Ex-autoridades

Leia voto do ministro Eros Grau favorável ao foro especial

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6 de outubro de 2005, 21h07

No julgamento que ocorreu no último dia 15, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a concessão de foro especial para ex-autoridades em caso de improbidade administrativa. Por sete votos a três, o Plenário julgou inconstitucional o artigo 1º da Lei 11.628/02.

Um dos votos divergentes foi o do ministro Eros Grau. Ao ler seu voto-vista, ele entendeu que a ação de improbidade administrativa tem caráter penal. Ex-autoridades que estão sendo acusadas criminalmente por fatos ligados ao desempenho das funções inerentes ao cargo têm de ter foro especial.

Leia a íntegra do voto

15/09/2005 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.797-2 DISTRITO FEDERAL

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: Cuida-se na presente ADI, em linhas gerais, da manutenção do foro por prerrogativa de função em benefício dos que exerceram cargos públicos na Administração, que se estende — por força da nova redação conferida ao art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei n. 10.628/021 — inclusive às hipóteses da ação civil por improbidade administrativa.

Acompanho inicialmente o Voto do eminente Ministro Relator, SEPÚLVEDA PERTENCE, no que tange à questão preliminar da legitimidade ativa da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, bem como à pertinência temática, em perfeito compasso com a jurisprudência que vem sendo formada nesta Corte, a exemplo do Agravo Regimental na ADI n. 3153, julgado em 12.08.20042.

2. Parece-me contudo serem necessárias algumas ponderações, relativas à questão da interpretação/aplicação da Constituição.

Em seu voto, o eminente Relator indaga se a lei ordinária seria instrumento normativo apto a alterar jurisprudência desta Corte, “fundada direta e exclusivamente na interpretação da Constituição da República”. Citando CANOTILHO, JORGE MIRANDA e CARLOS MAXIMILIANO, conclui ser formalmente inconstitucional a lei que pretenda conferir interpretação à Constituição, tarefa reservada somente ao Supremo Tribunal Federal ou ao órgão competente para a reforma constitucional, ditos “intérpretes autênticos”.

Vou me valer, neste passo, do que afirmei em texto de doutrina3.

O intérprete produz a norma jurídica não por diletantismo, porém visando a sua aplicação a casos concretos.

Interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos limitamos a interpretar [= compreender] os textos normativos, mas também compreendemos [= interpretamos] os fatos.

A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso concreto. Essa aplicação se dá mediante a formulação de uma decisão judicial, uma sentença, que expressa a norma de decisão.

Aí a distinção entre normas jurídicas e norma de decisão.

Esta é definida a partir daquelas.

De outra banda, é importante também observarmos que todos os operadores do direito o interpretam, mas apenas uma certa categoria deles realiza plenamente o processo de interpretação, até o ponto culminante que se encontra no momento da definição da norma de decisão. Este que está autorizado a ir além da interpretação tão somente como produção das normas jurídicas, para dela extrair normas de decisão, é aquele que KELSEN chama de “intérprete autêntico”, o juiz.

Partindo do texto da norma [e dos fatos], o intérprete autêntico, no sentido de KELSEN, alcança a norma jurídica, para então caminhar até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados. A concretização implica um caminhar do texto da norma para a norma concreta [a norma jurídica], que não é ainda, todavia, o destino a ser alcançado; a concretização somente se realiza em sua plenitude no passo seguinte, quando é definida a norma de decisão, apta a dar solução ao conflito que consubstancia o caso concreto.

Por isso sustento que interpretação e concretização se superpõem. Inexiste interpretação do direito sem concretização; esta é a derradeira etapa daquela.

Isso se dá no bojo do controle difuso de constitucionalidade. O juiz apura a constitucionalidade da norma e, em seguida, decide um determinado caso a partir da consideração da norma jurídica geral — não apenas do texto, pois. Isso é interpretar/aplicar o direito.

Algo diverso ocorre quando esta Corte, na ação direta, declara a inconstitucionalidade do texto. Texto, note-se bem. Então

apenas interpretamos, vale dizer, não aplicamos o direito, não obstante possamos decidir afirmando que o texto será compatível com a Constituição se for interpretado de um determinado modo, mas não — isto é, será inconstitucional — se for interpretado de outro modo (aí a “interpretação conforme a Constituição”, que supõe uma outra interpretação, esta “não conforme a Constituição”).


Vê-se para logo coexistirem, entre nós, no mínimo dois intérpretes autênticos da Constituição. Um, aquele que opera o seu controle difuso — os outros juízes e os juízes desta Corte. Outro, aquele que opera o controle direto da constitucionalidade, nós.

A questão que fica ainda sem resposta é a seguinte: seremos nós, os juízes em geral, os únicos intérpretes autênticos, no sentido de KELSEN, da Constituição?

KELSEN 4 distingue a “interpretação autêntica”, feita pelo órgão estatal aplicador do direito, de qualquer outra interpretação, especialmente a levada a cabo pela ciência jurídica.

Será útil à melhor compreensão do quanto estou a sustentar rememorarmos essa distinção, como enunciada por KELSEN.

A interpretação cognoscitiva [= obtida por uma operação de conhecimento] do direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. É este ato de vontade [= escolha] que confere peculiaridade à interpretação autêntica. Ela “cria direito“.

As demais interpretações não criam direito. Quando os indivíduos querem observar uma norma que regule sua conduta, devem fazer uma escolha; mas essa escolha não é autêntica, isto é, não cria direito — essa norma jurídica não é vinculante para o órgão que aplica5. Também a interpretação feita pela ciência jurídica é distinta daquela feita pelos órgãos jurídicos; a interpretação feita pela ciência jurídica não é autêntica; é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas; não é criação jurídica. A interpretação dita jurídico-científica apenas pode estabelecer as possíveis significações de um texto normativo — o jurista tem de deixar a decisão pela escolha das interpretações possíveis de um texto normativo ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é o competente para aplicar o direito; assim, quando o advogado indica uma determinada interpretação como “acertada”, está tentando influir sobre a criação do direito — não exerce função jurídico-científica, porém jurídico-política.

Importa retermos dessa rememoração da lição de KELSEN o fato de que a interpretação autêntica “cria direito“, tanto quando assuma a forma de uma lei ou tratado de Direito Internacional, dotada de caráter geral, quanto quando, feita por um órgão aplicador do direito, crie direito para um caso concreto ou execute uma sanção.

Ora, isto significa que há, na verdade, três intérpretes autênticos da Constituição: além dos juízes que operam o controle difuso e o seu controle direto, concentrado, o legislador ordinário é também seu intérprete autêntico. Pois é certo que a palavra final dada pelo Supremo Tribunal Federal quando do controle das decisões tomadas pelos outros juízes no âmbito do controle difuso, assim como das leis, não os desqualifica, os juízes e o legislador ordinário, como intérpretes autênticos da Constituição.

Demoro-me nestas observações porque a esta altura cumpre indagarmos se o legislador ordinário poderia ser intérprete [“intérprete maior”, diz o autor da ADI 2.797] da Constituição, quando o STF já disse o contrário — isto é, no caso, que a Constituição não contempla a hipótese de prorrogação do foro por prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta [Inq. 687- QO, rel. o Ministro Sydney Sanches, que cancelou a Súmula 394].

O eminente relator, o Ministro Pertence, indaga “se a lei ordinária é instrumento normativo apto a alterar jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal, fundada direta e exclusivamente na interpretação da Constituição da República”, dando resposta negativa a essa indagação. E aduz a assertiva de que “à lei ordinária não é dado impor uma dada interpretação da Constituição”.

Permissa vênia não se trata disso. Recorro a palavras de LOEWENSTEIN6, referindo-se à Suprema Corte dos Estados Unidos, mas que bem se aplicam a nossa Corte. Poderíamos, diz ele, por conta da posição superior que a Suprema Corte de fato ocupa na dinâmica constitucional, chegar facilmente à conclusão de que ao seu poder não se colocam limites. Esta suposição é, porém, incorreta. Foram tomadas providências para que também as árvores judiciais não alcancem o céu.

O Ministro Pertence sustenta ser inadmissível a interpretação da Constituição por lei ordinária, mas é certo, ao contrário, que todo ato legislativo envolve a interpretação da Constituição por parte de quem legisla.

O legislador ordinário, na hipótese, apenas deu nova interpretação à Constituição. Lembre-se, neste passo, a importância da produção legislativa, inúmeras vezes acompanhada de um caráter “regulamentar”, que, nas palavras de ASCARELLI7, “diminui a amplitude da atividade interpretativa e, por sua vez, responde à necessidade de uma solução autoritária em face de uma fenomenologia nova, que contrasta com valorações diversas. Este contraste é solucionado mais facilmente pela via política, ou seja, legislativamente”. Ora, sendo o legislador também intérprete autêntico da Constituição, não há, no caso, inconstitucionalidade formal. Pois é certo que o Poder Legislativo não fica vinculado por um dever de não legislar em razão desta Corte ter conferido esta ou aquela interpretação à Constituição.


3. Diz o voto do eminente Relator que a Lei n. 10.628/02 seria formalmente inconstitucional. Não encontro contudo, permissa

venia, razão para tanto.

Os vícios de inconstitucionalidade formal, segundo o CANOTILHO8, “incidem sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização; na hipótese de inconstitucionalidade formal, viciado é o acto, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final”. Em nota de rodapé, aduz a expressão “inconstitucionalidades orgânicas”, para definir os vícios de competência, que antecedem os vícios de forma.

De outra parte, JORGE MIRANDA9 observa que a inconstitucionalidade formal pode convolar-se em inconstitucionalidade material. Mas isso não se dá na hipótese, mesmo porque, além de inexistir inconstitucionalidade formal, a material seria relativa no tempo: a que contraria jurisprudência do Supremo Tribunal seria materialmente inconstitucional “salvo recuo da Corte”…

Sancionada a Lei n. 10.628/02, cabe a esta Corte, se a isso provocada, verificar se ela amplia competência constitucional, nada mais.

Retorno ao texto de LOEWENSTEIN10, em tradução livre:

“Importante limitação do poder do Tribunal Supremo encontra-se na possibilidade de o Congresso posteriormente, por meio de uma lei corretiva, revogar os efeitos de certa decisão. É importante frisar que aqui se trata apenas daqueles casos nos quais o Congresso não está de acordo com a interpretação dada pelo Tribunal

Supremo a um texto normativo; aqui não se trata de modo algum dos casos onde o Tribunal Supremo decidiu pela inconstitucionalidade, seja por que o Congresso não tem absolutamente competência para promulgar a lei ou porque há contradição entre a lei e uma norma constitucional.

[…] Correções de decisões do Tribunal Supremo por leis posteriores são muito freqüentes, de modo que podemos falar em um jogo de xadrez entre Congresso e Tribunal, onde o movimento do Congresso dá xeque-mate ao Tribunal. Essas reações do Congresso contra decisões que lhe parecem intragáveis mostram-se ainda mais interessantes se consideramos que, repetidas vezes, o Presidente acudiu o Tribunal exercendo o poder de veto para evitar as correções. Isto aconteceu, por exemplo, em relação à existência de petróleo na costa. O Tribunal Supremo inicialmente definiu que o petróleo além da linha da maré baixa pertencia à União (United States v. California, 332 U.S. 19, 1947). O Congresso por sua vez, sob influência de uma batalha publicitária extraordinariamente cara, sustentada pelos representantes dos interesses petroleiros dos Estados-membros, promulgou duas vezes leis que definiam pertencerem, as reservas de petróleo, aos Estados-membros. O então Presidente Truman vetou estas duas leis (1946 e 1952). Posteriormente o Presidente Eisenhower, cumprindo uma promessa de campanha eleitoral aos seus financiadores republicanos, não colocou empecilhos à terceira lei (Submerged Lands Act de 1953). […]

Desde a Segunda Guerra (até 1958) verificam-se não menos do que vinte e um casos deste tipo, nos quais o Congresso, por lei posterior, corrigiu decisões do Tribunal Supremo que o desagradavam, seja por motivos técnicos, seja por motivos políticos ou outras razões.

Entre eles encontravam-se dois casos nos quais o Tribunal Supremo defendeu a preservação de direitos fundamentais.

Causou comoção o enfraquecimento de uma decisão (Jenckes

v. United States, 353 U.S. 657, 1957) que possibilitou, por lei posterior, em 1957, o exame dos documentos de um acusado em processo político mantidos em arquivos do Estado. O Congresso, em uma cadeia de casos, anulou a ampliação de competências federais; em contrapartida, em apenas um caso corrigiu uma decisão a favor da União. Na maioria dessas decisões trata-se ou de diferenças de interpretação, nas quais naturalmente o legislador tem a última palavra, ou de casos nos quais o Tribunal Supremo pretendeu proteger um determinado grupo social (especialmente em casos trabalhistas), indispondo-se com o Congresso, que ou não estava de acordo com a posição adotada, ou tomava a decisão como inconveniente ou economicamente não sustentável; ou, ainda, que temia que determinada decisão viesse a ensejar uma cadeia de processos subseqüentes. A possibilidade de que isso ocorresse é que, certamente, fez com que uma decisão do Tribunal Supremo (Wong Yang Sung v. Mc Grawth, 339 U.S.33, 1950) — que definiu como exigível também para a extradição de estrangeiros um procedimento segundo determinadas regras — viesse a ser corrigida mediante a alteração do Administrative Procedure Act de 1946 (60 Stat. 239, 1946), que passou a dispor que essa exigência não era, no caso, necessária; essa alteração legislativa resultou em economia em relação ao custo de milhares de processos atinentes a mexicanos que se encontravam ilegalmente no país”.


Sei bem do perigo da importação de doutrinas jurídicas e exemplos estrangeiros para o e no debate sobre o direito brasileiro.

Tenho insistido em que não existe o direito, existem apenas os direitos. E o nosso direito é muito nosso, próprio a nossa cultura. A ponto de afirmarmos a necessidade de uma antropofagia jurídica, à moda de OSWALD DE ANDRADE. A alusão ao texto de LOEWENSTEIN é porem, na hipótese, oportuna.

Estou plenamente convencido da inexistência, no presente caso, de vício formal a caracterizar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/02. Coartar a faculdade do Poder Legislativo, de atuar como intérprete da Constituição, isso nos levaria a supor que nossos braços, como as árvores — na metáfora de LOEWENSTEIN — alcançam o céu. Eis, no caso, a nossa função: verificarmos se a lei ordinária é adequada à Constituição — interpretando também, é óbvio, a Constituição. Nesse sentido, o jogo de xadrez há de ser jogado.

Há de ficar bem marcado, de todo modo, o que afirmou LOEWENSTEIN: o Poder Legislativo pode exercer a faculdade de atuar como intérprete da Constituição, para discordar de decisão do Supremo Tribunal Federal exclusivamente quando não se tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque há contradição entre a lei e um preceito constitucional. Neste caso, sim, o jogo termina com o último lance do Tribunal; nossos braços então alcançam o céu.

Vou dizê-lo de outro modo, em alusão às faculdades de estatuir e de impedir, para o quê recorro à exposição contida no capítulo VI do Livro IX d’O espírito das leis11, de MONTESQUIEU, sobre a distinção entre os Poderes Legislativo e Executivo (distinção e não separação entre poderes — não me cansarei de repeti-lo — que disso jamais tratou o barão).

Distinguindo entre faculdade de estatuir — o direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por outrem — e faculdade de impedir — o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, poder de veto)12 —, entende deva esta última estar atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Legislativo; com isso, o Poder Executivo faz parte do Legislativo, em virtude do direito de veto: “Se o Poder Executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os demais poderes”13. “[o] Poder Executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prerrogativas”14.

Bem se vê que MONTESQUIEU faz alusão a faculdades — de estatuir e de impedir — do Legislativo e do Executivo. Mas quero referir, agora, a faculdade de impedir, do Judiciário, exercida em relação a atos do Legislativo. O primeiro pode [= deve] impedir a existência de leis inconstitucionais. Aí — atualizo MONTESQUIEU — como que um poder de veto do Judiciário. O Legislativo não pode, nesta hipótese, retrucar, reintroduzindo no ordenamento o que dele fora extirpado, pois, então, os braços do Judiciário alcançam o céu. Pode porém fazê-lo, o Legislativo, quando lance mão da faculdade de estatuir, atuando qual intérprete da Constituição, por não estar de acordo com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal a um texto normativo, como se dá no caso de que ora cogitamos. Aliás, no caso, o Legislador nada mais fez do que reavivar o texto da antiga Súmula desta Corte, apenas discordando do seu cancelamento.

4. Superado este primeiro ponto, observo que o acréscimo do § 1º ao artigo 84 do Código Processo Penal pela Lei n. 10.628/02 reavivou o texto da antiga Súmula 39415 desta Corte, anteriormente cancelada em sede de Questão de Ordem levantada no Inquérito n. 687- 4, decidida pelo Plenário em 25.08.99.

Os motivos que levaram esta Corte à edição desta Súmula encontravam-se, em síntese, no julgamento imparcial ou isento dos tribunais superiores e na proteção do exercício da função pública pela prorrogação da competência. Nas palavras do Ministro VICTOR NUNES LEAL, a edição da súmula era necessária “não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício” [Rcl 473, DJ 06.06.1962].

Conforme precedente do Ministro JOBIM em voto proferido na Reclamação n. 2.138-6, o foro por prerrogativa de função — expressão preferível a “foro privilegiado” — impede “que se banalizem procedimentos de caráter penal ou de responsabilidade com nítido objeto de causar constrangimento político aos atingidos, afetando a própria atuação do Governo e, por que não dizer, do próprio Estado”.


Não fosse assim, acabaria resultando comprometido, mercê da propositura de ações destinadas a afastar temporariamente o titular do cargo, calcadas em mero denuncismo, em perigosa politização do Judiciário, acabaria resultando comprometido, dizia eu, o livre exercício do mandato popular.

É sempre bom lembrar coisas passadas, rever os ensinamentos dos maiores. MONTESQUIEU16 afirmava que o poder de julgar não deve estar ligado a nenhuma parcela do Legislativo, salvo, além de outras duas exceções, a situação dos nobres, que deveriam ser julgados por uma junta do corpo legislativo composta de nobres, por causa da inveja que despertam. Transposta essa observação para o tempo em que vivemos, ilumina o tema que ora desperta nossa atenção.

Muito, muito a propósito, o voto do Ministro VICTOR NUNES LEAL17: “Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele.”

Refiro-me, mais uma vez, à perigosa politização do Judiciário — e aí a virtude da correção introduzida pela Lei n.10.628/02 ao substituir a expressão “ação penal” por “ação judicial”, para fazer alusão ao “inquérito ou a ação judicial” evidentemente pelo mesmo ato. Fazendo-o, o preceito passa a abarcar também as hipóteses de ações por ato de improbidade administrativa, visto que, tal como está estruturada, a legislação brasileira contempla três distintos sistemas relacionados à apuração dos atos de improbidade administrativa:

[i] no Juízo Criminal apura-se o ilícito penal atinente aos atos enumerados nos arts. 9, 10 e 11 da Lei n. 8.429/92, bem como ao tipo penal previsto no art. 19 da mesma lei, em inquéritos e ações penais de competência originária dos tribunais, por prerrogativa de função;

[ii] no Juízo Civil apura-se o ato de improbidade administrativa ao qual se aplicam as sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92, em processos cuja competência caberia ao Juízo de primeiro grau;

[iii] no âmbito administrativo, por fim, apura-se a conduta do agente público em face do seu estatuto funcional como ilícito administrativo, internamente18.

A coexistência dos dois primeiros sistemas pode gerar situações, no mínimo, incongruentes.

O § 4º do art. 37 da Constituição do Brasil determina que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Daí a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1.992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos que cometem atos de improbidade.

Note-se que a lesão à probidade administrativa sempre foi definida como crime de responsabilidade do Presidente da República desde a primeira Constituição do Brasil, em 1.891 (art. 54, número 6), preceito mantido nas Constituições de 1.934 (art. 57, “f”), 1.937 (art. 85, “d”), 1.946 (art. 89, V), 1.967 (art. 84, V), EC 1/69 (art. 82, V) e 1.988 (art. 85, V). A matéria, disciplinada pela Lei n. 1.079/50, atinge, além do Presidente da República, os Ministros de Estado, do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, os Governadores e Secretários dos Estados. Isso sem mencionar o decreto-lei n. 201/67, que trata exclusivamente dos crimes de responsabilidade cometidos pelos prefeitos municipais.

Os atos tipificados nesta lei como crimes de responsabilidade podem enquadrar-se como ato de improbidade administrativa, previsto na Lei n. 8.429/92, de modo que a aplicação das sanções nela previstas não afasta a aplicação da Lei n. 1.079/50.

Veja-se que um ato de improbidade administrativa pode, ainda, corresponder a um ilícito penal, entre os tipos previstos no Título XI do Código Penal [arts. 312 a 359] ou na legislação extravagante. Daí a ressalva na parte final do § 4º do art. 37 da Constituição do Brasil, alusiva à ação penal proposta pela prática de crimes comuns. No caso de dano ao erário, o agente responderá, também, às ações civis cabíveis.

Uma questão está visceralmente ligada à outra, de modo que o crime de responsabilidade decorrente de ato de improbidade administrativa atrai a competência atinente ao exame da ação prevista na Lei n. 8.429/92 para o Tribunal competente por prerrogativa de função, como bem anotado pelo então Procurador Geral da República, GERALDO BRINDEIRO, em seu parecer19.

A aceitar-se a tese de que os juízes de primeiro grau e os promotores que perante eles atuam são mais independentes do que os que oficiam perante os Tribunais e eles mesmos, isso importaria injustificado agravo à prestação jurisdicional célere e isenta atribuída aos Tribunais nos casos específicos de prerrogativa de foro.


De mais a mais, do ponto de vista da economia processual, maior sentido faz o ajuizamento dessas ações perante a corte de responsabilidade institucional, impedindo-se a interposição de sucessivos recursos em prejuízo do sistema.

Recorro, mais uma vez, ao voto do Ministro VICTOR NUNES, ao confirmar que “[a] presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bi-lateral, garantia contra e a favor do acusado.”

E não se pode admitir a transformação de uma nítida ação da natureza penal ou punitiva, a ação por ato de improbidade disciplinada pela Lei n. 8.429/92, em ação de caráter reparatório.

Insista-se neste ponto: o elemento central da ação de improbidade não é reparatório. Para persegui-la, o ordenamento coloca à disposição da sociedade tanto a ação popular quanto a ação civil pública, que não se superpõem àquela, nem entre si, caracterizadas por objeto e efeitos absolutamente distintos.

Se por um lado — rechaçada a interpretação conforme dos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP, na redação a eles conferida pela Lei n. 10.628/02 — esses parágrafos esbarram nas competências atribuídas constitucionalmente aos Tribunais Superiores, o entendimento contrário esvazia outra competência destes órgãos, a de processar e julgar os agentes sujeitos a sua jurisdição.

Não há como conceber a convivência de uma ação de improbidade, de nítidos efeitos penais e responsabilidade política, com uma ação penal correspondente, por crime de responsabilidade, ajuizadas perante distintas instâncias judiciais. Não é este o sentido normativo do art. 37, § 4º da Constituição Federal.

Lembro a observação de MARCELO CAETANO20, data vênia do eminente Relator: os crimes de responsabilidade têm natureza penal, entendimento confirmado na ADIN 132 [Relator o Ministro SEPULVEDA PERTENCE, com ressalva pessoal, DJ 30.05.2003], na Medida Cautelar na ADIN 307 [Relator o Ministro CÉLIO BORJA, DJ 28.09.1990] e na PET n. 1954 [Relator o Ministro MAURÍCIO CORREA, DJ 01.08.2003]. Em relação aos crimes de responsabilidade decorrentes de atos de improbidade administrativa, impõe-se, destarte, observar-se o quanto disposto nos parágrafos do art. 84 do CPP, na redação a eles conferida pela Lei n. 10.628/02.

Outrossim, permito-me lembrar que a Constituição não pode ser interpretada em tiras, aos pedaços21, porém no seu todo, de modo que a ela tenho como adequada, especialmente ao seu artigo 102, I, a Lei n. 10.628/02. Ela, lei ordinária, não está a alterar ou redefinir competência desta Corte.

Antes de concluir, retorno às palavras do Ministro VICTOR NUNES LEAL: a edição da Súmula 394 era necessária “não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício” [Rcl 473, DJ 06.06.1962].

O foro por prerrogativa de função não se impõe em razão da pessoa que exerce a função, mas dela própria. Confere proteção à atividade funcional, na medida em que os procedimentos atinentes ao exame dos atos que compõem a atividade, em qualquer tempo realizado tal exame — ainda que iniciado após a cessação do exercício da função pública pelo agente que praticou aqueles atos — serão processados no foro privilegiado. Desejo deixar isto bem vincado: a prerrogativa beneficia diretamente o exercício da função, embora alcance, de modo indireto, o seu agente. É em favor do interesse público no bom exercício da atividade que o agente da atividade goza da prerrogativa: não seria possível submeter-se a atividade a certo foro sem que o sujeito dessa mesma atividade resultasse por ele abrangido…

5. Um outro aspecto há de ser aqui enfatizado. É que as prerrogativas não são expressão de nenhum privilégio. Isso há de deixar-se bem claro, muito claro, até porque, como observou RUI BARBOSA22, referindo-se a elas, basta, para desmoralizar uma instituição, pregar-lhe o cartaz de privilégio.

O privilégio constitui uma ruptura da igualdade. A igualdade se expressa em [i] isonomia [= garantia de condições idênticas asseguradas ao sujeito de direito em igualdade de condições com outro] e [ii] na vedação de privilégios. Privilégio é vantagem, da qual alguém desfruta, que faz exceção ao direito comum.

O conceito de privilégio sempre esteve relacionado, excepcionando-o, à idéia de direito comum. Excepciona-o porque se coloca em oposição a ele ou porque se situa à margem dele.

Um autor anônimo do século XVII23 referia: “Qu’eft-ce qu’un Privilége? C’eft un avantage que le Prince accorde gratuitement ou à prix d’argent, mais toujours contre le droit commun”. FRANCISCO SUAREZ24 define-o como lei privada que concede algo especial. A lei que concede o privilégio é “lei privada” porque concede a uma pessoa em particular, ou a uma comunidade, um direito especial, distinto do comum [p. 5]. Diz-se “algo especial” para distingui-lo do que é concedido pelo direito comum [p. 6]. O privilégio corresponde à concessão de um favor ou benefício. SUAREZ, no entanto, nega ser da essência do privilégio a concessão de algo contra o direito comum. O privilégio — diz ele25 — ainda consubstanciando “algo especial”, pode ser uma graça do príncipe [indulgência, licença, graça] não necessariamente contra o direito comum. Basta que seja à parte, fora do direito comum. Mesmo uma concessão ou graça praeter jus pode constituir lei privada, estranha ao direito comum, logo constitui um privilégio. O que se concede por privilégio não é lícito sem ele; o privilégio permite “algo especial”, sem o qual o ato seria proibido ou não corresponderia a uma potestade do agente26.


A prerrogativa, em geral, é expressão de um direito subjetivo afirmado pelo direito comum. Diz-se que, em sentido subjetivo, direito é a prerrogativa que uma pessoa tem de exigir de outra pessoa determinadas prestações e abstenções ou o respeito a uma situação de que ela seja beneficiária. O privilégio, alguém

pode vir a ter, por exceção ao direito comum; a prerrogativa é algo que, em determinadas circunstâncias, determinado sujeito tem ou deve ter.

Neste ponto direi que o privilégio é uma vantagem de que goza uma pessoa, vantagem que se expressa como poder de exigir de outra pessoa determinadas prestações e abstenções ou o respeito a uma situação de que ela seja beneficiária. A prerrogativa é também poder que uma pessoa tem de exigir de outra pessoa determinadas prestações e abstenções ou o respeito a uma situação de que ela seja beneficiária. Há paralelismo, pois, entre ambos, o privilégio e a prerrogativa. No primeiro caso, contudo, o titular do poder no qual o privilégio se expressa recebe tratamento desigual, da lei, em relação a terceiros — o princípio da igualdade perante a lei é rompido. No segundo caso, o titular do poder no qual a prerrogativa se expressa é mantido, pela lei, em situação de igualdade em relação a terceiros, sem que o princípio seja afrontado.

Permito-me explicá-lo. No plano do direito comum, todos os que se encontram em situação de desigualdade em relação a terceiros são tratados de modo desigual, em relação a esses terceiros, pela lei comum. Pois sabemos que a igualdade consiste em tratar desigualmente situações desiguais. Cada grupo de desiguais é titular de determinadas prerrogativas, que se compõem no plano da igualdade perante a lei. O titular de um privilégio não. Este merece tratamento desigual não por encontrar-se em situação de desigualdade em relação a terceiros, senão porque o princípio da igualdade perante a lei é rompido, de modo que o titular do privilégio goze de uma vantagem que não beneficia os seus iguais. Banir os privilégios, esta expressão sempre significou o afastamento de tratamentos desiguais entre iguais. Insisto: as prerrogativas não são incompatíveis com a igualdade perante a lei, antes a confirmam, na medida em que, repito, a igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais.

A Constituição do Brasil afirma, em seu artigo 5º, XXIX, os privilégios de invenção e menciona, no § 2º do seu artigo 173, privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado. O primeiro corresponde a um monopólio legal. Os segundos não consubstanciam privilégio; trata-se de isenções tributárias: a Constituição diz que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão ser beneficiárias delas senão quando elas sejam extensíveis ao setor privado. Lembre-se que nomina non sunt consequentia rerum. Aqui não há privilégio, exceção ao direito comum. Os assim chamados, pela Constituição, “privilégios de invenção” e “privilégios fiscais” são estabelecidos pelo direito comum.

Ainda em relação ao tema, lembro que CARLOS MAXIMILIANO27, cogitando da imunidade parlamentar, afirma que ela “não é privilégio incompatível com o regimen igualitário em vigor, nem direito subjetivo ou pessoal; é prerrogativa universalmente aceita por motivos de ordem superior, ligados intimamente às exigências primordiais do systema representativo e ao jogo normal das instituições nos governos constitucionais; relaciona-se com a própria economia da divisão dos poderes, assegurando a liberdade e a independência do Legislativo”. Mais adiante, pág. 361, observa que “[a] immunidade parlamentar foi estabelecida por motivos políticos, tendo-se em vista o interesse público, e não o particular; não constitue direito subjectivo; e sim objectivo; não é privilégio individual, fizeram-na prerrogativa de uma collectividade independente e vigilante”.

As prerrogativas de que gozam os parlamentares são garantias estabelecidas em benefício do Legislativo. Daí não consubstanciarem direito subjetivo cujo exercício dependa da vontade do parlamentar, porém simples interesse legítimo28. Por isso são indisponíveis. Consubstanciam, como afirma CARL SCHMITT29, um direito do Parlamento como totalidade, não do deputado individualmente considerado. Ou, como decidiu o STF no Inquérito n. 510, Ministro CELSO DE MELLO, as prerrogativas asseguradas aos parlamentares atuam “como condição e garantia da independência do Poder Legislativo, seu real destinatário, em face dos outros poderes do Estado” (RTJ 135/509). O discrímen que justifica a diferença de tratamento não é definido em função da pessoa, qual se dá na exceção ao direito comum, mas como anota ALBERTO ZACHARIAS TORON30, está no exercício de uma função que traz consigo a necessidade de uma proteção especial.


6. Retomando a linha central de minha exposição, observo que estou a admitir que as autoridades sujeitas a imputação de crime de responsabilidade devam também responder, perante foro especial, a ação por improbidade administrativa. Admite-se, por outro lado, que o agente político esteja sujeito tanto ao processo por crime de responsabilidade como à ação de improbidade administrativa [Lei n. 8.429/92].

Temos, a esta altura, ser inconveniente submeter-se o agente político a julgamento em duas instâncias judiciárias quanto a atos que, em sua essência, são coincidentes. As duas ações, assim, deveriam correr no mesmo tribunal.

O problema está, porém, em que, naqueles casos em que o julgamento do crime de responsabilidade fica a cargo de órgão estranho ao Judiciário, o § 2º do art. 1º da Lei nº 10.628/02 não teria incidência, porque não haveria, então, a concorrência de instâncias judiciárias.

Nesses casos, a seguir-se o raciocínio até este ponto articulado, a ação de improbidade haveria de ter curso na primeira instância. Assim, toda ação de improbidade proposta contra o Presidente da República, contra o Procurador-Geral da República, contra o Advogado-Geral da União e contra qualquer Ministro do Supremo Tribunal Federal — qualquer ação de improbidade —haveria de ser ajuizada em primeiro grau de jurisdição.

Ora, disso decorreria injustificável inversão na teleologia do foro por prerrogativa de função. As maiores autoridades da República estariam submetidas aos juízes em início de carreira. O Juiz Federal, por exemplo, poderia decretar a perda do cargo do Ministro do STF. Ao mesmo tempo, autoridades outras, ainda que ocupando cargo de menor relevância política, mereceriam a proteção do foro superior. Apenas para estas estaria sendo eficaz a presunção, a que se refere Victor Nunes Leal (RCl 473, DJ 6.6.62), de que “os tribunais de maior categoria têm mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele”.

Para logo se vê que a interpretação restritiva do texto normativo pode conduzir a situações adversas à finalidade da norma a ser dele extraída.

A solução a adotar-se para a superação dessa contradição estaria em ter-se que o § 2º não alcança os agentes políticos referidos na Lei n. 1.079/50 [lei que define os crimes de responsabilidade dos agentes políticos e regula o seu processo de julgamento].

Vale dizer: os agentes políticos cuja conduta de improbidade já é prevista na lei que pune o crime de responsabilidade não estariam sujeitos à ação de improbidade, como regulada na Lei n. 8.429/92. Esta lei não se aplicaria a quem, pelos mesmos fatos, já está sujeito a crime de responsabilidade. A lei especial [de 1950] afastaria a incidência da lei geral31 [de 1992].

Essa interpretação evitaria distorções e estaria de acordo com o que venho sustentando, em especial quando afirmo a “nítida natureza penal ou punitiva” da ação por ato de improbidade disciplinada pela Lei n. 8.429/92 — que não se confunde com ação de caráter reparatório.

Repetindo o que afirmei há pouco, não há como conceber a convivência de uma ação de improbidade, de nítidos efeitos penais e responsabilidade política, com uma ação penal correspondente, por crime de responsabilidade, ajuizadas perante distintas instâncias judiciais. Pois bem: se ambas as ações buscam soluções punitivas para os mesmos atos, não há como nem por que admitir a existência coincidente de ambas. Se for assim, o problema não estará mais em

coexistirem as duas ações em instâncias diferentes, mas na própria incidência de duas leis penais sobre um mesmo fato. Não há razão para o bis in idem. A punição da autoridade, cujo ato de improbidade está tipificado como crime de responsabilidade, já estaria prevista na lei que cuida da sua situação específica.

A limitação do âmbito normativo da Lei n. 8.429/92 apenas aos agentes políticos que não respondem por crimes de responsabilidade em ação própria configura posição intermediária entre os que afirmam que nenhum agente político está sujeito às regras da lei de 1.99232 e outros que sustentam ser devida a punição de todo e qualquer agente político, tanto pela lei que define o ato como crime de responsabilidade, como pela lei de atos de improbidade.

A posição intermediária assegura que nenhum agente fique imune a punição por ato de improbidade. Se a prática de ato de improbidade por certo agente político não foi contemplada pela lei como punível a título de crime de responsabilidade [v.g., a improbidade praticada por um Procurador da República], incidiria a Lei n. 8.429/92. A mesma lei seria, entretanto, estranha aos casos em que a improbidade foi tratada pelo legislador como hipótese de crime de responsabilidade.


Desse modo, as autoridades aludidas na Lei n. 1.079/50 estariam sujeitas, no âmbito punitivo, à Lei n. 1.079/50, mas não à Lei n. 8.429/92.

As autoridades de que trata a Lei n. 1.079/50 estão sujeitas às penas do crime de responsabilidade por atos que atentem contra “a probidade na administração”, como se lê no art. 4º, V, do texto normativo, ou por atos cuja definição legal abarca a noção de “probidade na administração”, como ocorre quando a Lei 1.079 se refere a procedimento “incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções” [art. 39, 5 e art. 40, 4], bem assim no caso previsto no art. 74.

A solução não conduz a resultado de impunidade. Apenas distingue situações, na trilha de opção assumida pelo próprio legislador.

Por essa interpretação, afinal, os agentes políticos enumerados na Lei n. 1.079/52 não se sujeitariam a ação de improbidade prevista na Lei n. 8.429/92 em foro nenhum. A punição a ser imposta aos maus agentes políticos nestes cargos estaria disciplinada em lei especial, a própria Lei n. 1.079/52.

Esse modo de ver não afeta a validez do § 2º do art. 1º da Lei nº 10.628/02, nem o esvazia no plano da eficácia.

O preceito não incluirá no seu âmbito normativo o Presidente da República, os Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República, o Governador de Estado e os seus Secretários de Estado, mas abrangerá outros agentes políticos — como, por exemplo, o Procurador da República, cujos atos de improbidade não são definidos por lei como crime de responsabilidade. Para esses agentes, valerá a observação constante do voto, no sentido de não recomendar a dissociação de julgamentos da ação de improbidade e da ação penal por crime em cujo tipo a mesma conduta se enquadre.

O § 2º estará bem fundado, desde que excluídos da sua hipótese de incidência os atos definidos como crimes de responsabilidade, já que estes não poderiam ser também punidos pela lei de improbidade de 1.992.

Nada impediria, em favor do prestígio das decisões judiciais e do interesse público, que se dispusesse que esse entendimento não prejudica as sentenças transitadas em julgado, proferidas antes do julgamento da causa pelo Supremo Tribunal Federal [art. 27 da Lei n. 9.868/99], menos ainda os atos processuais já realizados.

Sendo assim, julgo parcialmente procedente a presente ADIN, conferindo aos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP interpretação conforme a Constituição, para definir que:

a) o agente político, mesmo depois de afastado da função pública que atrai o foro por prerrogativa de função, deve ser processado e julgado perante esse foro, se acusado criminalmente por fato ligado ao desempenho das funções inerentes ao cargo;

b) o agente político não responde a ação de improbidade administrativa, se estiver sujeito a crime de responsabilidade pelo mesmo fato; daí porque não estará, nesse caso, abrangido pelas disposições atinentes ao foro para propositura de ação de improbidade, estabelecidas no art. 84 e parágrafos do Código de Processo Penal;

c) os demais agentes públicos, em relação aos quais a improbidade não consubstancie crime de responsabilidade, responderão à ação de improbidade no foro definido por prerrogativa de função, desde que a ação de improbidade tenha por objeto ato funcional, por ele praticado no desempenho das suas funções.

Invocando o que dispõe o art. 27 da Lei nº 9.868/99, ressalvo a validade das sentenças transitadas em julgado antes do julgamento desta ação direta de inconstitucionalidade, ainda que em desconformidade com o que este voto propõe.

Notas de rodapé

1 “Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o”.

2 Informativo n. 361.

3 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2ª ed., Malheiros editores, São Paulo, 2.003.

4 Teoria pura do direito, 4ª ed., Armênio Amado Editor, Coimbra, 1976, pp. 469 e ss.

5 Dicção de KELSEN; não obstante, inexiste separação entre interpretação e aplicação.


6 Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staaten, Berlin, 1.959, pág. 427.

7 “[D]iminuisce la portata dell’opera dell´interpretazione, e, a sua volta, risponde alla necessità di uma soluzione autoritaria di fronte a uma fenomenologia nuova nel contrasto di valutazioni diverse. Questo contrasto trova più facilmente soluzione in via politica e perciò legislativamente, che attraverso l’opera dell´interpretazione, da um lato più lenta e dall’altro limitata dal criterio de continuità al riconoscimento della cui osservanza è legato il suo sucesso, mentre spesso le nuove soluzioni traggono elemento di forza proprio dal presentarsi in contrasto con un criterio di continuità e ragione di successo da elementi di compromesso tra tendenze diverse” (“Norma giuridica e realtà sociale”, Il diritto dell´economia, anno I, n. 10, 1.955, pp. 17-18).

8 Direito constitucional e teoria da constituição, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2.002, p. 949.

9 Manual de direito constitucional, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1.983, vol II, p. 302.

10 Ob. cit., págs. 429-430.

11 Coleção Os Pensadores. v. XXI, trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo, Editor Víctor Civita, 1973.

12 Ob. cit., pág. 159.

13 Idem, pág. 159.

14 Idem, pág. 161.

15 “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

16 Ob. cit.,, pág. 160.

17 Rcl 473, DJ 06.06.1962.

18 Sobre a independência das instâncias penal e administrativa, veja-se MS 23.401 (DJ 12.04.2002), RMS 23.401 (DJ 11.06.2004), MS 21.294-DF (DJ 21.09.2001) e MS 21.293 (DJ 28.11.1997).

19 Item n. 60.

20 Direito constitucional, v. II, Rio de Janeiro, Forense, 1.978, pp. 545/546.

21 Vide meus Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., págs. 40 e 121-2 e A ordem econômica na Constituição de 1988, 9a edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.004, pág. 150.

22 Comentários à Constituição Brasileira, coligidos e ordenados por Homero Pires, Livraria Acadêmica, São Paulo, 1.933, pág. 39.

23 Droit public de la province de Bretagne, avec des obfervations relatives aux circonftances actuelles, s.l., 1.789, pp. 137-138, nota de rodapé.

24 Tratado de las leyes y de Dios legislador, versión al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll, tomo VIII, Madrid, Editorial Réus, 1.919, págs. 4 e ss.

25 Ob. cit., pág. 7.

26 Idem, pág. 12.

27 Comentários à Constituição brasileira, terceira edição, Globo, Porto Alegre, 1.929, pág. 353.

28 Cf. PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA, Direito Constitucional, trad. De Maria Helena Diniz, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.984, pág.323.

29 Teoria de la Constitución, trad. de Francisco Ayala, Alianza Editorial, Madrid, 1.982, pág. 304.

30 ALBERTO ZACHARIAS TORON, Inviolabilidade penal dos vereadores, Saraiva, São Paulo, 2.004, págs.204-205.

31 Sobre os atributos de generalidade e especialidade das leis, meu voto-vista no RE 351.750-3.

32 Posição expressa por Ministros do Tribunal, quando do julgamento da Rcl 2.138, rel. o Min. Nélson Jobim, atualmente com vista ao Ministro Carlos Velloso.

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