Cigarro e saúde

Leia decisão que condenou a Souza Cruz em segunda instância

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3 de outubro de 2005, 18h59

Há relação direta entre doença vascular e o consumo de cigarro. Esse foi o principal argumento da justiça gaúcha para condenar a Souza Cruz a indenizar um ex-fumante em R$ 300 mil por danos morais.

A desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi explicou que esse caso é diferente dos demais que têm isentado os fabricantes de cigarro de punição. De acordo com a medicina, a doença de Buerger (Tromboangeíte Obliterante) é a obstrução de artérias e veias por uma inflamação causada pelo tabagismo. Para Marilene, a medicina indica que “o tabagismo é conditio sine qua non para o desenvolvimento da doença.”

Michel Eduardo da Silva Martins entrou com ação contra a Souza Cruz, afirmando que teria desenvolvido a doença por ter consumido por treze anos os cigarros fabricados pela Companhia. Com a evolução da doença, ele teve que amputar três dedos do pé esquerdo e também teve depressão.

Mesmo sem absoluta certeza do diagnóstico do perito oficial, na opinião da desembargadora, todos os elementos indicam a presença da doença, “desde as suas condições pessoais até os sintomas, e as conseqüências experimentadas se amoldam às lições da literatura médica acerca da moléstia.”

O argumento de que o fumante tem livre arbítrio para decidir se quer ou não fumar não invalida a culpa da industria de cigarro, segundo Marilene. “O livre arbítrio não serve para afastar o dever de indenizar das companhias fumageiras pelas mesmas razões que não se presta para justificar a descriminalização das drogas. O homem precisa ser protegido de si mesmo, mormente porque lidamos com produtos que podem minar a capacidade de autodeterminação.”, justifica.

Também disse que não se pode afirmar que a culpa da doença ter atingido a gravidade em que se encontra é exclusiva da industria. Já que, mesmo consciente da doença, desobedeceu as recomendações médicas e continuou fumando.

“Como estamos diante de relação de consumo não se pode negar que a responsabilização se dá independentemente da existência de culpa, baseada no artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor” , sustenta a desembargadora

Mesmo que o doente tenha começado a fumar no mesmo ano em que percebeu os sintomas da doença, isso não invalida a culpa da industria, até porque, segundo a decisão da Justiça, a publicidade sempre foi bastante vinculada com “idéias, ainda que contraditórias, de saúde, de intelectualidade, de cultura, de beleza, de charme e de sedução, atributos que todo jovem busca a qualquer custo”.

Por entender que a reparação por dano moral deve servir de punição para evitar a repetição dos fatos, mas não pode visar o enriquecimento de quem pediu indenização, a desembargadora manteve integralmente a condenação de primeira instância, mas diminuiu a indenização de R$ 500 mil para 300 mil.

Os desembargadores Odone Sanguiné e Miguel Ângelo da Silva também concordaram com a argumentação da relatora. Sanguiné acrescentou que “nem todos os casos de responsabilidade fumageira serão procedentes, vai depender sempre de cada caso.”

As estatísticas, segundo a Companhia, são favoráveis às suas teses de defesa. Isso porque, nas 443 ações propostas desde 1995 contra a Souza Cruz em todo Brasil, encontram-se vigentes 236 decisões, sendo 228 favoráveis e apenas oito desfavoráveis à empresa — todas elas ainda estão pendentes de recurso. Das 121 ações julgadas em definitivo, todas foram favoráveis aos argumentos da Companhia.

A Souza Cruz informou que irá apresentar recurso ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal contra a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Leia a íntegra da decisão:

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. INDÚSTRIA FUMAGEIRA. DOENÇA RELACIONADA DIRETAMENTE AO TABAGISMO. tromboangeíte obliterante (DOENÇA DE Buerger).


1. preliminares:

1.1. agravo retido. inversão do ônus da prova: A inversão do ônus da prova se deu nos estritos termos do Código de Defesa do Consumidor, diante da inegável hipossuficiência do autor, e ocorreu em momento processual adequado, já que permitiu à ré prazo hábil para efetivamente produzir provas. Ademais, há que gizar que em se tratando de demanda que objetiva a responsabilização por danos decorrentes de fato do produto, o ônus da prova já recai naturalmente sobre a ré, consoante dá conta o art. 12 do CDC.

1.2. NULIDADE DA DECISÃO POR ERRO IN PROCEDENDO. INOCORRÊNCIA: Os textos extraídos da Internet pelo magistrado ‘a quo’ e citados na fundamentação da sentença não são qualificados como prova documental, mas sim como doutrina médica, sendo de todo descabida a intimação da partes para se manifestarem sobre eles, da mesma forma que o seria a intimação para exercício do contraditório em razão de eventual citação da obra de Pontes de Miranda. Doutrina não é prova, não é documento, é entendimento, ensinamento, ponderação.

1.3. VIOLAÇÃO AOS ART. 2º E 128 DO CPC. INOCORRÊNCIA: A sentença mencionou dados que teriam sido revelados com a abertura de arquivos secretos da indústria fumageira Norte-Americana. Ocorre que tais dados são tidos como fatos notórios, podendo ser considerados independentemente de menção das partes.

2. MÉRITO:

A matéria não comporta juízos apriorísticos, prevalecendo o exame da casuística, já que se trata de ações indenizatórias com peculiaridades próprias. Em cada caso apresentado, desta forma, há que se examinar a presença dos requisitos para que se reconheça o dever de indenizar: dano, culpa e nexo causal.

2.1. LIVRE ARBÍTRIO, EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO E LICITUDE: O livre arbítrio não serve para afastar o dever de indenizar das companhias fumageiras pelas mesmas razões que não se presta para justificar a descriminalização das drogas. O homem precisa ser protegido de si mesmo, mormente porque lidamos com produtos que podem minar a capacidade de autodeterminação.

No que tange ao exercício regular de um direito, como bem mencionou a Exma. Desa. Mara Larsen Chechi, mister, nessa esfera, distinguir o abuso de direito do mau uso de uma liberdade.

De fato, enquanto o exercício de prerrogativas conferidas, explicitamente, a uma pessoa, reveste-se de presunção de licitude, o exercício do amplo e vago poder de agir, decorrente de ausência de proibição legal, não confere senão uma frágil presunção de licitude do ato (omissivo ou comissivo) praticado. Destarte, como disse o Des. Coelho Braga, “para que haja responsabilização civil, a conduta não precisa ser necessariamente ilícita, deve ser uma conduta que causa dano a outrem. O que está em jogo não é a natureza jurídica da conduta das empresas fabricantes de cigarro, mas sim os danos causados por essa conduta, seja ela lícita ou não”.


Ademais, não olvidemos de que estamos diante de uma relação de consumo, de forma que a responsabilização se dá independentemente da existência de culpa, na esteira do que preceitua o art. 12 do Código de Defesa do Consumidor. Tal norma tem o intuito de resguardar a integridade física e psíquica do consumidor.

2.2. NEXO CAUSAL: A literatura médica é praticamente unânime ao afirmar que a doença da qual diz o autor padecer – tromboangeíte obliterante – manifesta-se apenas em fumantes, ou seja, o tabagismo é conditio sine qua non para o desenvolvimento da doença. Daí a grande diferença deste caso para outros que aportaram nesta Corte. De outro lado, em que pese o perito oficial, em seu laudo, ter afirmado que não poderia diagnosticar com certeza a ocorrência da doença, todos os elementos indicam que o autor sofre de TAO, desde as suas condições pessoais até os sintomas, e as conseqüências experimentadas se amoldam às lições da literatura médica acerca da moléstia.

2.3. DANOS MORAIS: Em caso de amputação de parte do corpo, como na hipótese, é desnecessária a comprovação dos danos morais sofridos pela vítima, visto que o dano moral existe in re ipsa e decorre da gravidade do ato ilícito.

2.4. CULPA CONCORRENTE: Não se pode deixar de considerar, contudo, a parcela de culpa do autor para que a doença atingisse a gravidade e proporções atuais. Mesmo quando já padecia da doença, em desobediência às ordens médicas, permaneceu fumando, tendo de tomar doses mais elevadas de medicação para tentar controlar a TAO. A concorrência de culpas, quando se der entre o autor da ação e a vítima, deve influir quando da fixação do quantum indenizatório. Na verdade, é exatamente nesta espécie de caso, onde o fato danoso é imputável, concomitantemente, ao autor e à vítima, que defendo a proporcionalização da responsabilidade e, conseqüentemente, dos prejuízos.

Afora isso, seu estilo de vida sedentário e o pouco cuidado com a saúde em geral contribuíram para o desenvolvimento da doença.

3. QUANTUM INDENIZATÓRIO: Tendo em vista que a indenização a título de reparação de dano moral deve ter em conta não apenas a mitigação da ofensa, mas também atender a um cunho de penalidade e coerção, a fim de que funcione preventivamente, evitando novos acontecimentos, mas sem olvidar de que não pode dar margem ao enriquecimento sem causa – e o autor é pessoa pobre – e de na hipótese houve concorrência de culpas, tenho que o quantum merece ser reduzido ao valor de R$ 300.000,00, mantendo a correção e a incidência de juros previstos na sentença. Tal montante não se mostra nem tão baixo – assegurando o caráter repressivo-pedagógico próprio da indenização por danos morais – nem tão elevado – a ponto de caracterizar um enriquecimento sem causa.


PRELIMINARES REJEITADAS.

AGRAVO RETIDO DESPROVIDO.

APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

Apelação Cível: Nona Câmara Cível

Nº 70012335311: Comarca de Porto Alegre

SOUZA CRUZ S A: APELANTE

MICHEL EDUARDO DA SILVA MARTINS: APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em rejeitar as preliminares, em negar provimento ao agravo retido e em dar parcial provimento ao apelo.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores Des. Odone Sanguiné e Dr. Miguel Ângelo da Silva.

Porto Alegre, 21 de setembro de 2005.

DESA. MARILENE BONZANINI BERNARDI,

Relatora.

RELATÓRIO

Desa. Marilene Bonzanini Bernardi (RELATORA)

De saída, para evitar tautologia, adoto o relatório da sentença, que transcrevo:

“MICHEL EDUARDO DA SILVA MARTINS, qualificado na inicial, propôs Ação de Indenização, por danos morais, contra SOUZA CRUZ S.A., igualmente qualificada, afirmando que: a) é consumidor de cigarro de marca “Carlton” há treze anos e desde o início de suas experiências tabagistas nunca deixou de fumar; b) em meados de 1999, começou a sentir fortes dores na perna esquerda, razão pela qual teria procurado atendimento médico, sendo diagnosticada uma doença chamada tromboangeíte obliterante, segundo o autor desencadeada pelo tabagismo; c) permaneceu internado durante alguns dias para o tratamento da referida moléstia; d) foi advertido de que deveria parar de fumar, mas continuou rendendo-se ao vício; e) a doença evoluiu, motivo pelo qual ocorreram diversas internações subseqüentes, realizado-se a amputação de três dedos do pé esquerdo; f) desenvolveu a “Síndrome de Cushing”; g) apareceram estrias pelo corpo; h) não foi advertido suficientemente dos malefícios causados pelo cigarro, segundo o demandante, principal causa do deterioramento de seu estado de saúde; i) sofreu grande abalo psicológico. Invocou dispositivos da Carta Magna, do Código Civil e sua Lei de Introdução, do Código de Defesa do Consumidor e da legislação pertinente ao tema tabagismo. Referiu alguns efeitos nocivos gerados pelo tabagismo. Enfatizou a dependência física e psicológica causada pela nicotina, uma das substâncias que compõem o cigarro. Apontou julgados nacionais e internacionais em que as empresas fumageiras foram condenadas ao pagamento de indenizações aos seus consumidores. Sustentou que as indústrias tabagistas instigam a criação do hábito de fumar, através de mecanismos de publicidade sedutores e apelativos. Indicou dados estatísticos para demonstrar estágios de dependência e desenvolvimento de doenças em pessoas fumantes. Requereu a procedência da ação, para que a requerida seja condenada ao pagamento de indenização a título de danos morais. Postulou, ainda, a concessão do benefício da Assistência Judiciária Gratuita. Juntou documentos (fls. 02/122).


Determinada a emenda da inicial (fl. 124), o autor apontou o valor pretendido à indenização por dano moral (fl. 129).

Foi deferido o benefício da Justiça Gratuita ao requerente (fl. 130).

Citada, a requerida apresentou tempestivamente a contestação, alegando que: a) inúmeras foram as decisões que negaram a responsabilidade da empresa tabagista nas ações de indenização promovida pelos consumidores de cigarro, colacionando precedentes jurisprudenciais; b) a comercialização de tabaco é uma atividade lícita, com previsão constitucional, e amplamente regulamentada, dela não se extraindo qualquer ato ilícito capaz de acarretar sua responsabilização; c) os riscos oferecidos pelo consumo de cigarros são aqueles razoavelmente esperados pelos seus usuários, sendo, conforme a demandada, mais um motivo para afastar sua responsabilidade; d) antes de 1988, ano em que o autor teria iniciado o consumo de cigarros, não existiam normas regulamentadoras da publicidade tabagista, nem a exigência de divulgação de cláusulas de advertência, razão pela qual a requerida não poderia ser acusada de omissão de informações; e) seguiu rigorosamente as determinações do Poder Público pertinentes à publicidade e advertência do consumo de produtos tabagistas, editadas a partir de 1988; o consumo de cigarros não pode ser caracterizado como vício, na sua concepção clássica; g) a partir de 1988, o relatório americano do ‘Surgeon General’, flexibilizando os critérios de dependência, ensejando, segundo a demandada, a edição de portaria pelo Ministério da Saúde, que considerou a nicotina como drogas capaz de dominar a vontade do fumante; h) não é pacífico o entendimento de que a nicotina cause dependência; i) tanto a decisão de começar quanto a de parar de fumar são frutos do livre arbítrio das pessoas, que têm a prerrogativa de escolher o comportamento que desejam para si, não existindo no cigarro qualquer substância capaz de influir na tomada de decisão; j) o cigarro é produto que apresenta periculosidade inerente, em consonância com as expectativas legítimas de seus consumidores, não sendo capaz de gerar, portanto, a responsabilização da requerida; l) a responsabilidade objetiva do fabricante, preconizada no Código de Defesa do Consumidor, pressupõe a existência de um dano decorrente de defeito no produto, o que, de acordo com a demandada, não se verifica em seus produtos; m) os riscos para a saúde associados ao consumo de tabaco são conhecidos pelo público em geral e veiculados pelos meios de comunicação, há muito tempo; n) sendo a propaganda enganosa por omissão caracterizada pela não divulgação de dado essencial do produto, não poderia, consoante a requerida, ser admitida essa hipótese, posto que, desde 1988, a empresa tabagista divulgaria advertências sobre os efeitos nocivos causados pelo cigarro; o) também não teria ficado configurada a suposição de propaganda enganosa por comissão ou abusiva, pois, de acordo com a requerida, nenhuma informação falsa é transmitida como verdadeira, sendo intuitivo o caráter fantasioso das propagandas; p) a enganosidade ou abusividade das propagandas tabagistas somente poderiam ser atribuídas pela legislação da época em que o autor teria começado a fumar, sob pena de aplicação retroativa do Código de Defesa do Consumidor, conforme aduziu a requerida; q) não haveria nexo de causalidade entre veiculação de propaganda e o início do consumo de cigarros pelo autor, posto que esse não seria o fator mais decisivo para o início do consumo de tabaco; r) inexistiria prova cabal apta a comprovar o dano alegado pelo demandante (tromboangeíte obliterante), afigurando-se inviável o diagnóstico da moléstia e prejudicado o nexo de causalidade entre o suposto consumo de cigarros e os problemas de saúde alegados pelo autor; s) a doença referida pelo requerente teria natureza multifatorial, não se desenvolvendo exclusivamente em pessoas fumantes, sendo impossível, sob o ponto de vista científico, estabelecer a efetiva causa da doença do autor, muito menos atribuí-la ao consumo de cigarros; t) a culpa do dano cogitado seria atribuível exclusivamente ao demandante, que persistindo em seu hábito tabagista, teria assumido o risco decorrente de sua conduta; u) a empresa demandada possui um papel relevante em todo o Estado do Rio Grande do Sul, promovendo seu desenvolvimento econômico, social e cultural e educacional; v) o requerente não teria comprovado que consumiu apenas os requisitos autorizadores da responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva, sendo o valor pretendido a título de indenização incabível e absurdo, conforme aduziu a demandada; z) não caberia inversão do ônus da prova, seja pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que esse diploma não teria aplicação retroativa, seja porque a causa da suposta doença estaria atrelada às circunstâncias e condições de vida do autor, competindo somente a ele demonstrá-las, seja pela ausência de verossimilhança de suas alegações ou ausência da condição de hipossuficiência. Requereu a extinção do processo sem o julgamento do mérito, por inépcia do pedido inicial. Caso contrário, no mérito, postulou a improcedência da ação. Juntou documentos (fls. 133/930).


A autora apresentou réplica, insurgindo-se contra os argumentos da demandada e reiterando as alegações do pedido inicial. Juntou novo documento (fls. 934/942).

Oportunizada a produção de outras provas, sob pena de renúncia (fl. 943), a demandante postulou a realização de prova pericial e testemunhal (fl. 945). A demandada, por sua vez, requereu o julgamento antecipado do processo ou, não sendo o caso, a produção de prova oral e prova documental suplementar e, eventualmente, a realização de prova pericial. Juntou novo documento (fls. 946/957).

Deferida a produção de prova documental (fl. 958), as instituições médicas nas quais o autor foi atendido e submetido a tratamento, apresentaram os prontuários solicitados (fls. 983/1.013).

Dado vista às partes dos documentos médicos juntados (fl. 1.014), o autor corroborou ser portador de moléstia causada pelo tabagismo, conhecida por tromboangeíte obliterante (fl. 1.016). A empresa requerida, por seu turno, aduziu a falta de comprovação inequívoca da referida doença (fls. 1.017/1.019), juntou parecer técnico elaborado a partir da análise dos prontuários (fls. 1.029/1.036) e declaração realizada pelo médico que emitiu o atestado em que consta o diagnóstico da moléstia supracitada (fls. 1.094/1.095).

Realizada audiência de instrução, a proposta de conciliação resultou inexitosa. Foi colhido o depoimento pessoal do autor, inquiridas as testemunhas arroladas pelas partes e determinada a realização de prova pericial (fls. 1.096/1.125).

As partes indicaram assistentes técnicos (fls. 1.127/1.135 e 1.136), deixando o demandante de indicar os quesitos.

Foi nomeado o perito (fl. 1.156), que aceitou o cumprimento do encargo (fl. 1.164), incumbindo à demandada o pagamento dos honorários, tendo em vista a inversão do ônus da prova (fl. 1.165), decisão esta que ensejou a oposição de embargos declaratórios (fls. 1.169/1.173) e a interposição de agravo retido (fls. 1.176/1.254).

Realizada a perícia (fls. 1.269/1.282), foi dado vista às partes (fl. 1.283). A requerente apresentou sua manifestação sobre o laudo pericial e solicitou esclarecimentos complementares (fls. 1.286/1.288). A requerida, da mesma forma, expôs suas considerações acerca da perícia (fls. 1.292/1.317) e, através de seu assistente técnico, apresentou parecer (fls. 1.330/1.369).

Apresentadas as explicações pelo perito (fls. 1.372/1.374), as partes manifestaram-se novamente (fls. 1.376/1.377 e 1.378/1.379).

Encerrada a instrução (fl. 1.400), as partes apresentaram memoriais (fls. 1.401/1.508 e 1.509/1.538).


(…)”

Sobreveio sentença julgando procedente o pedido para condenar a ré a pagar ao autor o valor de R$ 500.000,00 acrescidos de juros de mora a contar do evento danoso.

Inconformada a ré apela postulando apreciação do agravo retido que interpôs contra a decisão que inverteu o ônus da prova. Em preliminar argüiu, ainda, a nulidade da sentença por error in procedendo, já que amparou em textos da Internet sem dar vista às partes, e por ter violado os arts. 2º e 128 do CPC ao utilizar na decisão fatos não alegados pelo autor. No mérito reeditou os argumentos expendidos em contestação, mencionando, ainda, que a sentença foi proferida contra a prova dos autos. Pede, em caso de ser mantida a procedência da ação, a redução do quantum indenizatório.

Em contra-razões o autor repetiu os argumentos da sua inicial e postulou a manutenção da sentença.

É o relatório.

VOTOS

Desa. Marilene Bonzanini Bernardi (RELATORA)

Eminentes colegas.

Como se vê pelo relatado, trago à mesa mais um dos polêmicos casos envolvendo a indústria fumageira e um dos seus consumidores, que alega ter adquirido doença em razão do seu hábito de fumar constantemente, estimulado pelas substâncias contidas nos cigarros que lhe fizeram dependente.

Antes de ingressar no mérito, contudo, cumpre afastar as preliminares argüidas pela ré em sua apelação.

O agravo retido não merece ser acolhido.

A inversão do ônus da prova se deu nos estritos termos do Código de Defesa do Consumidor, diante da inegável hipossuficiência do autor, e ocorreu em momento processual adequado, já que permitiu à ré prazo hábil para efetivamente produzir provas. Ademais, há que gizar que em se tratando de demanda que objetiva a responsabilização por danos decorrentes de fato do produto, o ônus da prova já recai naturalmente sobre a ré, consoante dá conta o art. 12 do CDC. Assim, ao fim e ao cabo, a inversão do ônus probatório importou na simples inversão da obrigação de suportar os encargos da perícia.


Assim, vai improvido o agravo retido.

A alegação de nulidade da decisão por erro in procedendo também não procede.

Os textos extraídos da Internet pelo magistrado ‘a quo’ e citados na fundamentação da sentença, ao revés do que sustenta a apelante, não são qualificados como prova documental, mas sim como doutrina médica, sendo de todo descabida a intimação das partes para manifestarem-se sobre eles, da mesma forma que o seria a intimação para exercício do contraditório em razão de eventual citação da obra de Pontes de Miranda. Doutrina não é prova, não é documento, é entendimento, ensinamento, ponderação.

Não houve, outrossim, violação aos art. 2º e 128 do CPC. A sentença mencionou dados que teriam sido revelados com a abertura de arquivos secretos da indústria fumageira Norte-Americana. Ocorre que tais dados são tidos como fatos notórios, podendo ser considerados independentemente de menção das partes, consoante já reconheceu esta Câmara na Apelação Cível nº 70004812558[1].

DES. ODONE SANGUINÉ –

Rejeito as preliminares.

Entendo que a teleologia do Código de Processo Civil é evitar uma surpresa, a falta de contraditório, a ampla defesa, enfim, os princípios fundamentais da Constituição que possam tornar o processo desequilibrado em relação a uma das partes; evidentemente, com teses, com conteúdos informativos, isso obviamente não ocorre.

Com as considerações do Colega Ângelo, também acompanho a eminente Relatora, rejeitando as preliminares.

DR. MIGUEL ÂNGELO DA SILVA-

Quanto à questão da nulidade da decisão por error in procedendo, acompanho a eminente Relatora, baseada na menção da motivação da sentença: “textos extraídos pelo magistrado da Internet, bem como literatura médica específica relativa à doença de que padece o autor, não se constituem documentos para os fins do disposto no art. 398 do CPC”.

Como anota Theotônio Negrão, em relação ao dispositivo precitado, para os efeitos desse artigo, não se considera documento parecer de jurista – refere dois precedentes –, nem a certidão de acórdão, anexado apenas para a demonstração de tese de Direito, nem a cópia de obra jurídica em língua estrangeira.

Com relação à questão do ônus da prova, parece-me que está escancarada a inversão, até ope legis, pela regra do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.

DESA. MARILENE BONZANINI BERNARDI (RELATORA)


Rejeitadas as preliminares e desprovido o agravo retido.

Passo ao exame do mérito.

Tenho conhecimento de que esta Corte já teve a oportunidade de examinar diversos casos assemelhados e de que há correntes de entendimento posicionadas para um e outro lado materializadas.

No meu sentir, contudo, a matéria não comporta juízos apriorísticos, prevalecendo o exame da casuística, já que se trata de ações indenizatórias com peculiaridades próprias. Em cada caso apresentado, desta forma, há que se examinar a presença dos requisitos para que se reconheça o dever de indenizar: dano, culpa (relativizada pela incidência do CDC) e nexo causal.

Sei que muitos têm posição definida, pois entendem que o comércio de cigarros se constitui em exercício regular de um direito e que os consumidores gozam de livre arbítrio, não podendo argumentar desconhecimento dos malefícios do fumo, já que há anos estes são de todos conhecidos, pois amplamente divulgados.

Data vênia, penso que são pueris tais argumentos.

O livre arbítrio não serve para afastar o dever de indenizar das companhias fumageiras pelas mesmas razões que não se presta para justificar a descriminalização das drogas. O homem precisa ser protegido de si mesmo, mormente porque lidamos com produtos que podem minar a capacidade de autodeterminação.

No que tange ao exercício regular de um direito, como bem mencionou a Exma. Desa. Mara Larsen Chechi[2], mister, nessa esfera, distinguir o abuso de direito do mau uso de uma liberdade.

De fato, “enquanto o exercício de prerrogativas conferidas, explicitamente, a uma pessoa, reveste-se de presunção de licitude, o exercício do amplo e vago poder de agir, decorrente de ausência de proibição legal, não confere senão uma frágil presunção de licitude do ato (omissivo ou comissivo) praticado. A título exemplificativo desta noção geral de direito com contorno indefinido, JACQUES GHESTIN cita, justamente, a liberdade de exercer o comércio, assim como a liberdade de ir e vir. No último caso não é a natureza do direito que conta para a determinação da licitude, mas o cumprimento dos deveres gerais de prudência no exercício da liberdade. Além disso, não cabe confundir a reprovação do abuso no exercício do direito com a reprovação do ilícito praticado por ocasião ou à margem do exercício do direito. Os atos da segunda categoria, diz o consagrado civilista, se situam fora dos limites ‘externos’ do direito. Eles correspondem a nada mais do que o mau uso de uma liberdade (Traité de Droit Civil. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence. 4ème édition, 1994, p. 754-755).”


Ademais, não olvidemos de que estamos diante de uma relação de consumo, de forma que a responsabilização se dá independentemente da existência de culpa, na esteira do que preceitua o art. 12 do Código de Defesa do Consumidor[3]. Tal norma tem o intuito de resguardar a integridade física e psíquica do consumidor.

Comentando o indigitado dispositivo, CARVALHO SILVA[4] menciona que “a responsabilidade do fornecedor é objetiva, decorrente dos riscos criados pela colocação do seu produto no mercado de consumo, cuja onerosidade gerada não deve ser compartilhada ou suportada pelo consumidor, pessoa que, em tese, desconhece os métodos e os mecanismos de produção”.

E completa o jurista afirmando que “o dever de reparação surge, naturalmente, com a ocorrência do dano causado por defeito oriundo de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento do produto, ou aparece com o acontecimento do dano resultante de informações insuficientes ou inadequadas sobre a utilização e riscos do produto”.

E não se diga que é inaplicável o Código de Defesa do Consumidor por ter sido editado quando o autor já iniciara a fumar. Trata-se de uma relação continuada, de trato sucessivo, de forma que não se pode considerar que o primeiro cigarro que o autor fumou tenha delimitado a lei a incidir no caso. O elemento caracterizador do ato jurídico perfeito, na esteira do art. 6º, §1º, da LICC, não é a constituição, mas a consumação do ato.

Ademais, como ressalta CLAUDIA LIMA MARQUES[5], “na solução de casos concretos, deve o CDC receber aplicação imediata ao exame da validade e eficácia atual dos contratos assinados antes da sua entrada em vigor, seja porque norma de ordem pública, seja porque concretizada também uma garantia constitucional, ou simplesmente porque positiva princípios e patamares éticos de combate a abusos existentes no direito brasileiro antes mesmo de sua entrada em vigor”.

De se admitir, ademais, que, malgrado tenham passado a ser obrigatórias para a comercialização de cigarros as propagandas de advertência dos malefícios do fumo, a publicidade do produto sempre foi vinculada às idéias, ainda que contraditórias, de saúde, de intelectualidade, de cultura, de beleza, de charme e de sedução, atributos que todo jovem busca a qualquer custo, o que sempre deu larga margem de vantagem para indústria fumageira que capta seus clientes exatamente na fase da juventude, quando se tomam posturas de auto-afirmação e se busca a formação de uma identidade. E o autor iniciou a fumar exatamente no mesmo ano em que os avisos passaram a ser veiculados, contudo, a publicidade enganosa já tinha surtido os efeitos pretendidos.

A ilicitude da conduta, na hipótese, é prescindível. Como bem colocou o Exmo. Desembargador Luís Augusto Coelho Braga, em voto proferido nesta Colenda Câmara, “ocorre que, para que haja responsabilização civil, a conduta não precisa ser necessariamente ilícita, deve ser uma conduta que causa dano a outrem. O que está em jogo não é a natureza jurídica da conduta das empresas fabricantes de cigarro, mas sim os danos causados por essa conduta, seja ela lícita ou não”.


No único julgamento do qual participei em que se examinou o dever ou não de uma empresa produtora de cigarros indenizar uma pessoa por doenças que teria adquirido em razão do seu hábito de fumar, me posicionei pela improcedência da ação, mas não por afastar a ilicitude da conduta da ré, e sim por ter entendido que não restara demonstrado o nexo causal entre a doença e o fumo.

No caso presente, já adianto, o cerne é outro, porquanto a literatura médica é praticamente unânime ao afirmar que a doença da qual diz o autor padecer – tromboangeíte obliterante – manifesta-se apenas em fumantes, ou seja, o tabagismo é conditio sine qua non para o desenvolvimento da doença. Daí a grande diferença deste caso para outros que já aportaram nesta Corte.

No Manual Merck[6], v.g., encontra-se:

A doença de Buerger (tromboangeíte obliterante) é a obstrução de artérias e veias de pequeno e médio calibre por uma inflamação causada pelo tabagismo. Esta doença afeta predominantemente os indivíduos do sexo masculino, tabagistas e com idade entre 20 e 40 anos. Apenas 5% dos indivíduos afetados são do sexo feminino. Embora não se conheça exatamente a causa dessa doença, apenas os tabagistas são afetados e a persistência no vício agrava o quadro. O fato de apenas um pequeno número de tabagistas apresentar a doença de Buerger sugere que algumas pessoas são mais suscetíveis. No entanto, não se sabe a razão pela qual nem como o tabagismo causa esse problema (grifei).

Em artigo intitulado Arterites e Vasculites de Interesse Cirúrgico, MARCELO ARAÚJO refere que “chama a atenção nesta afecção [tromboangeíte obliterante], a estreita relação com o tabagismo, sendo a persistência deste vício, um importante fator prognóstico na evolução da doença”[7].

E o próprio laudo do perito do juízo, embora afirme que não há atualmente na medicina evidências conclusivas da relação causal direta do fumo, como fator isolado, na promoção da doença, por via transversa acaba por admitir como essencial para a manifestação da doença, junto com outros fatores, o tabagismo (fls. 1269 a 1282).

Na hipótese vertente, o centro da questão é constatar se o autor é de fato portador da Tromboangeíte Obliterante (TAO), como diz ser, ou se a moléstia que o aflige é outra.

O perito oficial, em seu laudo, afirmou que não poderia diagnosticar com certeza a ocorrência da doença, mas também não afastou a sua possibilidade. Assim referiu o expert:

Pela análise dos autos do processo, pelas informações obtidas a partir da examinação do autor, e pela revisão da literatura médica especializada mais atual, concernente à Tromboangeíte Obliterante, posso afirmar que, no presente caso, faltam elementos conclusivos para um diagnóstico definitivo de TAO.


Por outro lado, os médicos da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, que tratam do autor, diagnosticaram, desde o ano de 2000, a doença deste como sendo Tromboangeíte Obliterante, como se pode ver pelos receituários de fls. 65 e 66 e boletim de atendimento de fl. 87.

O Cirurgião Vascular Dr. Cláudio Moraes Varela, que foi médico do autor no período em que esteve internado na Santa Casa, em depoimento testemunhal, afirmou que o apelado teve diagnosticada trombogeíte obliterante. Referiu, ainda, que o diagnóstico da TAO é basicamente clínico, em que se identifica ausência da outra causa mais freqüente de oclusão arterial crônica, que é a arteriosclerose e que seja então portador de uma arterite. Quando se encontra a associação de uma arterite com um agente costumeiro de desencadeamento do quadro, é esta a relação que se estabelece (fls. 1104- 1114).

O médico cardiologista Dr. Marcelo de Sá Pereira, testemunha arrolada pela ré, em seu depoimento, em que pese ter afirmado que para o diagnóstico seguro da TAO se fizesse necessário a realização de arteriografia e de exames laboratoriais, referiu que também não poderia excluir a possibilidade de o autor ser portador da moléstia (fls.1115-1125).

De fato, todos os elementos indicam que o autor sofre de TAO, desde as suas condições pessoais até os sintomas e as conseqüências experimentadas se amoldam às lições da literatura médica acerca da doença.

A Irmandade Santa Casa de Misericórdia é referência nacional em Medicina e conta com excelentes profissionais em seus quadros. E estes, em contato direto e extenso com o paciente, é que diagnosticaram a doença. Se entenderam suficiente o exame clínico, dispensando a arteriografia, é porque estavam convencidos de que o autor sofria de TAO.

Diante de tais constatações, considerando ser o autor de fato portador de TAO, doença que se manifesta exclusivamente em fumantes, há que se reconhecer a responsabilidade da ré pelos danos experimentados pelo autor.

Não se pode deixar de considerar, contudo, a parcela de culpa do autor para que a doença atingisse a gravidade e proporções atuais. Mesmo quando já padecia da doença, em desobediência às ordens médicas, permaneceu fumando, tendo de tomar doses mais elevadas de medicação para tentar controlar a enfermidade.

Afora isso, seu estilo de vida sedentário e o pouco cuidado com a saúde em geral contribuíram para o desenvolvimento da doença.

Certa do dever de indenizar da ré, vou negando provimento ao seu apelo neste ponto, passando a analisar a fixação da condenação pelos danos morais, também objeto de irresignação.


É importante gizar que no caso de amputação de parte do corpo, como na hipótese, é desnecessária a comprovação dos danos morais sofridos pela vítima, visto que o dano moral existe in re ipsa e decorre da gravidade do ato ilícito, conforme assinala Sergio Cavalieri Filho, na obra Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros Editores, 3ª edição, pág. 92:

‘Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras da experiência comum. Assim, por exemplo, provada a perda de um filho, do cônjuge, ou de outro ente querido, não há que se exigir a prova do sofrimento, porque isso decorre do próprio fato de acordo com as regras de experiência comum’.

Ademais, o autor sofreu sérios transtornos psíquicos, inclusive, desenvolvendo depressão, conforme dão conta os atestados juntados aos autos.

Cumpre verificar a adequação do quantum fixado pela sentença.

A dificuldade na avaliação da extensão do pretium doloris, pela ausência de critério legal, que se tornou voz corrente na doutrina, "não pode servir de base para sua negação", consoante justa advertência de Caetano José da Fonseca Costa[8].

É verdade, que "não se paga a dor, porque seria profundamente imoral que esse sentimento íntimo de uma pessoa pudesse ser tarifado em dinheiro.", como asseverado por Martinho Garcez Neto. O mesmo doutrinador, valendo-se das lições do Ministro Pedro dos Santos, argumenta que a prestação pecuniária será "uma suavização nos limites das forças humanas para certos males injustamente produzidos. O dinheiro não os extinguirá de todo; não os atenuará por sua própria natureza, mas, pelas vantagens que seu valor permutativo poderá proporcionar, compensará, indireta e parcialmente embora, o suplício moral que os vitimados experimentam".

E, para reforço dessa função meramente satisfatória, invoca lição da Professora Pires de Lima, da Universidade de Coimbra, assim transcrita: "São dois os modos por que é possível obter-se a reparação civil: a restituição do estado anterior e a reparação pecuniária, quando o direito lesado seja de natureza reintegrável. Ora, a ofensa causada por um dano moral não é suscetível de indenização no primeiro sentido, mas o é de uma reparação em dinheiro, que em todo o caso se distingue da indenização exigida pelos danos patrimoniais. Com a indenização não se pretende refazer o patrimônio, porque este nem parcialmente foi diminuído, mas, se tem simplesmente em vista dar à pessoa lesada uma satisfação que lhe é devida por uma sensação dolorosa que sofreu, estamos em presença de puros danos morais, e a prestação pecuniária tem neste caso uma função simplesmente satisfatória. Se é certo não poderem pagar-se as dores sofridas, a verdade é que o dinheiro, proporcionando à pessoa disponibilidades que até aí não tinha, lhe pode trazer diversos prazeres que até certo ponto a compensarão da dor que lhe foi causada injustamente."[9]


É de ser admitido ainda, na apreciação do valor, o caráter expiatório da reparação moral, como diminuição imposta ao patrimônio do réu, pela indenização paga ao ofendido.

À falta de medida aritmética, e ponderadas aquelas funções satisfatória e punitiva, serve à fixação do montante da indenização o prudente arbítrio do juiz, tendo em conta certos requisitos e condições, tanto da vítima quanto do ofensor. Assim recomenda o v. Acórdão da 6ª CC do TJRGS, na Ap. 592066575, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, com a seguinte ementa:

"DANO MORAL. Sua mensuração. Na fixação do quantum referente à indenização por dano moral, não se encontrando no sistema normativo brasileiro método prático e objetivo, o Juiz há que considerar as condições pessoais do ofensor e ofendido: grau de cultura do ofendido, seu ramo de atividade, perspectivas de avanço e desenvolvimento na atividade que exercia, ou em outro que pudesse vir a exercer, grau de suportabilidade do encargo pelo ofensor e outros requisitos que, caso a caso, possam ser levados em consideração. Requisitos que há de valorar com critério de justiça, predomínio do bom senso, da razoabilidade e da exeqüibilidade do encargo a ser suportado pelo devedor. Quantum que nem sempre deverá ser inferior ao do dano patrimonial, eis que a auto-estima, a valoração pessoal, o ego, são valores humanos certamente mais valiosos que os bens meramente materiais ou econômicos. Inconformidade com a sentença que fixou o montante da indenização por dano moral. Improvimento do apelo da devedora" (in RJTRGS 163/261).

Na obra DANO MORAL, Yussef Cahali relaciona alguns dos critérios que devem ser especificamente considerados quando a indenização decorre da violação à integridade física da pessoa: 1º) a natureza da lesão e a extensão do dano; 2º) condições pessoais do ofendido, mormente a repercussão da deformidade e suas novas condições de vida; 3º) condições pessoais do responsável, ou seja, suas possibilidades econômicas; 4º) equidade, cautela e prudência, pois não pode ensejar enriquecimento sem causa, nem levar à ruína o ofensor; 5º) gravidade da culpa (se houver); 6º) arbitramento em função da natureza e finalidade da indenização, essencialmente reparatória[10].

E, definitivamente, entendo que a concorrência de culpas, quando se der entre o autor da conduta e a vítima, deve influir quando da fixação do quantum indenizatório. Na verdade, é exatamente nesta espécie de caso, onde o fato danoso é imputável, concomitantemente, ao autor da conduta e à vítima, que defendo a proporcionalização da responsabilidade e, conseqüentemente, dos prejuízos.

Entendo, ainda, ser correta a idéia trazida na exposição de Rui Stoco[11], em que salienta: “[…] ainda que, hoje, algumas decisões insistam em acomodar-se na divisão pela metade do valor da indenização, nos casos de concorrência de culpas, outras, em maior quantidade, já se manifestam no sentido de que a condenação deve ser proporcional à gravidade das respectivas condutas ou da participação de cada qual”.


Assim, tendo em vista que a indenização a título de reparação de dano moral deve ter em conta não apenas a mitigação da ofensa, mas também atender a um cunho de penalidade e coerção, a fim de que funcione preventivamente, evitando novos acontecimentos, mas sem olvidar de que não pode dar margem ao enriquecimento sem causa – e o autor é pessoa pobre – e de na hipótese houve concorrência de culpas, tenho que o quantum merece ser reduzido ao valor de R$ 300.000,00, mantendo a correção e a incidência de juros previstos na sentença. Tal montante, ao meu sentir, não se mostra nem tão baixo – assegurando o caráter repressivo-pedagógico próprio da indenização por danos morais – nem tão elevado – a ponto de caracterizar um enriquecimento sem causa.

Neste sentido, voto pelo parcial provimento do apelo da ré para reduzir a indenização ao valor de R$ 300.000,00 a ser corrigido na forma determinada pela sentença.

Os honorários advocatícios, já que fixados em percentual sobre o valor da condenação, permanecem inalterados. As custas processuais permanecem a cargo da ré, já que não se considera sucumbência a redução do quantum indenizatório.

É o voto.

Des. Odone Sanguiné (REVISOR)

Todos sabemos da dificuldade que nós, operadores jurídicos, temos para decidir, a fortiori, quando se trata de questões novas.

A rigor, nada precisaria ser acrescentado ao voto da eminente Relatora – aliás, antecipo que com ele concordo integralmente, inclusive quanto ao valor, julgando parcialmente procedente a apelação para reduzir o valor da indenização -, apenas não posso deixar de fazer algumas observações.

Nesta demanda, temos o que se chama modernamente de responsabilidade pelo produto. No sistema anglo-saxão, a responsabilidade pelo produto já é bem conhecida há muito tempo e vem sendo tratada como uma das formas de responsabilidade que é a strict liability, ou seja, a responsabilidade estrita ou objetiva.

Em momento muito anterior, houve a antecipação desse pensamento na jurisprudência, e sabemos também que a própria defesa do consumidor adveio de um advogado, Ralph Nader, que até foi um dos concorrentes à Presidência da República nos Estados Unidos. Foi ele o grande gestor da idéia de proteção ao consumidor, que, depois, passou às legislações. Hoje temos um Código do Consumidor mais moderno inclusive do que alguns países da Europa, mas isso já está também consolidado na Comunidade Européia por uma série de diretrizes do Conselho da Europa para a proteção do consumidor.

Com isso, quero dizer que a responsabilidade do consumidor tem vários níveis, e um deles se refere justamente – e aí a grande dificuldade, porque é um tema realmente novo do ponto de vista dogmático – à responsabilidade pelo produto.

Hoje há uma tendência internacional, como ocorreu em casos modernos da jurisprudência alemã e européia, em estendê-la também ao âmbito Penal – não só ao nível individual, mas também às corporações -, alterando o pensamento tradicional, que sempre foi muito reacionário, expressando uma certa rejeição, porque as categorias dogmáticas do Direito Penal sempre foram mais restritas, mas exigentes, em termos de culpa e nexo causal, do que na responsabilidade civil.

O certo é que há casos recentes, e limito-me a indicar alguns exemplos. Na Europa, tivemos o caso da contaminação do azeite de soja; na Alemanha, tivemos diversos casos, uns até mais antigos, como o caso do Contergan, da talidomida; tivemos o caso dos pêlos de cabra contaminados; e, depois, houve o caso do Holzschützmittel, um verniz protetor de madeira.


São todos casos em que aconteceram esses problemas de responsabilidade pelo produto. Obviamente, pode-se antever que se tratam todos, a priori, de atividades lícitas. Portanto, evidentemente, fica rechaçada esta argumentação, que considero muito singela, mas completamente improcedente, de que se trata de atividades lícitas e, por isso, não caberia reparação do dano. Por exemplo, um outro ramo, que, no Direito Comparado, vem sendo tratado pelos tribunais, é o dos produtos farmacêuticos. Também é uma atividade lícita, no entanto, ninguém ousa imaginar que, se alguém sofrer um dano dentro dos pressupostos da responsabilidade, ficará isento de reparação pelo fato do produto ou, até mesmo, em alguns casos, de punição em nível penal.

Digo isso porque a responsabilidade pelo produto tem modificado a maneira dogmática de ver as coisas, como, por exemplo, quanto à relação de causalidade, que aqui, a meu ver, é evidente.

Porém, mesmo no âmbito penal, onde é muito mais rigorosa a prova da causalidade, os tribunais têm dito que – e eu me baseio em especialistas como Hassemer e Muñoz Conde, entre outros, que escreveram sobre a responsabilidade pelo produto, e também no autor italiano Carlo Piergallini, cuja obra versa sobre Danno da Prodotto e Responsabilità Penale; eles mencionam esta tendência jurisprudencial no sentido de reconhecer a relação causal –, apesar de reconhecerem que faltava uma lei natural explicativa, aceita pela comunidade científica.

Por exemplo, no caso do óleo de soja, nem pela química, nem pela toxicologia, nem pela bioexperimentação se pôde comprovar com clareza qual foi o agente que causou a contaminação, as lesões e mortes nas pessoas. Aliás, houve uma intervenção de inúmeros agentes, consumidores e produtores que participaram da colocação de uma série de produtos para purificar esse óleo de soja, inclusive com a introdução de anilina, que era o único componente que se sabia que poderia ser tóxico, mas, como a quantidade era pequena, imaginava-se que não seria o causador.

O outro caso é o do Contergan, que é muito curioso. Na relação de causalidade, diz-se que, se a pessoa sabe que cravar uma faca em alguém ou desferir um tiro mata, é claro que há relação de causalidade. Então, é isso que nós víamos antigamente. O problema, no caso da talidomida, do Contergan, foi que algumas pessoas que o ingeriram, mulheres grávidas, não sofreram malformações nos seus fetos, mas, por outro lado, todos os fetos que sofreram malformações provinham de gestantes que tinham ingerido este medicamento.

Exatamente aqui foi isso que aconteceu no caso do azeite de soja: todos os que ingeriram esse óleo sofreram lesões ou mortes, apesar de que não se sabia qual era precisamente o agente produtor.

Então, os tribunais decidiram que nós devemos examinar a relação de causalidade do ponto de vista natural. Consideraram os tribunais que se podia encontrar uma lei causal natural quando observado o fato em um número considerável de casos similares, sendo possível excluir que o resultado tenha sido provocado por outras causas. Se não foi por outras causas, foi por esta. Então, uma causalidade, digamos, do ponto de vista positivo e também do ponto de vista negativo, ou seja, quando se descarta que outras substâncias poderiam produzir essas conseqüências.

Acontece que, nesses casos, tanto em nível civil quanto penal, nós estamos diante do que se chama de ilícito ou dano cumulativo, o que também ocorre em matéria ambiental, pois há uma constante cumulatividade de produtos na natureza, e muitas vezes não é um copo d’água que nós ingerimos que vai causar uma alteração, visto que há mercúrio na água. Nós começamos a tomar a água, e isso ou vai aparecer mais adiante como uma moléstia, ou às vezes até passa na cadeia genética e vai para as gerações futuras, como o caso dos inseticidas que aparecem às vezes só na segunda ou na terceira geração.

Isso tudo faz parte da nova discussão sobre a causalidade cumulativa, e, por isso, não pode ser avaliado sob o limitado prisma da ilicitude, nem ser avaliado sob o prisma da concepção ortodoxa da causalidade, tal como era antes pelas ciências naturais, porque há, então, uma transformação no modo de o Direito ver essa questão, e, portanto, se faz uma análise de uma maneira diferenciada, mediante a nova forma de ver a denominada causalidade natural.


E aqui exatamente o que aconteceu, porque, como a eminente Relatora menciona em seu voto, não se sabe exatamente qual é a causa da doença, o que se sabe é que as pessoas que fumaram, todos eles, em um percentual altíssimo, apresentam a trombogeíte obliterante, que é uma doença típica de fumantes.

Então, eu confirmo, sem dúvida alguma, a existência do nexo causal, até porque estudos, inclusive médicos, no Direito Comparado têm mostrado não apenas a manipulação de informação pelas indústrias fumageiras ou tabaqueiras, mas também têm chegado à conclusão de que, como salienta o British Medical Journal: “50 anos depois de iniciadas as pesquisas, foi confirmado que fumar causa câncer no pulmão”. Foi uma longa pesquisa realizada que confirma que, em média, os fumantes morrem 10 anos antes dos não-fumantes, e hoje há pesquisas que mostram que o fumante passivo também adquire uma série de moléstias gravíssimas, e às vezes até de maneira mais rápida do que os próprios fumantes.

Há uma decisão recente do Tribunal de Roma que condenou o monopólio do Estado, e por isso não havia ações quase na Europa, porque na Espanha e na Itália há um monopólio, é diferente, pois não há venda direta por pessoas jurídicas como as indústrias Philip Morris, Souza Cruz e outras.

Então, cresce essa tendência sempre de reconhecer que há esse dano causado pelo cigarro. Inclusive, há um convênio internacional agora, que eu não sei por que ainda não foi aprovado lá no Congresso, que é mais uma luta em relação a qual a sociedade e os tribunais não podem ficar insensíveis. Não se trata de simplesmente uma ideologia, mas, sim, de uma conscientização social. Nós temos visto, inclusive nos Estados Unidos, recentes condenações. Houve em Nova Iorque, uma condenação de 8 milhões de dólares para a Empresa Brown & Williamson por conspiração e ocultação dos riscos à saúde causados pelo tabagismo. Há ações inclusive por evasão de impostos, etc. Na Califórnia, uma Corte de Apelação confirmou também uma condenação de 55 milhões contra a indústria de cigarros. Houve recentemente uma sentença – apesar de que existe também uma outra em sentido contrário, pois essa é uma discussão que está recém iniciando, as duas têm dois meses de diferença -, pela qual a Corte de Apelação de Roma condenou o monopólio ao ressarcimento dos danos, justamente reconhecendo essa atividade perigosa pelo risco, dano à saúde, dificuldade ao acesso das informações por parte do fumante, etc.

Então, essa é uma tendência internacional. Se nós olharmos o nosso sistema jurídico, na Constituição Federal, arts. 6º e 196, art. 12 do Código de Defesa do Consumidor e agora no Código Civil de 2002, todos eles estão em uma linha de ampliação dessa responsabilidade que se vai formando em torno do risco. O que se diz atualmente é que deve haver uma evolução muito rápida, e os tribunais têm que preencher essas lacunas, com uma interpretação evolutiva, justamente decidindo da melhor maneira, no sentido de responsabilizar pelo risco. Há também a norma do art. 927 do Código Civil, que determina que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, como é o caso do CDC, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Isso é o que acontece, ou seja, há uma atividade perigosa que causa uma vantagem econômica à empresa, e essa vantagem econômica gera um dever, por segurança jurídica, de obter a indenização se comprovados os pressupostos de responsabilidade, que são: a conduta, o nexo de causalidade e o dano.

Mais do que isso não é necessário, pelo nosso sistema jurídico, tendo em vista que tanto o Código do Consumidor quanto o Código Civil são normas de ordem pública – e, portanto, têm aplicabilidade imediata – e também porque se trata de danos cumulativos, os quais ainda persistem, até este momento, com essa pessoa.

Portanto, reconheço também a responsabilidade.

E digo mais: o livre arbítrio não é um argumento. Assim como, há muitos anos, no Direito Penal, se falava em livre arbítrio para dizer que isso era o fundamento da culpabilidade, hoje todos os penalistas abandonaram a tese do livre arbítrio, assim como nunca foi aceito o determinismo filosófico, porque isso não pode ser comprovado no Processo Penal e tampouco no processo civil. Isso é coisa para discussões da metafísica.


Do ponto de vista das Ciências Sociais, sabe-se que a pessoa humana tem condicionamentos, tem limitações. Como dizia Ortega y Gasset: “O homem é o homem e suas circunstâncias”, somos um produto contingente da história, da cultura. Não posso comprovar se sou livre para pagar impostos ou se sou livre para escolher tal ou qual opção de vida. Na maioria das vezes, somos empurrados ou condicionados por uma série de fatores.

Neste caso, como bem expresso no voto da Desa. Marilene, essa pessoa já tinha toda aquela informação manipulada e, portanto, viciosa. Baseei-me também no recente trabalho da Professora Cláudia Marques, colega da Universidade Federal, especialista em Direito do Consumidor, em que ela faz uma abordagem muito interessante, dizendo que a responsabilidade massiva do tabaco criou e cria expectativa legítima de boa-fé, culpa in contrahendo, uma culpa pré-contratual que está baseada na boa-fé.

Aliás, um grande número de autores especialistas em Direito Civil, que fazem uma análise com o Direito Comparado, dizem que isso já existia inclusive no Código Civil de 1916 e que, portanto, isso tudo aqui nada mais é do que uma simples evolução, de modo que essa falha na informação, essa falta de boa-fé gera responsabilidade e imputa os riscos da lacuna de informação no sentido de que gera o dever de indenizar (MARQUES, Cláudia Lima, Violação do Dever de Boa-fé de Informar Corretamente. Atos Negociais Omissivos Afetando o Direito/Liberdade de Escolha. Nexo Causal entre Falha/Defeito de Informação e Defeito de Qualidade nos Produtos de Tabaco e o Dano Final da Morte. Responsabilidade do Fabricante do Produto. Direito à Ressarcimento dos Danos Materiais e Morais, Sejam Preventivos, Reparatórios ou Satisfatórios. in RT, Ano 94, V. 835, maio 2005, p. 75-133)

Peço vênia por haver-me estendido, mas, na condição de Revisor, eu precisava também estar convencido da justiça ou não da decisão.

Também ressalvo um aspecto muito importante: nem todos os casos de responsabilidade fumageira serão procedentes, vai depender sempre de cada caso, assim como ocorre com a responsabilidade da imprensa, ou qualquer outra, em que será sempre cotejado, teremos sempre que fazer a ponderação, a análise do caso concreto. No entanto, neste caso, não tenho a mínima dúvida em acompanhar a douta Relatora.

Dr. Miguel Ângelo da Silva

Senhora Presidente, eu trouxe algumas anotações por escrito, considerando a importância do caso, a relevância da matéria e o seu caráter, de certo modo, inusitado.

Mas quero, inicialmente, congratular-me com Vossa Excelência, Desa. Marilene, Relatora deste processo, pela ampla e minuciosa análise que fez do conjunto probatório, evidenciando, sobretudo, a presença deste elemento fundamental, que é o nexo de causalidade entre o fato do produto e o dano experimentado pela vítima, no caso, autor desta demanda.

Creio que o exame da prova, inclusive com as referências à literatura médica especializada sobre o tema, deixa eloqüentemente evidenciado aí o nexo de causalidade, que é um dos dados a serem ponderados para fim de definição do dever de indenizar no caso concreto, uma vez que, a meu juízo, também a responsabilidade da fabricante dos cigarros resulta do próprio risco da atividade que desempenha ao colocar no mercado produto potencialmente danoso ou perigoso à saúde dos consumidores em geral.

Feitas essas observações, vou passar a ler algumas anotações que fiz.

Relativamente ao mérito da causa, no tocante ao dever de indenizar da empresa fabricante do produto causador do evento danoso que o colocou no mercado consumidor, estou acompanhando e subscrevendo integralmente o erudito e judicioso voto da Relatora Desa. Marilene Bonzanini Bernardi, que, a meu sentir, bem equacionou o caso concreto.

Também não parto de juízos apriorísticos sobre o tema em discussão, razão pela qual estimo deva prevalecer efetivamente a análise do caso concreto específico trazido a julgamento neste Colegiado recursal, atentando-se às suas peculiaridades, aliás, muito bem enfatizadas no voto da eminente Relatora.


No que respeita ao livre arbítrio do fumante, há que analisar a questão com certa flexibilidade, visto que o consumo quotidiano e reiterado de cigarros, o vício do tabagismo, vai aos poucos minando a vontade livre do seu usuário, consumidor do produto, que se torna um dependente químico, que, muitas vezes, apesar de esforços ingentes de ordem pessoal, não consegue se desligar do vício assimilado e bem difundido pela maciça propaganda dos cigarros, feitas pelas empresas que fabricam o produto e o põem no mercado consumidor.

De ponderar a respeito que quem adverte que o cigarro faz mal à saúde não é a empresa produtora, mas, sim, o Ministério da Saúde. Ademais, como evidenciado nos autos, sequer as advertências quanto aos malefícios do fumo eram obrigatórias nas propagandas veiculadas ao tempo em que o demandante começou a fumar. É fato fora de dúvida que o autor é tabagista de longa data, ao que consta, desde 1988, sendo usuário de cigarros, cuja marca é de fabricação da empresa ré.

Também restou bem evidenciado pela análise do conjunto probatório realizado pela eminente Relatora a presença de nexo de causalidade entre o fato do produto, ou fato de consumo, e a Doença de Burger, trombogeíte obliterante, que a literatura médica especializada qualifica como uma inflamação causada pelo tabagismo. O voto da Relatora assinala a esse respeito: “De fato, todos os elementos indicam que o autor sofre de trombogeíte obliterante. Desde as suas condições pessoais até os sintomas e as conseqüências experimentadas se amoldam às lições da literatura médica acerca da doença”.

Para mim também está fora de dúvida que estamos diante de relação de consumo, cuja disciplina se sujeita ao regramento previsto no Código de Defesa do Consumidor. Ao que se depreende dos autos e do voto da Relatora, se está, in casu, inequivocamente diante de um acidente de consumo ou, noutros termos, de hipótese de responsabilização civil do fabricante pelo fato do produto (CDC, art. 12). Há evidente verossimilhança na narrativa dos fatos feita pelo autor na petição inicial, e, além disso, a prova, inclusive pericial, que deve ser reputada idônea, também aponta para os danos padecidos pelo autor e sugere fortemente a presença do nexo causal, entre eles, danos e o fato do produto, consumo do cigarro por prolongado período de tempo.

O CDC estabeleceu, entre os direitos básicos do consumidor, no seu art. 6º, vetor do microssistema, inc. VI, “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” e, no inc. VIII, “a facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

Aqui a verossimilhança das alegações do demandante é manifesta. Não há como desconsiderá-la, observadas as regras ordinárias de experiência, as chamadas regras de experiência subministradas, e vem corroborada pelo conjunto probatório, cuja análise me dispenso de maiores considerações à vista das ponderações contidas no voto da eminente Desembargadora-Relatora.

Na espécie, está-se diante de hipótese de responsabilidade objetiva do fabricante, operando-se a inversão do ônus probatório ope legis, a teor da regra expressa contida no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.

De outra parte, estimo que a empresa fabricante de cigarros não logrou demonstrar as hipóteses excludentes de responsabilidade que vêm previstas nesse dispositivo do Diploma Consumerista, quais sejam: que não colocou o produto no mercado, aliás, nesse ponto admite expressamente o contrário; que o defeito não existiu; ou então a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Note-se que tais são as hipóteses que poderiam afastar a responsabilidade objetiva, sendo que o ônus da prova a respeito de sua ocorrência compete ao fabricante, a teor do que preceitua o § 3º do art. 12 do CDC, cuja leitura do caput vou-me dispensar. Ora, de sua vez, o § 1º deste mesmo dispositivo legal deixa claro: “O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, dentre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi colocado em circulação”.


Ora, é razoável supor que um tabagista inveterado, como tudo faz crer seja o autor, venha a sofrer problemas de saúde, inclusive de natureza grave, dentre eles, por exemplo, doenças pulmonares, doença obstrutiva crônica de artérias, câncer de pulmão, câncer de esôfago, redução da capacidade respiratória e pulmonar, até mesmo a trombogeíte obliterante, mas aí estamos diante da concorrência de culpa, da contribuição da conduta do autor para a superveniência do dano por ele experimentado. Tal não afasta, contudo, a responsabilidade do fabricante, no caso, a empresa ré, que é objetiva e resulta da fabricação do produto potencialmente causador de danos ao consumidor, responsabilidade empresarial defluente do só exercício da atividade potencialmente lesiva à saúde dos consumidores em geral.

Quanto ao tema da responsabilidade objetiva, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados, Editora RT, discorrendo sobre o § 3º do referido art. 12, que estabelece a responsabilidade objetiva: “Responsabilidade objetiva fundada na teoria do risco da atividade. A responsabilidade objetiva do CDC não é compatível com causas de exclusão do dever de indenizar derivadas da culpa. O caso fortuito e a força maior excluem a culpa do agente, que, contudo, é irrelevante para a fixação do dever de indenizar no Código de Defesa do Consumidor”.

No caso concreto, entendo que a empresa fabricante Souza Cruz S. A. não logrou comprovar qualquer dessas causas excludentes de responsabilidade civil, sendo objetiva a responsabilidade civil decorrente do fato do produto (CDC, art. 12). Reclama apenas a comprovação do acidente de consumo, do dano dele emergente e do nexo causal entre o fato e o dano.

No caso concreto, o autor, aqui apelado, desincumbiu-se a contento em demonstrar a existência dos danos de ordem material, sérios agravos à sua própria saúde e, conseqüentemente, do dano moral, cuja reparação é perseguida, consistente nos efeitos psicológicos nefastos daí advindos, pois, com o agravamento da doença, passou a padecer de depressão, afecção de ordem mental.

Nesse passo, invoco a abalizada doutrina do culto jurista gaúcho e Desembargador desta Corte, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, que assim discorre sobre os pressupostos da responsabilidade civil pelo fato de consumo. Na obra Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, Editora Saraiva, 2002, 1ª edição, pp. 110-112, diz ele, acerca dos pressupostos da responsabilidade civil pelo fato de consumo: “Identificam-se os pressupostos da responsabilidade pelo fato de consumo a partir dos elementos sedimentados no sistema tradicional,” – e aqui faço um destaque – “excluindo-se a culpa e a ilicitude. Consideram-se, assim, apenas o fato, o dano, o nexo causal e a imputação. Transpondo-se esses elementos para a responsabilidade civil por acidentes de consumo, podem-se identificar os seus pressupostos”.

Mais adiante, o mesmo doutrinador observa: “Em síntese, a doutrina nacional aponta três pressupostos para a responsabilidade civil do fornecedor: o defeito, o dano e o nexo causal. Todavia, um quarto pressuposto também deve ser acrescido: o nexo de imputação. Há necessidade de se estabelecer um vínculo entre a atividade do fornecedor e o defeito no produto ou no serviço.

“Embora a imputação do defeito ao fornecedor não decorra do elemento culpa, que foi suprimido do suporte fático, do fato de consumo, deriva do risco da atividade desenvolvida por determinadas pessoas em seu benefício, a quem a lei atribui, por isso, o dever de reparar os danos decorrentes de acidente de consumo.”

Fechando a menção à doutrina invocada, prossegue o ilustre doutrinador: “O defeito consiste na deficiência apresentada pelo produto ou pelo serviço, que, não oferecendo a segurança que deles legitimamente se espera, os torna perigosos,” – e aqui grifo a expressão – “potencializando-os para a causação de danos ao consumidor.

“O nexo de imputação é o vínculo que se estabelece entre o defeito do produto ou do serviço e a atividade desenvolvida pelo fornecedor para a atribuição do dever de indenizar os danos sofridos pelo consumidor prejudicado.

“O dano é toda a ampla gama de prejuízos causados pelo defeito do produto ou do serviço, abrangendo os danos patrimoniais e extrapatrimoniais.


“Finalmente, o nexo de causalidade é a relação de causa e efeito que se estabelece entre o defeito do produto ou do serviço e o dano, para que se possa reconhecer a ocorrência de um acidente de consumo e o nascimento da obrigação de indenizar.”

Tais elementos vejo evidenciados no caso concreto, voltando a me reportar ao que consta do voto da eminente Relatora, ao qual, a rigor, nada seria necessário acrescentar. Apenas fiz essas ponderações para trazer também a minha posição pessoal diante do caso concreto, porquanto a questão foi muito bem examinada no voto da Relatora e também muito bem apreciada nas considerações tecidas pelo ilustre Revisor, que trouxe preciosas lições da doutrina e da jurisprudência estrangeira.

Com essas considerações, também estou acompanhando Vossa Excelência, inclusive no tocante ao valor da indenização, proposta em R$ 300.000,00.

Portanto, eu estaria dando provimento ao apelo para reduzir o montante da indenização, nos termos do voto da Relatora.

REJEITARAM AS PRELIMINARES, DESPROVERAM O AGRAVO RETIDO E DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO.

Julgador(a) de 1º Grau: MAURO CAUM GONCALVES


[1] Em seu voto, a relatora, Exma. Desª. Mara Larsen Chechi, referindo-se a manipulação da nicotina pela industria fumageira e à inclusão de substancias cancerígenas referiu: “apropriado o fato pelo domínio público, através do meio de comunicação mais ágil e abrangente na atualidade, subsume-se na previsão do artigo 334, I, do CPC, que dispensa atividade probatória“.

[2] Apelacão Cível 70004812558, 9a. Câmara Cível, TJRS, j. 13-10-2004.

[3] Art.12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

§1º. O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – sua apresentação;

II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi colocado em circulação.

§2º. O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

§3º. O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I – que não colocou o produto no mercado;

II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

[4] SILVA, Jorge Alberto Quadros de Carvalho. Código de defesa do consumidor anotado, São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 51-52.

[5] Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp.583-584.

[6] Disponível em URL: http://www.msd-brazil.com, acesso em 08-09-2005.

[7] Disponível em: URL: http://www.lava.med.br/livro, acesso em 08-09-2005.

[8] in Coleção AJURIS, 38/157.

[9] in Prática da Responsabilidade Civil, 3ª ed., 1975, p. 49/53.

[10] Dano moral, 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

[11] Tratado de Responsabilidade Civil, 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

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