Um Senhor Juiz

A admiração e o respeito por Domingos Franciulli Netto

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28 de novembro de 2005, 20h10

A morte do juiz Domingos Franciulli Netto foi motivo de homenagens de quem o conheceu. Não as reverências protocolares e formais que se costumam destinar a figurões e donos de cargos — e mais aos cargos que aos donos. As lembranças recolhidas sobre o homem que se foi são bem mais densas e sólidas.

“O fulgor da capacidade intelectual dele se via de longe”, comenta o desembargador mineiro Dídimo Inocêncio de Paula, que continua: “A vivacidade para encontrar a melhor exegese da norma era espantosa”. Ao ver do desembargador, Franciulli Netto, em muitos aspectos, antecipou na jurisprudência muitas normas que mais tardes seriam incorporadas ao novo Código Civil. “Ele era um parâmetro no STJ. Foi uma perda profunda”, lamenta Dídimo de Paula.

“Um juiz completo. Um homem bom”, definiu o advogado Rui Celso Reali Fragoso, sobre o desembargador paulista que nos últimos seis anos foi ministro do STJ. “Ele sintetizou o que é ser juiz na acepção completa do conceito”, continua Reali Fragoso, destacando a coragem, a criatividade e o talento que, normalmente, geravam votos condutores e corretos.

O presidente do TJ-SP, Luiz Tâmbara, tem uma noção próxima da do advogado: “Ele foi um grande amigo, excelente magistrado e pai de família”. No dizer do desembargador, Franciulli “honrou a toga e o seu estado como uma das mais brilhantes inteligências que já conheci”.

O desembargador Henrique Calandra evocou o bom humor do amigo que se foi. “O Franciulli era um fugitivo da Poli”, diz, rememorando o fato de o juiz ter sido caso incomum, como Sabino Neto, egresso da área de exatas da Academia. “Bom de cálculo, foi ele quem botou ordem na contabilização dos precatórios no TJ”. Em um de seus últimos encontros, Franciulli disparou, no estilo aberto de dizer as coisas: “Não se iluda, Calandra: eu estou de partida”.

Para o advogado Celso Cintra Mori, do Pinheiro Neto Advogados, Franciulli “era um juiz que tinha o direito de dizer que a magistratura não é um serviço público, mas um sacerdócio”.

Virou lugar comum dizer-se que Franciulli morreu por não suportar a idéia da aposentadoria, como reafirma o ministro Humberto Gomes de Barros, no depoimento que se segue, abaixo.

Franciulli, segundo Humberto Gomes de Barros:

De repente — há seis anos — apareceu-me um paulista-italiano (ou ítalo-paulista?). Postura de italiano, sotaque italiano, jeito de italiano:

Meu nome é Domingos Franciulli. Sou desembargador em São Paulo e candidato a vaga no STJ. Aqui está meu currículo. Como Vossa Excelência pode verificar, sou apenas juiz. Não tenho curso no estrangeiro nem títulos de doutorado. Em compensação, conheço todo meu Estado — que percorri como juiz de primeiro grau.

Tanta franqueza impressionou-me. Em meus quatorze anos de judicatura, consolidei a convicção de que nossos tribunais não precisam de professores nem de doutrinadores; necessitam de juízes, advogados e agentes do MP, vividos e sofridos nos embates forenses. O italiano fora aprovado no primeiro quesito de minha avaliação. Formulei a segunda questão:

O Senhor pretende morar em Brasília, com sua família?

A resposta veio seca e imediata:

Se não pretendesse, não estaria aqui, pleiteando a indicação. Tenho o compromisso de minha mulher, de que moraremos em Brasília, como residimos nas comarcas em que trabalhei.

Pensei comigo: “o danado do italiano não é de papo-furado”. Não vacilei:

O senhor tem uma relação de apoiamentos?

Tenho anotado alguns nomes de Ministros que prometeram votar em mim. No entanto, não estou aqui para cobrar-lhe compromisso. Vim somente apresentar-me.

Normalmente reservado, tive um rompante de incontinência:

Então, anote, em sua caderneta, o compromisso do Ministro Humberto Gomes de Barros.

O danado do italiano conquistara-me, em dois minutos de prosa. Enxerguei nele — de pronto — um juiz corajoso, culto, seguro e, sobretudo, humano.

Santo rompante, o meu: Domingos Franciulli Netto confirmou toda minha expectativa. Não traiu um só de seus compromissos. Poucas vezes conheci um juiz tão completo, tão identificado com sua missão profissional. Tornamo-nos amigos. Minha irreverência nordestina — não sei como — afinou-se com o formalismo paulistano que dominava o temperamento pensinsular de Franciulli.

Acompanhei sua tristeza crescente, à medida em que se aproximava a idade limite da aposentadoria.

Sua identificação com a magistratura era tão completa que Franciulli não agüentou viver sem o exercício da função a que dedicou toda a existência.

Acredito que sua morte inesperada foi um desabafo. Franciulli terá dito — impaciente — em seu jeito italiano:

Sem a judicatura, a vida não vale a pena; vou-me embora!

Foi-se, assim, o juiz que não admitiu ser ex-juiz; que não admitiu ser um não-juiz.

Foi embora, mas nos deixou um montão de exemplos e uma saudade sem tamanho.

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