Poder de investigação

Pior do que um inocente preso, só um culpado impune

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2 de outubro de 2005, 7h00

Reconhecida como uma das mais combativas procuradoras da República em exercício no país, Janice Agostinho Barreto Ascari defende o poder de investigação criminal do Ministério Público com a mesma vontade que investiga, denuncia e acompanha casos rumorosos como o do juiz Nicolau dos Santos Neto e o da Operação Anaconda — que ainda tem investigações em curso.

“Todos levantam bandeiras contra a investigação pelo Ministério Público, mas não questionam o fato de o Banco Central investigar crimes financeiros, de a Receita Federal investigar crimes contra a ordem tributária, de o INSS ter o setor de fiscalização de crimes contra ordem previdenciária, de o Ibama ter o seu setor que investiga crimes ambientais”, alfineta a procuradora regional da República na 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul).

Para Janice, a grita se justifica: “Ministério Público bom é aquele que investiga os outros”. A procuradora regional entrou para o Ministério Público Federal em 1992, depois de advogar por 10 anos na área cível e trabalhista. “No começo tive algumas dificuldades, mas depois de um mês estava completamente apaixonada pela área criminal”, diz. Janice foi promovida em 2001 para o cargo que ocupa atualmente.

Nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, na sede da redação em São Paulo, a procuradora mostra que não tem receio de polêmica: “Pior do que um inocente preso, só um culpado impune”. Por quê? “Porque o número de inocentes presos é infinitamente menor que o número de culpados impunes”.

Participaram da entrevista o diretor de redação da ConJur Márcio Chaer, o editor Rodrigo Haidar e os repórteres Adriana Aguiar, Leonardo Fuhrmann e Maria Fernanda Erdelyi.

Leia a entrevista

ConJur — Na disputa entre o crime organizado e o Estado, quem está ganhando?

Janice Ascari — O crime, de dez a zero. O crime ganha porque temos uma situação de segurança pública que é obsoleta e deficiente. O organismo estatal não tem condição de promover a segurança do cidadão. Por outro lado, quando se consegue prender, processar alguém, temos um complicador, que é a lentidão do processo no Poder Judiciário. E o Judiciário nem sempre é o culpado, porque cumpre as leis feitas pelo Legislativo. Muitas vezes o juiz fica amarrado a uma norma procedimental lenta, que tem uma série de entraves. Há tantos recursos que são interpostos no curso do processo que chegamos a ter alguns com 40, 50 recursos diferentes. Mas isso faz parte da legislação e o juiz tem que cumprir a lei. Um amarra o outro e o crime sai ganhando.

ConJur — Então, o problema está na legislação?

Janice Ascari — Um dos problemas está na legislação processual.

ConJur — Mas no Brasil a cada novo escândalo querem elaborar uma nova lei, fazer uma reforma. Faltam boas leis?

Janice Ascari — Não, pelo contrário, sobram leis. E quando se faz reforma ela é fatiada. Por exemplo, se temos um determinado problema numa área, modificam um artigo de uma lei ou faz-se uma lei especial para aquele determinado problema, mas não se enxerga o restante. Só uma reforma ampla, profunda, de toda a legislação processual vai ajudar a combater o problema.

ConJur — Temos leis repetitivas?

Janice Ascari — Sim, temos várias leis que falam a mesma coisa, leis até conflitantes, leis inconstitucionais. Isso gera mais recursos, mais processos, mais paralisações de processos. Especificamente na área criminal o uso do Habeas Corpus tem sido intensivo por parte dos advogados. Essa é uma arma que a acusação não tem. Então, qualquer coisa que aconteça no processo a defesa entra com Habeas Corpus e interpõe um em cima do outro até o Supremo Tribunal Federal. E a acusação não tem esse instrumento.

ConJur — A senhora é contra o Habeas Corpus?

Janice Ascari — Não, de maneira alguma. O Habeas Corpus é uma ferramenta destinada a realmente salvaguardar as liberdades individuais. Mas, atualmente, muitas vezes tem sido utilizada como substitutivo processual, para discutir questões internas do processo penal. Qualquer questão pode levar a um hipotético cerceamento de liberdade e isso é usado para decisões interlocutórias do processo.

ConJur — Houve, há alguns anos, um projeto de consolidação das leis federais, que deu em nada. Esse seria um processo que ajudaria a acabar com esse emaranhado legal?

Janice Ascari — O que precisa ser feito é um esforço conjugado entre várias instituições. Um bom exemplo disso é o que foi feito até agora na área da lavagem de dinheiro, no âmbito do Encla [Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro]. Nesse caso, foi formada uma comissão multidisciplinar com vários órgãos e o projeto de reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro [Lei 9.613/98] foi redigido por pessoas que lidam efetivamente com o problema, como juízes, Ministério Público, as polícias, o pessoal de fiscalização administrativa. Ou seja, as pessoas que sabem onde estão as principais brechas da lei. Então, o projeto já nasce com essa vantagem. Mas não é assim que acontece. É como aquele velho ditado: leis e salsichas, é melhor você não saber como são feitas.


ConJur — Mas fala-se em forçar qualquer pessoa que saiba de algum ato ilícito — mesmo que seja o advogado, o padre ou o psicanalista — a notificar as autoridades. Isso não é acabar com as garantias individuais?

Janice Ascari — Eu não vejo assim. Porque apesar de o advogado ter sua relação confidencial com o cliente, suas prerrogativas profissionais, exemplos recentes nos mostram casos de advogados a serviço do crime. É sobre esses advogados que estamos falando. Daquele que atua na organização criminosa. Inclusive, um dos ditados da máfia é o de que “você não rouba um banco, você se apossa do conselho de administração”. É isso. A criminalidade paga faculdade, investe no profissional para ele entrar no mercado de trabalho e ficar a serviço do crime. Isso quando não coopta os outros que já são da área pública. Então, se não houver esse esforço de todos, a batalha contra o crime, que tem uma capilaridade impressionante, será praticamente impossível de ser vencida.

ConJur — Mas são duas situações distintas. Uma é a de um suspeito que é alvo de inquérito. A outra situação é estabelecer este estado de que o vizinho que suspeitar de um movimento diferente na casa ao lado tem de informar a polícia. Quer dizer, a senhora é a favor de que o advogado que souber do crime do cliente seja obrigado a notificar as autoridades?

Janice Ascari — As razões são as mais altruístas possíveis. A bronca principal é em relação aos advogados, mas outras categorias como antiquários e despachantes, por exemplo, também serão obrigados a notificar crimes dos quais tenham conhecimento.

ConJur — Mas nós temos o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras] que, teoricamente, é notificado pelos bancos de toda movimentação de dinheiro que fuja do normal. E mesmo assim estamos vendo essa evasão de divisas monstruosa na área política…

Janice Ascari — Não conheço detalhes desses casos, mas em algum ponto houve falhas. Ou na comunicação dos bancos para o Coaf ou na percepção do Coaf. Nessa comissão de estudos especiais para a reforma da Lei de Lavagem, da qual eu participei, foi feita a sugestão de que o Ministério Público tivesse assento junto ao Coaf ou pelo menos dele participasse como observador — acompanhando os casos mesmo sem direito a voto. Porque o Ministério Público, que é o titular da ação penal, é mais aparelhado e teria condições de analisar melhor se em determinada movimentação financeira há indícios de crime. O MP analisaria essas operações acima de R$ 100 mil e, eventualmente, até de valores menores.

ConJur — O Coaf, em última instância, responde ao governo federal. Isso não compromete a independência do órgão?

Janice Ascari — Posso afirmar que se o Ministério Público trabalhasse mais próximo ao Coaf os resultados poderiam ser diferentes. Mas há alguma resistência em relação a essa proximidade.

ConJur — Resistência política?

Janice Ascari — Não sei se é política, mas a comunicação entre os dois órgãos não é a ideal.

ConJur — E o poder de investigação criminal do Ministério Público. A principal crítica que se faz é a de que o mesmo órgão que investiga, acusa. Assim, na investigação, o MP poderia descobrir coisas em benefício do réu e não mostrar para o juiz. Por que o Ministério Público tem que investigar?

Janice Ascari — O Ministério Público é o titular da ação penal, assim ele tem a obrigação de fazer a acusação. Se existem indícios suficientes de autoria do crime o MP denuncia. E há também muitos casos em que o Ministério Público pede a absolvição do réu, porque não há indícios suficientes de autoria do crime. Até mesmo o réu tem poder investigatório. No processo penal, o investigado pode requerer diligências para autoridade policial. E tem outro ponto. Todos levantam bandeiras contra a investigação pelo Ministério Público, mas não questionam o fato de o Banco Central investigar crimes financeiros, de a Receita Federal investigar crimes contra a ordem tributária, de o INSS ter o setor de fiscalização de crimes contra ordem previdenciária, o Ibama ter o seu setor que investiga crimes ambientais. Que dizer, todo mundo investiga e ninguém se coloca contra isso. Mas o Ministério Público não pode investigar.

ConJur — Mas eles não têm os mesmos poderes que tem o Ministério Público.

Janice Ascari — Não têm, mas eles investigam. O principal argumento de advogados e delegados é o de que a investigação é uma atividade exclusiva da Polícia. Então, vamos proibir todos os órgãos de investigar. Aí não vai se investigar mais nada porque a Polícia está desaparelhada, desatualizada e tem um quadro deficitário de policiais. E os policiais não têm as mesmas prerrogativas do Ministério Público, não têm independência funcional. Nós do MP somos independentes e autônomos.


ConJur — Aí não se investiga nada.

Janice Ascari — Na verdade, o que queremos é o contrário disso. Quanto mais gente investigando, melhor. Mas isso não é tratado como uma guerra entre Polícia e Ministério Público, mesmo porque quando nós trabalhamos em conjunto geralmente temos resultados fantásticos.

ConJur — Mas há também discordâncias nas investigações, não?

Janice Ascari — Sim, há casos rumorosos em que houve uma discordância frontal da conclusão da Polícia e da conclusão do Ministério Público. O caso Celso Daniel [prefeito de Santo André assassinado em janeiro de 2002], por exemplo. A Polícia concluiu e arquivou o inquérito policial dizendo se tratar de crime comum. O MP não aceitou as conclusões da Polícia porque viu outros indícios [os promotores paulistas suspeitam que Celso Daniel foi morto por discordar de um esquema de corrupção montado durante a gestão dele na prefeitura], aprofundou as investigações e conseguiu chegar às conclusões atuais, inclusive com a inclusão de outros supostos mandantes do assassinato.

ConJur — Existe um balanço de quantas das pessoas denunciadas pelo Ministério Público são presas? Dessas, quantas são condenadas?

Janice Ascari — Não. O Ministério Público padece de falta de estatísticas numéricas e qualitativas. O Conselho Nacional do Ministério Público pretende que isso seja feito. O Conselho está fazendo um levantamento preliminar de toda a situação do Ministério Público no Brasil. Em algumas unidades a estatística é meramente numérica, em outras pode eventualmente haver estatísticas qualitativas. Precisa diferenciar porque o furto de uma bolsa na rua dá menos trabalho para denunciar do que um caso de corrupção de agente público.

ConJur — Isso será feito pelo CNMP?

Janice Ascari — Pretendemos que sim. Só que para isso nós precisamos ter nosso próprio Conselho e condições de trabalho. Nós não temos funcionários próprios, não temos orçamento, não temos sede. Estamos provisoriamente numa sala na Procuradoria-Geral da República e a estrutura administrativa da PGR.

ConJur — Tanto na escolha dos nomes para o Conselho Nacional de Justiça como para o CNMP houve problemas. Primeiro a polêmica em torno do nome do Alexandre de Moraes. Depois o Eduardo Jorge [secretário-geral da presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso] contestou a aprovação do seu nome. Isso já não denota que os conselhos podem ser utilizados politicamente?

Janice Ascari — Não sei dizer porque não tenho contato com parlamentares. Mas se houve a intenção de barrar certos nomes para tentar fazer esse uso político, ficou muito claro que será difícil isso acontecer porque os nomes não foram barrados e os conselhos estão trabalhando.

ConJur — Como vai ser o trabalho do Conselho?

Janice Ascari — Teremos atuação em duas grandes áreas, que é a disciplinar e a de fiscalização administrativa e financeira do Ministério Público, que entendemos ser até mais importante do que a área disciplinar. Estudar as condições de trabalho, estrutura administrativa e ver o que pode ser feito para melhorar o Ministério Público, além do trabalho de estatística. Para isso, o Conselho criou quatro comissões: Comissão de Acompanhamento Legislativo e Planejamento Estratégico, Comissão de Controle Administrativo e Financeiro, Comissão Disciplinar e Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público.

ConJur — O CNMP já recebeu representações contra membros do Ministério Público?

Janice Ascari — Eu tenho notícia de que recebemos perto de 44 expedientes e não sei se todos são correcionais ou não. Os correcionais ficam com a corregedora nacional. Outros não diziam respeito à atividade do Ministério Público — reclamações sobre a lentidão de processos, a falta de punição em determinado caso — e os que são expedientes de ordem administrativa estão sendo distribuídos.

ConJur — A senhora percebe nessas reclamações sobre a lentidão que a população enxerga no Ministério Público um defensor?

Janice Ascari — Eu tenho certeza disso. No MP federal e estadual nós recebemos diariamente a visita da população para reclamar, protestar, denunciar. Somos muito procurados pelas pessoas do povo, que vêem no Ministério Público um órgão sério e capaz de fazer o que elas acham que deve ser feito.

ConJur — Qual é o tema principal das reclamações que chegam ao MP diariamente?

Janice Ascari — São reclamações de todo gênero. Desde o aposentado que vai lá para reclamar que o valor da sua aposentadoria é baixo até o sujeito que quer denunciar uma grande fraude.

ConJur — O que é pior: um inocente preso ou um culpado solto?

Janice Ascari — Pior do que um inocente preso, só um culpado impune. Porque muitas vezes, o Ministério Público consegue provar a culpa e o culpado não é punido porque já prescreveu a pena em razão da demora do trâmite judicial. Então eu não diria um culpado solto, eu diria que um culpado impune é a pior coisa que existe.


ConJur — Mais que um inocente preso?

Janice Ascari — Mais que um inocente preso, porque o número de inocentes presos é infinitamente menor que o número de culpados impunes.

ConJur — Como a senhora vê as relações entre a imprensa e Ministério Público?

Janice Ascari — A imprensa tem um grande dever, que é o de informar a população. É comum se falar nos abusos do Ministério Público sempre ao lado dos abusos da imprensa. O trabalho do MP tem repercussão porque a imprensa dá o espaço. O Ministério Público sozinho não tem essa possibilidade, de repercutir questões importantes em nível nacional. Mas como em toda relação, deve haver limites.

ConJur — O jornalista deve responder por divulgar informações sob sigilo de Justiça?

Janice Ascari — Legalmente, as partes do processo estão obrigadas ao sigilo funcional. O jornalista não é parte do processo e, por isso, não responde pela quebra de sigilo. E muito embora se diga que é sempre o Ministério Público que quebra o sigilo funcional, isso não é verdade. Muitas vezes o advogado também quebra o sigilo e vocês sabem disso. Todas as pessoas envolvidas no processo, o juiz, o Ministério Público, o advogado e também o réu têm de observar o sigilo.

ConJur — O Ministério Público deve informar à população no curso do processo sobre o envolvimento de alguma autoridade?

Janice Ascari — O interesse público sempre deve prevalecer sobre o interesse individual. O Ministério Público deve satisfação à sociedade. Então, as investigações e as denúncias que são feitas têm de ser levadas à sociedade para que ela saiba o que seu órgão ministerial está fazendo.

ConJur — Falar com a imprensa no curso de uma investigação pode até atrapalhar.

Janice Ascari — Ou pode ajudar. É preciso analisar cada caso e isso é decidido pelo membro do Ministério Público. Não há um parâmetro a ser seguido.

ConJur — Dos casos rumorosos em que a senhora atuou, está o da Operação Anaconda. Como está esse caso?

Janice Ascari — Houve apenas um processo julgado, que foi o processo por formação de quadrilha. Terminou com dez culpados, um absolvido e um teve a denúncia rejeitada por decisão do Supremo. Existem outras denúncias em andamentos, algumas já estão instruídas e outras estão no curso de instrução processual. Há inquéritos judiciais ainda em andamento para completar as investigações para que sejam oferecidas novas denúncias.

ConJur — O trabalho do Ministério Público foi criticado na Operação Anaconda, especialmente no que se refere a escutas ilegais.

Janice Ascari — Os advogados de defesa sustentavam que as escutas telefônicas só podiam ser prorrogadas uma única vez. Mas essa interpretação foi derrubada pelo Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, não foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça à unanimidade e também não foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal. Então, a interceptação telefônica pode ser prorrogada quantas vezes for necessário para se chegar ao final das investigações.

ConJur — A investigação poderia ter sido melhor?

Janice Ascari — Num determinado momento nós tivemos que fazer um corte. Reunimos o material que tínhamos na mão e apresentamos quatro denúncias. Foi aí que o caso Anaconda veio à tona, mas depois as investigações prosseguiram, outras denúncias foram oferecidas, e ainda estão prosseguindo. É claro que você não tem condições de fazer uma investigação sem olhar os prazos em relação à prescrição. Muitos, inclusive leitores da ConJur, nos criticaram: “Ah, mas os culpados só pegaram três anos de prisão”. Mas essa denúncia foi a primeira e exclusivamente pelo crime de quadrilha, que tem pena máxima de três anos. Cada crime tem um patamar de pena. Por exemplo, numa denúncia por lavagem de dinheiro um réu pode pegar de três a dez anos.

ConJur — A senhora não acha que é pouco para lavagem de dinheiro?

Janice Ascari — Dez anos é uma boa pena, por um único crime. Porque a lavagem de dinheiro nunca vem sozinha. Sempre há outros delitos e, conseqüentemente, outras denúncias.

ConJur — A senhora acha possível que algum daqueles juízes volta a julgar?

Janice Ascari — Eles estão afastados. Para os que tiveram sentença de condenação, houve a decretação da perda do cargo. Contudo, a sentença não transitou em julgado. O caminho é o de que eles não voltem, até porque a perda do cargo é uma conseqüência da condenação. Mas não posso prever se eles irão voltar ou não, isso depende de uma série de fatores.

ConJur — A senhora também atuou no caso do juiz Nicolau dos Santos Neto [condenado a 14 anos de prisão por participar de um esquema de desvio de dinheiro público na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo]. O Ministério Público e a Justiça travam uma luta para repatriar o dinheiro que está no exterior. Por que esse dinheiro não volta?

Janice Ascari — Há dois processos do juiz Nicolau. Em um ele foi condenado a 14 anos de prisão por lavagem de dinheiro e evasão de divisas em abril passado. Com a publicação dessa decisão nós já temos condições para acionar as autoridades da Suíça afirmando que a decisão transitou em julgado, porque eventual recurso que caiba agora não tem efeito suspensivo. Então, para efeito de repatriação de dinheiro essa condenação já vale. Já, pelo desvio de verbas ele vai acabar ficando impune por causa da prescrição.


ConJur — Não existe o risco desse dinheiro voltar para a conta dele, caso o crime prescreva?

Janice Ascari — Não porque o crime de lavagem de dinheiro é autônomo, não depende da comprovação. Por isso são dois processos separados. A condenação dele que vai possibilitar a repatriação do dinheiro é a de lavagem de dinheiro. Se nós fossemos esperar a outra ação o Brasil ia perder esse dinheiro.

ConJur — Muita gente reclama que para combater o crime o Ministério Público está atropelando os direitos e prerrogativas dos advogados, principalmente na questão das invasões a escritórios. O que a senhora diz sobre isso?

Janice Ascari — Eu só posso responder concretamente nos casos em que atuei. Eu fiz buscas em escritórios de advocacia, mas porque havia envolvimento dos advogados nos crimes. Aí não há que se falar em prerrogativas. Agora, em relação a outras diligências, é preciso analisar cada um dos casos.

ConJur — Mas apreender documentos de clientes é ilegal, não depende de análise dos casos.

Janice Ascari — Depende da circunstância, porque muitas vezes a circunstância permite que essa diligência seja feita no escritório de advocacia. Tanto é que o Ministério Público e a Polícia vão munidos de um mandado judicial. Ou seja, a necessidade da diligência passa pelo crivo do Ministério Público e do Judiciário.

ConJur — As CPIs ajudam o Ministério Público, são inócuas ou atrapalham?

Janice Ascari — Eu diria que as CPIs dão um grande auxílio ao Ministério Público na medida em que elas têm condições de arregimentar recursos materiais e pessoais para colher provas em curto período de tempo, porque elas têm prazo fixo. Uma CPI pode levantar provas muito rapidamente e isso auxilia o trabalho do Ministério Público. O que vem das CPIs para o Ministério Público é sempre bem vindo. Muitas vezes os elementos vêm incompletos e cabe ao Ministério Público complementá-los. Mas geralmente dá bons frutos.

ConJur — Depois da Constituição de 1988 o Ministério Público ganhou prerrogativas que não tinha e começou a encostar em grandes interesses. Começou a mexer com interesses do Executivo e do Legislativo, por exemplo. A senhora acha que há algum ponto de tensão entre os poderes e o MP?

Janice Ascari — Não. O ponto de tensão só se estabelece quando é você o investigado. O Luiz Antônio Guimarães Marrey [procurador de Justiça e Secretário de Negócios Jurídicos da prefeitura de São Paulo] sempre diz isso: “MP bom é aquele que investiga os outros”. O Ministério Público é bom, mas longe de mim.

ConJur — E o lado pessoal. Como é ser mulher, mãe e procuradora? Como é ter de cuidar da família e andar com segurança?

Janice Ascari — Para a mulher é naturalmente mais difícil conciliar a vida familiar com ser esposa, mãe e administradora de casa. Acho que a minha situação não é muito diferente da situação das mulheres em outras profissões. No caso do Ministério Público nós temos alguns complicadores como a ameaça à segurança pessoal e a falta absoluta de horários. Muitas vezes passo os finais de semana trabalhando, feriados, noites inteiras. Temos que viajar a serviço. Ou seja, temos que fazer malabarismo para poder equacionar a vida familiar com a vida profissional, mas vale a pena.

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