Prerrogativas da advocacia

Advogado que representa contra juiz não comete crime de calúnia

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3 de outubro de 2005, 17h35

O Supremo Tribunal Federal considerou que um advogado não comete o crime de calúnia e injúria contra um juiz quando apresenta uma representação contra ele à OAB, ainda que se utilize de expressões consideradas excessivas. A 2ª Turma do Supremo trancou, por unanimidade, uma ação penal do juiz Bruno José Berti Filho contra o advogado Edison de Antonio Alcindo. Em 2003, o ministro Gilmar Mendes já havia decidido pela suspensão da ação penal até o julgamento do mérito do Habeas Corpus pelo STF.

Alcindo fez uma representação à Comissão de Prerrogativas da OAB-SP em que reclamava da decisão juiz que concedia os alvarás em levantamentos de ações previdenciárias em nome das partes e não dos advogados. Na representação, o advogado acusava Berti de abuso de autoridade e dizia que o juiz agia acima da lei e com má-fé para prejudicá-lo.

Os ministros acompanharam o voto do relator, que considerou que a principal intenção do advogado na representação era a defesa de suas prerrogativas. Para Gilmar Mendes, apesar das “expressões que podem ser consideradas excessivas”, a intenção do advogado não era a de ofender o juiz.

A denúncia contra o advogado havia sido recebida pelo juiz da 3ª Vara de Fernandópolis (SP) e os Habeas Corpus ao extinto Tribunal de Alçada Criminal e ao Superior Tribunal de Justiça foram negados. O advogado Rodrigo Nascimento Dall’Acqua defendeu Alcindo em nome da OAB-SP.

Leia a Integra do Habeas Corpus ao STF

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO PRESIDENTE DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO DE SÃO PAULO, por seu procurador, o advogado Rodrigo Nascimento Dall’Acqua, brasileiro, casado, inscrito em seu quadro sob o número 174.378, com escritório na Av. São Luís, 50, 11º andar, cj. 112B, São Paulo (SP), vem, respeitosamente, a presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal e artigo 647 e seguintes do Código de Processo Penal, impetrar a presente:

ORDEM DE HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR

em favor do Advogado EDISON DE ANTÔNIO ALCINDO, brasileiro, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil secção de São Paulo sob o no. 15.811, domiciliado na Rua Três, n. 2.181, Jales (SP), apontando desde já como autoridade coatora o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, (habeas corpus nº 24.360), que está causando constrangimento ilegal ao Paciente, conforme as razões de fato e de direito expostas a seguir.

O Paciente é Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil desde o ano de 1.965, formado na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, atuando predominantemente na Comarca de Jales, interior de São Paulo.

Nestes quase quarenta anos de advocacia, fez-se respeitado e admirado por sua irrepreensível conduta profissional, sem jamais ter contra si qualquer reclamação ou fato desabonador decorrente, ou não, do exercício da advocacia.

Na data de 19 de julho de 2.000, o Paciente encaminhou envelope fechado contendo uma petição ao Presidente da Sub-Secção da OAB de Jales, narrando fatos que em sua firme convicção configuravam desrespeito ao Estatuto da Advocacia, reclamando a intervenção da Entidade.

Reportando-se diretamente ao Presidente da Sub-Secção de Jales, o Paciente utilizou-se de linguagem informal e direta (falava com seus pares) para narrar os fatos e apresentar documentos(doc. 1). Em suma, relatou que o MM. Magistrado da 1ª Vara Cível da Comarca de Fernandópolis (SP) determinava a expedição de alvará de levantamento em ações previdenciárias em nome do cliente, e não do Advogado, como usual.

Sem querer discutir a conveniência da determinação acima, vale salientar que a expedição de alvará levantamento em ações previdenciárias em nome da parte vem suscitado protestos, não só do Paciente, mas também da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP:

“CIENTIFICAÇÃO VIA SEED – Depósito efetivado a favor do autor em ação previdenciária – A AASP oficiou aos MM. Juizes da 3ª e 5ª Varas Cíveis da Comarca de São Caetano do Sul requerendo modificação da atual orientação que determina seja cientificado o autor, via SEED, de depósito efetivado a seu favor em ação previdenciária, fazendo cessar a ofensa à classe, uma vez que tal medida coloca em dúvida a lisura do advogado no acerto de contas com seu constituinte, caracterizando odioso preconceito contra toda uma classe profissional.” (Boletim da AASP Nº 2.168, de 17 à 23.07.2000)


Faz-se essa observação tão somente para demonstrar que o Paciente, ao solicitar providências da Ordem dos Advogados do Brasil, agiu movido pelo mesmo interesse que motivou a Diretoria da Associação dos Advogados de São Paulo a manifestar-se sobre o tema: a defesa de direitos profissionais que se supõe legítimos.

Voltando a petição formulada pelo Paciente, este, após narrar o ocorrido, solicitou a intervenção da OAB/SP para que tomasse as medidas pertinentes afim de fazer cessar a situação reportada.

Neste intróito, Excelências, é imperioso destacar que todos os procedimentos instaurados pela Comissão de Direitos e Prerrogativas do Advogado são, necessariamente SIGILOSOS. A única e restrita publicidade dada aos procedimentos internos ocorre para a própria parte representada, para que possa ter ciência dos fatos, e, querendo, oferecer sua versão.

O sigilo garantido aos procedimentos instaurados pela Comissão de Prerrogativas é notório, e encontra-se previsto no artigo 76 do Regimento Interno da OAB/SP:

“Art. 76 – O processo deverá tramitar com celeridade necessária aos objetivos a que se propõe. Do procedimento somente terão vista os interessados, vedada a extração de cópia para uso externo.” (grifamos)

Mantendo o sigilo exigido, os autos foram enviados para o Presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, que remeteu, em envelope lacrado, uma cópia da petição subscrita pelo Paciente para que o ilustre Magistrado apresentasse sua versão sobre os fatos (doc. 1).

Sentindo-se ofendido com os termos da representação do Paciente, o ilustre Magistrado representou criminalmente contra o mesmo(doc. 3), culminando na denúncia oferecida pelo delito definido nos artigos 138 e 140 caput, (calúnia e injúria), com a causa de aumento definida no artigo 141, inciso II do Código Penal Brasileiro(doc. 4).

Recebida a denúncia em 19 de março de 2.002 (doc. 5), foi instaurada ação penal contra o Paciente, causando-lhe inadmissível constrangimento ilegal, face a manifesta ausência de dolo ofensivo, inexistindo a necessária justa causa para persecução penal.

Impetrou-se habeas corpus perante o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, sendo concedida a medida liminar pleiteada para impedir o interrogatório do Paciente:

“Encontram-se presentes nos autos os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora. A advocacia é função essencial à administração da justiça, por comando fundante, enfatizado a partir da Carta de 1988.”

No julgamento do writ, contudo, a Colenda 7ª (Sétima) Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal denegou a ordem, pecando ao envolver-se calorosamente com questões indiferentes à causa[1], e afastando-se da estreita análise jurídica pretendida. Analisando as mesmas questões, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça denegou a ordem impetrada (doc. 06)

A FALTA DE JUSTA CAUSA PELA MANIFESTA AUSÊNCIA DE DOLO OFENSIVO

Não se pretende aqui discutir o mérito dos fatos discutidos na presente ação penal, mas sim, dentro do permitido pela estreita via do habeas corpus, demonstrar a gritante ausência de justa causa, através de um exame superficial e distante de debates valorativos sobre a prova.

Sem nenhuma necessidade de adentrar no mérito da questão, respeitando os limites do remédio heróico, já é escandalosamente visível que a única intenção do Paciente era defender sues interesses e de sua classe profissional. No momento da elaboração e da remessa da referida petição perante a OAB, o Paciente manifestamente estava empenhado em relatar as atitudes adotadas pelo Juiz de Primeira Instância, com o propósito de solicitar a tomada de providências.


O Mestre NELSON HUNGRIA definiu “o dolo específico dos crimes contra a honra como sendo a consciência e vontade de ofender a honra alheia (reputação, dignidade ou decôro), mediante a linguagem falada, mímica ou escrita.[2]” Segundo a lição de Hungria, encampada por toda doutrina, o dolo ofensivo característico dos crimes contra a honra é excluído quando na presença de certos animus, entre eles o animi defendendi e o animi narrandi.

Define o Desembargador ADALBERTO JOSÉ Q. T. CAMARGO ARANHA os termos do animus defendendi:

“O animus defendendi revela a intenção do agente de defender um interesse tutelado.”[3]

Novamente valendo-se dos ensinamentos do Mestre HUNGRIA, segue a definição do animus narrandi:

“É a intenção de referir a outrem aquilo que viu, sentiu ou ouviu a respeito de alguém.”[4]

Indiscutivelmente, de superficial análise, o Paciente peticionou à OAB/SP com o intuito de defender seus direitos profissionais, e, para isso, ainda foi necessário elaborar uma contundente narrativa dos fatos que envolveram esta questão.

Tudo isso em procedimento sigiloso, que apenas os integrantes da Comissão de Prerrogativas e o próprio Magistrado envolvido possuem acesso. Vale dizer que o Magistrado representado só teve vista da petição feita pelo Paciente porque assim foi determinado pelo membro da Comissão de Prerrogativas, que enviou-lhe cópia para que oferece-se sua versão dos fatos.

Caso a intenção do Paciente fosse atentar contra a honra do Magistrado de Primeira Instância, utilizaria, decerto, meio diverso do processo sigiloso. Propagaria inverdades pelos corredores do Fórum, afixaria escritos caluniosos apócrifos, enviaria missivas injuriosas a seus colegas de profissão, enfim, buscaria efetivamente atacar a reputação alheia.

Na presença dos animus defendendi e narrandi, não há que se falar na configuração de crime contra a honra, como proclama em uníssono a jurisprudência pátria, como bem exemplifica o julgado a seguir, emanado pelo Egrégio TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL DO ESTADO DE SÃO PAULO:

“CRIME CONTRA A HONRA – Advogado que, em representação contra Promotor de Justiça, imputa-lhe a prática de crimes, relatando fatos e incidentes vinculados à discussão da causa, que reputou irregulares e prejudiciais aos interesses de seu cliente – Configuração – Inocorrência:

Impossível falar-se em crime contra honra, por ausência do elemento subjetivo do injusto, na hipótese em que o agente, na condição de Advogado, representa contra Promotor de Justiça, imputando-lhe a prática de crimes, se o escrito incriminado não passa de mero relato, entremeado de considerações sobre fatos e incidentes processuais que reputou irregulares e prejudiciais aos interesses de seu cliente, posto que sua conduta, vinculada à discussão da causa é inspirada pelo animus defendendi, não desborde do âmbito da simples notitia criminis, com pedido de providência à Autoridade competente, encontrando-se amparada na excludente do exercício regular de direito no art. 23, III, do CP e na imunidade judiciária contida no art. 133 da Constituição Federal.”

Destaca-se no corpo do referido acórdão:

“ Por igual, disse o Excelso Supremo Tribunal Federal, num caso em que envolvia um Magistrado: “Tendo o agente representado à autoridade judiciária competente, narrando arbitrariedades e requerendo sua apuração, não há falar em crime de calúnia, mas no exercício do direito individual de pedir, em sede própria, a apuração de fatos possivelmente delituosos” (STF, RHC nº 66.018-5/SP, Rel. Min. Francisco Rezek, JUTACrim 95/458).


E mais, como enfatizar no corpo desse v. acórdão, mesmo que não provado o fato, o autor da representação “ …não pode ficar sujeito a ação penal por crime contra a honra daquele contra quem representou, porque, se assim for, não se poderá admitir que alguém transmita à E. Corregedoria suspeitas em torno da prática de irregularidades por parte de Magistrados” ou, acrescente-se – por parte de Promotores de Justiça ou qualquer outra Autoridade. (RJTAcrim jan./mar. 1999; p. 316; HC no. 324.308/4; Rel. Lopes da Silva; j. 11.08.98”; negritos nossos)

Na mesma linha são os julgados do Egrégio SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, como verifica-se no Recurso Ordinário em habeas corpus a seguir:

“CRIME CONTRA A HONRA – Calúnia – Descaracterização – AdvogadoEx.pressões pertinentes à causa proferidas na sua discussão relacionadas com a defesa – Hipótese em que, mesmo que os ataques caluniosos não sejam abrangidos pela imunidade judiciária, inexistiu a intenção para tanto, sendo impróprio afirmar que houve falsa imputação de crime, com o intuito de ofender a honra de alguém.” (STJ; 5ª Turma; Rel. Min. Gilson Dipp; RT 787/548; DJU 30.10.2000, grifamos)

“A doutrina e jurisprudência pretoriana são uníssonas ao afirmar que a configuração dos crimes contra a honra não se realiza com meras palavras aptas a ofender, mas exige que elas sejam proferidas com essa finalidade. É essencial o dolo específico, no caso, o chamado animus caluniandi, manifestado na vontade de caluniar, ofender a honra e a dignidade da pessoa.”(grifamos)

E ainda:

“ Penal e processual penal – Recurso ordinário de Habeas Corpus – Representação contra magistrado – Crime contra a honra – Ausência de justa causa.

O conteúdo da representação feita contra magistrado, ainda que irritante, nos limites da situação fática, não configura, de per si, crime contra a honra.

Não se pode alçar à condição de ilícito penal aquilo que somente é desejado pela especial susceptibilidade da pessoa atingida e nem se deve confundir ofensa à honra, que exige dolo e propósito de ofender, com narrativa crítica, de fatos gravíssimos, mas limitada, até aqui, ao animus narrandi.

Recurso conhecido e provido, trancando-se a ação penal.”

(RHC Nº 8.185, Rel. Min. Felix Fischer; grifamos)

“Penal – Processual – Crime contra a honra – Denúncia – Trancamento – Fato atípico – “Habeas Corpus”.

A descrição de fato em representação contra conduta de Magistrado, ainda que em termos exacerbados, não tipifica crime contra a honra se o autor da representação transcende ao “animus narrandi”.

Recurso conhecido e provido para trancar a Ação Penal por falta de justa causa.”

(RHC Nº 5.777-SP; Min. Edson Vidigal; j. 3.12.96; grifamos)

No mesmo sentido é o entendimento do Egrégio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como bem ilustra a decisão a seguir, proferida em sede de habeas corpus, determinando o trancamento de inquérito policial:

HABEAS CORPUS – INQUÉRITO POLICIAL-MILITAR (IPM) – CRIME DE CALÚNIA (CPM, ART.214) – DELITO DE DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA (CPM, ART.343) – AUSÊNCIA DE TIPICIDADE PENAL – FALTA DE JUSTA CAUSA – TRANCAMENTO DO IPM – PEDIDO DEFERIDO.

“- Nos delitos de calúnia, difamação e injúria, não se pode prescindir, para efeito de seu formal reconhecimento, da vontade deliberada e positiva do agente de vulnerar a honra alheia. Doutrina e jurisprudência."

Destaca-se, no voto do Excelentíssimo Ministro Relator:

“A presença de qualquer excludente anímica no discurso alegadamente contumelioso do agente tem o condão de


descaracterizar, no que se refere aos delitos contra a honra, o elemento subjetivo que se acha implícito no tipo penal consubstanciado nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal.

Na realidade, a intenção dolosa constitui elemento subjetivo que, implícito no tipo penal, revela-se essencial à configuração jurídica dos crimes contra a honra (RT 553/404 – RT 612/395 – RT 621/314)” (STF; HC nº 71466-8 DF, 16.08.94; Rel. Min. Celso de Mello)

Tratando-se de suposto delito de injúria cometido nos autos de procedimento interno da OAB/SP, é imprescindível esclarecer outro importante aspecto relativo ao trâmite processual previsto.

Como já dito, o processo instaurado pela Comissão de Prerrogativas é sigiloso, dando-se vistas somente às partes envolvidas (Advogado Requerente e ofensor). Contudo, a vista dos autos ao ofensor não é do Advogado Requerente, mas sim, medida que pode ou não ser determinada pelos Membros da Comissão de Prerrogativas. Segue a transcrição de mais um esclarecedor artigo do Regimento Interno da OAB/SP:

Art. 72 – O Relator e qualquer membro da Turma poderá determinar a realização de diligências, requisitar e solicitar cópias, traslados, reproduções e certidões, informações escritas, inclusive do ofensor, no prazo de l5 dias.” (grifamos)

Logo, temos que o Paciente apresentou petição pedindo assistência da OAB/SP, mas quem encaminhou a mesma para ciência do Magistrado de Primeira Instância foi o Relator do procedimento interno instaurado pela Comissão de Prerrogativas.

Foi o integrante da Comissão de Prerrogativas, que julgando essa diligência necessária, decidiu por remeter a petição ao Magistrado, que dela tomou ciência. O Paciente, em nenhum momento, solicitou que a OAB/SP remetesse a petição para que o Magistrado dela tivesse ciência.

Resta manifesto que o Paciente, Advogado, agindo com o único intuito de defender seus direitos e prerrogativas profissionais, sem excessos de qualquer natureza, agiu movido pelo animus defendendi e narrandi, relatando irregularidades e atitudes que supôs existentes. Ausente o elemento subjetivo do tipo penal, resta evidente a atipicidade dos fatos imputados ao Paciente na presente ação penal, que carece de justa causa, constituindo-se em injusto constrangimento ilegal, sanável por via deste remédio heróico.

DA INÉPCIA DA DENÚNCIA

Não é possível construir uma denúncia válida onde não há crime, e neste caso nada foi diferente: a denúncia é manifestamente inepta. Com muita dificuldade, a inicial acusatória vai amealhando frases e grifando trechos para acusar o Paciente de calúnia, sem lograr definir o crime que teria sido falsamente imputado ao Magistrado de Primeira Instância.

A denúncia acusa o Paciente de imputar falsamente fato definido como crime, mas não narra qual seria o tipo penal atribuído a este fato. Afirma, laconicamente, que o crime atribuído aos fatos imputados seria o “crime de abuso de autoridade”.

Esquece-se a denúncia que o crime de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/1965) possui 19 (dezenove) definições jurídicas distintas, dispostas em 2 (dois) artigos e 19 (dezenove) alíneas!!!

Ou seja, em clamorosa afronta aos princípios do contraditório e ampla defesa, a acusação apresenta-se de forma omissa e deficiente, por não descrever qual é a definição jurídica do fato criminoso imputado pelo Paciente. Lembre-se que em se tratando de crime de calúnia, a definição jurídica do fato falso imputado é de essencial relevância, sendo sua justa definição imprescindível para o exercício de defesa. Mas não é só.


A inicial ainda não descreve outra circunstância elementar do crime de calúnia, a falsidade do fato criminoso imputado. Neste ponto, limita-se a acusação a afirmar que não houve abuso de autoridade porquê não houve abuso de autoridade:

“Tais imputações criminosas são falsas, já que o Magistrado, com sua atitude, no exercício da jurisdição, em nenhum momento ‘passou por cima da lei’ ou ‘com pura má-fé e intuito preordenado de prejudicar’ o denunciado.”

Ou seja, os fatos imputados são falsos porque não são verdadeiros! A denúncia utiliza-se de um subjetivismo inaceitável para narrar a falsidade do fato imputado, negando-se a descrever, como exigido, como e porque seriam falsas as supostas imputações feitas pelo Paciente.

Tratando-se de crime de calúnia, a denúncia deve, sob pena de ser tida como inepta, expor adequadamente a circunstância da falsidade da imputação por ser elemento constitutivo do tipo penal, consoante evidenciado pelo Mestre NELSON HUNGRIA:

“Em face do art. 138, a falsidade da imputação é elemento constitutivo da calúnia: se verdadeiro o seu conteúdo, a imputação é objetivamente lícita ou juridicamente indiferente.[5]

Em verdade, afirma a denúncia que a suposta imputação de fato criminoso feita pelo Paciente (crime de abuso de autoridade) é falsa porque os fatos imputados não constituem crime algum. Ou seja, o fato de um Magistrado expedir guia de levantamento de depósito judicial em nome do cliente, e não do Advogado, não constitui crime de abuso de autoridade. Ora, somente verifica-se calúnia quando há imputação de fato criminoso, logo, se o fato imputado, prima facie, não for um ilícito penal, não haverá calúnia!

Vale consignar que sequer o Magistrado vítima, que certamente possui profundo conhecimento jurídico, ao elaborar sua representação criminal não sentiu-se vítima do crime de calúnia, limitando-se a representar pelos delitos de injúria e difamação. As incorreções patentes na denúncia, além de impedirem o amplo conhecimento da acusação, ainda tolhem o Paciente de valer-se dos benefícios da Lei 9.099 de 1.995, pelo quantum da pena prevista ao delito de calúnia.

Para ser considerada válida e autorizar o devido processo legal, a denúncia deve obrigatoriamente narrar o fato criminoso com todas as circunstâncias do tipo penal, lição encampada por toda jurisprudência, como bem exemplifica o julgado a seguir, do Egrégio SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

“O dogma fundamental que orienta o processo penal é a garantia do exercício pleno do direito de defesa, em razão do que a norma regente exige que a denúncia contenha a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias.

É inepta a denúncia que não descreve o fato criminoso em toda a sua inteireza, nem aponta nem específica as suas circunstâncias, dificultando o exercício de defesa”. (HC no. 7011-SP, Rel. Min. Vicente Leal, DJ. 22.06.98, negritos nossos)

Impõe-se, pelo todo argumentado, a declaração de inépcia da denúncia, pela ausência de narrativa suficiente do fato criminoso, que certamente impede o amplo exercício de defesa, causando injusto constrangimento ilegal ao Paciente.

DA MEDIDA LIMINAR

O Paciente exerce a Advocacia de forma responsável e digna, mantendo sem máculas sua integridade profissional e pessoal. É Advogado dedicado ao estudo e ao trabalho, merecedor de respeito e admiração por parte de seus colegas e amigos. Contudo, está na iminência de ser interrogado em processo criminal nas dependências do mesmo Fórum onde trabalha diariamente, na pequena Comarca de Jales.


No estado em que se encontra esta despropositada ação penal, prudente a concessão da medida liminar, com efeito meramente parcial, para sustar o seguimento do processo, preservando o Paciente do constrangedor interrogatório, até decisão final deste writ.

A presença do fumus bonis juris é evidente, estando o direito do Paciente amparado na Lei, reafirmado pela jurisprudência e comprovado pelos documentos apresentados. A matéria discutida é estritamente jurídica, fugindo a qualquer análise valorativa da prova, sendo plenamente viável sua discussão no âmbito do habeas corpus, e altamente provável a concessão final da ordem.

O periculum in mora é gritante, sendo a medida liminar único meio apto a evitar grave dano irreparável. O interrogatório do Paciente é ato de intenso constrangimento ilegal, de conseqüências morais e materiais irreparáveis.

Exercendo função essencial à administração da Justiça, o Advogado não pode ser exposto a tamanho constrangimento sem a devida cautela, quanto mais em razão do regular exercício profissional. A suspensão cautelar da ação penal é medida que nenhum prejuízo trará ao resultado final do processo, consignando-se ainda que não há proximidade de prescrição. Repita-se aqui: para um Advogado que contribuiu para a distribuição da Justiça por quase quarenta anos, dando a todos um exemplo de integridade profissional, ser submetido a interrogatório criminal significa intenso constrangimento.

Diante do exposto, requer-se, após deferimento da liminar, seja concedida a presente ordem de habeas corpus para trancar a presente ação penal, reconhecendo-se a ausência de justa causa em razão da absoluta atipicidade da conduta do Paciente face a inequívoca ausência de dolo ofensivo, e, ainda, declarando a inépcia da denúncia ofertada.

Termos em que,

Pede deferimento.

São Paulo, 16 de fevereiro de 2.003.

RODRIGO NASCIMENTO DALL’ACQUA


[1] “tantos e tantos têm sido os casos em que mandatários se apropriam indevidamente de somas destinadas a seus clientes, principalmente nas áreas trabalhistas e previdenciária, que a cautela adotada pelo juiz não se afigura abusiva” – Acórdão; fls. 149

[2] Novas questões jurídico-penais; Ed. Nacional de Direito; 1945; Rio de Janeiro; p. 293.

[3] Crimes contra a honra, Ed. Saraiva, 1.995.

[4] Comentários ao Código Penal; vol. VI, Ed. Forense; 5ª ed.; p. 60.

[5] Obra citada; p. 64.

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