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Justiça social

Direitos de solidariedade configuram cidadania mundial

Autor

  • Wagner Balera

    é professor titular na Faculdade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e livre-docente e doutor em Direito Previdenciário pela mesma universidade.

12 de outubro de 2005, 15h00

1. Introdução

As duas idéias básicas que se articulam no ambiente jurídico, olhado em perspectiva social, são a de justiça, como principal reativo contra a desigualdade inerente ao convívio social e a de solidariedade, como apoio necessário que a comunidade há de prestar àqueles dos seus membros que ainda não alcançaram o lugar que lhes cabe ocupar no seio da sociedade.

Em torno dessas idéias gravitam dois conceitos que se acham consagrados, por serem comuns, em todos os sistemas jurídicos. E, por serem comuns, elevam-se à categoria dos conceitos fundamentais que, como leciona Lourival Vilanova:

"É um conceito fundamental, porque é necessário à constituição e ao conhecimento do direito."

São conceitos fundamentais, aplicáveis a este estudo, o de justiça social e o de direitos humanos.

Para garantir uma Ordem Social equilibrada, onde as políticas públicas sejam sustentadas por bem definidos programas de desenvolvimento econômico e social, é necessário que haja a prevalência dos direitos humanos (art.4º ,II. da Constituição), o primado do trabalho (art. 193, da mesma Carta) e a solidariedade social (art.3º do mesmo Diploma Constitucional).

João Paulo II observa que a sociedade é a: "grande encarnação histórica e social do trabalho de todas as gerações", donde que o trabalhador há de encarar:

"o seu trabalho também como algo que irá aumentar o bem comum procurado juntamente com os seus compatriotas, dando-se conta assim de que, por este meio, o trabalho serve para multiplicar o patrimônio da inteira família humana, de todos os homens que vivem no mundo."[1]

Ao hierarquizar os valores presentes na Ordem Social, o constituinte subordina todos os demais ao trabalho – valor social fundamental (art. 1º, IV, da Lex Máxima) – que passa a ser, também segundo a lição da Laborem exercens, a verdadeira chave para a compreensão da vida social.

Cabe ao direito, modelar os princípios retores da ordem econômica e financeira e da ordem social – baseados no trabalho e vocacionados para a justiça social – para que informem a legislação e o agir do Estado, das empresas, dos trabalhadores e dos demais integrantes da comunidade e, assim que estruturada a sociedade, segundo medidas e técnicas de atuação, seja operado o trânsito da crise da desorganização econômica para o estagio ideal do bem estar social.

O Ensino Social Cristão, inicialmente insculpido na "Rerum Novarum", chamava à ordem o Estado e exigia que este tomasse as dores do operariado:

"A autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido".


Para concluir, de modo taxativo:

"Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores".[2]

A fim de garantir que as marchas e contramarchas da economia não afetem negativamente a vida dos trabalhadores, principais destinatários da ação social do Estado e das empresas (não é por outro motivo que, dentre os princípios gerais da atividade econômica se encontra o da busca do pleno emprego), é imprescindível que as políticas públicas sejam direcionadas para a concretização de metas e de prioridades capazes de promover a melhoria das condições de educação e de trabalho; o incremento dos salários, na mesma proporção em que ocorre o desenvolvimento econômico; a promoção de efetivas oportunidades de obtenção de moradia adequada e, enfim, dos benefícios e serviços da seguridade social.

2. Direitos Humanos Sociais.

Ora, o rol de direitos humanos sociais que se encontra inscrito, com destaque, nas Constituições modernas, é reflexo dessas carências que o corpo social apresenta e cuja solução pacífica pode conduzir a sociedade a um estágio superior de relacionamento.

Ao apontar os direitos humanos sociais, que situam concretas carências daqueles que dependem do exercício do trabalho para a respectiva sobrevivência, a configuração jurídica moderna reconhece a existência de falhas e omissões ao longo do caminho, que carecem de correção.

De fato, os travejamentos da nova arquitetura social significam o rompimento com esquemas velhos e daninhos que, a um só tempo, impediam a realização do bem-estar e atiçavam a questão social.

O Estado Social seria a fórmula encontrada pelo constitucionalismo (chamado social) para dar resposta aos problemas gerados pelo liberalismo econômico.

Fórmula que, cumpre lembrar, não pode ser considerada simples expressão da caridade, posto que se trata de exigência da justiça.

Advertia, com efeito, Pio XI:

" não pode a caridade substituir a justiça, quando o que é devido se nega iniquamente."[3]

Pode considerar-se que, no Brasil, somente a partir da Constituição de 1946 se buscou estabelecer um corpus iuris baseado nos postulados da Justiça Social.


Por meio dessa modelagem, o constituinte resolveu considerar que o caminho necessário para que o País venha a atingir os estágios superiores de organização social é aquele que estabelece adequado padrão de desenvolvimento – redutor das desigualdades sociais – que não se limite a meros rearranjos episódicos dos recursos disponíveis.

Na verdade, assumiriam novo papel os atores sociais.

Buscando a tal "forma social superior" de que nos fala Achille Loria[4], forma que permitisse a superação da opressão econômica e social, o engenho humano criava, então, o chamado Estado do Bem Estar (Welfare State).

O regime do bem-estar social, atuando na e sobre a Ordem Econômica, iria, a seu tempo, esquematizar diversos meios de ação que superariam as primeiras e rudimentares formas de proteção social.

O Estado iria:

"ayudar al desenvolvimento personal de todos y cada uno de los miembros de una comunidad, assegurándoles un mínimum de derechos fundados en su dignidad personal, la seguridad contra el riesgo y la ayuda para una mejora de su nivel de vida."[5]

Deixou registrado Manoel Gonçalves Fereira Filho que a Ordem Econômica e Social passou a ser dominada pelo princípio da justiça social, concluindo – a propósito do Texto de 1967:

"Como a Lei Fundamental de 18 de setembro, a nova Carta nesse ponto, como noutros, revela influência nítida da doutrina social da Igreja..".[6]

Percebe-se, destarte, que a partir do ideário delineado pela primeira Encíclica Social, marco inaugural do Ensino Social Cristão, de 1891, as estruturas jurídicas se puseram em movimento.

Desde logo, a Constituição do México, de 1917, seguida pela da Alemanha, de 1919, trataram de inscrever o rol dos direitos dos trabalhadores no seu conteúdo.

E, depois, como que num crescendo, as cláusulas sociais passaram a integrar a grande maioria das constituições modernas.

Mas, os direitos sociais alcançaram o ponto culminante com a aprovação, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, aos 10 de dezembro de 1948, da Resolução que lançava a Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Longe de se apresentar como simples proposta de mais um tratado internacional, o texto se propunha a revelar o consenso dos seus signatários a respeito dos pontos comuns à convivência humana.

Não se pode enquadrar a Declaração no quadro comum das fontes do direito. Trata-se, mais bem, de pressuposto axiológico de qualquer ordenamento jurídico, baseado na dignidade da pessoa humana.

Dessa situação especial e única em que convém deva ser posicionada a Declaração dos Direitos Humanos nos dá conta a Constituição do Brasil, ao impor a “prevalência dos direitos humanos” como um dos princípios da República (art. 4º, II).

No entanto, diante da cultura jurídica dominante, permeada pelo formalismo, os signatários da Declaração optaram por impor a concretização do ideário estampado no Documento Magno por intermédio de dois Pactos Internacionais que, por assim dizer, estabeleceram a “summa divisio” dos direitos humanos. De um lado, foram fixados os Direitos Civis e Políticos. De outro, os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.[7]

Podemos, a partir dessa divisão, sacar a primeira conclusão deste estudo.

O Direitos Civis e Políticos, também conhecidos como direitos da liberdade, estabelecem as garantias do cidadão comum diante do Estado, limitando o poder deste. Parte desse conjunto o rol estampado no art. 5º da Constituição do Brasil. Seu ideário é o desdobramento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, produto da Revolução Francesa, de 1789.

Os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, fruíveis a partir do mundo do trabalho, nascem da exigência histórica daqueles que, participando da construção do patrimônio nacional acumulado ao longo do tempo, não tinham, até então, acesso à parte que lhes cabia. Resultam da veemente reclamação de Leão XIII, sobre a condição dos operários, de 1891, primeiro documento do Ensino Social Cristão.

3. Justiça Social.

O conceito tradicional de justiça, ditado pela consciência prática dos romanos, difunde a idéia de que se dá o que é devido a cada qual. É a justiça comutativa, que conduz à igual distribuição – do ut des.

A justiça distributiva pretende realizar a igualdade entre os cidadãos mediante consideração dos respectivos méritos.

Esse ideário elementar é fruto de uma concepção individualista da sociedade.

Pio XI, na Divini Redemptoris, estabelece a distinção, deixando de lado a antiquada dicotomia ao assinalar:


“Na realidade, além da justiça comutativa existe também a justiça social, com a sua própria gama de obrigações, da qual nem os empregadores nem os trabalhadores podem eximir-se. Ora, pertence à própria essência da justiça social exigir de cada indivíduo tudo o que é necessário para o bem comum. [8]

A profusão do conceito de justiça é apontada por Chaim Perelman, que inventaria as diversas manifestações desse conceito, como querendo significar:

A] a cada qual a mesma coisa;

B] a cada qual segundo seus méritos;

C] a cada qual segundo suas obras;

D] a cada qual segundo suas necessidades;

E] a cada qual segundo sua posição;

F] a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.[9]

Dessas concepções, a que se apresenta como a formulação mais recente, parte de um conceito de igualdade de tipo distinto.

É a idéia de equivalência, como finalidade da isonomia.

Na obra fundamental de John Rawls, havida como a mais moderna e importante sobre a justiça na época contemporânea, está escrito:

"Todos os bens sociais primários – liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases do auto-respeito – têm de ser distribuídos igualmente, a menos que uma desigual distribuição de qualquer um destes bens for em favor do menos privilegiado."[10]

Parte dessa noção de isonomia o conceito de justiça social, tão festejado pelo Ensino Social Cristão, desde aquela primitiva referência de Pio XI.[11]

A idéia de justiça social, com efeito, expressa a isonomia e anima todo o ordenamento jurídico. Tanto no sentido material (das concretas medidas de trato igualitário das pessoas) como no sentido mais propriamente processual (de igualação das posições processuais dos atores sociais, a fim de que a prestação jurisdicional seja distribuída com igualdade de condições).

A justiça, como se sabe, faz parte do agir e se fortalece com o agir. Agir que se expressa concretamente, no ambiente da justiça social, em medidas tomadas em favor de determinado coletivo. Há diferença essencial entre o agir nas esferas da justiça comutativa ou da justiça distributiva e o agir no terreno da justiça social.


Baseadas nesta última se encontram as fórmulas de pacto social que diferentes processos de interesse coletivo ou difuso pretendem implementar. Assim, por exemplo, o compromisso de ajuste de conduta celebrado em determinada ação que objetiva impedir ou reparar dano ambiental, é realizado sob a égide da justiça social. Quem quer que proponha a medida (ainda que se trate de órgão ou autoridade pública, como o Ministério Público) atua em prol do bem comum, para melhor preservação do meio ambiente – bem de uso comum do povo, tal como o define a Constituição.

É a responsabilidade social que impulsiona os atores na esfera de atuação da justiça social. Fica colocado ao Estado, nesse terreno, em plano secundário, como preordena o principio da subsidiariedade.

Parte integrante do magistério social cristão, o princípio da subsidiariedade foi, inicialmente, formulado por Pio XI, na Quadragésimo anno.[12]

A partir do ideário da subsidiariedade, o bem comum é encontrado pelas diferentes instituições e grupos, que acabam identificando suas funções na comunidade e realizando projetos e prestações de utilidade pública (a nomenclatura recente define certos organismos como organizações da sociedade civil de interesse publico OSCIP) que operam como poderosos instrumentos de integração. Esta se traduz na união de esforços e de recursos para um fim comum, que deve ser coincidente com o bem comum.

Com efeito, ao distinguir o papel que cabe aos diversos atores no processo social, anota Franco Montoro:

"Os "devedores" ou "obrigados" na justiça social, escreveu DABIN, são os indivíduos e os grupos que, em sua qualidade de membros e, seja qual for sua posição no Estado – governantes ou governados – têm obrigação de dar à sociedade o que lhe é devido."[13]

Independentemente do papel reservado às partes, a justiça social exige que todos colaborem para que os direitos sociais sejam concretizados.

Enquanto a justiça comutativa e a justiça distributiva colocam seu instrumental a serviço do direito individual, direito da pessoa enquanto pessoa, que carece de um campo livre para o desenvolvimento das suas potencialidades, a justiça social cuida do coletivo, de suas funções e responsabilidades na sociedade, como agentes integradores que buscam o ideal comum a toda a comunidade.

Há uma comunhão de esforços que suplanta as posições egoístas (ainda que legítimas). e que acredita só ser possível alcançar o pleno desenvolvimento da personalidade humana na sociedade, mediante a integração de todos aqueles que já identificaram o ideal comum.

Cumpre notar que sendo as pessoas – a pessoa humana é e deve ser o principio, o meio e o fim das estruturas sociais – o substrato dos grupos sociais, a sua inserção em determinado projeto coletivo pode ou não implicar em configuração ou outorga de personalidade jurídica ao grupo. A própria idéia de personalidade jurídica poderia bloquear ou até limitar o agir de determinados grupos, independentemente das atividades que os mesmos se propõem a desenvolver. Os Centros Sindicais, constituídos como estruturas alternativas ao modo corporativista de organização do mundo do trabalho, por exemplo, realizam atividades que, até certo ponto, se revelaram incompatíveis com a figuração das mesmas como personalidades jurídicas, conquanto atuem intensamente na defesa e na promoção dos direitos dos trabalhadores.


Evidentemente, o ideário da justiça social encontra fortes opositores entre aqueles que colocam o individualismo e o livre atuar das forças do assim chamado “mercado” em posições de vanguarda.

Tal ideário, opondo-se à disputa porque busca a comunhão, está mais próximo da tal “cidade de Deus” a que alude Santo Agostinho, na qual reina o “auxilio mútuo”.

É, aliás, uma constante de marchas e contramarchas essa disputa, quase comparável ao antagonismo inerente à questão social (não nos esqueçamos: o Ensino Social Cristão se originou e desenvolveu com o manifesto propósito de por termo a tal antagonismo, como acentuaram todos os Pontífices, sendo que Paulo VI sublinhou a dimensão mundial que assumiu a questão social nos tempos mais recentes) a supremacia do individual sobre o coletivo e vice-versa.

Ao encerrar este ponto, tenhamos presente a síntese proposta recentemente por uma autorizada voz da estrutura eclesial, o Cardeal Kasper, da Cúria Romana, que afirmou:

“Por justiça, deve entender-se o reconhecimento da dignidade de cada pessoa, os seus direitos humanos fundamentais, a liberdade de cada um, a ausência de discriminações por motivo da fé, da cultura e do sexo. Por justiça deve entender-se o direito que cada criatura humana tem à vida, à terra, ao alimento, à água, a uma educação que a torne mais plenamente consciente destes seus direitos, e capaz da autodeterminação na sua vida. Este bem pessoal pressupõe o bem comum, a justiça social, sobretudo para os pobres, o equilíbrio social e a estabilidade da ordem social e política.”[14]

Nas primitivas formulações do conceito de justiça social ainda não se assumira a noção de comunidade mundial. Tratava-se, antes, do estabelecimento desse ideário nos distintos Estados.

As transformações econômicas e sociais; as rupturas graves provocadas pelos dois grandes conflitos mundiais, exigem tomada de posição mais abrangente.

Nessa medida, surge a necessidade de formulação de propostas para a questão social mundial, já referida.

Eis a conseqüente proposta que ora se apresenta, cuja gestação teve origem na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social, conhecida como Cúpula de Copenhague: é necessário o estabelecimento, em nível internacional, do verdadeiro sentido de justiça social..

Depois de muitos anos nos quais as nações mais poderosas do mundo só se reuniam para a discussão do desenvolvimento econômico a ONU organizou, em 1995, na cidade de Copenhague, a reunião que tratou do desenvolvimento social..

Nela se constatou que são as mulheres as mais atingidas pelos efeitos do subdesenvolvimento (pobreza, desemprego, degradação ambiental e guerra). É exigência do verdadeiro desenvolvimento que haja igualdade e equidade entre mulheres e homens.


Também se constatou que cresce a pobreza no mundo e que a construção da nova ordem econômica mundial não permitirá – em razão das suas implicações para a paz e segurança da humanidade – que sigam convivendo tanta abundância e tanta pobreza.

Somente a partir desse conceito, aceitável como pressuposto das relações econômicas e sociais dos diferentes povos, estarão lançadas as bases para a elaboração de um contrato social mundial.[15]

Aliás, o compromisso de assinatura desse contrato social mundial foi firmado pelas Nações Unidas na denominada Declaração do Milênio. [16]

Do mesmo modo, o recentemente lançado Compêndio da Doutrina Social da Igreja propõe que, em linha com o ideário da Justiça Social, devem ser superadas as vetustas categorias do "interesse comum", do "proveito mútuo", motores de inspiração dos programas de apoio ao desenvolvimento dos paises mais pobres.

Será necessário, como acentua o Compêndio, que os atores da cena econômica mundial obtenham um desenvolvimento integral e solidário para a humanidade (ponto 373) e que a abundancia de bens materiais não se traduza na perda da própria humanidade em muitas pessoas (ponto 374).[17]

4. Solidariedade.

É certo que um novo ambiente de justiça, que supere as marcas individualistas da justiça comutativa e da justiça distributiva, encontrou seu ponto de irrupção em determinado momento histórico situado no inicio do século passado.

Mas, o ideário da justiça social exige que se dê um novo passo.

Eis a tarefa da solidariedade. Para além da dimensão da justiça, o que se espera é a modificação das atitudes, dos comportamentos. A solidariedade impõe atitudes de apoio, de atenção e de cuidados para com os outros.

Evidentemente tais atitudes afloram quase que de modo espontâneo nas grandes catástrofes, como a que nestes dias foi provocada por um furacão, ou como a de tempos recentes, impulsionada pelas ondas gigantescas.

São mobilizados, então, grandes contingentes de recursos e de pessoas que se sentem compelidas a proteger e atender aos que ficam no mais completo desamparo.

No entanto, tal solidariedade pode esgotar-se em atitudes tópicas, que não modificam as estruturas e os comportamentos.

A responsabilidade social exige mais do que a presença (necessária) em certos momentos e episódios.


Trata-se, com efeito, de expressão representativa da integração dos homens; de compromisso com os interesses do coletivo; de definição contínua de causas comuns, sem as quais a comunidade não pode se desenvolver.

É nesse contexto que, hoje, se fala na reconstrução do ideário da solidariedade.

A UNESCO, ao lançar em 2000 o importante “Manifesto pela Paz”, estabeleceu como um dos compromissos básicos (art. 6º) o da redescoberta da solidariedade.

Todos podemos agir, cumpre lembrar, como responsáveis solidários, em favor das famílias, a nossa e a dos nossos próximos, cooperando para sua efetiva integração à comunidade local e social em que se acha situada. A desestruturação das famílias não pode ser apenas constatada, como se se tratasse de mero registro sociológico.

Também o mundo do trabalho pode ser cenário de solidariedade. Não deixa de ser significativo que um dos mais importantes movimentos políticos do século XX tenha se iniciado por um sindicato que levava o nome de solidariedade?

A solidariedade exige abertura ao diálogo, à aceitação do outro e à tolerância.

Pode implicar, é claro, em bem direcionadas posições jurídicas, como a que foi chamado a tomar um advogado de São Paulo que impetrou hábeas-corpus em favor do morador da bela praça cuja presença incomodara os vizinhos e que, por isso, foi internado – sem ser doente mental – no manicômio.

A solidariedade consiste, em nossos dias, em bandeira das mais agitadas. Basta olharmos em redor e constatarmos a multiplicação de organizações não governamentais que, como compromisso geral, assumem atitudes solidárias em todos os campos da atividade humana.

Todavia, não deixa de ser um paradoxo que, no mesmo instante da constatação dessa bela realidade, aumentam assustadoramente as precárias condições de vida de grande parte da população.

De certo modo, a estruturação jurídica da solidariedade se coloca diante da seguinte dicotomia: cabe ao Estado ou à comunidade estar à frente.

A França proclamou, na Convenção de 1793, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que afirma:

Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos infelizes, seja procurando-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência àqueles que não podem trabalhar.”[18]

A mesma França dava solução ao dilema público x privado ao afirmar, em 1902, que: “a Republica deve instituir um serviço público de solidariedade social.”


Os pensadores intentaram explicar essa opção política estabelecendo a idéia de um “quase-contrato”. São conhecidas as posições de Léon Bourgeois [19] e de Emile Durkheim[20].

Para Durkheim a solidariedade provém da consciência coletiva que, predominando sobre a consciência individual, estabelece como que uma “solidariedade mecânica”, ou “por similitude”. E afirma:

“a parte que ela tem na integração geral da sociedade depende evidentemente da maio ou menor extensão da vida social que a consciência comum compreende e regulamenta”.[21]

O autor revela, sobretudo, a especificidade do social e da impossível mistura entre o social e outros setores da realidade. Portanto, esse pensador já aponta para a necessidade de compreensão da solidariedade como aspecto diferenciado da falsa dicotomia público x privado, preordenando o que pode vir a se constituir na responsabilidade social.

Cumpre reconhecer, porém, que o liberalismo optou por outros caminhos. E, mesmo as doutrinas mais modernas ainda seguem afirmando que a solidariedade – talvez em sua dimensão caritativa ou filantrópica – consiste em assunto do domínio privado.

Essa última concepção se acha assentada no direito positivo brasileiro que afirma, no art. 203 da Constituição de 1988, dever a assistência social prestada pelas entidades beneficentes, de cunho privado.

Sem embargo, os programas sociais de solidariedade foram sendo, num crescendo, assumidos como tarefas do Estado que se assumiu como “do Bem Estar”.

O pensamento social cristão intenta estabelecer uma via intermediária que, entre nós, tem como principal arauto o Padre.Frnando Bastos D’Avila.

No seu conhecido Manifesto Solidarista o ilustre pensador afirma:

“A reforma solidarista é uma reforma comunitária. O Solidarismo pretende deferir às comunidades reais, em todos os níveis em que se realizam, a hegemonia do processo histórico. Esta não pode caber nem ao Capital nem ao Estado, órgão de poder de um partido único. (…) Os destinos sociais econômicos, deferidos às comunidades locais, às comunidades de vizinhos, às comunidades de trabalho, às comunidades de grupos. A grande ênfase do Solidarismo sobre a Comunidade se explica. A Comunidade é aquela realidade social da qual a pessoa humana participa ma especificidade do seu ser, enquanto ser racional e livre. Como ser racional e livre, o homem pensa e quer. A comunidade é o lugar natural onde os homens pensam e querem juntos. Projetam e decidem juntos em função do bem comum. Este é concebido precisamente como o conjunto de condições concretas, nas quais e pelas quais cada pessoa humana pode realizar os seus direitos naturais, obedecendo a seus deveres naturais. Da comunidade o homem participa não pelo que tem, mas pelo que é. A comunidade é a grande descoberta e a grande força do Solidarismo.”[22]


Essa longa citação se fez necessária porque representa, efetivamente, a síntese do ensino social cristão sobre a solidariedade. Tal expressão do comportamento social é aceitável se e quando coloca o homem (que pensa e quer ser solidário e receber dos seus irmãos a solidariedade) como o centro da mensagem cristã, cuja libertação e promoção decorrem da própria vinda ao mundo do Filho do Homem.

No ideário da comunidade se expressa a síntese integrativa das pessoas que a formam, cada uma delas disposta a superar o seu egoísmo, sem evidentemente abrir mão da respectiva individualidade.

Em cada tomada de posição diante dos inumeráveis problemas sociais, a comunidade buscará a unidade, assumindo as responsabilidades sociais que serão intensificadas na medida em que a consciência coletiva (Durkheim) for assumindo bem definidos contornos.

Todos os programas sociais, assumidos não pelo desejo de um líder ou por imposição normativa, mas por convicção do grupo, servem como superação da etapa individualista, demarcada pela juridicidade do direito civil – direito de propriedade; direito das coisas – pela etapa comunitária do direito social.

Afirma Gurvitch que o direito social é um direito comunitário. O direito de comunhão, diz ele: “faz o todo participar, de uma maneira imediata, da relação jurídica decorrente, sem transformar esse “todo” em um sujeito descolado de seus membros”.[23]

Cumpre, aqui, advertir que o ideário da solidariedade, colocado no marco dos direitos de comunhão, não se confunde com a classificação dos direitos humanos.

Os direitos sociais foram concebidos, inicialmente, como pertencentes a uma comunidade bem definida. A família, a classe trabalhadora, as sociedades de ajuda mútua (que, depois, se transformariam no abrangente projeto da seguridade social).

Na evolução do conceito de direitos humanos, esses são os chamados direitos da segunda geração, situados no patamar da igualdade.

Já os denominados direitos da fraternidade, ou da solidariedade, dizem mais propriamente com as grandes transformações sociais por que passou a humanidade após a deflagração da segunda guerra mundial.

Consolidados os direitos individuais e definidos os direitos sociais, cumpria à sociedade humana encontrar o ideal comum de convivência.

A dimensão da fraternidade (solidariedade) quer o diálogo em torno de questões que são de interesse comum a todos os povos.

Assim se coloca o direito à paz, pressuposto para o exercício dos demais direitos humanos, como assinala a Pacem in terris.

Do mesmo modo se define o direito ao desenvolvimento, que se caracteriza como a comum aspiração de todos a um progresso econômico e social eqüitativo, que signifique, como quer Paulo VI, melhores condições para o homem todo e para todos os homens (Populorum progressio).


Em linha com essa proposta em favor do desenvolvimento, João Paulo II constatou:

Uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste precisamente nisto: que são relativamente poucos os que possuem muito e muitos os que não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e dos serviços originariamente destinados a todos. [24]

Assim também se situa o direito ao meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, exigência do Protocolo de Kyoto.

Por fim, os direitos de solidariedade implicam na utilização do patrimônio comum da humanidade mediante a configuração de novas bases de convivência mundial, o que envolve a utilização moderada e adequada dos recursos naturais; os cuidados com o mar, com as reservas florestais, com a Antártica.

Vai, assim, sendo configurada a "cidadania mundial", a que faz expressa referência a Mensagem para o Dia Mundial da Paz, de João Paulo II, de 08 de dezembro de 2004, a derradeira firmada pelo Pontífice de imperecível memória.[25]


[1] JOÃO PAULO II, Carta Encíclica“ Laborem exercens”, sobre o trabalho humano, nos noventa anos da “ Rerum novarum”, ponto 10.

[2] LEÃO XIII, Carta Encíclica Rerum novarum, de 15 de maio de 1891, pontos 49 e 54.

[3] PIO XI, Carta Encíclica “Quadragésimo anno”, sobre a restauração e o aperfeiçoamento da Ordem Social, ponto 136.

[4] ACHILLE LORIA escreve (in “Verso la Giustizia Sociale”, Milano, Societa Editrice, 1904, p. 382), a propósito da legislação social, que a mesma: “ ben lunge dall’ impedire l´ avento di auna forma sociale superiore, preparile condizioni ed umane, senza le quali la constituzione stesa de una societá cosiffata é inconcepibile.”

[5] LUIS SANCHES AGESTA, “ Curso de Derecho Constitucional Comparado”, Madrid, Facultad de Derecho-Seccion de Publicaciones, 5ª Ed., 1974, p. 67.


[6] MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “ Curso de Direito Constitucional”, São Paulo, Saraiva, 12º Ed., 1983, pág. 328.

[7] Os Pactos complementares à Declaração Universal foram introduzidos formalmente no ordenamento jurídico brasileiro. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, por intermédio do Decreto N° 591, de 06.07.1992 e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos por força do Decreto N° 592, de 06.07.1992.

[8] PIO, XI, Carta Encíclica Divini Redemptoris, de, 19 de março de 1937, ponto 51.

[9] CHAIM PERELMAN, Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 9.

[10] JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça, Brasília, Ed.Universidade de Brasília, 1981, trad. Vamireh Chacon, p. 233.

[11] Na Rerum novarum, ponto 3, surgem as noções de justiça e equidade, mas não há referência à justiça social. É a Quadragésimo anno, de 1931, o primeiro texto de PIO XI a se socorrer, de maneira recorrente, ao conceito, colocado quase como pressuposto da reflexão e das propostas formuladas a respeito da “restauração e aperfeiçoamento da ordem social”, o tema genérico da Encíclica. São os pontos 57, 58, 71, 74 e 101 os que cuidam da justiça social. O primeiro ponto afirma:É necessário que as riquezas, em continuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade.” In http://www.joaosocial.com.br/quadragesimo.htm. Na Mater et Magistra, de 1961, o Beato JOÃO XXIII se refere à justiça social nos pontos 40, 73 e 135 enquanto que na Populorum progressio, de 1967, PAULO VI faz menção ao conceito nos pontos 5, 44, 59 e 61. Na Laboren exercens, ponto 20 – que, aliás, faz questão de recordar na Centesimus annus, JOÃO PAULO II, ao se referir ao papel dos sindicatos acentua: “Eles são, sim, um expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões. No entanto, esta « luta » deve ser compreendida como um empenhamento normal das pessoas « em prol » do justo bem: no caso, em prol do bem que corresponde às necessidades e aos méritos dos homens do trabalho, associados segundo as suas profissões; mas não é uma luta « contra » os outros.”. Também em outros pontos das duas Encíclicas (a saber: os pontos 2, 8 e 20 da LE e os pontos 14 e 20 da CA), é utilizado o conceito de justiça social. Igualmente a Sollicitudo rei socialis, no ponto 39, chama a atenção para o conceito, já olhado sob a perspectiva da solidariedade, como veremos a seu tempo.


[12] Por força desse princípio, fica claro que: “assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que as sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorve-los.” (Quadragésimo anno, de 15-03-1931, ponto 80).

[13] ANDRÉ FRANCO MONTORO, Introdução à Ciência do Direito, p. 284.

[14]Discurso: "Paz no Mundo Inteiro e entre Cristãos e entre as Religiões", in Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade entre os Cristãos,

[15] A Cúpula de Copenhague estabeleceu o seguinte programa de ação, consubstanciado em dez metas:Criar um ambiente estrutural propício ao desenvolvimento social; Erradicar a pobreza e combater a exclusão social ;Adotar a meta de pleno emprego como prioridade das políticas econômica e social; Promover a integração social, a proteção aos direitos humanos e a eliminação de quaisquer formas de discriminação; Promover o pleno respeito à dignidade humana e a conquista de igualdade e eqüidade entre mulheres e homens; Universalizar o acesso à educação de qualidade e o atendimento à saúde física e mental; Acelerar o desenvolvimento de recursos econômicos, sociais e humanos da África e dos países menos desenvolvidos;Assegurar que programas de ajuste estrutural incluam metas de desenvolvimento social, em particular, de combate à pobreza e à exclusão; Incrementar de forma significativa e utilizar mais eficientemente os recursos alocados para o desenvolvimento social; Aumentar e fortalecer os esforços em favor da cooperação internacional, regional e sub-regional para o desenvolvimento social.

Tal programa tem sido avaliado a cada cinco anos, conforme os compromissos assumidos pelos países signatários do Documento.

[16] A Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração do Milênio, ratificada no ano de 2000, que compendia os planos de 191 Estados-Membros da ONU para a melhoria das condições de vida de todos os habitantes do planeta. Seus objetivos se expressam em oito metas: Erradicar a extrema pobreza e a fome

Atingir o ensino primário universal; Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; Reduzir a mortalidade infantil; Melhorar a saúde materna Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; Garantir a sustentabilidade ambiental e Estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento. O texto, na integra, desse importantíssimo documento se encontra disponível no site: www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/dts/ metasdomilenio.asp


[17] Compendio da Doutrina Social da Igreja, publicado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, Paulinas, São Paulo, 2005.

[18] Cf. http://www.dhnet.org.br/inedex.htm. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, item XXI. Esse documento é considerado o antecedente histórico da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

[19] LÉON BOURGEOIS, Essai d’une Philosophie de la Solidarité, Paris, Alcan, 1902.

[20] EMILE DURKHEIM, Da Divisão do Trabalho Social, Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, São Paulo, Abril Cultural, 1978.

[21] Op. loc. cit., p. 57.

[22] Pe. FERNANDO BASTOS D’AVILA, SJ, Solidarismo: alternativa para a globalização, Aparecida (SP), Editora Santuário, 1997, p. 156.

[23] GEORGES GURVITCH, L´Idée du Droit Social, Notion ee Système du Droit Social. Histoire Doctrinale Depuis lê XVIIème Siècle Jusqu´à la Fin du XIXéme Siècle, Paris, Librairie du Recueil, Sirey, 1931, p. 15-16.

[24] JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis, ponto 28. In http://www.joaosocial.com.br/sollicitudo.htm

[25] Mensagem do Santo Padre João Paulo II para o Dia Mundial da Paz de 2005 http.www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/messages/peace/ documents/hf_jp-ii_mes_20041216_xxxviii-world-day-for-peace_po.html

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