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PCdoB acusa Banco Central de desrespeitar decisão do STF

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10 de outubro de 2005, 20h47

Iniciativa privada que compra banco estadual não herda controle da conta única do estado. O Partido Comunista do Brasil pediu que o Supremo Tribunal Federal reafirme esse posicionamento. Segundo o PCdoB, uma manobra do Banco Central permitirá que o comprador do BEC — Banco do Estado do Ceará mantenha, pelo menos por um tempo, o controle do dinheiro do governo do estado.

O partido entrou com uma Reclamação no STF para impedir o leilão do banco, que está marcado para esta quinta-feira (13/10).

O posicionamento do STF contra o monopólio da conta estatal por banco de iniciativa privada foi tomado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.578. Em sessão do dia 14 de setembro, o Plenário suspendeu a eficácia da parte da Medida Provisória 2.192/01 (artigo 4,º parágrafo 1º), que garantia ao comprador do banco o monopólio da movimentação financeira do Estado até o ano de 2010. (Leia íntegra do voto do ministro Sepúlveda Pertence ao final desta reportagem.)

O PC do B afirma que, por causa dessa decisão, o Banco Central suspendeu o leilão de venda do controle acionário do BEC, alterou o edital de licitação e remarcou o leilão para o dia 13 de outubro, tudo por meio do Comunicado Relevante 04/2005.

O novo edital determina que o pagamento dos servidores e fornecedores do Ceará seja feito por meio do BEC. “Isso, decerto, implica que o BEC será, desde a disponibilização do dinheiro pelo estado até o efetivo pagamento aos servidores, depositário de disponibilidades de caixa do estado do Ceará”, afirma o PC do B na ação. “Então, o dinheiro, com as grandes vantagens que dele advêm, ficará nas mãos do BEC, ainda que por escasso tempo.”

Assim, o partido requer a concessão de liminar para suspender o Comunicado Relevante 04/2005 do Banco Central e, no mérito, pede a sua anulação. O ministro Marco Aurélio é o relator da reclamação.

RCL-3.872

Leia a íntegra do voto do ministro Sepúlveda Pertence no julgamento sobre a MP 2.192

14/09/2005 TRIBUNAL PLENO

MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.578-9

DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE

REQUERENTE(S) : PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL – PC DO B

ADVOGADO(A/S) : ANTÔNIO GUILHERME RODRIGUES DE OLIVEIRA E OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

REQUERIDO(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – O Partido Comunista do Brasil – PC do B – propõe ação direta de inconstitucionalidade, com pedido cautelar, do art. 3º, I; do § 1º do art. 4º, I; e do art. 29 e parágrafo único, da Medida Provisória 2192-70, de 24.08.01 (DOU 25.8.01) e dos incisos I, II e IV, do art. 2º, da L. 9491/97, de 9.9.97.

Da MPr 2192-70/2001, estes os dispositivos impugnados: “Art. 3º Para os fins desta Medida Provisória poderá a União, a seu exclusivo critério:

I – adquirir o controle da instituição financeira, exclusivamente para privatizá-la ou extinguí-la;

(…)

Art. 4º. (…)

§ 1º As disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou das entidades do poder público e empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010.

(…)

Art. 29. Os depósitos judiciais efetuados em instituição financeira oficial submetida a processo de privatização poderão ser mantidos, até o regular levantamento, na própria instituição financeira privatizada ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplicase às instituições financeiras oficiais cujo processo de privatização tenha sido concluído, bem assim às instituições financeiras oficiais em processo de privatização.”

Na Lei nº 9.491/97, questiona-se a constitucionalidade dos

seguintes preceitos:

“Art. 2º Poderão ser objeto de desestatização, nos termos desta Lei:

I – empresas, inclusive instituições financeiras, controladas direta ou indiretamente pela União, instituídas por lei ou ato do Poder Executivo;

II – empresas criadas pelo setor privado e que, por qualquer motivo, passaram ao controle direto ou indireto da União;

(…)

IV – instituições financeiras públicas estaduais que tenham tido as ações de seu capital social desapropriadas, na forma do Decreto-lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987.”

Alega-se violação do art. 164, § 3º, do princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput) e da regra da exigência de licitação (art. 37, XXI, CF).


Aduz-se mais a necessidade de lei específica autorizadora não só para a criação, mas também para a extinção e a alienação do controle acionário de sociedade de economia mista (CF arts. 173 e 37, XIX).

Requer-se a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto para “excluir dos seus alcances a alienação do controle das sociedades de economia mista, que só podem ser adquiridas, extintas ou ter seu controle acionário alienado após autorização legislativa específica”.

Quanto à suspensão da eficácia, requer:

“Todavia, considerando que, em diversos Estados, já se privatizaram instituições financeiras e que esses atos geraram a movimentação de grandes somas de dinheiro, investimentos dos adquirentes, contratos com terceiros, etc., faz-se necessário, por especial deferência ao princípio da segurança jurídica, aplicar o art. 27 da Lei nº 9.868/99 e decidir que a declaração de inconstitucionalidade só tenha eficácia a partir de 01/01/2005 ou de outra data anterior que não prejudique a validade das privatizações já concretizadas em definitivo (caracterizadas pela assunção efetiva e incontornável, pelo adquirente, de todos os negócios do banco privatizado), evitando tão-somente que outras se perfaçam.”

Postula-se a concessão imediata da medida cautelar, nos termos do art. 10, § 3º, da L. 9868/99, dado o curso do processo de privatização do Banco do Estado do Ceará, que tem o leilão do seu controle acionário marcado para 15.9.05, ou a aplicação do § 2º, do art. 11, da LADIn.

Para a decisão sobre a medida cautelar, trago o caso à mesa do Plenário.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – (Relator):

A L. 9868/99 – LADIn – inovando no ordenamento regimental precedente -, reclamou, no art. 10, caput, que à concessão de medida cautelar na ação direta – além de reservada à maioria absoluta do plenário do Tribunal -, fosse precedida da tomada de informações, em cinco dias, dos órgãos partícipes da edição da norma questionada.

Permitiu, no entanto, o § 3º do art. 10, que “Em caso de excepcional urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado.”

O dispositivo foi utilizado pelo Tribunal na ADIn 3075- MC-Pr, 19.12.03, rel. o em. Ministro Gilmar Mendes, contra lei estadual do Paraná, que, no caminho inverso da medida provisória aqui atacada, impunha ao Governador “revogar” de imediato os contratos pelos quais se houvessem transferido a instituição financeira privada a movimentação financeira da administração pública do Estado.

Também na espécie, tenho por manifesta a excepcional urgência da matéria, às vésperas do leilão do controle acionário do Banco do Estado do Ceará, um dos três últimos bancos estaduais a privatizar.

É incontroverso que o manejo das contas públicas do Estado – não importa se explicitado ou não – é fator quiçá determinante na atração dos licitantes do controle societário da instituição, com peso significativo na formação do ágio acaso obtido sobre o preço mínimo.

Desse modo, efetivado o leilão, a eventual concessão da medida cautelar suspensiva da transferência ao adquirente do respectivo contrato de prestação de serviços afetaria as bases do negócio e eventualmente a sua validade.

Conheço, pois, do pedido cautelar.

Argúem-se de inconstitucionais o art. 3º, I, MPr 2.192/70 – que permite à União, a seu único critério, “adquirir o controle da instituição financeira, exclusivamente para privatizá-la ou extingui-la” -, e os incisos I, II e IV do art. 2º, da L. 9491/97, que enumeram as empresas passíveis de desestatização: assesta-se contra a validez desses dispositivos o art. 37, XIX, da Constituição, que, ao exigir lei específica para a criação de empresas públicas ou sociedades de economia mista, por via de conseqüência também a reclamaria para a extinção ou a alienação do controle de tais sociedades estatais.

De minha parte, assim sempre se me afigurou e o manifestei em diversos votos, a começar da ADIn 562-MC, 4.9.91, rel. o em. Ministro Ilmar Galvão, quando ponderei:

“…parece-me indiscutível a relevância do argumento extraído da combinação do art. 37, XIX e XX com o caput do art. 173 da Constituição. De fato, quando ali se diz que a criação de empresas estatais depende de lei específica, é uma competência legislativa que tem duas faces e não há dúvida que se quis – o inciso XX deixa isso muito claro – cercear a proliferação indiscriminada, sobretudo das subsidiárias das empresas públicas e sociedades de economia mista.

Mas, por outro lado, Senhor Presidente, o art. 173 deu à lei um juízo fundamental, o de verificar em que casos, nos termos da própria Constituição, concorrem os “imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo”, a impor o controle estatal de determinados setores da atividade econômica.

Ora, é evidente que a chamada “desestatização” ou “privatização” de empresas estatais envolve um juízo negativo da concorrência desses “imperativos”, que a Constituição considerou e determinou que, quando ocorressem a juízo do legislador, devessem levar à intervenção direta, na atividade econômica, e ao controle de determinados setores da economia pelo Estado.

Portanto, não posso deixar de emprestar relevo a esse argumento. Outras questões, que perdem realce, poderiam ser suscitadas, na medida em que me parece que essa impugnação básica abrange a generalidade da lei.

Entre essas outras questões, além da sugerida pelo Ministro Celso de Mello, lembraria o art.

7º, onde serviços públicos explorados, presumidamente mediante lei, como é normal, por empresas públicas, envolveriam, em caso de “privatização”, a “concessão ou permissão” do serviço à empresa privada. Pouco importa que o esqueleto jurídico dessa empresa permaneça o mesmo. Quando, isto é normal e freqüente, a lei cria uma empresa para explorar determinados serviços públicos – e isso, os doutores já demonstraram exuberantemente – não há concessão nem permissão, mas, sim, delegação legislativa de um serviço público a um ente controlado pelo Estado e criado, especificamente, para explorar esses serviços.

Por isso, nesse ponto, a inconstitucionalidade me parece chapada no art. 7º, na medida em que se viola flagrantemente a exigência específica e enfática, de licitação pública para a “concessão ou permissão” do serviço público, posta no art. 175.

Mas, afora esses pontos duvidosos, que se podem especificar na lei, o que me parece fundamental é a impugnação básica e abrangente, que se põe a esta ampla delegação ao Executivo, sem forma sequer de delegação legislativa, para decidir interesses de tão grande monta, expressamente confiados ao parlamento.

O SENHOR MINISTRO CARLOS VELLOSO- Quer dizer que V. Exa. entende que atividade econômica exercida pelo Estado compreenderia ou estaria sujeita aos mesmos condicionamentos da prestação de serviços públicos? Não os distinguiria?

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Não, distingo. Mas não vejo qual é a pertinência.

O SENHOR MINISTRO CARLOS VELLOSO – A privatização de empresas que exercem atividade econômica tornaria impertinente o argumento do art. 175 da Constituição.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Data vênia, se V.Exa. reler o art. 7º da lei impugnada, verá que não se refere à exploração de atividade econômica, mas refere-se à privatização de empresas que prestam serviço público, privatização que, nos termos do mesmo, pressupõe a outorga pelo Poder Público da “concessão ou permissão” do serviço objeto da exploração. Mas isso é absolutamente lateral. Fico com a impugnação abrangente, que me parece da maior seriedade.”


Mas, então, fiquei vencido, o que se repetiria de outras vezes em que igualmente a lei específica pareceu dispensável à maioria, satisfeita com a autorização legal genérica de desestatização, a ser individualizada, em cada caso, por ato da Administração (v.g., ADIn 1703-MC, Galvão, 27.11.97, DJ 13.8.99; ADIn 1724-MC, Néri, RTJ 171/410; ADIn 1549-MC, Rezek, 16.12.96; ADIn 1724-MC, Néri, 11.12.97, DJ 22.10.89).

As sucessivas derrotas da opinião agora reagitada bastariam a toldar, neste juízo liminar, a plausibilidade da argüição.

Há mais, porém: nos casos regidos pela questionada MPr 2192, que instituiu e disciplinou o Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Bancária – PROES – a transferência à União das ações do Estado no capital da instituição financeira não tem o sentido de criação de uma sociedade mista federal, mas constitui mecanismo preordenado à subseqüente privatização do seu controle ou, frustrada esta, à sua extinção.

De resto, de parte do Estado, a operação pressupõe, conforme o art. 4º, I, a, do edito, a “autorização legislativa da Unidade Federada para (…) a privatização, dentro do prazo acordado com a União, da respectiva instituição financeira” (no caso, ao que se colhe do edital, substantivada na L. est. 12860/98, que autorizou a alienação à União do controle acionário do Banco).

Adquirido o controle da instituição financeira pela União, não para integrá-la no sistema bancário federal, mas, sim, para privatizá-la ou extingui-la, a essa privatização – fim de toda a operação – não parece ser aplicável o raciocínio que, a partir dos arts. 173 e 37, XIX e XX, da Constituição, sustenta a exigência de lei específica.

Indefiro no ponto a medida cautelar: é o meu voto.

De maior peso é a impugnação ao § 1º do art. 4º e ao art. 29 e seu parágrafo da MPr 2192, cujo teor recordo:

“Art. 4º (…)

(…)

§ 1o As disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou das entidades do poder público e empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010.

(…)

Art. 29. Os depósitos judiciais efetuados em instituição financeira oficial submetida a processo de privatização poderão ser mantidos, até o regular levantamento, na própria instituição financeira privatizada ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se às instituições financeiras oficiais cujo processo de privatização tenha sido concluído, bem assim às instituições financeiras oficiais em processo de privatização.”

Contrapõe-lhes o requerente o § 3º do art. 164 da Constituição, verbis:

“Art. 164 (…)

(…)

§ 3º – As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.”

E, ainda, o princípio da moralidade administrativa (art. 37) E a regra do art. 37, XXI, da Lei Fundamental:

“Art. 37 (…)

(…)

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes …”

Em dois casos – ADIn 2600-MC-ES, 24.4.02, Ellen, DJ 25.10.02; ADIn 2661-MC-Ma, 5.6.02, Celso, DJ 23.8.02 – o Tribunal deferiu a medida cautelar para suspender a eficácia de leis estaduais que, a capixaba, determinava e, a maranhense, autorizava ficasse a movimentação financeira do Estado a cargo da instituição privada que viesse a adquirir o controle acionário dos bancos estaduais em processo de privatização.

Em ambos os casos, fundaram-se primacialmente as decisões na incompetência do Estado-membro para estabelecer exceções legais à regra constitucional do art. 164, que reservou à lei federal instituir ressalvas à obrigatoriedade do depósito em instituições financeiras oficiais das disponibilidades de caixa das entidades estatais e das respectivas administrações indiretas.

Os dois acórdãos, entretanto, acresceram, à aceitação do fundamento de ordem formal da incompetência, a da alegação de ofensa substancial ao princípio da moralidade.

Extrato, a respeito, da petição inicial:

“”VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE

De início, cita-se o voto proferido pela Ministra ELLEN GRACIE na ADI 2600-MC, verbis:

“Vejo, também, que essa regra salutar de depósito em bancos oficiais imposta pela Constituição, vai ao encontro do princípio da moralidade previsto no art. 37, caput do seu texto, ao qual deve obediência a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, comentando o dispositivo, não obstante exponham críticas ao modelo de monopólio estatal nele inserto, após considerarem que as exceções a essa regra são de alçada de lei ordinária federal, transcrevem comentário de Wolgran Junqueira Ferreira acerca das conseqüências desse dispositivo na esfera municipal, no sentido de que ‘o fato de obrigar o depósito em instituições financeiras oficiais é medida saneadora, pois evita que o Prefeito faça como seu o saldo médio com o depósito da Prefeitura para obter empréstimos pessoais.” (voto da ministra ELLEN GRACIE – ADI 2600-MC)

.

De fato, a citada norma constitucional tem, como substrato evidente, o princípio da moralidade, que age, nessa situação, como fator impeditivo de atuação ímproba, notadamente no sentido de que, circunscrevendo a atividade legislativa, cerceia a possibilidade de favorecimento indevido de instituições privadas.

Diz-se indevido o favorecimento porque o simples fato de uma instituição financeira adquirir o controle acionário de um banco público não tem, como conseqüência lógica ou operacional, a atribuição da administração da conta única e de seus consectários àquela.

Sem mais delongas, parece salutar transcrever a decisão desse egrégio STF no julgamento da ADI 2661:

(…)

O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO – CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS.

– A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, § 3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. As exceções à regra geral constante do art. 164, § 3º da Carta Política – apenas definíveis pela União Federal – hão de respeitar, igualmente, esse postulado básico, em ordem a impedir que eventuais desvios éticos jurídicos possam instituir situação de inaceitável privilégio, das quais resulte indevido favorecimento, destituído de causa legítima, outorgado a determinadas instituições financeiras de caráter privado.

Precedente: ADI 2.600-Es, Rel. Min. ELLEN GRACIE.”


Ademais, questiona o Partido requerente pudesse a lei, malgrado federal, instituir a exceção discutida:

“AFRONTA AO § 3º DO ART. 164 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O próprio § 3º do art. 164 da Constituição Federal vê-se violado com expediente adotado pela medida provisória.

De fato, o escopo do dispositivo constitucional é claro: favorecer o depósito das disponibilidades de caixa dos Entes Públicos em instituições financeiras oficiais.

Ora, há de convir-se que, conquanto o próprio preceptivo constitucional abra espaço para exceções legais (“ressalvados os casos previstos em lei”), não se lhe pode emprestar interpretação que favoreça a negação de sua própria ratio essendi.

Com efeito, as exceções à regra geral insculpida naquele dispositivo hão sempre de manter-se fiéis à idéia de que, preferencialmente, os depósitos devem ser feitos em instituições públicas. Dessarte, somente quando isso não seja possível, a lei pode excepcionar essa regra, viabilizando o depósito em instituições privadas.

Não fosse assim, a exceção poderia marginalizar a aplicação da regra geral, retirando a efetividade do texto constitucional, o que, decerto, esbarra nas modernas técnicas de interpretação da Constituição.

Forte nesses argumentos, o Ministro NELSO JOBIM assim se manifestou na ADI 2600-MC:

Sr. Presidente, o art. 148 da Constituição do Estado do Espírito Santo, embora possa ter um sentido econômico para valorizar o banco do Estado no processo de privatização, porque asseguraria ao banco um fluxo de caixa constante e a possibilidade de movimentar toda a disponibilidade de caixa do Estado bem como das entidades do serviço público indireto, fere o § 3º do art. 164 da Constituição Federal, e, além disso, estabelece uma retirada do Estado, da possibilidade de obter os seus depósitos de caixa.

Acontece muito com os Municípios, uma espécie de concorrência na taxa de juros.

Os bancos oferecem aos Estados uma série de vantagens, inclusive na contraprestação de serviço no pagamento da folha. Esse banco ficaria com toda a disponibilidade; o pagamento da folha teria de ser feito por ele e fixadas, unilateralmente, as sobretaxas fora de uma concorrência de mercado.

São considerações de natureza econômica e comercial que, embora o art. 148 possa ter sua inspiração inicial no sentido de valorizar o banco do Estado para efeito da concorrência e da sua privatização, porque, evidentemente, seria uma vantagem relativa oferecida ao arrematante das ações do banco e poderia, com isso, elevar o preço, mais seria algo que importa, em curto e médio prazo, um enorme prejuízo econômico para o Estado.

Afora isso, importante e relevante – primário, no caso -, é o § 3º do art. 164, acrescida a circunstância de que a própria lei de responsabilidade fiscal dirime o problema, no sentido de determinar o depósito nos bancos oficiais. A parte final do § 3º destaca: “ressalvados os casos previstos em lei”. É exatamente a hipótese que se deixou aberta para a possibilidade de não haver bancos oficiais em um determinado local do País ou capital do Estado. Com as privatizações dos bancos estaduais, se reduz o espectro dos bancos oficiais, então, abre-se uma janela para a possibilidade de que, não havendo bancos oficiais em determinado local, a lei autorize, sempre como regra de exceção.”

(Ministro Nelson Jobim – ADI 2600- MC).

No mesmo sentido, manifestou-se o Ministro MARCO AURÉLIO na ADI 3075-MC, lançando seu voto nos seguintes termos:

“Senhor Presidente, colho, como regra, que o interesse público se sobrepõe. Assim, preceitua o § 3º do art. 164 da Constituição Federal:

“Art. 164………..

§ 3º – As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.”

Essa é a regra. A exceção deve estar prevista em lei. Deve-se preservar a natureza do instituto da exceção. Não é possível conceber-se que simplesmente se considere, como harmônica com a Carta da República, uma lei que, muito embora balizada no tempo, com uma projeção, como é prevista na medida provisória, até 2.010, acabe por esvaziar por completo o mandamento maior, que é o de contar-se com recursos públicos, potencializando-se, portanto, o interesse público, depositado em instituições financeiras oficiais.

Presidente, a Medida Provisória nº 2.192-70, aqui indexada, foi reeditada pela septuagésima vez.

Creio que os dispositivos a que vou me referir apenas pegaram uma carona na medida provisória que vinha sendo, há muito, reeditada. Trata-se de diversas disposições, cada qual com um sentido próprio. A primeira delas, constante do § 1º do artigo 4º, revela o afastamento, na cláusula final, do preceito constitucional lido por mim.

“§ 1º – As disponibilidades de caixas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos das entidades do poder público e empresas por ele controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização” – portanto o estágio – “ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010”.

Ou seja, colocou-se, com esse dispositivo, em stand by, o preceito constitucional que compele à feitura do depósito das disponibilidades em banco oficial.” (voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 3075-MC).

Evidente, assim, a ofensa ao preceito constitucional gravado no § 3º do art. 164.”


Tenho do mesmo modo como inequívoca a densa plausibilidade da argüição de afronta à regra constitucional da licitação pública.

Aduz a petição:

“Como já mencionado várias vezes, os dispositivos impugnados conferem, ao vencedor da licitação para a aquisição do controle acionário da instituição financeira a ser privatizada, a possibilidade de monopolizar, até o ano de 2010, os depósitos das disponibilidades de caixa do Poder Público.

Na verdade, não é dificultoso perceber que, em essência, a administração da “conta única” não está, de nenhuma forma, atrelada à instituição financeira privatizada. Ao revés, a conseqüência natural da privatização de um banco público seria, por obediência ao § 3º do art. 164 da CF, a imediata transferência das disponibilidades de caixa do Ente Público para outra instituição financeira oficial.

Fica, então, evidente que os objetos distinguemse: de um lado, a “conta única”; doutro, o controle acionário. Para chegar-se a essa conclusão, basta verificar que o controle acionário da instituição financeira submetida a processo de privatização pertence à União, enquanto a conta única é “bem” do Estado, não podendo esta ser licitada por aquela, que nem sequer é sua senhora.

Aliás, o § 1º do art. 4º da MP nº 2.192/70, ao enunciar que as disponibilidades de caixa “poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário“, deixa claro que se trata de dois objetos distintos. Ora, se a instituição financeira adquirente pode retirar banco privatizado a administração da conta única e passar a exercê-la diretamente, fica fácil perceber que esta não é um simples acessório daquele, mas um plus, licitável de per si, que detém individualidade e valor próprios. Donde ser evidente que a autorização normativa caracteriza burla ao princípio da licitação (art. 37, XXI, da CF).

Com efeito, havendo dois objetos distintos – ambos de significativo relevo econômico e social -, a licitação certamente não poderia outorgar, ao vencedor do certame que visa à alienação do controle acionário de instituição financeira, um brinde tão magnífico como a “conta única” do Estado.

A obviedade desse raciocínio permite a qualquer leigo revoltar-se com o conteúdo da medida provisória.

É inegável, por outro lado, que a conta única configura o real atrativo da alienação de bancos públicos. Sem ela, certamente diminuiria o interesse das instituições financeiras em acorrer ao certame.

Todavia, isso não pode servir de pretexto para legitimar o expediente adotado.

Essas considerações já agitaram o pleno do STF, tendo o Ministro CARLOS AYRES BRITTO exposto o seguinte:

“(…) essas disponibilidades não fazem parte do ativo licitado no processo de privatização. Ou seja, no ativo da empresa ofertada à iniciativa privada, mediante processo de privatização, desse ativo não podem fazer parte as disponibilidades de caixa do poder público. Evidentemente, são coisas diferentes. (…) Uma coisa é arrematar o ativo da empresa posta em processo de licitação, da empresa pública, da empresa de economia mista; outra coisa é açambarcar os depósitos, as disponibilidades de caixa, que são do poder público.”

(Ministro Carlos Ayres Britto – ADI 3075-MC).

O Ministro MARCO Aurélio, em rápida intervenção no mesmo julgado, assim se pronunciou: “O caixa não pode emprestar saúde, para efeito de preço, à própria empresa alvo da privatização”.

(Ministro Marco Aurélio – ADI 3075- MC).

Conclui-se, assim, que a medida provisória, ao autorizar a outorga da conta única do Estado ao vencedor da licitação, vulnera o inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal.”

Assentada, nos termos expendidos, a relevância dos fundamentos da ação direta, estou em que é de deferir-se, no tópico, a medida cautelar.

Certo, se se vier ao final a julgar improcedente o pedido, o retardamento do processo de privatização em curso poderá acarretar prejuízos, neles incluído o da redução do valor, para o licitante, da gestão da conta única e da prestação de serviços bancários ao Estado, dado o encurtamento do seu prazo residual.

Dispensa demonstração, no entanto, que, na hipótese inversa, a procedência da ação direta gerará insegurança e prejuízos de maior monta, dado o risco da invalidação do negócio consumado.

Esse o quadro, defiro no ponto a medida cautelar para suspender ex nunc a eficácia do § 1º, do art. 4º, e do art. 29 e seu parágrafo único, da MPr 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, até a decisão definitiva da ação direta, que se processará conforme o rito do art. 12 da L. 9868/99: é o meu voto.

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