Competência concorrente

Leia voto do ministro Scartezzini sobre foro estrangeiro

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7 de outubro de 2005, 18h25

O caso do vidente que cobra indenização dos Estados Unidos por supostamente ter informado em primeira mão às autoridades americanas o paradeiro do ex-presidente do Iraque Saddam Hussein pode ser julgado tanto no Brasil como nos EUA, porque no caso se verifica a chamada “competência concorrente”.

Por um lado, se considerado o lugar em que foi feita a promessa e, em conseqüência, em que deve ser paga a recompensa prometida, isto é, o território norte-americano, então o processo deve ter curso nos EUA (artigo 88, II, do Código de Processo Civil).

Por outro lado, se considerado o lugar do qual foram enviadas as cartas, isto é, o território brasileiro, então a causa deve ser julgada pelos juízes brasileiros (artigo 88, III, do CPC).

A observação é do ministro do Superior Tribunal de Justiça Jorge Scartezzini, da 4ª Turma do STJ, ao decidir que a Justiça Federal do Brasil é competente para julgar pedido da recompensa no valor de US$ 25 milhões apresentado pelo vidente Jucelino Nóbrega da Luz ao governo dos Estados Unidos.

O processo será remetido a 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, com a notificação ou citação do governo dos Estados Unidos.

O vidente alega ter direito ao dinheiro porque garante ter informado ao governo americano o local onde Saddam Hussein estaria escondido após a invasão do Iraque. A recompensa foi oferecida pelo presidente dos EUA, George W. Bush, a quem fornecesse informações sobre o paradeiro do ex-líder iraquiano.

Para o relator do recurso, ministro Jorge Scartezzini, em hipóteses como a do caso, a jurisdição nacional não pode ser reconhecida com base, exclusivamente, em regras interiores ao ordenamento jurídico pátrio.

“Ao réves, a atividade jurisdicional também encontra limitação externa, advinda de normas de Direito Internacional, consubstanciado aludido limite, basicamente, na designada teoria da imunidade de jurisdição soberana ou doutrina da imunidade estatal à jurisdição estrangeira”, afirmou.

Leia a íntegra do voto:

RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 – MG (2004/0088522-2)

RELATÓRIO

O Exmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI (Relator): Infere-se dos autos que JUCELINO NÓBREGA DA LUZ ajuizou Ação Ordinária contra ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA – EUA, objetivando o recebimento, a título de recompensa, do importe equivalente a US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), publicamente prometido pelo Estado réu, nos idos de 2003, ao informante do paradeiro do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, finalmente capturado aos 14.12.2003 (fls. 03/09).

Aduzindo prognosticar eventos futuros em sonhos premonitórios, narrou que, desde antes da deflagração do conflito bélico entre EUA e Iraque, havia endereçado missivas a diversas autoridades norte-americanas (fls. 11/15 e versos: à embaixatriz dos EUA no Brasil, aos 13.09.2001 – carta com AR; ao Presidente dos EUA, George W. Bush, aos 01.10.2001 – carta sem AR; ao Presidente do Senado dos EUA, aos 24.06.2002 – carta sem AR), nas quais indicava precisamente o esconderijo de Saddam Hussein, consoante se infere dos seguintes excertos extraídos da carta remetida ao próprio Presidente dos EUA:

"Você terá duas guerras para enfrentar nos próximos anos, uma contra o Afeganistão e uma outra contra o Iraque. Mas irei dizer adiantado onde você (V. Sª.) irá encontrar Saddam Hussein, pois ele irá fugir quando as forças americanas vencerem o Iraque.

Ele estará escondido em: ‘Ad Dawr’, próximo a ‘Tikrit’ – lá você encontrará um pôster da Arca de Noé, ele estará escondido num buraco com 1,8 m de comprimento e 65 cm de largura, coberto com gravetos e um tapete de borracha num sítio na costa do rio Tigre. Haverá tijolos, lama (barro) e lixo para disfarçar a entrada." (fl. 05)


Outrossim, asseverou, não obtendo quaisquer respostas às missivas e iniciada a guerra entre EUA e Iraque, procedeu à remessa de novas cartas, reiterando as informações acerca do paradeiro de Saddam Hussein e, uma vez divulgada a promessa de recompensa pelo Governo norte-americano, solicitando a percepção do respectivo numerário (fls. 16/20 e versos: ao Cônsul dos EUA na cidade de São Paulo, Brasil, aos 05.06.2003 – carta com AR; ao Diretor da Polícia Federal Americana – FBI, aos 17.07.2003 – carta sem AR; novamente ao Presidente dos EUA, George W. Bush, aos 25.08.2003 – carta sem AR).

Por derradeiro, acerca de seus prognósticos, alegou ser previamente conhecido pelas autoridades norte-americanas, bem como brasileiras e espanholas, porquanto também havia previsto e fartamente relatado às mesmas o atentado terrorista de 11.09.2001 (fls. 21/43 e versos: aos Ex-Presidentes dos EUA, George Bush, aos 26.09.1989, e Bill Clinton, aos 28.10.1998; ao Encarregado da Unidade de Pesquisa Pública da Organização das Nações Unidas – ONU, Hasan Ferdous, aos 28.10.1998, 09.08.2000 e 21.05.2001; ao Embaixador da Espanha no Brasil, aos 10.09.1999; ao Ex-Presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, aos 03.08.2000; todas sem AR, obtendo resposta somente às enviadas ao Embaixador espanhol e aos Srs. Hasan Ferdous e Fernando Henrique Cardoso).

O d. Juízo Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais extinguiu o processo sem julgamento de mérito, por extrapolar a causa os limites da jurisdição pátria, haja vista não se enquadrar a pretensão deduzida nas hipóteses de competência internacional previstas nos arts. 88 e 89 do CPC, rechaçando, ademais, com fulcro no art. 9º, caput, e § 2º, da LICC, a incidência, in casu, da legislação brasileira, porquanto, em se tratando de ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), de rigor a aplicação da lei vigente no país onde constituída a obrigação, é dizer, onde residente o promitente (fls. 46/53):

"Entrementes, nem todo litígio pode ser aforado no Brasil e submetido à jurisdição brasileira.

Assim é que o vigorante Código de Processo Civil pátrio delimita a jurisdição, fixando o competência da autoridade judiciária brasileira nas situações elencadas nos arts. 88 (competência concorrente) e 89 (competência exclusiva). (…).

Pelo que se assimila, a partir das normas supratranscritas, o Réu não poderia ser demandado no Brasil para o fim proposto pelo Autor. A um, porque não tem domicílio no País (sendo certo que representação diplomática não se confunde com agência, filial ou sucursal). A dois, máxime, porque os fatos que teriam dado origem à ação não ocorreram no País. (…).

Em prolepse, afaste-se o argumento de que a obrigação de pagar recompensa teria que ser cumprida no Brasil. Careceria de juridicidade tal adução. (…).

Pretende o Autor, com base na lei nacional, compelir o Réu a cumprir aventada obrigação. Invoca o Requerente os preceitos dos arts. 854 e 855 do vigente Código Civil brasileiro, (…).


Segundo estatui a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/1942), que contém regras de Direito Internacional Privado (constituindo um conjunto de normas de sobredireito), ‘para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem’ (artigo 9°, ‘caput’). No caso de manifestação unilateral de vontade (como promessa de recompensa), deve-se reputar constituída a obrigação no lugar em que residir o proponente, como se dessume do § 2, art. 9º/LICC. Portanto, descabe a invocação do Código Civil brasileiro como aplicável ao dissídio instaurado e posto em dirimência. (…).

Desarrazoadamente, cita o Demandante em sua peça de ingresso o § 3º do art. 94/CPC (‘Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor’). Ora, aquele dispositivo legal trata de competência territorial, não sendo pertinente para firmar a jurisprudência brasileira além das hipóteses preconizadas pelos arts. 88 e 89.

Destarte, afigura-se incognoscível, pela jurisdição brasileira, o pleito formulado pelo Autor."

Irresignado, interpõe o autor o presente Recurso Ordinário (art. 105, II, "c", da CF/88), sob alegação de que, por se cuidar de obrigação decorrente de manifestação unilateral de vontade (promessa de recompensa), inaplicável o art. 9º, § 2º, da LICC, referente a obrigações oriundas de contratos, regendo-se a hipótese, ao revés, pelo art. 12, caput, da LICC, vez que compete à Justiça brasileira julgar litígios que envolvam obrigações cujo cumprimento deva ocorrer em território nacional. Desta feita, argúi, sendo domiciliado no Brasil o credor da promessa efetuada, bem como daqui remetidas as cartas indicativas do paradeiro de Saddam Hussein, também no Brasil há de ser efetivado o pagamento do numerário prometido (fls. 55/60).

Ausentes as contra-razões, porquanto não citado sequer o recorrido para os termos da demanda.

O d. Ministério Público Federal opina pelo não provimento do recurso (fls. 73/75), em parecer ementado nos seguintes termos:

"Recurso Ordinário. Competência Internacional. Ação objetivando o recebimento de recompensa. Obrigação a ser cumprida no domicílio do réu, Estado estrangeiro. Não incidência das demais hipóteses legais dos arts. 88, 90 e 94, § 3º, do CPC. Incompetência da Justiça brasileira. Improvimento do recurso."

Após, vieram-me os autos conclusos.

É o relatório.

RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 – MG (2004/0088522-2)

VOTO


O Exmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI (Relator): Sr. Presidente, inicialmente, destaco a competência ordinária deste Colegiado Superior para o conhecimento e julgamento da presente via recursal, com fulcro no art. 105, II, "c", da CF/88, porquanto integrada por "Estado estrangeiro (…), de um lado, e, do outro, (…) pessoa residente ou domiciliada no País".

Trata-se de Recurso Ordinário interposto contra r. sentença de fls. 46/53 que, concluindo pela incompetência da Justiça pátria, extinguiu, sem exame de mérito, Ação Ordinária proposta pelo ora recorrente contra ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA – EUA, sob alegação de constituir-se em credor da promessa de recompensa publicamente efetivada pelo Estado recorrido, equivalente a US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), porquanto, possuindo o dom da premonição, teria indicado o esconderijo do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, capturado aos 14.12.2003.

Como relatado, o d. Juízo a quo, ao extinguir o feito sem julgamento de mérito, embasou-se na ausência de configuração de qualquer das hipóteses determinantes da competência internacional das autoridades judiciárias brasileiras, preconizadas pelos arts. 88 (competência concorrente) e 89 (competência exclusiva) do CPC, rechaçando, ademais, com fulcro no art. 9º, caput, e § 2º, da LICC, a incidência da legislação material pátria, porquanto, em se tratando de ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), de rigor a aplicação da lei vigente no país onde constituída a obrigação, é dizer, onde residente o promitente.

O autor, na razões deste Recurso Ordinário, alegou a inaplicabilidade do art. 9º, § 2º, da LICC, referente a obrigações oriundas de contratos, porquanto, em se cuidando de obrigação decorrente de declaração unilateral de vontade (promessa de recompensa), rege-se a hipótese pelo art. 12, caput, da LICC, vez que compete à Justiça brasileira julgar litígios que envolvam obrigações cujo cumprimento deva ocorrer em território nacional. Destarte, aduziu que, sendo domiciliado no Brasil o credor da promessa efetuada, bem como daqui remetidas as cartas indicativas do paradeiro de Saddam Hussein, também no Brasil há de ser efetivado o pagamento do numerário prometido.

De início, ao correto deslinde da questão perfaz-se imprescindível digressionar acerca dos caracteres da promessa de recompensa, instituto equivalente, em linhas amplas, à declaração unilateral de vontade, manifestada em circunstâncias legalmente autorizadas, dirigida ao público em geral e, portanto, absolutamente independente do consentimento de eventual credor (a publicidade da declaração ocupa o lugar reservado, nos contratos, à aceitação), mediante a qual o declarante obriga-se a gratificar o indivíduo (não se olvidando a possibilidade de serem plúrimos os eventuais credores) que se encontrar em certa situação ou executar determinado serviço.

A propósito da concepção da declaração volitiva una como fonte de obrigações, adotada pelas legislações de certos Estados, revela-se inarredável a transcrição dos seguintes excertos, extraídos da obra do insuperável PONTES DE MIRANDA:

"Se existe uma lei que faz vinculativa a promessa (e quando dizemos lei não nos referimos somente à lei escrita), a relação desde logo se estabelece entre promitente e sociedade, pela lei, que é o instrumento para se realizar um dos processos adaptativos de sociedade. Se não há, como em vários países, a vinculação é nenhuma, antes da aceitação. De modo que, sem lei, a relação é direta entre promitente e promissário, mas apenas a partir da aceitação, prestação do serviço, entrega do objeto inventado etc.; com a lei, a relação é direta entre promitente e sociedade (…).


Na atualidade, a promessa de recompensa não se dirige a ‘ninguém’, mas a ‘todos’ ou, precisamente, a quem, dentre todos, preste o serviço, exercite o que se estipula, exiba o que se perdeu etc. (…). Na promessa de recompensa não há, no momento da formação da ‘obligatio’ uma coincidência entre a vontade do promitente e a do beneficiário incerto, mas não basta isto para que se negue a coincidência entre a vontade da lei e a do declarante, porque sem a estipulação legal não nasceria do ato unilateral o vínculo. (…).

Os negócios jurídicos só podem ser unilaterais (isto é, pode não se dar neles a convergência das vontades de mais de um figurante) se intervém a lei, como expressão da política jurídica. Então a outra figura é a sociedade. (…). O instituto da declaração unilateral não é peculiar ao direito civil e só se opera quando a sociedade tem de acautelar interesses de alguém, que ainda ou já não pode figurar, imediata ou cientemente, no negócio bilateral. Assim na oferta de contrato, quer a pessoa indeterminada, quer determinada, por meio de cartas, anúncios, verbalmente, em pregões ou em autômatos; na estipulação em favor de terceiro; nas promessas de recompensa; nos títulos ao portador etc. Mas a explicação do fato só deve e somente poderá ser entre pessoas, porque se passa no mundo social. A oferta é obrigativa e mantém-se vinculante do seu autor, ainda que esse morra ou caia em incapacidade. Mas liga-o a quem? A si mesmo, respondem uns, sem atenderem a que, assim, reduzem o direito a um caso de consciência, a um simples fato interno. Ao ‘alter’, dizemos nós. É a lei quer prescreve, no interesse social, esta vincularidade. O direito é um mínimo ético, como quer Jellinek; mas as raias do mínimo quem as fixa é a lei, o Estado, a sociedade, e no precisá-las há a política jurídica, que fecunda os atos e as omissões para a criação de laços jurídicos, de relações." ("Da Promessa de Recompensa", atualizado por VILSON RODRIGUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2001, pp. 13, 26, 143/144)

Ainda, quanto à natureza jurídica da promessa de recompensa, duas teorias, tradicionalmente, buscaram outorgar-lhe a devida explicação:

a) teoria contratual, cujos adeptos, entendendo inconcebível a constituição de uma obrigação a partir da tão-só manifestação de vontade do devedor, dissociada do imediato consentimento do credor, viam na promessa de recompensa verdadeira oferta contratual a pessoa indeterminada, protraindo a respectiva vincularidade ao momento de aceitação da proposta, revelada através da execução do ato ou serviço. Cuida-se de corrente elidente do próprio instituto, na medida em que reduz o mesmo à mera fase preliminar de contratação, embora, como consabido, não se confunde a promessa de recompensa com "a oferta, que é a substantivação da primeira fase do processo mecânico-jurídico do negócio jurídico bilateral: oferta + aceitação = acordo ou contrato" (PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 29);

b) teoria da policitação ou promessa, oriunda da pollicitatio romana e, analogamente à teoria contratual, insuficiente à explicação contemporânea do fenômeno sob comento. Os teóricos da policitação admitiam que a manifestação unilateral, por si só, constituísse obrigação ao declarante, mas ignoravam a indispensabilidade da lei a emprestar força vinculativa ao instituto. Ora, hodiernamente, não há como se admitir que da simples promessa feita ao público, independentemente de regra jurídica que a revele, decorra a obrigação; ao revés, frise-se, o que concede à promessa de recompensa atual força vinculativa e obrigacional é justamente a intervenção legal. A propósito da teoria da policitação, já J. M. CARVALHO SANTOS explicitava a inviabilidade de se conceber "que a simples manifestação unilateral da vontade se tornasse obrigatória, sem que houvesse a intervenção da lei, como expressão da vontade social" ("Código Civil Brasileiro Interpretado", v. XX, 10ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1982, p. 131).


Trata-se, pois, de manifestação de vontade de uma só pessoa, emanada em condições legalmente consideradas idôneas à constituição da obrigação, a qual se forma "a partir do instante em que o agente se manifesta com intenção de se obrigar, independentemente da existência ou não de uma relação creditória, que poderá surgir posteriormente" (MARIA HELENA DINIZ, "Curso de Direito Civil Brasileiro", v. 3, 19ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2003, p. 748).

De todo o esposado deflui-se que, ao revés do que se verifica quanto à formação dos contratos, negócios jurídicos bilaterais, reputados perfeitos apenas no momento em que convergem as vontades do proponente e do aceitante (deveras, em nosso ordenamento jurídico, consideram-se vinculadas as partes, nos contratos inter praesentes, no instante em que aceita a proposta pelo oblato e, nos inter absentes, de regra, quando da expedição da resposta positiva à proposta), as obrigações originárias de declaração unilateral de vontade e, em específico, a obrigação de fazer oriunda da promessa de recompensa, acha-se constituída no instante em que se torna pública a oferta de gratificação ao executor de determinado ato ou serviço; precisamente nesta ocasião, em que se confere publicidade à promessa, considera-se existente e válida a obrigação (planos da existência e da validade), e vinculado o proponente perante a sociedade, perfazendo-se irrelevante à configuração da obrigação a imediata manifestação alheia de vontade.

A propósito, na seara da promessa de recompensa, a declaração volitiva alheia poderá verificar-se posteriormente, não importando à constituição da obrigação, reitere-se, mas dando origem a uma relação creditória, integrada ativamente pelo executor da condição ou serviço almejados, o unus ex publico, e passivamente pelo emitente da promessa de recompensa. Ou seja, da execução do ato visado nasce apenas a pretensão concernente ao recebimento das alvíssaras, revelada em relação jurídica posterior (plano da eficácia), e que pode ser judicialmente buscada em face do promitente, haja vista a previsão legal relativa à acionabilidade (ação de adimplemento) da promessa de recompensa (deveras, na atualidade, a par da contemplação, por diversas legislações internacionais, da declaração unilateral de vontade como fonte obrigacional, encontra-se a previsão de exigibilidade, pelo executor do ato ou serviço, da gratificação prometida, ainda que sua atuação não se tenha embasado no interesse da respectiva conquista).

Nesta esteira, buscam-se, novamente, as judiciosas lições de PONTES DE MIRANDA:

"Observamos, desde logo, que os argumentadores pensam em relação jurídica, que é feito, para exigirem que todos os negócios jurídicos sejam bilaterais. Não percebiam e não percebem que a unilateralidade é da vontade: um, só do seu lado, se vincula e se obriga. A relação jurídica, que se constitui, irradiando-se do negócio jurídico unilateral, essa é bilateral, tem os dois pólos, o devedor e o credor. (…).

Em vez de verem a relação jurídica como eficácia dos fatos jurídicos, viram a relação entre manifestantes de vontade. Ora, a relação jurídica é ‘posterius’. Não é preciso que entre os manifestantes de vontade haja bilateralidade. (…).


Se confundíssemos a unilateralidade da manifestação de vontade com a unilateralidade (absurda) da relação jurídica, teríamos o subjetivismo: veríamos o fato, a relação, somente do lado do devedor. Pelo exame do ato do declarante da vontade, e do destinatário, pressupõe-se entre eles vínculo? Seria a ortodoxia do contratualismo absoluto, que se forma por duplo exame subjetivo, auxiliado de frágil dedução. Outro deverá ser o processo: a análise das relações. Essa nos mostrou: a) que não há vínculo obrigacional entre o promitente e o ‘unus ex publico’ antes da apresentação; b) que os títulos ao portador não se explicam como laços entre subscritor e o primeiro, ou, muito menos, todos os portadores; c) que há vínculo, necessariamente, e a análise nos aponta os dois pólos: promitente e todos; d) que esse laço inicial vincular constitui a preforma de outro, que é direito entre promitente ou subscritor e o ‘unus ex publico’ ou apresentante do título; (…).

Se não há lei (direito), a obrigação (jurídica) de manter não existe. A obrigação de cumprir deriva da outra, extrinsecamente; entre elas há mais do que justaposição: aquela é preforma dessa. Nasce o dever, com a conclusão da promessa; nasce a obrigação, com a apresentação do ‘unus ex publico’." ("Tratado de Direito Privado", t. XXXI, atualizado por VILSON RODRIGUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2004, pp. 341, 357, 361, 363)

Pois bem, expostas as linhas mestras do instituto da promessa de recompensa, cumpre analisar o respectivo enquadramento nos dispositivos legais apontados, quer pelo recorrente, quer pelo d. Juízo a quo, como regentes da hipótese sub judice, é dizer, os arts. 9º, caput e § 2º, e 12, caput, da LICC (Decreto-lei nº 4.657/42), consoante os quais:

"Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

(…).

§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente."

"Art. 12. É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação."

A primeira, cumpre esclarecer que, segundo abalizados doutrinadores pátrios (cf. VICENTE GRECO FILHO, "Direito Processual Civil Brasileiro", v. 1, 14ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1999, pp. 175/177; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "Instituições de Direito Processual Civil", v. I, 4ª ed., São Paulo, Malheiros Ed., 2004, p. 335), o supracitado art. 12, caput, da LICC, encontra-se tacitamente revogado pelo art. 88, I e II, do CPC, que regulamentou globalmente a matéria, preconizando:


"Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:

I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II – no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;"

Destarte, quando da análise das alegações do recorrente, ao revés de se cogitar do art. 12, caput, da LICC, perquirir-se-á acerca do eventual enquadramento da demanda aos ditames do art. 88, II, do CPC (competência das autoridades judiciárias pátrias em face da exeqüibilidade da obrigação no território nacional, conquanto contraída no estrangeiro).

De início, quanto à regência material da promessa de recompensa sub judice, implica considerar o disposto no art. 9º, caput, da LICC, norma de Direito Internacional Privado conflitual, regra de conexão (e não norma competencial), a qual "objetiva indicar, em situações conectadas com dois ou mais sistemas jurídicos, qual dentre eles deva ser aplicado. (…). O aplicador da lei seguirá a norma de Direito Internacional Privado como se fora uma seta indicativa do direito aplicável, e, neste, procurará as normas jurídicas que regulam o caso ‘sub judice’." O Direito Internacional Privado "cuida primeiramente de classificar a situação ou relação jurídica dentre um rol de qualificações, i. e., de categorias jurídicas; em seguida, localiza a sede jurídica desta situação ou relação e, finalmente, determina a aplicação do direito vigente nesta sede" (JACOB DOLINGER, "Direito Internacional Privado – Parte Geral", 8ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 49/50, 291).

Assim, na hipótese do art. 9º, caput, da LICC, infere-se, quanto à qualificação da questão jurídica, cuidar-se de constituição de obrigação, cuja sede jurídica ou elemento de conexão consiste no local ou país em que configurado o ato jurídico, sendo o direito material deste país o regulador da situação. Ora, in casu, à luz dos mecanismos específicos da promessa de recompensa, constituída, conforme explicitado, no momento em que manifestada unilateralmente a vontade pelo Estado promitente, tem-se como elemento conector entre as legislações pátria e norte-americana o país em configurada a obrigação, qual seja, os EUA e, pois, como exata a incidência da respectiva legislação, segundo disposto pelo d. Juízo a quo.

Todavia, ao revés do preconizado pelo d. Magistrado singular, o tão-só fato de a hipótese concretamente reger-se por normas estrangeiras é insuficiente a elidir, em princípio, a competência das autoridades judiciárias pátrias, de modo que, restando a mesma eventualmente caracterizada, apenas cumprirá à parte que se valer da legislação adventícia provar-lhe "o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz" (art. 337 do CPC). Confira-se:

"O princípio que, fundamentalmente, rege nesta matéria, vem definido (…) nestes textuais termos: ‘nenhum Estado pode editar leis que, por sua própria força, sejam aplicáveis em países estrangeiros; em cada Estado soberano, a única lei em vigor é a deste mesmo Estado. Mas de conformidade com esta lei, os direitos e os demais interesses, em certos casos, podem depender das leis vigentes em um ou mais Estados’.


Portanto, o princípio segundo o qual a lei de cada Estado impera soberanamente sobre os respectivos cidadãos e sobre todos quantos se acharem em seu território, atingindo suas pessoas, bens e relações, ou sobre os atos que hajam de ser praticados ou executados em seu território, sofre em certos casos a restrição decorrente da incidência e do alcance das leis estrangeiras, quando assim dispuser o direito interno do mesmo Estado." (VICENTE RÁO, "O Direito e a Vida dos Direitos", 1º v., t. I, 2ª ed., São Paulo, Ed. Resenha Universitária, 1976, p. 390)

Prosseguindo, ainda no tocante ao art. 9º da LICC, cujo § 2º dispõe que "a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente", tem-se que tal dispositivo, concernente à determinação do local onde se deva considerar concluídos os negócios jurídicos bilaterais, da qual depende, além da especificação da legislação aplicável ao caso, a apuração do foro competente, conquanto não incida expressamente à hipótese vertente, relativa a obrigação advinda de declaração volitiva unilateral, pode, sim, de forma analógica, ser aplicado à mesma.

Neste particular, cumpre esclarecer que, no relacionado à determinação do lugar de conclusão dos contratos, o ordenamento jurídico pátrio utiliza critério diverso do verificado quanto ao momento da respectiva formação. Deveras, enquanto se considera ultimada a vinculação das partes, nos contratos inter praesentes, no instante em que aceita a proposta pelo oblato e, diversamente, nos inter absentes, estipulados por correspondência epistolar ou telegráfica, quando da expedição da resposta positiva à proposta, adotando-se, em regra, a teoria da agnição ou declaração, na modalidade expedição, ao revés, considera-se ultimado o negócio jurídico, entre partes presentes ou ausentes, no local em que proposto, em que manifestada pelo proponente a vontade de vincular-se. Ora, se para os contratos, nos quais se distinguem duas etapas, é dizer, a proposta e a aceitação, somente releva considerar, para fins de determinação do lugar da respectiva conclusão e, pois, do foro competente, o local da proposta, com maior razão devem-se reputar concluídas as obrigações originárias de atos unilaterais, a cuja formação se mostra totalmente irrelevante a aceitação alheia, no local em que divulgada a vontade única de obrigar-se.

Destarte, configura-se lídima a aplicação, por analogia, do § 2º do art. 9º da LICC à promessa sub judice, rechaçando-se, com esteio em tal argumento, a competência nacional, porquanto o Estado estrangeiro promitente vinculou-se perante a humanidade no local em que publicamente ofertou a gratificação, é dizer, no território norte-americano.

Seguindo tal premissa, impõe-se, ademais, afastar a incidência do disposto no art. 88, II, do CPC, não se delineando, ao contrário do argüido pelo recorrente, a competência das autoridades judiciárias pátrias em razão de supostamente dever cumprir-se a obrigação de fazer o pagamento da recompensa no território nacional. Com efeito, as alegações referentes ao domicílio brasileiro do suposto credor da promessa efetuada e à postagem no Brasil das cartas indicativas do paradeiro de Saddam Hussein não importam na transladação ao território pátrio do local de cumprimento da obrigação, o qual remanesce coincidindo com o lugar em que emitida a declaração unilateral de vontade pelo Estado estrangeiro e concluída a correlata obrigação, qual seja, o território norte-americano.


Ainda, a propósito do local de cumprimento da obrigação de outorga das alvíssaras, esclarece PONTES DE MIRANDA:

"O lugar da entrega da recompensa é determinado pelo teor da promessa, atendido aos casos concretos. Já C. F. Reatz (‘Der Erfüllungsort, Gutachten aus dem Anwaltstande’, I, 559) mostrara que as promessas de recompensa, se são mais do que interesse do promitente, produzem dívidas de levar (‘Bringschuld’), ao passo que as feitas mais no interesse dos candidatos são causadoras de dívidas de vir buscar (‘Holschuld’)." ("Tratado de Direito Privado", t. XXXI, atualizado por VILSON RODRIGUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2004, p. 455)

In casu, obrigando-se o Estado estrangeiro, através da publicidade dada à promessa de recompensa correspondente ao pagamento de US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos) ao informante do paradeiro de ex-ditador, e já estando o território iraquiano sob total domínio das forças bélicas norte-americanas à época em que dirigida aludida promessa de recompensa a todos os povos e nações do mundo, vislumbra-se o predomínio do interesse de eventual prestador da informação em perceber o montante prometido. Logo, a obrigação de entrega do numerário ofertado configura autêntica dívida de "vir buscar", impondo-se àquele que entender fazer jus à gratificação e, em específico, ao ora recorrente, a submissão à jurisdição alienígena do Estado ofertante.

Frise-se, outrossim, que, a despeito do alegado pelo recorrente, no sentido de que, em se cuidando de obrigação em pecúnia, o pagamento deve ser efetuado no domilício do credor, a regra geral sinaliza, justamente, orientação oposta, é dizer, o dever de efetivação do pagamento no domicílio do devedor ("dívida quérable"), notadamente em não se verificando, como na hipótese, disposição legal ou declaração unilateral em contrário, nos peremptórios termos do art. 327 do CC/2002:

"Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias".

Desta feita, nos termos do art. 88, II, do CPC, é dizer, em decorrência do lugar de cumprimento da obrigação de fazer o pagamento da gratificação prometida, não resta caracterizada a competência das autoridades judiciárias pátrias, mas, sim, dos órgãos jurisdicionais norte-americanos.

Aliás, como bem salientado pelo i. membro do Parquet Federal, o recorrente, ao defender a competência nacional com base no art. 88, II, do CPC, "confunde cumprimento da obrigação com eventual nascimento do direito subjetivo à recompensa, que poderia sim ter ocorrido no Brasil, ou em qualquer outro lugar, se eventualmente tivessem sido cumpridas as condições impostas pelo proponente" (fls. 75).

Neste diapasão, porém, torna-se imperioso digressionar quanto ao conteúdo do inciso III do art. 88 do CPC, segundo o qual:


"Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:

(…);

III – a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil."

Isso porque, conquanto o surgimento da pretensão à recompensa, verificado no momento e no local do suposto adimplemento, pelo unus ex publico, da condição ou do serviço imposto pelo promitente, não se confunda com cumprimento da obrigação de fazer o pagamento da gratificação prometida, para fins de caracterização da competência nos termos do art. 88, II, do CPC, mencionado fato pode e, mesmo, deve ser considerado com vistas à configuração da hipótese competencial prevista no supracitado art. 88, III, do CPC.

Deveras, segundo assinalado, a obrigação oriunda da promessa de recompensa considera-se existente e válida tão logo se torna pública a oferta de gratificação ao executor de ato ou serviço estipulados; precisamente aí o promitente vincula-se perante a sociedade, independentemente de qualquer convergência volitiva alheia. Esta, contudo, pode, e mesmo espera-se que se verifique posteriormente à vinculação promitente/sociedade, dando origem a uma relação jurídica creditória, determinante da eficácia da obrigação unilateralmente constituída, e integrada, no pólo ativo, pelo executor da condição ou serviço (unus ex publico) e, no pólo passivo, pelo ofertante da recompensa. Em outros termos, a execução do ato ou da condição estipulados, conquanto não constitua a obrigação advinda da oferta de recompensa, dá origem, sim, à pretensão concernente ao recebimento das alvíssaras e, por conseguinte, em se fazendo necessário, à correlata ação judicial para auferi-la.

Pois bem, nos precisos termos do inciso III do art. 88 do CPC, denotar-se-á a competência das autoridades judiciárias pátrias quando "a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil". Ora, in casu, a ação com vistas à percepção dos US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), numerário publicamente prometido pelo Estado réu (EUA) ao informante do paradeiro de ex-ditador iraquiano, originou-se de fato ocorrido no Brasil, qual seja, a remessa de cartas contendo a informação almejada pelo promitente, consoante se infere dos documentos acostados às fls. 11/20 dos presentes autos.

Em conclusão, conquanto o local de constituição/cumprimento da obrigação unilateral decorrente da promessa de recompensa não sirva à determinação da competência judiciária nacional (art. 88, II, do CPC), o local em que supostamente praticado o fato do qual deriva a presente ação, é dizer, o território brasileiro, mediante a qual se busca justamente provar o adimplemento das condições impostas pelo Estado ofertante, a fim de que lá se possa buscar a recompensa prometida, configura a competência das autoridades judiciárias pátrias (art. 88, III, do CPC), não obstante, como assinalado, em concorrência à competência das autoridades jurisdicionais norte-americanas.

Contudo, em hipóteses como a vertente, a jurisdição, o poder respeitante à dicção do direito pelo Judiciário nacional não pode ser reconhecida com fulcro, exclusivamente, em regras interiores ao ordenamento jurídico pátrio, vez que, como cediço, a competência, internacional (geral) ou interna (especial), traduz-se na delimitação, consoante as normas de determinado país, de um poder maior, qual seja, a jurisdição; em outros termos, consoante bem definida pelo i. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, "a ‘competência’, assim, ‘é a medida da jurisdição’, ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz" ("Jurisdição e Competência", 10ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2000, p. 53).


Ao revés, a atividade jurisdicional dos Estados também encontra limitação externa, é dizer, advinda de normas de Direito Internacional, consubstanciado aludido limite, basicamente, na designada "teoria da imunidade de jurisdição soberana" ou "doutrina da imunidade estatal à jurisdição estrangeira". Deveras, "indaga-se se o Estado estrangeiro pode ser acionado perante a justiça de outro Estado soberano e seu patrimônio, situado no território deste, judicialmente executado, baseado em decisão que lhe seja desfavorável. Se não for possível demandá-lo, resultará sua imunidade de jurisdição, isto é, não estará sujeito à jurisdição de outro Estado soberano, não obstante a justiça desse país, em princípio, ser internacionalmente competente para julgar a relação jurídica objeto da disputa judicial" (BEAT WALTER RECHSTEINER, "Direito Internacional Privado – Teoria e Prática", 5ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2002, pp. 238/239).

Daí que, in casu, não obstante constituir a análise da competência internacional questão preliminar ao mérito do litígio, deve a mesma ser acompanhada pelo exame de eventual imunidade do réu, Estado estrangeiro (ora não se cogitando das imunidades diplomáticas, dos chefes de Estado e das organizações internacionais e correlatos agentes), à própria jurisdição do Estado brasileiro, tema do qual se ocupará a seguir.

Pois bem, da soberania dos Estados decorre a imunidade de jurisdição, é dizer, a prerrogativa conferida aos mesmos de não se sujeitarem a decisões provenientes de órgãos judiciários estrangeiros, a faculdade soberana dos Estados de se perceberem imunes à jurisdição estrangeira; de fato, como exceção ao princípio da territorialidade, segundo o qual os Estados, dentro dos respectivos limites territoriais, exercem com plenitude e exclusividade o poder jurisdicional, vedada a exceção, a priori e presumidamente, de quaisquer situações, o princípio da soberania determina que, face à natureza do réu, Estado soberano, encontra-se limitada a jurisdição dos demais Estados, equivalendo tal contenção à regra da imunidade de jurisdição. A propósito, têm-se como definições emprestadas a mencionado fenômeno:

"Imunidade internacional de jurisdição é a isenção para certas pessoas, da jurisdição civil, penal e administrativa, por força de normas jurídicas internacionais, originalmente costumeiras, praxe, doutrina, jurisprudência, ultimamente convencionais, constantes de tratados e convenções." (HAROLDO VALLADÃO, "Direito Internacional Privado – Parte Especial", v. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978, p. 145)

"Como entes soberanos, desfrutam os Estados, no plano internacional, de certas imunidades. Quando na prática de atos protegidos por imunidade, o primeiro direito que se lhes reconhece é o de não se submeterem à jurisdição de outro Estado soberano. A esse privilégio dá-se o nome de ‘imunidade de jurisdição’. Desdobramento da imunidade de jurisdição, mas que diz respeito especificamente à proteção de que gozam seus bens, outra imunidade assegurada a Estados soberanos é a ‘de execução’, assim entendido o privilégio que impede sejam aqueles bens objeto de medidas constritivas no território de outro Estado soberano." (LUIZ CARLOS STURZENEGGER, Imunidades de jurisdição e de execução dos Estados: proteção a bens de bancos centrais, in "Revista de Direito Administrativo" v. 174, Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, out.-dez./1988, pp. 19/20)


Nestes termos, consiste a imunidade de jurisdição (da imunidade de execução, conquanto aspecto do mesmo instituto, se cuidará em separado) em fenômeno usualmente norteador das relações entre Estados estrangeiros, não obstante divirjam os mesmos quanto à respectiva natureza jurídica. De fato, conquanto empregada amiúde, não equivale a norma de Direito Interno (a legislação específica de cada país presta-se, tão-somente, a limitar a própria imunidade de jurisdição), tampouco fundamentando-se nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, regulamentadoras, seqüencialmente, das relações diplomáticas e consulares, vigentes no Brasil mediante a promulgação dos Decretos nºs 56.435/65 e 61.078/67. Neste particular, fortemente elucidativo o voto proferido quando do julgamento da AC nº 2/DF (DJU 03.09.1990), no qual o e. Ministro Relator BARROS MONTEIRO, após, de início, embasar a imunidade de jurisdição não apenas no Direito Internacional Costumeiro, mas principalmente na "Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas", procede à retificação de seu voto, dispondo, então:

"As Convenções de Viena sobre ‘Relações Diplomáticas’ e sobre ‘Relações Consulares’ aplicam-se tão-somente aos agentes diplomáticos e aos funcionários consulares (…). A imunidade de jurisdição assentava-se exclusivamente no direito consuetudinário, na conformidade, aliás, com o primitivo pronunciamento do então Procurador da República, Dr. FRANCISCO REZEK (RTJ 66, p. 728) e, ao depois, com o voto que S. Exª prolatou na qualidade de Ministro do STF em data de 31.05.1989 [AC nº 9.696/SP], de cujas notas taquigráficas se colhe o seguinte excerto: ‘Numa vertente, temos as imunidades pessoais resultantes das duas Convenções de Viena, de 61 e de 63, ambas em vigor para o Brasil e relacionadas a primeira com o serviço diplomático e a segunda com serviço consular. Quando se cuide, portanto, de um processo de qualquer natureza, penal ou cível, cujo pretendido réu seja membro do serviço diplomático estrangeiro aqui creditado, ou em determinadas hipóteses bem reduzidas do serviço consular estrangeiro, operam em sua plenitude textos de Direito Internacional escrito, Tratados, que, num certo momento, se convencionaram lá fora e que entraram em vigor para o Brasil, sendo aqui promulgados. Ficou claro, não obstante, que nenhum dos dois textos de Viena, do romper da década de 60, dizem da imunidade daquele que, na prática corrente, é o réu preferencial, ou seja, o próprio Estado estrangeiro."

Da mesma forma, não se há considerar como fonte normativa da imunidade de jurisdição a mera cortesia internacional ("comitas gentium") do Estado do foro com relação ao Estado estrangeiro, porquanto, a seguir-se tal entendimento, estaria a imunidade de jurisdição despojada de qualquer juridicidade, quando, ao revés, prevalece a orientação conforme a qual a prerrogativa do Estado estrangeiro de ser imune à jurisdição de outro Estado é obrigação legal, embora, atualmente, desprovida de sua originária extensão absoluta, consoante se abordará, consubstanciando-se em verdadeira norma de Direito Consuetudinário Internacional Público.

Prosseguindo, no concernente à origem histórica da imunidade de jurisdição, situa-se a respectiva gênese, majoritariamente, na equiparação da pessoa dos monarcas aos Estados e, por conseqüência, na aplicação indiscriminada do princípio da igualdade soberana dos Estados, oriundo da regra feudal "par in parem non habet imperium" ("entre iguais não há império"); é dizer, a imunidade de jurisdição própria dos Estados decorre da transferência da titularidade da imunidade, então absoluta, que se reconhecia às pessoas dos soberanos, e acompanha o surgimento do próprio conceito moderno de Estado (na prática, considera-se o "The Schooner Exchange v. McFaddon", julgado pela Suprema Corte dos EUA aos 24.02.1812, como o caso pioneiro de incidência da imunidade estatal, ocasião em que restou consignado: "A jurisdição das cortes é um ramo do que a nação possui como um Poder soberano e independente. A jurisdição da nação dentro do seu próprio território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é susceptível de qualquer limitação, senão imposta por ela mesma. Qualquer restrição a ela, que derive sua validade de uma fonte externa, implicaria numa diminuição de sua soberania, nos limites de tal restrição e uma investidura daquela soberania, nos mesmos limites em que aquele poder que poderia impor tal restrição", apud GUIDO FERNANDO DA SILVA SOARES, "Das Imunidades de Jurisdição e de Execução", Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1984, p. 34). Desta feita, num primeiro momento, tem-se que a imunidade de jurisdição, fulcrada na igualdade soberana dos Estados, era absoluta ou extensiva, não se admitindo, em hipótese alguma, a sujeição de um Estado às decisões proferidas pelos Tribunais de outros Estados (conquanto, na realidade, aludido caráter absoluto jamais tenha se revelado ao extremo de coibir a sujeição de um Estado à jurisdição alheia em causas relativas a imóveis e direitos sucessórios).


Durante o século XX, porém, e, notadamente, a partir da década de 1970, em acompanhamento ao crescente intervencionismo econômico estatal, vislumbrou-se tendência universal à relativização da imunidade de jurisdição, movimento que, na atualidade, encontra-se praticamente consolidado em definitivo (novamente, os EUA, antecipando-se à propensão mundial, já em 1952, em atenção a interesses comerciais, passaram oficialmente a rechaçar a imunidade absoluta aos Estados estrangeiros, consoante se infere do documento denominado "Tate Letter", consistente em carta, com real intuito normativo, remetida pelo então Consultor Jurídico do Departamento de Estado – Jack Tate – ao Procurador-Geral dos EUA). A propósito, em percuciente análise acerca da restrição do conceito clássico de imunidade jurisdicional, leciona o e. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES:

"Essa concepção, no entanto, evoluiu com a dinâmica da comunidade internacional. O Estado, que se mantinha afastado das atividades próprias e típicas da comunidade, adotou, progressivamente, postura diversa.

De fato, com a intervenção dos Estados na economia, alterou-se o quadro em que se moldou o princípio da imunidade de jurisdição. O Estado deixou de ser apenas a entidade organizada da comunidade nacional destinada a representá-la na ordem internacional e a exercer funções políticas próprias e características, para ser, também, promotor do desenvolvimento nacional, influindo no processo econômico ativamente, celebrando contratos comerciais e agindo como pessoa jurídica interessada em resultados econômicos.

O princípio da imunidade de jurisdição, por isso, foi adaptando-se a essa realidade, preservando o seu fundamento: o Estado é imune à jurisdição de outro somente quando atua em sua qualidade específica e própria e no exercício de sua competência política.

Já nos atos em que participa objetivando um resultado econômico, a imunidade de jurisdição passou a ser questionada e deixou de ser aceita pacificamente." (Da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro perante a Justiça brasileira, in JACOB DOLINGER (coord.), "A Nova Constituição e o Direito Internacional", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 210)

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (competente, à época, para apreciação da matéria), após anos de relutância, acabou por acatar a inclinação mundial respeitante à relativização da imunidade jurisdicional, considerando-se emblemático o acórdão proferido quando do julgamento, aos 31.05.1989, da AC nº 9.696-3/SP (caso "Genny de Oliveira"), de Relatoria do e. Ministro SYDNEY SANCHES (DJU 12.10.1990), no qual restou finalmente afastada a imunidade de jurisdição das pessoas jurídicas de direito público externo quanto às causas de natureza trabalhista. Entretanto, não obstante a indiscutível preclaridade do e. Relator, constata-se que o mesmo optou por embasar seu posicionamento no ordenamento jurídico, mais exatamente na então recém-publicada CF/88 que, em seu art. 114, norma, em verdade, de competência interna, incumbiu à Justiça do Trabalho o julgamento dos "dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo". Daí avultar o magistral voto-vista prolatado pelo e. internacionalista, o Ministro FRANCISCO REZEK, peça erigida em referência obrigatória quanto ao tema da imunidade relativa de jurisdição, da qual imprescindível a extração dos seguintes excertos:


"Antes de definir as razões do meu voto, lembro, à luz do voto do Relator, Ministro SYDNEY SANCHES, que a Constituição de 1988, no seu art. 114, diz que compete à Justiça do Trabalho o feito de índole trabalhista, o litígio entre trabalhador e empregador, nesta categoria incluídos os entes de direito público externo.

Parece-me – é neste ponto que divirjo do eminente Relator – que essa é uma norma relacionada tão-só com a competência. (…).

Tudo quanto há de novo, no texto de 1988, é um deslocamento da competência: o que até então estava afeto à Justiça Federal comum passou ao domínio da Justiça do Trabalho. (…).

Volto ao tema de fundo. Aquela antiga e sólida regra costumeira de direito internacional público, a que repetidamente este Plenário se referiu, deixou de existir na década de setenta. Em 1972 celebrou-se uma convenção européia sobre imunidade do Estado à jurisdição doméstica dos demais Estados (‘European Convention on State Immunity’, Basiléia, 16 de maio de 1972). Nessa convenção, que é casuística como diversos textos de igual origem, talvez o leitor não possa detectar o substrato filosófico da fronteira que se terá estabelecido entre aquilo que é alcançado pela imunidade e aquilo que não o é mais; entre o que os Estados pactuantes entenderam estar no domínio dos atos de império e no dos atos de mera gestão.

Bem antes da celebração desse tratado, já fermentava em bom número de países a tese de que a imunidade não se deveria mais admitir como ‘absoluta’. A imunidade deveria comportar temperamentos. Naquela época o Supremo, embora ciente dessa realidade, preservava sua postura fiel à tradição da imunidade absoluta. A nosso ver, certas quebras tópicas do princípio da imunidade absoluta estavam ocorrendo nas capitais de determinados países do Ocidente, onde Estados estrangeiros se faziam representar não só para atos de rotina diplomática ou consular, mas também para atividades inteiramente estranhas a esse intento. (…). Era mais do que natural que os Governos locais em certo momento se advertissem de que semelhante ação não podia ser alcançada pela imunidade. Por quê entendíamos, nós, que essa idéia variante da velha tradição não nos alcançava? (…).

Nos anos setenta o que sucedeu de novo foi (…) uma postura excludente da imunidade em feitos decorrentes de toda interação entre a agência representativa do Estado estrangeiro e o meio local desvestido de oficialidade. (…).

Não bastasse a convenção européia, vem depois o legislador norte-americano e edita, em 21 de outubro de 1976, o ‘Foreign Sovereign Immunities Act’, lei minuciosa naquilo que dispõe, e que assume a mesma diretriz da convenção. (…).

Em 1978, no Reino Unido, promulga-se o ‘State Immunity Act’. Esse texto, inspirado ao legislador britânico pela Convenção Européia e pela lei norte-americana, diz, naquilo que operacionalmente nos interessa, a mesma coisa: a imunidade não é mais absoluta. (…).


Em 1986, na Academia de Direito Internacional de Haia, o Professor Peter Troobof, de Nova York, dava um curso sobre esse exato tema: o aparecimento de um consenso sobre os princípios relacionados com a imunidade do Estado. E deixava claro que o princípio da imunidade absoluta não mais prevalece (P. D. Troobof, ‘Foreign State Immunity: Emerging Consensus on Principles’, Recueil des Cours, vol. 200, 1986, pp. 235 e ss.).

Independentemente da questão de saber se há hoje maioria numérica de países adotantes da regra da imunidade absoluta, ou daquela da imunidade limitada – que prevalece na Europa ocidental e que já tem fustigado, ali, algumas representações brasileiras -, uma coisa é certíssima: não podemos mais, neste Plenário, dizer que há uma ‘sólida regra de direito internacional costumeiro, a partir do momento em que desertam dessa regra os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e tantos outros países do hemisfério norte. Portanto, o único fundamento que tínhamos – já que as convenções de Viena não nos socorrem a tal propósito – para proclamar a imunidade do Estado estrangeiro em nossa tradicional jurisprudência, desapareceu: podia dar-nos por raquítico ao final da década de setenta, e hoje não há mais como invocá-lo. (…).

O quadro interno não mudou. O que mudou foi o quadro internacional. O que ruiu foi o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida – quando ela o era -, e que assegurava a imunidade em termos absolutos."

Pois bem, relativizada a noção de imunidade estatal às jurisdições estrangeiras, remanesce como principal desafio aos Estados a percepção dos critérios de temperamento que separam as causas ditas jurisdicionáveis daquelas acobertadas pela imunidade soberana, daí advindo, em inúmeras hipóteses, ora a recusa injustificada ao privilégio consagrado pelo Direito Costumeiro Internacional, em autêntico exercício indevido da jurisdição, ora a admissão indiscriminada da imunidade estatal, em violação à inafastabilidade da jurisdição. Com efeito, os limites exatos da relativização da imunidade somente poderiam ser uniformemente traçados mediante consenso internacional, por exemplo, com a aprovação do projeto de "Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens", elaborado pela Comissão de Direito Internacional do ONU. Por outro lado, inexistindo legislação terminante a respeito, podem ser resumidas em duas as soluções adotadas pelos Estados com vistas à delimitação das hipóteses em que presente a imunidade de jurisdição, face à respectiva relativização, sempre em observância à evolução dos costumes advindos do Direito Internacional:

1) a distinção entre atos de império ("acta jure imperii") e gestão ("acta jure gestionis"), de modo que somente quanto aos últimos, correspondentes aos atos praticados pelo Estado enquanto particular (em regra, atividade estatal de natureza comercial), por não estarem alicerçados na igualdade soberana, seria possível restringir-se a imunidade estatal, criando-se, destarte, verdadeira regra de jurisdição "ratione materiae" entre os Estados.

Aludida diferenciação, no entanto, perfaz-se fortemente subjetiva, valendo-se os Estados, em suma, de dois critérios à respectiva efetivação, sendo que "um caracteriza o ato governamental por sua natureza jurídica, negando imunidade às atividades que são igualmente empreendidas pelos particulares; outro perquire a finalidade ou o objetivo do ato, concedendo a imunidade para os atos diretamente ligados a funções públicas" (JACOB DOLINGER (coord.), A imunidade estatal à jurisdição estrangeira, in "A Nova Constituição e o Direito Internacional", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 196).


Neste particular, entendem-se relacionados a funções públicas, consoante preconizam os i. LUÍS ROBERTO BARROSO e CARMEN TIBURCIO, os "a) atos legislativos; b) atos concernentes à atividade diplomática; c) os relativos às forças armadas; d) atos da administração interna dos Estados; e) empréstimos públicos contraídos no estrangeiro" (Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros, parecer a integrar obra coletiva, provisoriamente intitulada "Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger", atualmente no prelo, cujo original nos foi gentilmente cedido pelos autores, em referência a JEAN-FLAVIEN LALIVE, L’immunité de juridiction, in "Recueil des Cours", t. 84-III, 1953, pp. 285/286: "Sont considérés comme actes de puissance publique: a) les actes d’administration intérieure de l’Etat (p. ex. expulsion d’un étranger, refus d’autorisation de séjour); il est clair que des faits de cet ordre ne sauraient entraîner une action en responsabilité devant des tribunaux étrangers; b) les actes législatifs (p. ex. loi de nationalisation: une loi de cette nature ne saurait être attaquée devant un tribunal étranger); c) les actes concernant les forces armées, navales et aériennes de l’Etat (on échapperait ainsi à la difficulté soulevée par le système que le Juge Weiss préconisait il y a quelque trente ans à l’Académie de droit international en s’attachant à la nature de l’acte, ce qui autorisait une action judiciaire relative à l’achat ou à la construction d’un cuirassé); d) les actes relatifs à l’activité diplomatique de l’Etat (de la sorte, le domaine des immunités diplomatiques au sens étroit ne serait pas affecté; par exemple, une action judiciaire relative à un immeuble occupé par la mission diplomatique de l’Etat étranger serait déclarée irrecevable); e) d’après certains auteurs et d’après l’Institut de droit international, on pourrait ajouter les emprunts publics contractés à l’étranger. La question est délicate. Les arguments contraires à l’immunité paraissent toutefois devoir l’emporter en principe").

De outra feita, estariam imediatamente vinculados às funções privadas dos Estados, em regra, os atos ditos "comerciais", neste aspecto prevalecendo a teoria da "lex fori" (lei do foro) como a usualmente utilizada pelos Estados para a qualificação dos atos de gestão; ou seja, a classificação dos atos de um Estado estrangeiro como comerciais, determinante da respectiva submissão à jurisdição de outro Estado, é efetuada segundo a legislação interna deste último.

Destarte, a admissão da diferenciação, altamente subjetiva, entre atos de império e gestão como fundamento único e suficiente à delimitação da imunidade de jurisdição, à vista de sua concepção relativa, encontra severas objeções, na medida em que, com efeito, torna o fenômeno sob estudo compreensível segundo a diversidade dos modelos político-econômicos abertos aos Estados:

"A verdade é que a conceituação de atos governamentais ‘jure gestionis’, ou seja, da atividade estatal de natureza comercial, exige um julgamento que depende da filosofia política que se adote quanto à esfera específica da atividade estatal e das prioridades da política governamental." (JACOB DOLINGER, A imunidade jurisdicional dos Estados, in "Revista de Informação Legislativa" v. 76, Brasília, Senado Federal, out.-dez./1982, p. 12)

"Se, outrora, havia certa uniformidade quanto ao papel do Estado, notadamente na concepção do ‘laissez-faire’ que predominou no Século XIX, hodiernamente há grande disparidade, sobretudo entre os países de economia capitalista, em confronto com os comunistas. Mesmo os que adotam o mesmo modelo político-econômico não seguem o idêntico padrão, havendo os que interferem com maior ou menor intensidade no processo de desenvolvimento social. A esse propósito é significativa a observação da Suprema Corte dos Estados Unidos na decisão do caso ‘Pesaro’: ‘não conhecemos nenhum costume internacional que nos obrigue a considerar como atribuição pública menos importante, em tempos de paz, a conservação e a melhoria da prosperidade econômica de um povo do que a manutenção e o treino de uma força naval’." (JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, op. cit., p. 211).


2) a adoção do critério normativo, é dizer, a verificação de iniciativas estatais unilaterais no tocante ao estabelecimento de normas internas limitadoras da imunidade jurisdicional, de regra, mediante a técnica de enumeração expressa e taxativa das atividades em que inviável aos Estados beneficiarem-se do privilégio da imunidade de jurisdição, sendo aludido rol especificado não em razão, tão-somente, da configuração do ato como de gestão, mas basicamente em atenção à evolução dos próprios costumes internacionais (relativização histórica da imunidade quanto às ações imobiliárias e sucessórias, e evolutiva no concernente, entre outras, às lides comerciais e marítimas, trabalhistas, indenizatórias, societárias). Trata-se de critério perfeitamente possível, já que, não se afastando a imunidade, norma de Direito Consuetudinário Internacional, de observância obrigatória, são os Estados, como consabido, soberanos para legislar internamente em seus territórios, impondo limites que reputarem convenientes ao privilégio da imunidade de jurisdição.

Cuida-se mesmo, aliás, de parâmetro plenamente recomendável, porquanto "à falta de uma convenção internacional, os interesses de todos os envolvidos no problema da imunidade de jurisdição estarão mais bem resguardados se os Estados dispuserem, em leis internas, quais causas envolvendo Estados soberanos que interpretam poder submeter à jurisdição de suas cortes. O Estado soberano definirá suas ações no território estrangeiro com mais certeza quanto à extensão do seu privilégio de foro, os particulares farão negócios com Estados estrangeiros em ambiente jurídico mais seguro e o Estado do foro reduzirá a probabilidade de ser chamado à responsabilidade internacional que, na ausência de lei interna, potencializa-se em cada sentença judicial que interpreta os obscuros limites do direito consuetudinário internacional" (ANTENOR PEREIRA MADRUGA FILHO, "A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado Brasileiro e o Novo Direito da Imunidade de Jurisdição", Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2003, p. 243).

O Legislativo brasileiro, contudo, optou por não especificar, em lei própria, os limites à imunidade de jurisdição. Ademais, tal orientação prevaleceu mesmo em se cuidando de regulamentação esparsa (salvo raras hipóteses, relativas, na verdade, à competência, v. g., a previsão do art. 114 da CF/88, com a redação da EC nº 45/2004, consoante o qual, no que releva ao feito, "Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo (…);"), segundo se verificou, recentemente, quando da elaboração do novo Estatuto Civil (2002). Deveras, a novel legislação, ao distinguir as pessoas jurídicas de direito público interno e externo (art. 40 do CC/2002), caracterizando-as (arts. 41 e 42 do CC/2002), optou por excluir de seu regime de responsabilidade civil as pessoas jurídicas de direito público externo (art. 43 do CC/2002), relegando a respectiva regência ao Direito Internacional Público.

Desta feita, conquanto tais normas internas não se constituam, por óbvio, em normas de Direito Internacional e, por conseguinte, não demandem respeito pelos demais Estados integrantes da comunidade externa, configuram relevante substrato à análise dos costumes internacionais vigentes na atualidade, a serem observados no tocante à relativização da imunidade jurisdicional. Portanto, com base, notadamente, na "European Convention on State Immunity" e respectivo Protocolo Adicional (1972), na "Foreign Sovereign Immunity Act" (EUA/1976), na "State Immunity Act" (Reino Unido/1978), bem como no projeto de "Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens" (ONU), têm-se como exceções recorrentes ao princípio da imunidade de jurisdição:

a) lides imobiliárias e sucessórias (inventário e partilha), que, aliás, como assinalado, já eram tidas por excepcionais mesmo quando interpretada a imunidade de forma absoluta;


b) ações relativas a atos comerciais, inclusive aquelas referentes ao comércio marítimo, bem como ao Direito Comercial Societário (participação em sociedades comerciais), por serem atividades tipicamente de gestão, exercidas pelo Estado enquanto interventor na economia, extraindo-se, como exemplos, o transporte de passageiros, o fornecimento de bens e serviços, até mesmo bancários;

c) lides trabalhistas, em sendo as relações laborais firmadas entre Estado estrangeiro empregador e particular nacional empregado, quer se cogite de contrato de trabalho ou de prestação de serviços, salvo se para o exercício de funções diplomáticas;

d) causas relativas a responsabilidade civil, em regra, desde que soberano o caráter do ato ilícito praticado.

Nesta esteira, o i. HAROLDO VALLADÃO, representante da doutrina pátria referente à imunidade restrita dos Estados estrangeiros face ao Poder Judiciário brasileiro, preconizava mesmo antes da promulgação da CF/88, em orientação que remanesce integralmente aplicável na atualidade, vez que consonante aos costumes internacionais consagrados, como visto, pelas leis internas supracitadas:

"A doutrina brasileira segue a orientação da imunidade restrita (…). Assim, os Estados estrangeiros podem ser acionados no Brasil nas seguintes hipóteses: a) ações reais, referentes a uma coisa, móvel ou imóvel, encontrada no território; b) ações fundadas na qualidade do Estado como herdeiro ou legatário ou cessionário de sucessão aberta no território; c) ações referentes a um estabelecimento mercantil, industrial ou a uma estrada de ferro, explorados no território; d) ações decorrentes de contratos concluídos pelo Estado estrangeiro no território, se a execução completa no mesmo território pode ser pedida por cláusula expressa ou segundo a própria natureza da ação; e) ações de perdas e danos oriundas de delito ou quase delito praticado no território; f) litígios em virtude de um ato que não é do poder público." (op. cit., p. 153)

A propósito, confiram-se os arestos, emanados deste Tribunal Superior (art. 105, II, "c", da CF/88), segundo os quais se denota a limitação emprestada pela jurisprudência pátria à imunidade internacional de jurisdição, rechaçada em sua forma absoluta:

a) quanto a lides imobiliárias, especificamente no que se refere à cobrança de impostos e taxas decorrentes da aquisição e do uso de imóveis:

"DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO – IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO – EVOLUÇÃO DA IMUNIDADE ABSOLUTA PARA A IMUNIDADE RELATIVA – ATOS DE GESTÃO – AQUISIÇÃO E UTILIZAÇÃO DE IMÓVEL – IMPOSTOS E TAXAS COBRADAS EM DECORRÊNCIA DE SERVIÇOS PRESTADOS PELO ESTADO ACREDITANTE.

Agindo o agente diplomático como órgão representante do Estado estrangeiro, a responsabilidade é deste e não do diplomata.


A imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro só foi admitida até o século passado.

Modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado Estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica atos de gestão.

O Estado pratica ato ‘jure gestiones’ quando adquire bens imóveis ou móveis.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, mudando de entendimento, passou a sustentar a imunidade relativa.

Também o Colendo Superior Tribunal de Justiça afasta a imunidade absoluta, adotando a imunidade relativa do Estado Estrangeiro.

Não se pode alegar imunidade absoluta de soberania para não pagar impostos e taxas cobradas em decorrência de serviços específicos prestados ao Estado Estrangeiro.

Recurso provido." (RO nº 6/RJ, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, DJU 10.05.1999)

Todavia, aludida orientação, atualmente, é objeto de questionamentos nesta Corte Superior, em consonância à orientação do Pretório Excelso:

"TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO.

1. As questões de direito público referentes à cobrança de débitos tributários estão abrangidas pela regra de imunidade de jurisdição de que goza o Estado Estrangeiro. Aplica-se, na hipótese vertente, as Convenções de Viena, de 1961 e 1963. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

2. Recurso a que se nega provimento." (RO nº 35/RJ, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJU 23.08.2004)

b) quanto a ações fulcradas em atos comerciais:

"Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. Inocorrência. Precedentes. Competência da Justiça brasileira. Recurso desprovido.


– O Direito Internacional Público atual não tem prestigiado como absoluto o princípio da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro, impondo-se à confirmação a erudita decisão que deu pela competência da Justiça brasileira. (…).

Finalmente, esta Quarta Turma aderiu ao entendimento restritivo da imunidade absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro (…), afirmando não ser o Estado estrangeiro imune à jurisdição brasileira enquanto cuida de atividades comerciais rotineiras em território pátrio.

Essa, inegavelmente, é a hipótese vertida nos autos, nos quais a recorrida pretende haver da recorrente crédito correspondente ao fornecimento de materiais (vidros) para a construção da Chancelaria daquele país em Brasília. Assunto marcadamente rotineiro e de natureza comercial, que não isenta a recorrente de se ver demandada, quanto ao ponto, perante a Justiça brasileira (…)." (Ag nº 757/DF, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJU 01.10.1990)

c) quanto a lides trabalhistas:

"Estado estrangeiro – Reclamação trabalhista – Imunidade de jurisdição.

O princípio da imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros era entre nós adotado, não por força das Convenções de Viena, que cuidam de imunidade pessoal, mas em homenagem aos costumes internacionais. Ocorre que esses tendo evoluído, não mais se considera essa imunidade como absoluta, inaplicável o princípio quando se trata de litígios decorrentes de relações rotineiras entre o Estado estrangeiro, representados por seus agentes, e os súditos do país em que atuam.

Precedente do Supremo Tribunal Federal [AC nº 9.696-3/SP]." (AC nº 7/BA, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, DJU 30.04.1990)

"DIREITO INTERNACIONAL E TRABALHISTA. RECLAMATÓRIA MOVIDA CONTRA CONSULADO-GERAL DE PAÍS ESTRANGEIRO, POSTULANDO VERBAS LABORAIS POR SERVIÇOS PRESTADOS NO BRASIL. IMUNIDADE JURISDICIONAL AFASTADA.

I. A imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança litígios de ordem trabalhista decorrentes de relação laboral prestada em território nacional e tendo por reclamante cidadã brasileira aqui domiciliada.

II. Precedentes do STJ.


III. Recurso ordinário improvido." (RO nº 23/PA, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJU 19.12.2003)

d) quanto a ações versando responsabilidade civil:

"Ação de indenização. Estado estrangeiro. Alegação de imunidade de jurisdição. Não reconhecimento. Recurso cabível da sentença.

Responsabilidade pelo fato de terceiro. Falta de comprovação de ter o terceiro agido com culpa. (…).

II – A apelação é o recurso ordinário adequado, endereçado diretamente ao STJ, para impugnar sentença proferida em causa em que forem partes Estado estrangeiro, de um lado, e, de outro, pessoa residente ou domiciliada no País (CF, art. 105, II, ‘c’).

III – Não há imunidade de jurisdição para o Estado estrangeiro, em causa relativa a responsabilidade civil.

IV – Não comprovado que o seu preposto tenha agido com imperícia ou imprudência, como terceiro participante de fato causador do evento danoso [acidente automobilístico], não há como impor-se ao réu o dever de indenizar.

V – Agravo de instrumento e apelação desprovidos." (AC nº 14-2/DF, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, DJU 19.09.1994)

Ante todo o esposado, em sendo repelida, na atualidade, a imunidade de jurisdição dos Estados em sua concepção absoluta, porém, inexistindo legislação firmada consensualmente pela comunidade internacional acerca dos exatos limites da relativização do instituto sob comento, conclui-se que a imunidade jurisdicional deve ser aferida de forma casuística, inadmitindo-se generalizações, mesmo face à presença de leis internas.

In casu, portanto, não se verificando, segundo os costumes internacionais, quaisquer hipóteses excludentes da regra da imunidade de jurisdição, mostra-se devida a respectiva aplicação. Deveras, seja com fulcro na distinção entre atos de império e gestão, seja com lastro na comparação das praxes enumeradas em leis internas de diversas Nações como excludentes do privilégio da imunidade, inviável considerar-se o presente litígio, disponente sobre o recebimento, por cidadão brasileiro, de recompensa prometida por Estado estrangeiro (EUA) enquanto participante de conflito bélico, como afeto à jurisdição nacional.


Em outros termos, conquanto não se ignore a possibilidade de efetivação de promessa de recompensa por particulares, na hipótese vertente, tal manifestação unilateral de vontade não evidenciou caráter meramente comercial, tampouco expressou relação rotineira entre o Estado estrangeiro (EUA) e os cidadãos brasileiros; muito ao revés, aludida promessa de recompensa consubstanciou verdadeira expressão de soberania estatal, revestindo-se de oficialidade, sendo motivada, de forma atípica, pela deflagração de guerra entre o Estado estrangeiro promitente (EUA) e Nação diversa (Iraque), e conseqüente persecução, por aquele, de desfecho vitorioso; por outro lado, não se inclui o ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), despido de índole negocial, entre as exceções habitualmente aceitas pelos costumes internacionais à regra da imunidade de jurisdição, quais sejam, ações imobiliárias e sucessórias, lides comerciais e marítimas, trabalhistas ou concernentes à responsabilidade civil extracontratual. Desta feita, de rigor a incidência ao réu, Estado estrangeiro, da imunidade à jurisdição brasileira.

Ademais, in casu, encontra-se a imunidade de jurisdição corroborada pela de execução, perfazendo-se oportunas breves digressões acerca do tema, porquanto, conforme salientado alhures, não obstante consistam ambas em aspectos ou desdobramentos do mesmo fenômeno (daí falar-se em imunidades de cognição e de execução como espécies do gênero imunidade de jurisdição), recebem tratamento dualista pelo Direito Internacional (a propósito, releva salientar que o projeto de "Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens"/ONU evoluciona a abordagem da matéria, na medida em que disciplina ambos os aspectos da imunidade jurisdicional de forma unitária).

Deveras, a imunidade estatal de execução, é dizer, a prerrogativa conferida aos Estados soberanos de não terem seus bens submetidos a medidas constritivas em território alheio, traduzindo-se, analogamente à imunidade de jurisdição, em norma de Direito Consuetudinário Internacional Público, também teve sua concepção originária absoluta gradualmente relativizada a partir da segunda metade do século XX, sendo, atualmente, majoritária a orientação, entre os integrantes da comunidade internacional, acerca da existência de bens que, conquanto pertencentes a Estados soberanos, não se encontram acobertados pela imunidade de execução. Todavia, não obstante admitida a relativização da imunidade de execução soberana, as respectivas hipóteses excepcionais, em comparação às excludentes da imunidade cognitiva, apresentam-se sobremaneira reduzidas, sendo inferidas por critérios extremamente rigorosos (daí haver autores que, não obstante a aceitação da existência de bens não imunes à constrição em território alheio, entendem a imunidade de execução não como fenômeno relativo, mas "quase absoluto").

Desta feita, ressalte-se, à primeira, que, classificam-se como absolutamente imunes à execução em foro alheio: segundo convencionado internacionalmente: a) os bens de Estados soberanos que se encontrem afetados às respectivas atividades diplomáticas e consulares (art. 22, § 3º, da "Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas"/1963: "Os locais da Missão, seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargos ou medida de execução"); b) os navios e embarcações pertencentes a Estados estrangeiros ("Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar"/1982); conforme as praxes internacionais: c) os bens pertencentes a bancos centrais e autoridades monetárias de Estados estrangeiros (cf. "Foreign Sovereign Immunity Act", EUA/1976, § 1.611, "State Immunity Act", Reino Unido/1978, Seção 14); d) os bens de caráter militar ou utilizados para fins militares.


De outro extremo, estabelecem os costumes internacionais, consagrados, a seu turno, em leis internas de diversas Nações, a ausência de imunidade à execução por Estado soberano de bem localizado em seu território e pertencente a Estado estrangeiro, desde que utilizado para fins comerciais (cf. "Foreign Sovereign Immunity Act", EUA/1976, § 1.610, "State Immunity Act", Reino Unido/1978, Seção 3; trata-se, outrossim, do critério adotado pelo projeto de "Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens"/ONU, art. 18). Em outros termos, o propósito comercial manifestado pelo Estado estrangeiro no aproveitamento dos bens assume capital importância na configuração das exceções à imunidade de execução, ao revés do que se verifica quanto à imunidade de jurisdição cognitiva, cujas excludentes caracterizam-se com esteio na natureza negocial do ato praticado. No tocante a tal distinção, confira-se a exposição do caso "Procafe":

"Em abril de 1998, a empresa alemã Procafe GmbH, portadora de um título executivo judicial contra a República Federativa do Brasil, no valor de DM 85 mil (oitenta e cinco mil marcos alemães), decorrente de decisão da Justiça Italiana proferida em ação originalmente proposta contra o extinto Instituto Brasileiro do Café, tentou executar seu crédito sobre divisas do Brasil depositadas em bancos na Alemanha, que haviam sido obtidas pela emissão de 750 milhões de marcos em títulos públicos. Entre outros argumentos, alegavam os credores que os recursos obtidos com a comercialização de títulos públicos por Estados estrangeiros [ato de natureza comercial] não seriam imunes à execução.

(…), o Brasil precisou demonstrar na jurisdição alemã que os recursos obtidos com a venda de títulos públicos tinham uma finalidade soberana: eram destinados a refinanciar a dívida interna e controlar a inflação [propósito não comercial do ato]. Cópias de resoluções do Senado e até uma declaração juramentada do Ministro da Fazenda, Pedro Malan, foram juntadas como provas do propósito dos recursos captados na Alemanha. A Justiça alemã, à vista da finalidade dos recursos do Estado brasileiro, considerou os bens imunes à execução." (apud ANTENOR PEREIRA MADRUGA FILHO, op. cit., pp. 307/308)

Por fim, convém mencionar, conquanto não se olvide o âmbito restrito de sua aplicação, que a "Foreign Sovereign Immunity Act", EUA/1976, § 1.610 (acompanhada, porém, pelo projeto de "Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens"/ONU), além da finalidade negocial, prescreve a obrigatoriedade de conexão entre o bem executado e a lide, é dizer, a necessidade de que a propriedade de um Estado estrangeiro, sobre a qual se tenciona a execução, esteja relacionada com o litígio cuja sentença se visa a executar.

No Estado brasileiro, embora se admita certa flexibilização à imunidade de execução soberana, na esteira do posicionamento internacional, tal fenômeno, em comparação à imunidade jurisdicional, remanesce dotado de conotação mais ampla e rígida, conforme se dessome da escassa jurisprudência sobre o tema:

"É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando da questão pertinente à imunidade de execução (matéria que não se confunde com o tema concernente à imunidade de jurisdição ora em exame), continua, quanto a ela (imunidade de execução), a entendê-la como prerrogativa institucional de caráter mais abrangente, ressalvadas as hipóteses excepcionais (a) de renúncia, por parte do Estado estrangeiro, à prerrogativa da intangibilidade dos seus próprios bens (RTJ 167/761, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – ACO 543/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) ou (b) de existência, em território brasileiro, de bens que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, não tenham qualquer vinculação com as finalidades essenciais inerentes às legações diplomáticas ou representações consulares mantidas em nosso País." (STF, AgRg RE nº 222.368-4/PE, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, DJU 14.02.2003)


"EXECUÇÃO FISCAL MOVIDA PELA FAZENDA FEDERAL CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO.

A imunidade de jurisdição não sofreu alteração em face do novo quadro normativo que se delineou no plano do direito internacional e no âmbito do direito comparado (cf. AgRg 139.671, Min. Celso de Mello, e AC 9.696, Min. Sydney Sanches), quando o litígio se trava entre o Estado brasileiro e o Estado estrangeiro, notadamente em se tratando de execução. Orientação ratificada pela Corte (AGRACOs 522 e 527).

Agravo regimental improvido." (STF, AgRg ACO nº 634-9/SP, Rel. Ministro ILMAR GALVÃO, DJU 31.10.2002)

"RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. EXECUÇÃO MOVIDA CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. PENHORA. INADMISSIBILIDADE. IMUNIDADE DE EXECUÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CARTA ROGATÓRIA PARA A COBRANÇA DO CRÉDITO.

Os bens do Estado estrangeiro são impenhoráveis em conformidade com o disposto no art. 22, inciso 3, da ‘Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (Decreto nº 56.435, de 8.6.1965)’.

Agravo provido parcialmente para determinar-se a expedição de carta rogatória com vistas à cobrança do crédito." (STJ, Ag nº 230.684/DF, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, DJU 10.03.2003)

Destarte, na hipótese sub judice, releva consignar a previsão, em princípio, no tocante ao réu, Estado estrangeiro (EUA), do privilégio da imunidade à execução forçada de bens de sua propriedade, eventualmente localizados em território pátrio, não obstante traduzindo-se tal argumento em mera corroboração, ressalte-se, à imunidade de jurisdição já reconhecida, porquanto, consoante judiciosamente firmado pelo e. Ministro CELSO DE MELLO, ao julgar o AgRg RE nº 222.368-4/PE (DJU 14.02.2003), a prerrogativa decorrente tão-só da imunidade de execução não obsta o exercício, pelo Estado brasileiro, da jurisdição cognitiva face a Estados estrangeiros:

"O PRIVILÉGIO RESULTANTE DA IMUNIDADE DE EXECUÇÃO NÃO INIBE A JUSTIÇA BRASILEIRA DE EXERCER JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS DE CONHECIMENTO INSTAURADOS CONTRA ESTADOS ESTRANGEIROS.

A imunidade de jurisdição, de um lado, e a imunidade de execução, de outro, constituem categorias autônomas, juridicamente inconfundíveis, pois – ainda que guardem estreitas relações entre si – traduzem realidades independentes e distintas, assim reconhecidas quer no plano conceitual, quer, ainda, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais. (…).


Isso significa, portanto, que eventual impossibilidade jurídica de efetivação executória de determinada condenação, imposta, em sede de cognição, a ente de direito público externo, não inviabiliza o pleno exercício, pelos órgãos judiciários do Estado receptor (o Brasil, na espécie), de sua atividade jurisdicional, no âmbito do processo de conhecimento instaurado em face de Estados estrangeiros.

A dificuldade adicional de realização prática do título judicial condenatório, representada pela prerrogativa da imunidade de execução, não se revela suficiente para obstar, só por si, a instauração, perante Tribunais brasileiros, de processos de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar – como no caso – de litígio de natureza trabalhista."

Por outro lado, mesmo vislumbrando-se, in casu, a incidência ao réu, Estado estrangeiro, das imunidades de jurisdição e execução a obstaculizar o exercício da atividade jurisdicional pelo Estado brasileiro, cumpre não olvidar a prerrogativa soberana dos Estados de renúncia às imunidades de jurisdição e execução, já que, como cediço, "outra exceção ao princípio da imunidade estatal à jurisdição estrangeira ocorre quando o Estado renuncia ao privilégio, o que lhe é facultado fazer com relação a qualquer processo, refira-se ele a ‘acta jure gestionis’ ou ‘acta jure imperii’" (JACOB DOLINGER (coord.), A imunidade estatal à jurisdição estrangeira, in "A Nova Constituição e o Direito Internacional", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 198).

A propósito, ainda, insta transcrever as judiciosas considerações dos i. LUÍS ROBERTO BARROSO e CARMEN TIBURCIO:

"A tese que aqui se afirma ser a melhor é a de que, independentemente da natureza do ato discutido, a submissão de um Estado à jurisdição de outro em si já é uma forma de relacionamento com um Estado estrangeiro e, mais que isso, uma forma de relacionamento subordinativo, pois envolve necessariamente a renúncia à imunidade e, em conseqüência, a um aspecto da soberania. Isso porque, na relação triangular que se forma em todo processo judicial (juiz – autor – réu), as partes subordinam-se à autoridade jurisdicional, de modo que o Estado-parte estará subordinado ao Estado-juiz. Por seu turno, o Estado estrangeiro que exerce jurisdição pratica um ato típico de sua soberania. Em suma: submeter-se à autoridade jurisdicional estrangeira é manter relação com Estado estrangeiro e, independentemente da questão de fundo objeto da disputa, já é por si só um ato de império que acarreta uma opção pela subordinação, pois importa renúncia à imunidade, prerrogativa inerente à soberania." (Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros, parecer a integrar obra coletiva, provisoriamente intitulada "Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger", atualmente no prelo, cujo original nos foi gentilmente cedido pelos autores)

Neste particular, incumbe ressaltar que, conquanto extremada a generalização acerca da exigência, em qualquer hipótese, de renúncia expressa às imunidades de jurisdição e execução (considerando-se, v. g., como manifestação tácita de renúncia a propositura de ação pelo Estado, impeditiva da invocação de imunidade em reconvenção ou ações conexas), vigora o entendimento de que o silêncio do Estado demandado não importa submissão voluntária à jurisdição do Estado estrangeiro, devendo, bem ao revés, ser interpretado como afirmação ou exercício do direito às imunidades de jurisdição e execução:


"Ação movida por advogado contra Estado estrangeiro, cobrando honorários profissionais, julgada procedente. Apelação. Imunidade de jurisdição. O silêncio do Estado-réu, não atendendo ao chamamento judicial, não configura, por si, renúncia à imunidade de jurisdição. Precedentes do STF. Apelação provida, julgando-se extinto o processo (art. 267, inc. VI, do CPC)." (AC nº 9.687-4/DF, Rel. Ministro DJACI FALCÃO, DJU 21.09.1984. No mesmo sentido: AC nºs 9.707/RJ, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO, DJU 11.03.1988; 9.705-6/DF, Rel. Ministro MOREIRA ALVES, DJU 23.10.1987; 9.684-0/DF, Rel. Ministro RAFAEL MAYER, DJU 04.03.1983).

Destarte, in casu, vislumbrando-se, em princípio, a competência concorrente das autoridades judiciárias pátrias para processar e julgar a presente Ação Ordinária e, simultaneamente, a prerrogativa soberana de imunidade de jurisdição ao Estado estrangeiro, impõe-se o prosseguimento do feito, incumbindo ao d. Juízo Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais determinar a citação do Estado réu (EUA), para, em querendo, exercer o direito à imunidade jurisdicional ou submeter-se voluntariamente à jurisdição pátria.

Neste particular, convém ressaltar, quanto à citação de Estado estrangeiro, a prática consuetudinária internacional no sentido de que a mesma, não necessitando ser feita por carta rogatória, seja dirigida, por vias diplomáticas, ao Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado, que providenciará a respectiva comunicação ao destinatário. A propósito, a "Foreign Sovereign Immunity Act", EUA/1976, § 1.608, admite a efetivação da citação: 1) nos termos de acordo especial firmado entre o Estado do foro e o Estado réu; 2) à falta de procedimento previamente acertado, segundo o previsto em convenção internacional aplicável; 3) em falhando os dois primeiros recursos, mediante remessa de cópia do ato citatório ao Ministro das Relações Exteriores do Estado demandado, por qualquer forma de correio com aviso de recebimento; 4) e, em última hipótese, por meio de canais diplomáticos, com remessa do ato ao Ministério das Relações Exteriores do Estado réu.

Por derradeiro, ressalve-se a possibilidade de, ao revés da citação do Estado estrangeiro, optar o d. Magistrado pela respectiva notificação, conforme já decidido pelo e. Ministro CELSO DE MELLO (STF, ACO nº 575/DF, DJU 18.09.2000):

"Sendo assim, e considerando-se a natureza do fato ensejador do ajuizamento da presente ação, parece viável a instauração desta causa perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, ‘e’). Antes de ordenar a citação, no entanto – e atento às implicações que desse ato podem resultar, em face do que dispõem os Artigos 22 e 30 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (…) – determino que se transmita o inteiro teor do presente despacho ao Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, para que Sua Excelência inste a República de Camarões a pronunciar-se, por intermédio de sua Missão Diplomática, sobre a sua eventual submissão à jurisdição do Poder Judiciário brasileiro."

Por tais fundamentos, conheço e dou provimento ao presente Recurso Ordinário para, reconhecendo a competência concorrente da autoridade judiciária brasileira, nos termos do art. 88, III, do CPC e, simultaneamente, as imunidades de jurisdição e execução ao Estado estrangeiro, determinar o prosseguimento do feito, notificando-se ou citando-se o demandado, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, a fim de que exerça o direito à imunidade jurisdicional ou submeta-se voluntariamente à jurisdição pátria.

É o voto.

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