Leilão esvaziado

Supremo esvazia leilão de privatização do Banco do Ceará

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13 de outubro de 2005, 11h16

O Banco do Estado do Ceará (BEC) que será leiloado nesta quinta-feira (13/10) deve sair bem mais barato do que se imaginava até poucos dias atrás. É que o ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal derrubou a tentativa do Banco Central de garantir aos compradores do banco privilégios reservados a bancos oficiais como a exclusividade na movimentação dos dinheiros destinados ao “pagamento de fornecedores e da remuneração dos servidores públicos do Estado e a administração e custódia dos títulos públicos federais adquiridos pelo Estado para eventual recompra das operações de crédito securitizadas”.

O ministro manteve o leilão, mas derrubou a herança pública que se pretendia deixar ao BEC privatizado. Como foi a segunda vez que o STF precisou reafirmar a mesma coisa, Marco Aurélio passou um sermão na direção do Bacen: “A cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas,” escreveu o ministro reproduzindo as palavras do padre Antônio Vieira ditas na quinta-feira da Quaresma de 1669.

Na decisão anterior, o STF havia declarado inconstitucionais os trechos da Medida Provisória 2.192, que reservavam os privilégios aos compradores privados. No momento seguinte, a direção do Bacen tentou restabelecer o que o STF vedara com a publicação de um “comunicado relevante” e, ainda, com uma insubsistente liminar obtida no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Quem garantiu que prevalecesse o interesse da livre iniciativa e a concorrência no mercado financeiro cearense foi o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB do governista e presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo.

Leia a íntegra da decisão do ministro Marco Aurélio

RECLAMAÇÃO 3.872-6 DISTRITO FEDERAL

RELATOR

:

MIN. MARCO AURÉLIO
RECLAMANTE(S)

:

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL – PC DO B
ADVOGADO(A/S)

:

ANTÔNIO GUILHERME RODRIGUES DE OLIVEIRA E OUTRO(A/S)
RECLAMADO(A/S)

:

DIRETOR DE LIQUIDAÇÕES E DESESTATIZAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL

DECISÃO

BANCO OFICIAL – PRIVATIZAÇÃO – ARTIGO 4º, § 1º, E ARTIGO 29 E PARÁGRAFO ÚNICO DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.192-70/2001 – ADI – SUSPENSÃO – SUPREMO – AUTORIDADE DE PRONUNCIAMENTO – PRESERVAÇÃO – LIMINAR DEFERIDA.

1. O Partido Comunista do Brasil formaliza esta reclamação contra ato do Senhor Antônio Gustavo Matos do Vale, Diretor do Banco Central do Brasil. Sustenta o desrespeito à decisão desta Corte resultante do julgamento, pelo Plenário, do pedido de concessão de medida acauteladora na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.578-9/DF, quando foram suspensos, sob o ângulo da eficácia, o § 1º do artigo 4º e o artigo 29 da Medida Provisória nº 2.192-70/2001. O Banco Central, ante tal pronunciamento, suspendera o leilão de venda do controle acionário – privatização – do Banco do Estado do Ceará S/A – BEC. Novo ato veio a ser publicado sob a nomenclatura “Comunicado Relevante nº 4/2005/BEC”, dando redação diversa a item do edital anterior, no que versada a prestação de serviços e outras avenças pelo estabelecimento bancário, após a privatização. Nesse âmbito, ter-se-ia, em caráter de exclusividade, o pagamento de fornecedores e da remuneração dos servidores públicos do Estado e a administração e custódia dos títulos públicos federais adquiridos pelo Estado para eventual recompra das operações de crédito securitizadas. Sem a exclusividade, dar-se-ia o recolhimento, em concorrência com outras instituições financeiras e demais entidades arrecadadoras, de impostos, taxas, contribuições e multas, de competência do Estado, bem como a administração das carteiras de crédito adquiridas do BEC pelo Estado. Então é asseverada a inobservância do que assentado pelo Plenário, continuando-se a dispor, considerados os parâmetros do leilão a ocorrer, do numerário do Estado. O reclamante alude a voto proferido pelo ministro Nelson Jobim na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.600-MC, para revelar o alcance da suspensão verificada, havendo sido versada inclusive a questão da folha de pagamento do Estado. Pleiteia medida acauteladora para suspender-se o citado Comunicado Relevante, vindo-se, ao fim, a fulminá-lo. No tocante ao risco, informa a designação do dia de amanhã – quinta-feira, 13 de outubro de 2005 – ano grafado erroneamente como 2004 à folha 11 – para a realização do leilão.

A inicial foram juntados os documentos de folha 13 a 30. À folha 33, proferi o seguinte despacho:

DESPACHO

PROCESSO – DOCUMENTAÇÃO.

1. Há de atuar-se com segurança jurídica. Embora ainda não confeccionado o acórdão que se aponta inobservado, tem-se a certidão de julgamento. Mas este elemento, por si só, não permite concluir-se sobre o alcance do pronunciamento.

Indispensável é contar-se, no processo, com o teor do dispositivo suspenso.

2. Traga ao processo, o reclamante, o teor da medida provisória que encerra o preceito suspenso.

3. Publique-se.

Brasília, 10 de outubro de 2005.

O despacho foi prolatado na segunda-feira, isso levando em conta o recebimento do processo, no Gabinete, na sexta, 7 de outubro de 2005, às 20h35 – folha 32. O Partido Comunista do Brasil peticionou ainda naquela sexta-feira, juntando documentos. A peça chegou ao Gabinete em 10 de outubro.

O Banco Central do Brasil também se manifestou, fazendo-o para anexar petição dirigida ao relator da ação direta de inconstitucionalidade cuja decisão liminar se diz descumprida, além de ato individual do ministro Carlos Velloso, negando seguimento ao Recurso Extraordinário nº 444.056-3/MG.

O reclamante trouxe ao processo a íntegra do voto proferido pelo relator, ministro Sepúlveda Pertence, concernente ao ato envolvido no caso.

2. Tenha-se presente o que decidido pelo Plenário, sem discrepância de votos, relativamente ao § 1º do artigo 4º e ao artigo 29 e parágrafo único da Medida Provisória nº 2.192-70/2001, quando, por sinal, repetiu enfoques anteriores a respeito do alcance dos artigos 37 e 164, § 3º, da Constituição Federal. O primeiro contém referência, sob o ângulo dos atos da Administração Pública, ao princípio da moralidade. Já o segundo dispõe:

Art. 164. (…)

§ 3º. As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.

O Plenário proclamou conflitante com esses preceitos a Medida Provisória nº 2.192-70/2001, mais precisamente o § 1º do artigo 4º e o artigo 29 e parágrafo único nela contidos, que têm o seguinte teor:

Art. 4º ………………………………………………

§1º As disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou das entidades do poder público e empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010.

……………………………………………………….

Art. 29. Os depósitos judiciais efetuados em instituição financeira oficial submetida a processo de privatização poderão ser mantidos, até o regular levantamento, na própria instituição financeira privatizada ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se às instituições financeiras oficiais cujo processo de privatização tenha sido concluído, bem assim às instituições financeiras oficiais em processo de privatização.

É certa a riqueza do nosso vernáculo. Entrementes, o aspecto formal cede ao princípio da realidade. Sutil jogo de palavras não pode servir ao menoscabo dos pronunciamentos do Supremo, ao drible ao que decidido, como se fosse algo lírico e não de concretude maior. O quadro retratado neste processo, porque a envolver decisão do Tribunal que se encontra no ápice da pirâmide do Judiciário pátrio e o Banco Central do Brasil, bem retrata a perda de parâmetros na quadra vivida, no que por vezes se imagina placitar o faz-de-conta. Lembra sermão de Padre Antônio Vieira, o da Quinta-feira da Quaresma, veiculado em 1669:

A cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.

O Supremo afastou do cenário normativo o que se mostrara passível de ser enquadrado como verdadeira reserva de mercado, inserindo-se no leilão o que dele não pode ser objeto, porquanto contrário à Constituição Federal, ou seja, a previsão – visando-se talvez conferir saúde maior ao estabelecimento bancário a ser privatizado – de continuidade de relação jurídica considerado o Estado, considerado o numerário deste, no que direcionado às diversas finalidades. Antes, é certo, o leilão fez-se concebido com a notícia de se ter, em caráter de exclusividade, a administração da Conta Única do Estado, o pagamento de fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado, a administração do Fundo de Desenvolvimento Industrial do Estado e a administração e custódia dos títulos públicos federais adquiridos pelo Estado para eventual recompra das operações de crédito rural securitizadas. Sem exclusividade, consignou-se a arrecadação, pelo Banco, em concorrência com outras instituições financeiras e demais entidades arrecadadoras, de impostos, taxas, contribuições e multas, de competência do Estado, assegurada a centralização da arrecadação no BEC, a administração das carteiras de crédito adquiridas do BEC pelo Estado e a aplicação de recursos financeiros com remuneração, tanto mediante a aquisição de papéis de emissão do próprio BEC, como pela compra de cotas de fundos de investimento por ele administrados. Os novos parâmetros – discrepando, a mais não poder, do que decidido pelo Tribunal, a revelar desrespeito inaceitável – apenas não contêm a referência à Conta Única, mas encerra a manutenção, o depósito, no Banco, de numerário público para as finalidades já mencionadas no item I.

A jurisprudência desta Corte tem se mostrado categórica quanto à necessidade de preservação das decisões proferidas, chegando-se mesmo a admitir-se a medida da reclamação quando olvidadas premissas, a fundamentação, em si, do pronunciamento. No caso, há mais, ou seja, surge, neste primeiro exame, a convicção de que se descuidou, para dizer o mínimo, da essência do que assentado.

3. Defiro a liminar para suspender, até a decisão final desta reclamação, o “Comunicado Relevante nº 04/2005/BEC”, do Banco Central do Brasil, que alterou o item 6.7.1.1 do Edital de Venda do Banco do Estado do Ceará S/A – BEC.

4 Ante a designação, para o dia de amanhã, do leilão, proceda-se às comunicações cabíveis, mediante fac-símile, informando-se à Secretaria de Imprensa do Tribunal, com a finalidade de o ato ganhar a maior publicidade possível.

5. Colha-se o parecer do Procurador-Geral da República.

6. Publique-se.

Brasília, 12 de outubro de 2005

Ministro MARCO AURÉLIO

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