Sem prerrogativas

Leia voto do ministro Celso de Mello contra foro especial

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8 de outubro de 2005, 7h00

No julgamento que declarou a inconstitucionalidade do foro especial para ex-autoridades, o ministro Celso de Mello acompanhou o relator, ministro Sepúlveda Pertence, e votou pela não concessão do privilégio para ex-autoridades. O julgamento foi feito no último dia 15. Por sete votos a três, o Supremo Tribunal Federal revogou o artigo 1º da Lei 11.628/02.

Para o ministro Celso de Mello, o Congresso Nacional não tem legitimidade para restringir ou ampliar a competência originária do STF, do STJ, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados. “É uma indevida ingerência normativa do Congresso Nacional.” De acordo com ele, somente por emenda à Constituição se poderia modificar a competência dos tribunais.

“Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos, nada pode justificar a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinado privilégio, ainda que de índole funcional, a certos agentes públicos que não mais se acham no desempenho da função pública.”

Leia a íntegra do voto

15/09/2005 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.797-2 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Trata-se de ação direta na qual se questiona a validade jurídico-constitucional dos §§ 1º e 2º que foram acrescidos ao art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei nº 10.628, de 24/12/2002. Eis o teor dos dispositivos ora impugnados na presentesede de controle normativo abstrato:

Art. 84. (…)§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.” (grifei)

A autora (CONAMP), ao questionar a legitimidade constitucional das normas objeto da presente ação direta, assim expôs, em seus aspectos essenciais, as razões consubstanciadoras de sua pretensão de inconstitucionalidade:

Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao rol exaustivo de competências de cada tribunal, além de se arvorar, desastradamente, em intérprete maior da Constituição.

Com efeito, é cediço que constitui tradição vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a repartição da competência jurisdicional, máxime da competência originária para processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva.


Se assim é com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais regionais federais e aos juízes federais, também o é com relação aos tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada, em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição Federal (…).

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Ora, definir é pôr limites e, se os limites da competência dos tribunais estão no texto constitucional, quer federal, quer estadual, não pode o legislador ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se poder constituinte fosse.

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Inúmeros são, também, os julgados desse colendo Supremo Tribunal Federal, relativamente à falta de sua competência originária para processo e julgamento de ação popular contra o Presidente da República, por se tratar de matéria não contemplada no exaustivo rol de competência fixado em sede constitucional.

Não pode, pois, a lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode ter sede constitucional.

O que já se expôs é bastante para demonstrar a inconstitucionalidade de ambos os parágrafos, aqui questionados.

Especificamente quanto ao § 1°, ora impugnado, o legislador ordinário se arvora em intérprete do texto constitucional, no que diz respeito à própria competência dos tribunais, inclusive dessa Suprema Corte, dando-lhe interpretação divergente daquela já firmada por esse Tribunal Maior, consubstanciada no cancelamento da Súmula 394, que tinha o seguinte enunciado:

‘Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.’

Ora, se o intérprete maior da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já decidiu, há quase um lustro, que o texto constitucional não contempla a hipótese de prorrogação do foro por prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta, não pode o legislador ordinário editar norma de natureza constitucional, como se esta tivesse o condão de compelir a Suprema Corte a voltar à interpretação, já abandonada, de uma norma da Constituição.

Já quanto ao § 2°, o legislador ordinário, a par de travestir-se em poder constituinte e, também em intérprete da Constituição, tal como quanto ao § 1º, pretende revelar, ainda, poderes premonitórios ou servir-se do seu mister legislativo como forma de pressão sobre esse Supremo Tribunal Federal, pois o tema nele posto constitui questão que é objeto de julgamento em curso.


Assim, ambos os parágrafos ora impugnados ofendem não apenas o artigo 102, I; 105, I; 108, I e 125, § 1°, da Constituição Federal, mas também a independência e a harmonia dos poderes do Estado, cravado no artigo 2° da mesma Constituição Republicana.” (grifei)

Vê-se, pois, que a controvérsia jurídica ora em exame, analisada em seus aspectos essenciais, põe em evidência um ponto que se revela impregnado de inquestionável relevo, consistente no reconhecimento da possibilidade, ou não, de o Congresso Nacional, mediante legislação comum, alterar, reduzir ou ampliar – como na espécie – a competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados.

Ou, em outras palavras, considerado o contexto ora em exame, cabe formular a seguinte indagação: pode, o Congresso Nacional, no exercício de sua competência legislativa comum, mediante simples lei ordinária, modificar, sob qualquer aspecto, o rol de atribuições jurisdicionais originárias das Cortes acima referidas, para, nesse complexo de poderes, introduzir novas competências, sem incidir, com tais alterações, em violação ao texto constitucional?

Tenho para mim, Senhora Presidente, que o Congresso Nacional não dispõe desse poder, tal como pude assinalar, nesta Suprema Corte, em despacho cujo teor está assim ementado:

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI Nº 8.429/92). AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RÉU QUE É DEPUTADO FEDERAL. PRETENDIDO RECONHECIMENTO DE SUA PRERROGATIVA DE FORO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MESMO TRATANDO-SE DE PROCESSO DE NATUREZA CIVIL. POSTULAÇÃO QUE BUSCA SUPORTE JURÍDICO NA LEI Nº 10.628/2002. IMPOSSIBILIDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, MEDIANTE SIMPLES LEI ORDINÁRIA, REDUZIR, AMPLIAR OU MODIFICAR A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INTANGIBILIDADE DESSE COMPLEXO DE ATRIBUIÇÕES JURISDICIONAIS MEDIANTE ATIVIDADE LEGISLATIVA ORDINÁRIA, EIS QUE AS HIPÓTESES DEFINIDORAS DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DA SUPREMA CORTE RESULTAM DE MATRIZ CONSTITUCIONAL. ENTENDIMENTO QUE TEM APOIO EM ANTIGO PRECEDENTE FIRMADO POR ESTA SUPREMA CORTE (1895).

A QUESTÃO DA PRERROGATIVA DE FORO ‘RATIONE MUNERIS’. O SIGNIFICADO REPUBLICANO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS: UM VALOR NECESSÁRIO À CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE. RELEVÂNCIA HERMENÊUTICA DA IDÉIA REPUBLICANA. DOUTRINA JURISPRUDÊNCIA. A QUESTIONÁVEL CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 10.628/2002. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DESSE VÍCIO JURÍDICO, POR DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR, NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, NO CASO, DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE PLENÁRIO (CF, ART. 97). PRÉVIA AUDIÊNCIA, PARA ESSE EFEITO, DO SENHOR PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA.

(Pet 3.270/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “inInformativo/STF nº 370/2004)

É por tal razão que entendo revelar-se desvestida de legitimidade jurídico-constitucional a Lei nº 10.628/2002, especialmente se esse diploma legislativo for analisado na perspectiva das atribuições jurisdicionais que a própria Constituição da República deferiu a esta Suprema Corte, considerando-se, para esse efeito, de um lado, razões de ordem doutrinária (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.681/2.683, item n. 17.3, 2ª ed., 2003, Atlas; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, “Ação Popular”, p. 120/130, 1994, RT; HUGO NIGRO MAZZILLI, “O Inquérito Civil”, p. 83/84, 1999, Saraiva; MARCELO FIGUEIREDO, “Probidade Administrativa”, p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros; WALLACE PAIVA MARTINS JÚNIOR, “Probidade Administrativa”, p. 318/321, item n. 71, 2001, Saraiva; MARINO PAZZAGLINI FILHO, “Lei de Improbidade Administrativa Comentada”, p. 173/175, item n. 3.5, 2002, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 558, item n. 7, 23ª ed., 2004, Malheiros; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Vol. 2, p. 117, 1992, Saraiva; SÉRGIO MONTEIRO MEDEIROS, “Lei de Improbidade Administrativa”, p. 176/177, 1ª ed., 2003, Juarez de Oliveira; FRANCISCO RODRIGUES DA SILVA, “Foro Privilegiado para Julgamento de Atos de Improbidade Administrativa, Seu Casuísmo e Atecnias Flagrantes”, “in” Jornal Trabalhista, JTb Consulex, p. 11/12, XX/963, v.g.), e tendo em vista, de outro, que a competência do Supremo Tribunal Federal – precisamente por revestir-se de extração constitucional (à semelhança do que sucede com a competência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais) – submete-se, por isso mesmo, a regime de direito estrito (RTJ 43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/766 – RTJ 94/471 – RTJ 121/17 – RTJ 141/344 – RTJ 159/28 – RTJ 171/101-102, v.g.), não podendo, desse modo, ser ampliada nem restringida por legislação meramente comum (ordinária ou complementar), sob pena de frontal desrespeito ao texto da Lei Fundamental da República.


Veja-se, portanto, que a impossibilidade jurídica de ampliar-se ou de modificar-se a competência originária do Supremo Tribunal Federal incide, diretamente, sobre o Congresso Nacional, quando no exercício de suas funções legislativas ordinárias, pois – insista-se – é de direito estrito a definição constitucional das hipóteses que se referem às atribuições jurisdicionais originárias desta Corte Suprema.

A razão de ser que justifica esse entendimento apóia-se em um dado de extremo relevo, fundado na necessidade de se estabelecer, em torno desse complexo de atribuições jurisdicionais originárias do Supremo Tribunal Federal, um círculo de proteção que impeça indevida ingerência normativa, em sede meramente legislativa, do Congresso Nacional, de cujas funções ordinárias excluiu-se a possibilidade de validamente interferir, mediante legislação comum, na esfera de competência originária desta Suprema Corte.

Diversa, no entanto, bem diversa, é a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, atuando em sua condição de intérprete final da Constituição, proceder à construção exegética do alcance e do significado das cláusulas constitucionais que definem a própria competência originária desta Corte.

Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos.

Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional – e não aos processos de elaboração legislativa – assinala que, “Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos” (grifei).

Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República.

Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitosapós referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO – assinala:


Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de queem se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (…).

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Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular.

Este, o princípio; esta, a regra.

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Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte – o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (…).

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A questão, portanto, é saber da legitimidade quanto ao fim que se tem em mira. Verificada a legitimidade deste fim, todos os meios que forem apropriados a ele, todos os meios que a ele forem claramente adaptáveis, todos os meios que não forem proibidos pela Constituição, implicitamente se têm concedido ao uso da autoridade a quem se conferiu o poder.” (grifei)

Essa percepção do tema, no entanto, porque peculiar ao processo de interpretação constitucional, notadamente aquela dada pelo Poder Judiciário, não legitima a possibilidade de o Congresso Nacional, mediante utilização da teoria dos poderes implícitos ou decorrentes, formular, no plano de suas funções, leis ordinárias interpretativas da própria Constituição da República.

Vê-se, portanto, que são inconfundíveis – porque inassimiláveis tais situações – a possibilidade de interpretação, sempre legítima, pelo Poder Judiciário, das normas constitucionais que lhe definem a competência e a impossibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação simplesmente ordinária, ainda que editada a pretexto de interpretar a Constituição, ampliar, restringir ou modificar a esfera de atribuições jurisdicionais originárias desta Suprema Corte, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais, por tratar-se de matéria posta sob reserva absoluta de Constituição.

Vale ter presente, no ponto, ante sua inquestionável pertinência, a precisa lição de ROGÉRIO PACHECO ALVES (“Improbidade Administrativa”, p. 734/735, Capítulo II, item n. 7.1.2, 2ª ed., 2004, Lumen Juris), em magistério no qual põe em destaque as claras limitações constitucionais que incidem e restringem a função legislativa ordinária do Congresso Nacional:


Cumpre asseverar, de pronto, a evidente inconstitucionalidade das inovações introduzidas pela Lei nº 10.628/2002 uma vez que não é possível estender as hipóteses de competência originária ratione personae do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, previstas taxativamente na Constituição Federal (arts. 102, 105 e 108), através de lei ordinária. Nessa linha, é importante perceber que sempre que a Constituição Federal desejou cometer ao legislador ordinário a disciplina do tema fez-se expressa referência neste sentido, bastando verificar, por exemplo, o que estabelecem os seus arts. 111, § 3º, 121 e 124, parágrafo único, relativamente à competência das Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar. Em resumo, somente por intermédio de emenda ao texto constitucional tornar-se-á possível o disciplinamento do foro por prerrogativa de função em moldes diversos dos atuais, havendo caudalosa jurisprudência do STF no sentido de seu caráter de direito estrito (previsão numerus clausus).

Relativamente aos Tribunais de Justiça, também é vedado à lei ordinária federal ampliar sua competência originária, sendo o § 1º do art. 125 da Constituição Federal bastante claro ao estabelecer que ‘A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça’, o que decorre da própria conformação federativa.” (grifei)

Cabe referir, também, quanto ao tema ora em análise, o autorizado magistério doutrinário de CÁSSIO SCARPINELLA BUENO (“O Foro Especial para as Ações de Improbidade Administrativa e a Lei 10.628/02”, “in” Improbidade Administrativa – questões polêmicas e atuais, p. 438/461, 442, item n. 3, 2ª ed., 2003, Malheiros):

A competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais foi estabelecida, taxativa e restritivamente, pela Constituição Federal. Não há como, sem contrariar os arts. 102, 105 e 108, entender que a lei federal possa definir competência para aqueles Tribunais ou ampliá-las para além dos limites já traçados pelo legislador constituinte. Mudar competência destes Tribunais é objeto de Emenda Constitucional. Nunca de lei ordinária federal.” (grifei) Essa mesma abordagem da matéria é exposta pelo eminente Ministro ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, em obra doutrinária (“Jurisdição e Competência”, p. 63, item n. 46, 13ª ed., 2004, Saraiva) da qual

extraio a seguinte e expressiva passagem:

A competência fixada na Constituição apresenta-se exaustiva e taxativa: dispositivo algum de lei, ordinária ou complementar (salvante, evidentemente, emenda à própria Constituição), poderá reduzir ou ampliar tal competência.” (grifei)

O ilustre Professor FÁBIO KONDER COMPARATO (“Competência do Juízo de 1º Grau”, “in” “Improbidade Administrativa – 10 Anos da Lei n. 8.429/92”, p. 119/129, 124, 2002, Del Rey – ANPR), por sua vez, também conclui, acertadamente, pela impossibilidade de o legislador comum criar novas hipóteses de prerrogativa de foro “ratione muneris”, asseverando, para tanto, que, “no regime constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições republicanas, mas diversamente do que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente constitucional para a criação de privilégios de foro. (…). O legislador não tem competência para tanto” (grifei).


Esse mesmo correto entendimento – que não reconhece, ao legislador ordinário, a possibilidade de outorgar prerrogativa de foro, “ratione muneris”, a determinados réus, nas ações civis por improbidade administrativa – tem sido prestigiado pela jurisprudência dos Tribunais em geral, como o evidenciam, dentre outras, as seguintes decisões:

COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Ação de improbidade administrativa. Conselheiro do Tribunal de Contas. Não é da competência originária do Superior Tribunal de Justiça processar e julgar ação de improbidade administrativa fundada na Lei 8429/92, ainda que o réu tenha privilégio de foro para as ações penais.

Nos termos do art. 105, I, a, da Constituição da República, a competência originária deste Tribunal é para a ação penal, o que não se confunde com a ação judicial para apuração de ato de improbidade administrativa, de natureza administrativa. Nesse contexto, também não é do STJ a competência para decidir medida cautelar preparatória daquela ação.

Improcedência da reclamação.

(Reclamação 780/AP, Rel. p/ o acórdão Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, Corte Especial do E. STJgrifei)

Ação penal promovida contra ex-delegado geral da polícia civil do Estado. Competência por prerrogativa de função estabelecida pelo art. 74, II, da Constituição Estadual, atribuindo ao Tribunal de Justiça a competência para o julgamento nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade imputados ao delegado geral da polícia civil. Cessação do exercício do cargo de delegado geral da polícia civil. Não prevalecimento da competência por prerrogativa de função. Revogação, pelo Excelso Pretório, da Súmula 394. Entendimento do colendo Supremo Tribunal Federal de que a edição da lei n. 10.628, de 24 de dezembro de 2002, não importou na repristinação da Súmula 394. (Inq. (QO) 718-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 23.4.2003). Delegado Geral da Polícia Civil, que deixa a função, não é mais delegado geral, mas delegado em favor de quem a Constituição Estadual não estabeleceu foro por prerrogativa de função. A competência por prerrogativa de função só pode ser estabelecida por norma constitucional. (…). A competência originária do Tribunal de Justiça é estabelecida pela Constituição Estadual, na forma do art. 125, § 1º da Constituição Federal, e a competência originária dos Tribunais Federais foi estabelecida pela Constituição Federal. A modificação de norma constitucional só pode ser feita pelo legislador constitucional e não pelo legislador ordinário. A interpretação das normas constitucionais e legais a respeito da competência compete aos juízes e Tribunais, e não ao legislador ordinário. (…).

(JTJ/SP, Lex, vol. 274/562-563, Rel. Des. PAULO SHINTATE – grifei)

Cabe advertir, de outro lado, que a competência originária dos Tribunais estaduaisserá definida na Constituição do Estado” (CF, art. 125, § 1º) e regulada, no ponto, por lei estadual de organização judiciária, de iniciativa do Tribunal de Justiça local.


As únicas exceções à cláusula inscrita no art. 125, § 1º, da Constituição Federal acham-se descritas no próprio texto da Lei Fundamental da República, no ponto em que esta fixa, diretamente, em “numerus clausus”, hipóteses de competência originária das Cortes judiciárias locais: (a) para o julgamento de ações penais originárias promovidas contra Prefeitos Municipais (CF, art. 29, X) e contra Juízes estaduais e membros do Ministério Público local, ressalvada, quanto a estes últimos, a competência da Justiça Eleitoral (CF, art. 96, III) e (b) para o exame da ação direta interventiva ajuizada com a finalidade de viabilizar a intervenção do Estado-membro no Município (CF, art. 35, IV).

O fato, Senhora Presidente, é que a competência dos Tribunais de Justiça locais, notadamente aquela de caráter originário, é regida por normas fundadas na Constituição da República, na Carta Política dos próprios Estados-membros e nas leis estaduais de organização judiciária.

É por essa razão, como salientam os autores (CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, “op. cit.”, p. 444, item n. 3, v.g.) – que o próprio Código de Processo Civil não define as causas sujeitas à competência originária dos Tribunais estaduais (art. 93), precisamente por respeitar, no tema, a cláusula de reserva de Constituição, que exclui, da esfera do legislador comum da União, a definição das matérias que podem ser incluídas no âmbito das atribuições jurisdicionais originárias dessas mesmas Cortes judiciárias estaduais.

Não se pode desconsiderar que a Constituição Federal, no art. 125, § 1º, expressamente outorgou, ao Estado-membro, a possibilidade de definir, no texto de sua própria Constituição, a competência do Tribunal de Justiça local.

Não cabe, desse modo, ao legislador comum da União, tal como este o fez, impropriamente, ao editar a Lei nº 10.628/2002, modificar, ampliar ou reduzir o rol de competências originárias das Cortes judiciárias locais, pois essa tarefa foi explicitamente deferida, com exclusividade, pelo legislador constituinte, aos próprios Estados-membros.

Cabe ter presente, neste ponto, o autorizado magistério de UADI LAMMÊGO BULOS (“Constituição Federal Anotada”, p. 1.074, 5ª ed., 2003, Saraiva), para quemCabe à Constituição do Estado regular a competência dos Tribunais de Justiça (…)”, sem prejuízo da regulação, por legislação estadual, dos demais temas pertinentes à organização judiciária local.

Impende referir, de outro lado, a precisa lição de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Comentários à Constituição Brasileira de 1988, p. 34, 2ª ed., 1999, Saraiva), segundo a qualQuer a Constituição que a competência dos tribunais estaduais seja fixada pela respectiva Carta Magna, e, assim, não fique a mercê da legislação ordinária. O fito dessa norma é dar maior estabilidade a essas regras” (grifei).


Cumpre assinalar, ainda, por necessário, na linha desse entendimento, que a jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 140/26, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RTJ 175/548, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA), com fundamento no art. 125, § 1º, da Constituição Federal, tem enfatizado caber, às próprias Constituições Estaduais, a fixação da competência originária das Cortes judiciárias locais:

Justiça dos Estados: competência originária dos tribunais locais: matéria reservada às Constituições estaduais.

1. A demarcação da competência dos tribunais de cada Estado é uma raríssima hipótese de reserva explícita de determinada matéria à Constituição do Estado-membro, por força do art. 125, § 1º, da Lei Fundamental da República; o âmbito material dessa área reservada às constituições estaduais não se restringe à distribuição entre os tribunais estaduais da competência que lhes atribua a lei processual privativa da União; estende-se – quando a não tenha predeterminado a Constituição Federal – ao estabelecimento de competências originárias ratione muneris, assim, as relativas ao mandado de segurança segundo a hierarquia da autoridade coatora.

2. Não confiada pela Constituição respectiva a um dos tribunais estaduais, a competência originária para certo tipo de processo, há de seguir-se a regra geral de sua atribuição ao juízo de primeiro grau, que não pode ser elidida por norma regimental.

(RTJ 185/711, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

Cabe acentuar, por pertinente, que a discussão em torno da validade constitucional da Lei nº 10.628/2002 – consideradas as premissas em que esse debate se trava, versando a possibilidade, ou não, de a lei ordinária ampliar a competência originária do Supremo Tribunal Federal (e de outras Cortes judiciárias cujas atribuições também se achem unicamente definidas em sede constitucional) – confere impressionante atualidade ao precedente histórico que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América firmou no caso “Marbury v. Madison”, em 1803, quando aquela Alta Corte enfaticamente assinalou que o delineamento constitucional de suas atribuições originárias foi concebido pelos “Founding Fathers” com o claro propósito de inibir a atuação do Congresso dos Estados Unidos da América, impedindo-o de proceder, em sede de legislação meramente ordinária, a indevidas ampliações da competência daquele Tribunal, fazendo, do rígido círculo traçado pelo Artigo III da Constituição americana, um instrumento de proteção do órgão de cúpula do Poder Judiciário, em face do Poder Legislativo daquela República.

Vale mencionar, neste ponto, a observação feita por BERNARD SCHWARTZ (“A Commentary on the Constitution of the United States”, Part I, p. 367, n. 143, 2ª ed., 1963, The Macmillan Company, New York), a propósito do alto significado político-jurídico de que se revestiu a decisão proferida em “Marbury v. Madison”:

Even more important, as a consequence of the original jurisdiction of the highest Court being derived from the basic document itself, is the placing of such jurisdiction beyond Congressional control. This has been settled ever since Marbury v. Madison. The statute held unconstitutional there was one which was construed as vesting the Supreme Court with the original jurisdiction to issue writs of mandamus. Chief Justice Marshall rejected the contention that, since the organic clause assigning original jurisdiction to the high bench contained no express negative or restrictive words, the power remained in the legislature to assign original jurisdiction in that Court in cases other than those specified. On the contrary, said Marshall, a negative or exclusive sense must be given to the cases of original jurisdiction spelled out in Article III.


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The statute at issue in Marbury v. Madison, was ruled invalid because it sought to give the Supreme Court original jurisdiction in a case not specified by Article III. Under Marbury v. Madison, then, the Congress may not enlarge the original jurisdiction of the high bench. But the reasoning of that great case applies with equal force to legislative attempts to restrict the Supreme Court’s original jurisdiction. The constitutional definition of such jurisdiction deprives Congress of any power to define it. The legislative department may neither extend nor limit the terms of the organic grant. (grifei)

É importante rememorar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, há 110 anos, em decisão proferida em 17 de agosto de 1895 (Acórdão n. 5, Rel. Min. JOSÉ HYGINO), já advertia, no final do século 19, não ser lícito ao Congresso Nacional, mediante atividade legislativa comum, ampliar, suprimir ou reduzir a esfera de competência da Corte Suprema, pelo fato de tal complexo de atribuições jurisdicionais derivar, de modo imediato, do próprio texto constitucional, proclamando, então, naquele julgamento, a impossibilidade de tais modificações por via meramente legislativa, “por não poder qualquer lei ordinária aumentar nem diminuir as atribuições do Tribunal (…)” (“Jurisprudência/STF”, p. 100/101, item n. 89, 1897, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional – grifei).

Em suma, Senhora Presidente, o Congresso Nacional não pode – simplesmente porque não dispõe, constitucionalmente, dessa prerrogativa – ampliar (tanto quanto reduzir ou modificar), mediante legislação comum, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados.

Nem se diga, de outro lado, que o Congresso Nacional, revivendo uma prática que pertenceu ao Poder Legislativo sob a Carta Política do Império do Brasil (art. 15, incisos VIII e IX), poderia, hoje, anacronicamente, mediante atividade legislativa, interpretar a Constituição, tal como sucedeu, p. ex., já no final do período regencial, com a Lei nº 105, de 12/05/1840 (a denominada Lei de Interpretação), que fixou a exegese de determinados preceitos da Constituição imperial, consubstanciados no Ato Adicional de 1834.

Menos viável, ainda, revelar-se-á tal possibilidade, se se considerar que a interpretação consubstanciada na Lei nº 10.628/2002 afeta exegese que o Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guardião da Lei Fundamental, deu ao próprio texto da Carta Política.

A esse respeito, cabe rememorar as procedentes razões que foram expostas no douto voto do eminente Relator:

46. A indagação que assim logo se põe é saber se lei ordinária é instrumento normativo apto a alterar jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal, fundada direta e exclusivamente na interpretação da Constituição da República.


47. A resposta é negativa.

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50. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição.

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57. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente

inconstitucional.

58. Tanto pior se, de sobra, contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal: aí, é claro, haverá indício veemente de inconstitucionalidade material, salvo recuo da Corte.

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62. Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia superior.

63. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisdição constitucional, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental.

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65. Quando, ao contrário, a lei ordinária (ou o ato de governo) é que pretendam inverter a leitura da Constituição pelo órgão da jurisdição constitucional, não pode demitir-se este do seu poder-dever de opor o seu veto à usurpação do seu papel.

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67. Admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia – só constituiria a Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames.


68. Tenho, pois, por inconstitucional o § 1º do art. 84 CPrPenal, acrescido pela lei questionada.

(grifei)

Daí a correta lição expendida pelo ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE (“Revista de Direito Renovar”, vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira “sentença legislativa”, explicitar, em texto de lei ordinária, o significado da Constituição.

Diz esse ilustre autor:

Na direção inversa – da harmonização do texto constitucional com a lei – haveria a denominada ‘interpretação da Constituição conforme as leis’, mencionada por Canotilho como método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de ‘mão trocada’ se justificaria pela maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos.

O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a esse método hermenêutico, que engendra como que uma ‘legalidade da Constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis’.

Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação ‘correta’ do texto constitucional. Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.

(grifei)

Cabe enfatizar, de outro lado, por necessário, que o § 1º do art. 84 do CPP, tal como redigido, traduz hipótese virtualmente idêntica àquela prevista na Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, que foi cancelada quando do julgamento do Inq 687-QO/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES (RTJ 179/912-913), ocasião em que esta Corte, fundada no princípio republicano, corretamente assinalou que “as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como o são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos” (grifei).

Entendo, Senhora Presidente, que o § 1º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628/2002, ao ampliar, indevidamente, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal (e de outras Cortes judiciárias), também incide em outra grave violação constitucional, além daquela referida no início deste voto, pois o diploma legislativo em causa – ao estender, a ex-ocupantes de cargos públicos, a prerrogativa de foro – ofende o princípio republicano, que traduz postulado essencial de nossa organização político- -constitucional.


A evolução histórica do constitucionalismo brasileiro, analisada na perspectiva da outorga da prerrogativa de foro, demonstra que as sucessivas Constituições de nosso País, notadamente a partir de 1891, têm se distanciado, no plano institucional, de um modelo verdadeiramente republicano.

Na realidade, as Constituições republicanas do Brasil não têm sido capazes de refletir, em plenitude, as premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e práticas de poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, o privilégio pessoal e que desconsideram, por isso mesmo, de modo inaceitável, um valor fundamental à própria configuração da idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade.

Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”, p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a experiência de membro da primeira Assembléia Constituinte da República e, também, a de Senador da República e a de Ministro do Supremo Tribunal Federal:

Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (…).” (grifei) Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Nada deve justificar a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinados privilégios, ainda que de índole funcional, a certos agentes públicos que não mais se achem no desempenho da função pública cujo exercício lhes assegurava a prerrogativa de foro “ratione muneris”.

É certo que a prerrogativa de foro – cuja existência é justificada pela necessidade de preservar-se a dignidade da função e de proteger-se a independência de seu exercício – acha-se instituída em nosso sistema constitucional. Mas instituída, Senhora Presidente, considerado o que dispõe a própria Constituição (e somente esta), unicamente para aqueles que se encontrem “in officio”, nunca para os que não mais detenham determinadas titularidades funcionais no aparelho de Estado.

As atribuições constitucionais das Cortes judiciárias, por isso mesmo, devem merecer interpretação que impeça a expansão indevida, mediante atividade legislativa comum, da competência originária dos Tribunais superiores, para que não se privilegiem, de um lado, os ex-ocupantes de cargos públicos, e para que se não iniba, de outro, a aplicação ordinária do postulado do juiz natural.

Entendo importante destacar, neste ponto, Senhora Presidente, que a vigente Constituição do Brasil – ao pluralizar, de modo excessivo, as hipóteses de prerrogativa de foro – incidiu em verdadeiro paradoxo institucional, pois, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática. Na verdade, o constituinte republicano, ao demonstrar essa visão aristocrática e seletiva de poder, cometeu censurável distorção na formulação de uma diretriz que se pautou pela perspectiva do Príncipe (“ex parte principis”) e que se afastou, por isso mesmo, do postulado da igualdade.


Ninguém ignora que a Carta Política do Império do Brasil, de 1824, consagrou apenas cinco (5) hipóteses de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era o órgão de cúpula do Poder Judiciário do regime monárquico (art. 164, II).

A Constituição promulgada em 1988, no entanto, não foi capaz de igual parcimônia, ao ampliar, para quase 20 (vinte), as hipóteses de privilégio de foro, além de conferir autorização aos Estados-membros para incluir, nas Cartas estaduais, outras novas hipóteses de prerrogativa de foro perante os respectivos Tribunais de Justiça, com ressalva, apenas, para os casos de competência do Júri (Súmula 721/STF).

É certo que a prerrogativa de foro, tal como prevista na Constituição da República, acha-se estabelecida “ratione muneris”, destinada a compor o estatuto jurídico de determinados agentes públicos, enquanto ostentarem essa particular condição funcional, porque vocacionada, sempre nas hipóteses definidas no texto constitucional, a proteger aquele que está a exercer ou a titularizar determinada função pública, não se estendendo, porém, por absoluta incompatibilidade com o princípio republicano, aos ex- -ocupantes de certos cargos públicos.

É por tal razão que esta Suprema Corte já se manifestou no sentido de que, tratando-se de determinados ocupantes de cargos públicos, inexiste, quanto a eles, situação de privilégio de caráter pessoal. Trata-se, ao contrário, de uma prerrogativa de ordem estritamente funcional, que, prevista em sede constitucional, destina-se a protegerenquanto derrogação extraordinária dos postulados da igualdade e do juiz natural – aquele que se acha e que ainda se encontra no desempenho de determinado ofício público.

Na verdade, o que deve legitimar o reconhecimento da competência originária do Supremo Tribunal Federal (e das demais Cortes judiciárias) deve ser, unicamente, a atualidade do exercício do mandato ou da titularidade de determinadas funções públicas que justificam a prerrogativa de foro. Nada deve conduzir à preservação dessa competência originária, ainda que mediante invocação da “perpetuatio jurisdictionis”, quando cessado o desempenho funcional do cargo ou do mandato cuja titularidade justificava a aplicação, sempre excepcional, da regra constitucional concernente à prerrogativa de foro.

Por isso mesmo, Senhora Presidente, e considerando que o princípio republicano já se encontra por demais mitigado no atual texto constitucional, entendo que não deva ele sofrer, uma vez mais, nova derrogação, notadamente por via legislativa meramente ordinária, que objetiva conferir, a ex-ocupantes de cargos públicos ou de mandatos eletivos, o foro por prerrogativa de função, que traduz, em minha opinião – não obstante sua larga utilização pela Carta da República – situação excepcional que só deve ser permitida nas hipóteses estritamente autorizadas pela própria Constituição Federal.

Nem se diga, finalmente, Senhora Presidente, que as sanções imponíveis em sede de ação civil por improbidade administrativa revestem-se de natureza penal, em ordem a justificar, com tal qualificação, o reconhecimento, na espécie, da legitimidade constitucional do diploma normativo impugnado nesta sede de fiscalização normativa abstrata.


Não se questiona que os atos de improbidade administrativa podem induzir a responsabilidade penal de seu autor, assumindo, na diversidade dos tipos penais existentes, múltiplas formas de conduta delituosa.

Ocorre, no entanto, que os atos de improbidade administrativa também assumem qualificação jurídica diversa daquela de caráter penal, apta, por isso mesmo, a viabilizar, no contexto da pertinente ação civil pública, a imposição das sanções previstas, expressamente, no art. 37, § 4º, da Constituição Federal, que assim dispõe:

Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” (grifei)

Vê-se, da simples leitura do preceito constitucional em questão, que este distingue, de maneira muito clara, entre as sanções de índole civil e político-administrativa, de um lado, e aquelas de natureza criminal, de outro.

Daí a correta advertência formulada por ALEXANDRE DE MORAES (“Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.648, 2ª ed., 2003, Atlas):

A natureza civil dos atos de improbidade administrativa decorre da redação constitucional, que é bastante clara ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa e a possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao utilizar a fórmula ‘sem prejuízo da ação penal cabível’.

Portanto, o agente público, por exemplo, que, utilizando-se de seu cargo, apropria-se ilicitamente de dinheiro público, responderá, nos termos do artigo 9º da Lei nº 8.429/92, por ato de improbidade, sem prejuízo da responsabilidade penal por crime contra a administração, prevista no Código Penal ou na legislação penal especial.” (grifei)

É tempo de concluir o meu voto, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para julgar integralmente procedente a presente ação direta, em ordem a declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628, de 24/12/2002, que acresceu, ao art. 84 do CPP, os respectivos §§ 1º e 2º, acompanhando, portanto, o doutíssimo voto proferido pelo eminente Relator.

É o meu voto.

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