e do número de 130 ( cento e trinta) cadáveres das operárias têxteis depois da reação às humilhantes condições de trabalho ditadas pelos patrões de Nova Iorque, naquele 08 de março triste, mas histórico. O Dia 08 de Março pertence apenas à Mulher Trabalhadora.Jamais pode servir para se prestar homenagem contra quem a operária lutou, do ponto de vista ideológico e físico,até à morte.

Reconhecendo a responsabilidade parcial de cada um dos litigantes na ausência do cumprimento do aviso prévio ( culpa recíproca), com base na eqüidade ( CLT, artigo 8º), determino ao reclamado que pague à autora o valor correspondente a 50% do aviso prévio, isto é, R$ 250,00 ( duzentos e cinqüenta reais ), a título de indenização, a ser atualizado a partir da época própria.

2 – 13º SALÁRIO FRACIONADO – FÉRIAS INTEGRAIS E PROPORCIONAIS – ABONO DE 1/3

A reclamante, além do pedido de aviso prévio, formulou os pleitos de 13º salário fracionado( R$ 189,00) e de férias integrais e proporcionais ( 6/12),acrescidas do abono de 1/3 ( R$ 667,00).

Como se verifica, o 13º salário fracionado de 2005 foi pago à reclamante ( fl 24 ), como também foram pagas e usufruídas as férias dos dois períodos ( fls 26 ), acrescidas do abono de 1/3, o que restou confirmado em depoimento pessoal, como é próprio da sinceridade da empregada. Ela sempre quis receber o aviso prévio e outros direitos que porventura tivesse.

Indefiro os pedidos.

3- HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Indevidos. Ausente a hipótese da lei n1 5. 584/70, sendo esta a única que autoriza a fixação de honorários advocatícios nas demandas que envolvam empregados e empregadores, tudo nos termos da jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho.

4-BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA

Declarando ser pobre, como de fato é a classe trabalhadora brasileira, concedo à reclamante os benefícios da justiça gratuita. A declaração de pobreza, que apenas atende a uma formalidade legal, seria dispensável pelo padrão remuneratório atribuído à reclamante, bem como pela precária situação de milhões de homens e mulheres deste imenso país que enfrentam a dureza do desemprego e as dificuldades oriundas da péssima distribuição de renda no Brasil.

5 – OFÍCIO

Nenhuma irregularidade foi praticada pelo reclamado, empregador doméstico, que justifique a expedição de ofício a órgão fiscalizador. Não será expedido nenhum ofício.

III CONCLUSÃO

Ante o exposto, julgo procedentes, em parte, os pedidos para condenar o reclamado, AERSON SANTANA DE ANDRADE , a pagar à autora, MARIA DA GLÓRIA PEREIRA, no prazo legal, 50% do valor do aviso prévio ( R$ 250,00) , tudo nos termos da fundamentação precedente, que fica integrando o presente dispositivo.

Juros e atualização monetária na forma da lei.

Não haverá contribuição previdenciária, eis que a parcela possui natureza indenizatória.

Custas, no importe mínimo, de R$ 10,64 (dez reais e sessenta e quatro centavos), pelo reclamado, calculadas sobre R$ 250,00, valor da condenação e para esse fim aproveitado.

Intimem-se as partes, em face da antecipação do julgamento.

GRIJALBO FERNANDES COUTINHO

Juiz Titular

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