Tecnologia x privilégio

A intimação pessoal é um privilégio inconveniente

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29 de novembro de 2005, 9h55

Se a Justiça é lenta, agora vai andar mais devagar. Na contramão da reforma do Judiciário, o presidente da República sancionou a Lei 10.910, de 15 de julho de 2004, contendo dois dispositivos extravagantes.

O primeiro deles diz que “Nos processos em que atuem em razão das atribuições de seus cargos, os ocupantes dos cargos das carreiras de procurador federal e de procurador do Banco Central do Brasil serão intimados e notificados pessoalmente” (artigo 17).

Na prática foi estendido aos procuradores federais de autarquias e de fundações públicas o privilégio da intimação pessoal atribuído aos procuradores e advogados da União (Lei 9.028/95, artigo 6º). Sabem o que isso significa? A expedição de inúmeros mandados para ser cumpridos por oficial de justiça nas milhões de causas propostas por ou contra essas entidades. Agora imaginem o que vai acontecer numa vara com quatro, cinco, seis, oito mil processos !

No mundo dominado pela informática, isso é um grande absurdo; um sério comprometimento da prestação jurisdicional. Não estou fazendo apologia da vulgaridade. Mas por que não instituir a intimação por meio eletrônico, como se faz nos Juizados Especiais Federais ? (Lei 10.259/2001, artigo 8º: parágrafo 2o. Os tribunais poderão organizar serviço de intimação das partes e de recepção de petições por meio eletrônico”).

Na pior das hipóteses dever-se-ia manter o sistema de intimação previsto no Código de Processo Civil pela “só publicação do ato no órgão oficial” (artigo 236). Era assim, antes da Constituição de 1988, quando os procuradores da República faziam a defesa da União. Hoje com a implantação da AGU não mais se justifica esse privilégio inconveniente, que os mortais figurantes no processo não têm!

Aliás, nem mesmo a Lei Complementar 73/93 obriga a intimação pessoal dos membros da AGU. Dizer que “as intimações e notificações serão feitas nas pessoas do advogado da União ou ao procurador que oficie nos respectivos autos” (artigo 38) não significa que a intimação deva ser pessoal. Ao contrário, a finalidade da norma é identificar, entre os muitos outros membros da AGU mencionados no artigo 2º, parágrafo 5º, quem deve ser intimado. Se não fosse assim, não precisava a Lei 9.028/95 ter previsto a intimação pessoal (artigo 6º).

O outro inusitado dispositivo introduzido pela Lei 10.910/2004, é o art. 19, dando nova redação ao artigo 3o da Lei 4.348, de 26/06/1964, que estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança: “Os representantes judiciais da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios ou de suas respectivas autarquias e fundações serão intimados pessoalmente pelo juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, das decisões judiciais em que suas autoridades administrativas figurem como coatoras, com a entrega de cópias dos documentos nelas mencionados, para eventual suspensão da decisão e defesa do ato apontado como ilegal ou abusivo de poder."

Antes dessa inovação a própria autoridade coatora dava conhecimento aos órgãos da AGU de liminares concedidas, como ainda prevê o Decreto 2.839, de 06/11/1998: “Artigo 4o O titular de órgão ou entidade da administração pública federal e os ordenadores de despesa que receberem notificação ou intimação judicial que implique pagamento, a qualquer título, em decorrência de liminares em mandado de segurança, cautelares ou antecipações de tutela, darão dela conhecimento, no prazo de quarenta e oito horas do recebimento, aos órgãos da Advocacia-Geral da União, às procuradorias e aos departamentos jurídicos das autarquias e das fundações públicas, para análise da sua força executória, encaminhando, na oportunidade, os elementos e as informações necessários à instrução das medidas judiciais eventualmente cabíveis.

Veja o retrocesso: agora o juiz tem que ordenar duas intimações pessoais no mandado de segurança: uma da autoridade coatora para apresentar as informações (como prevê o artigo 7º da Lei 1.533/51); a outra do procurador da entidade para eventual suspensão da decisão judicial e defesa do ato impugnado! É demais!

Ressuscitou-se o velho e complicado sistema do Código de Processo Civil de 1939 em que, no mandado de segurança, também havia duas intimações: uma do órgão coator; a outra do representante judicial da entidade (artigo 322)!

Se as autoridades administrativas não cumpriam o decreto presidencial que as obrigava a comunicar aos órgãos da AGU as decisões judiciais, essa providência administrativa não pode ser transferida para a Justiça. Isso certamente será mais um fator de lentidão da prestação jurisdicional.

Medidas como essas frustram o objetivo da tal reforma do poder Judiciário de “fazer com que a Justiça passe a decidir em tempo social e econômico tolerável”. Eu sempre disse que parte da lentidão do aparelho judiciário provém da cultura burocrática, dos métodos obsoletos de trabalho, das praxes viciosas e das tradições que resistem ao tempo.

Faltam juízes ou idéias?” para a Justiça melhorar – perguntou José Renato Nalini em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo. Sem dúvida, faltam idéias; boas idéias.

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