Livre, leve e solto

O crime compensa porque não há certeza da punição

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27 de novembro de 2005, 6h00

No Brasil, o crime compensa. Esta foi conclusão a que chegou o cientista político Guaracy Mingardi, 50 anos, depois de mais de 20 anos de estudo sobre o crime no país. Para ele, o que importa para mudar essa mentalidade não é o aumento da pena, mas sim a certeza da punição.

“O tráfico virou crime hediondo, a pena foi aumentada, mas o crime não diminuiu”, exemplifica Mingardi em entrevista à revista Consultor Jurídico. “É um negócio muito rentável e a probabilidade de o traficante ser pego é pequena”.

Mas não é apenas a punição que pode reduzir os crimes no país. É preciso investimento em políticas públicas que ofereçam oportunidades de vida para as futuras gerações. O objetivo, explica Mingardi, é mostrar para os jovens que eles podem trilhar outros caminhos, sem precisar caminhar fora da lei. Isso reduz a criminalidade em longo prazo.

Em curto prazo, Mingardi entende que precisa haver investimento maior na Polícia. Não em viaturas e armas, como já ocorre, mas em treinamento, novas tecnologias e aumento de salários dos policiais.

É a essa falta de investimento correto que ele atribui grande parte das falhas nas investigações dos crimes. Mas este não é o gargalo da impunidade no Brasil. Ele entende que o sistema de Justiça — Polícia, Ministério Público e Judiciário — como um todo, é falho.

Guaracy Mingardi é, atualmente, coordenador do Setor de Análise de Informações Criminais do Ministério Público de São Paulo. Aos 14 anos, na oitava série, parou de estudar para só completar o Ensino Médio no supletivo. Foi estudar ciência política na Universidade de São Paulo aos 26 anos.

Graduou-se e seguiu carreira acadêmica. A sua tese de mestrado, defendida na Unicamp, deu origem ao livro Tiras, gansos e trutas. Fez doutorado na USP e, com o resultado final da pesquisa, publicou outro livro: O estado e o crime organizado. Ambos tratam de política de segurança pública.

Antes de ingressar no MP de São Paulo, Mingardi foi assessor de investigação da CPI do Crime Organizado, na Assembléia Legislativa paulista. Também foi diretor da guarda de Guarulhos (SP), durante a prefeitura de Elói Pietá (PT).

Participaram da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro, Leonardo Fuhrmann, Priscyla Costa e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual é o principal problema da Justiça?

Guaracy Mingardi — A demora. Uma pessoa passa mais de dois anos presa sem ter sido julgada e a população critica muito quando o juiz manda soltar essa pessoa. O julgamento tem de ser mais rápido. Não tenho nada contra condenar uma pessoa a 30 anos de prisão, mas não pode mantê-la presa infinitamente sem julgar.

ConJur — O que faz o Judiciário ser tão lento?

Guaracy Mingardi — O problema é a burocratização extrema. É evidente que o Judiciário tem um número enorme de casos, mas a burocratização é gigantesca. A mudança deveria ser geral.

ConJur — Dos casos investigados pela Polícia, quantos chegam ao Ministério Público?

Guaracy Mingardi — É difícil saber porque não existe uma estatística unificada ainda. Para saber isso, precisaria ser feita uma pesquisa. Os dados que temos são insuficientes para isso.

ConJur — A falta de dados prejudica?

Guaracy Mingardi — Prejudica a investigação e a elaboração de uma política de segurança pública. As polícias Militar e Civil, o Ministério Público, o Judiciário, o sistema penitenciário, cada um tem seu banco de dados e nenhum deles se comunica. Não dá, então, para pegar um caso desde o boletim de ocorrência até a condenação, pelo mesmo sistema. Não dá para construir uma política de segurança sem ter conhecimento do panorama geral.

ConJur — Onde está a falha no MP?

Guaracy Mingardi — Está no fato de o promotor trabalhar em cima, apenas, do que a Polícia produz. É com base nisso que ele decide se faz ou não a denúncia. Se não está satisfeito, pode requisitar novas diligências, mas será feita pela mesma equipe da Polícia. Como o MP pode controlar se a equipe fez a nova diligência e não encontrou nada, ou apenas disse que fez?

ConJur — Se o MP puder investigar, esse problema estará resolvido?

Guaracy Mingardi — A Constituição deu ao Ministério Público o controle externo da Polícia. Por isso, o MP tem de ter poder para investigar casos que envolvem policiais. Seria um grande avanço se pudesse investigar também casos que envolvem funcionários públicos. O problema do poder investigatório do MP é que a discussão não é colocada da maneira correta. O debate é se pode investigar tudo ou se não pode investigar nada. Esta não é a maneira correta de discutir o assunto. O MP tem de poder investigar, mas apenas alguns casos. Em algumas áreas, o Ministério Público tem muito mais know-how do que a Polícia, como em casos de lavagem de dinheiro e crime organizado. Também deveria poder investigar casos em que a Polícia afirma que não tem nada para fazer e opina pelo arquivamento.


ConJur — Mas o fato do MP também investigar não torna o andamento do processo desigual? O promotor investiga e acusa ao mesmo tempo, enquanto o advogado apenas defende.

Guaracy Mingardi — Esse não é o grande problema. Não dá para se imaginar um delegado de Polícia imparcial. O delegado não é uma instância imparcial que fará a investigação. Temos também que parar de pensar o promotor de Justiça como o promotor da acusação. Mas deve haver garantias para evitar casos de perseguição, quando o cara investiga, denuncia, acusa. No Rio de Janeiro, se não me engano, há promotores que só trabalham no inquérito e promotores que só trabalham na denúncia. É uma possibilidade. O Ministério Público não deve substituir a Polícia, mas deve ter algumas funções investigatórias em alguns casos específicos. Como vai fazer o controle externo da Polícia sem poder investigar?

ConJur — Para isso, corregedoria não funciona?

Guaracy Mingardi — Enquanto a corregedoria for da própria instituição, não. Teria de ser externa para funcionar. O corregedor deveria ter um status de subsecretário. A corregedoria interna pode tratar do varejo, mas os casos graves têm de ter controle externo. O Judiciário e o MP já têm os seus conselhos externos para fazer o controle, mas os grandes problemas de corrupção, pelo nosso sistema atual, dificilmente chegam neles. Deixe-me dar um exemplo. Se meu filho é preso com 100 gramas de cocaína e eu tenho dinheiro, vou comprar a Polícia para que a prova desapareça ou para que ele seja acusado de uso, e não de tráfico. Quando o processo chegar no Judiciário, já estará com outra cara. Nosso sistema é tão fraco que não é preciso corromper os altos escalões. O problema atual, então, é arrumar uma corregedoria das polícias.

ConJur — Quantas denúncias apresentadas pelo MP são recebidas pelos juízes?

Guaracy Mingardi — A maioria é acolhida. O promotor conhece o seu juiz, porque eles trabalham na mesma vara. Então, ele sabe que tipo de denúncia aquele juiz aceita. O promotor não se arrisca a fazer uma denúncia que ele sabe que aquele juiz não vai aceitar. Promotor e juiz têm de ter convicção para denunciar e acolher a ação. E convicção é pessoal.

ConJur — E onde está a principal falha do sistema na hora de solucionar um crime: no Judiciário, no Ministério Público ou na Polícia?

Guaracy Mingardi — Todos falham porque o sistema é falho. Normalmente, os policiais falham, então as investigações não chegam nem no Ministério Público nem no Judiciário. Outras vezes, chega no MP e na Justiça, e estes falham do mesmo jeito.

ConJur — Não tem um gargalo?

Guaracy Mingardi — Não. Segundo as pesquisas, 70% dos crimes contra o patrimônio não são registrados na Polícia. Dos 30% que sobram, apenas uma pequena parte, 5%, será investigada. Isso porque a maior parte é furto e ninguém investiga furto, a não ser que seja na residência de um milionário. Nos crimes contra o patrimônio, só são investigados os crimes mais graves: latrocínio, extorsão mediante seqüestro, roubo a banco. Já homicídio sempre é investigado. Vamos pensar em outro tipo de crime: roubo a transeunte. O sujeito é assaltado na rua e faz um boletim de ocorrência porque está bravo. Mas como a Polícia vai investigar? Não tem testemunha, não tem perícia do local. A Polícia só investiga crimes que envolvem pessoas importantes, muito dinheiro ou muita violência. Ou, ainda, quando há indício forte. Normalmente, a Polícia parte do criminoso para descobrir o crime.

ConJur — Como assim?

Guaracy Mingardi — A Polícia tem um indivíduo que é do métier e pressiona para que ele diga o que fez. É o esquema do “me dá cinco broncas” (confessar cinco crimes). Só a confissão não adianta, mas facilita para obter provas materiais. É assim que funciona. São muito raros os casos em que se parte do local do crime para investigar.

ConJur — Por quê?

Guaracy Mingardi — Em caso de homicídio, por exemplo, o local do crime não é preservado. Todo mundo passeia por lá. O policial militar detesta preservar o local do homicídio, que deve ser protegido até a perícia chegar. Ele trabalha 12 horas por 36 de descanso. Nesse tempo, faz um bico. Se ficar 10 horas preservando o local do crime, perde o bico. É por isso que, muitas vezes, o policial “socorre” o cadáver. Isso é simples de resolver. Se o policial ganhasse hora extra para preservar o local do crime, haveria inúmeros voluntários para a tarefa. Além disso, na Polícia, existem outras burocracias que prejudicam. A hierarquia, por exemplo. Um soldado está preservando a cena do crime, mas o tenente, que é seu superior, quer dar uma olhada. Ele não vai dizer “Não, não pode passar, tenente, não pode pisar aí”. A Polícia não investiga tudo e mesmo o que investiga não chega sempre a um resultado.


ConJur — A investigação no Brasil é varejista?

Guaracy Mingardi — É. Nunca se ataca um problema, mas apenas algumas pessoas que estão cometendo determinado crime.

ConJur —Ainda se usa o tripé delação, grampo e tortura nas investigações?

Guaracy Mingardi — O grampo é recente, começou a ser usado há pouco tempo. Desde a Constituição de 1988, a tortura diminuiu, mas ainda existe. Tem muito criminoso experiente que só confessa sob tortura. A delação é a forma de trabalho da Polícia. É o informante, chamado de ganso, quem vai dizer atrás de quem a Polícia tem de ir. É uma das formas de se partir do criminoso para o crime.

ConJur — Aumentou o uso da delação premiada?

Guaracy Mingardi — Aumentou, mas ninguém sabe usar ainda. Existe delação premiada em casos notórios, que saem na imprensa, mas isso não acontece no tráfico, por exemplo. E isso ainda precisa ser regulamentado, precisa ser estabelecido um rito apropriado. Acho que não será uma lei que vai fazer isso, mas a jurisprudência a respeito. Nos Estados Unidos, por exemplo, é o promotor que faz a barganha, e não a Polícia. A delação tem de preencher determinados requisitos e o juiz decide se concorda ou não.

ConJur — A delação premiada como o único recurso que o promotor tem como prova não é uma falha de investigação?

Guaracy Mingardi — Às vezes sim, às vezes não. Na maioria das vezes, a delação premiada é sobre um caso que já se sabe quem fez, mas não tem prova suficiente. Num caso de homicídio, por exemplo, naquelas situações em que o policial socorre o cadáver. Ninguém preserva o local do crime e, portanto, não tem mais prova material. Até as testemunhas serem ouvidas em juízo, já se passou tanto tempo, elas já conversaram tanto entre si, que a história a ser contada mudou completamente. É por isso que uma das primeiras coisas que deve ser feita numa investigação é conversar com as testemunhas no mesmo dia do crime, ou no dia seguinte, antes que elas conversem entre si ou fiquem com medo de falar. Mas depois de seis, sete anos, as testemunhas terão de repetir tudo em juízo. Isso é uma falha no sistema. Nos sistemas americano e inglês, a testemunha tem de depor em juízo, mas o julgamento não é tanto tempo depois do crime. Nos sistemas francês e italiano, a declaração oficial é feita na frente do juiz de instrução, o que dá credibilidade ao que foi dito e torna desnecessário ser repetido durante o julgamento.

ConJur — Que esperança tem um pai de ver o assassino de sua filha condenado, quando o próprio acusado já confessou o crime?

Guaracy Mingardi — Quando o caso é simples, em seis meses o réu pode ser julgado e condenado. Mas existe um leque de possibilidades para protelar isso. Não só por parte da defesa, mas a burocratização do Ministério Público e do Judiciário atrasa o julgamento também.

ConJur — E em casos de homicídio quando o réu não é confesso e, muitas vezes, nem conhecido?

Guaracy Mingardi — Quanto menor a cidade, mais fácil é para identificar o homicida. Nas cidades grandes como São Paulo, os índices de condenação são pequenos porque a maioria dos assassinatos é de autoria desconhecida. A probabilidade de condenação caiu muito nos últimos anos por dois fatores. A capital paulista passou por um surto de homicídios muito grande. O número de assassinatos aumentava cerca de 10% ao ano. Esse índice só começou a diminuir nos últimos cinco anos. O número de policiais especializados na investigação de homicídios não acompanhou esse aumento. O outro fator foi a falta de tecnologia adequada para as investigações.

ConJur — Falta investimento na Polícia?

Guaracy Mingardi — O estado investe em viatura, número de policiais e armas, mas o policial continua ganhando uma porcaria. Além disso, em São Paulo, por exemplo, tem muita viatura que serve como vitrine. Em uma grande avenida da capital paulista, o carro da Polícia fica estacionado em um lugar de onde é difícil descer e leva, pelo menos, cinco minutos. Ele está ali para intimidar, mas isso não funciona porque os criminosos sabem onde ficam essas viaturas. Isso serve apenas para o cidadão achar que está seguro. O investimento seria necessário em treinamento de pessoal, melhores salários, planos de carreira, tecnologia e novas técnicas.

ConJur — Então, os problemas da Polícia são infra-estrutura e treinamento?

Guaracy Mingardi — Mas não é só isso. A cultura policial, como a defesa corporativa, também é um problema. O policial pode não ser corrupto, mas não denuncia um colega. Não é nem porque vai ficar mal visto na instituição, mas sim porque ele é seu colega.

ConJur — Os salários baixos contribuem para o aumento da corrupção.

Guaracy Mingardi — Contribui sim. Tem gente que já entra na Polícia pensando no que vai ganhar “por fora”.


ConJur — Alguns crimes, como a prostituição e a compra de produtos pirateados, são bem aceitos pelos brasileiros. Por quê? O brasileiro é educado para o crime?

Guaracy Mingardi — Não. O brasileiro é educado para não aceitar que tudo que vem do Estado é fato. Existem coisas, como a venda de CD e DVD piratas, a prostituição, uso de drogas e jogos de azar, que não são vistas como crime. A maconha, por exemplo. Há quantos anos vem sendo usada aqui? 150 anos? Para boa parte da população, a maconha não é problema, o usuário não é criminoso. O usuário tem medo da Polícia, mas não vê seu vício como crime. O mesmo acontece com a prostituição. Pela lei, a prostituta não comete crime. Já o cafetão, sim. Mas ninguém considera a prostituição crime.

ConJur — Como funciona a política de repressão ao tráfico?

Guaracy Mingardi — Não tem funcionado nos últimos anos, apesar de terem aumentado os esforços nessa área. O problema é que as equipes encarregadas de combater o tráfico estão preocupadas com a quantidade, porque o que dá manchete nos jornais é dizer que tantos quilos de cocaína foram apreendidos. A tática está errada. O importante é desmanchar a organização, e não apreender a mercadoria.

ConJur — Estado e crime estão jogando. Quem está vencendo?

Guaracy Mingardi — O crime sempre ganha. Em alguns momentos, a criminalidade cai e, normalmente, ninguém sabe o porquê. Não tem só a ver com a economia melhorar. Não tem correlação entre o desemprego e o aumento de crimes.

ConJur — Não?

Guaracy Mingardi — Não tem correlação matemática. Existe uma leve ligação do aumento do desemprego com o aumento de furtos, mas roubo e homicídio não.

ConJur — Não é verdade a história de que emprego pode acabar com a criminalidade?

Guaracy Mingardi — Em longo prazo, sim. O garoto que não tem nenhuma perspectiva de vida tem uma probabilidade maior de se tornar um ladrão. Se ele tiver escola, lugar para se divertir, oportunidades na vida, a probabilidade de se tornar ladrão no futuro diminui. Mas, em curto prazo, não dá. Quem já é ladrão não vai largar o crime porque arrumou um emprego de office-boy.

ConJur — Então só na próxima geração é que o crime pode ser reduzido?

Guaracy Mingardi — Não. Isso pode acontecer amanhã. Não sabemos os fatos exatos que levam ao crime e cada crime é uma coisa diferente. Sabemos que a desorganização social, por exemplo, é um fator que leva ao aumento do homicídio.

ConJur — Punição mais severa ajuda?

Guaracy Mingardi — O que interessa não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição. É essa certeza que não existe. Quando existe um número muito pequeno de pessoas condenadas, o sujeito arrisca, já que a probabilidade de ser punido é pequena. O tráfico, por exemplo, virou crime hediondo, a pena foi aumentada, mas não diminuiu. É um negócio muito rentável e a probabilidade de o traficante ser pego é pequena, seja porque ele compra o policial, seja por falhas no Judiciário.

ConJur — O crime compensa, então?

Guaracy Mingardi — Compensa. Tem a teoria dos garotos do Rio de Janeiro. Toda hora o tráfico muda de chefão porque o traficante não vive mais do que 30 anos. Mesmo assim, vale à pena porque, nesse período que vive, aproveita bastante. Se não estivesse no tráfico, o cara provavelmente seria, no máximo, funcionário de loja de sapato. Então, ele pensa: “em vez de viver mal durante 50 anos, eu vivo bem durante dez”.

ConJur — O que pode ser feito para mudar esse quadro?

Guaracy Mingardi — Identificar as causas que levam ao crime e trabalhar com elas. De imediato, tem de trabalhar repressão e prevenção policial. Identificar os lugares mais críticos, colocar mais guardas nas ruas e investigar. Depois, existem as medidas que devem ser feitas em prazo um pouco maior, que são as ligadas à condição urbana. Melhorar a urbanização e as condições do local diminui a criminalidade, em médio prazo. Onde tem muito estupro, por exemplo, se todos os terrenos baldios forem murados e as ruas forem iluminadas, o número de estupros cai. Em longo prazo, são as medidas sociais. Diminuir a desigualdade social, por exemplo. Na Índia, onde todo mundo é pobre, o crime contra o patrimônio nunca é violento. O número de furtos é muito maior do que o de roubos porque a cultura deles não implica na violência. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, a desigualdade é muito grande e próxima. A pobreza e a riqueza estão separadas por 100, 200 metros. O menino pobre fica com vontade de ter um tênis que custa R$ 400 e foi anunciado na televisão. Quando vê o rico passando na frente dele com o tal tênis, vai lá e tira dele. A distância entre ricos e pobres é um dos grandes problemas.

ConJur — Qual a opinião do senhor sobre a lei de crimes hediondos?

Guaracy Mingardi — Em uma pesquisa que fizemos, constatamos que a lei de crimes hediondos tem pouco efeito prático na criminalidade. No tráfico, como eu disse, os envolvidos ganham muito dinheiro, então vale a pena. Pode ser que o aumento da pena em algumas coisas adiante muito, mas eu ainda sou partidário da idéia de que o principal não é aumentar a pena, é garantir que os culpados serão condenados. Se o sujeito tem 80% de chances de ser condenado a cinco anos de prisão, é mais difícil ele cometer o crime porque sabe que vai ser condenado. Se a chance é de 10%, mesmo a pena sendo maior, ele arrisca mais. Ninguém quer ir para a cadeia. Ele comete o crime quando acha que a probabilidade de ele ir para a cadeia é muito pequena.

ConJur — O número de empresas de segurança privada não pára de crescer. Mais um serviço que deveria ser do Estado está sendo privatizado?

Guaracy Mingardi — Acredito que o número de seguranças particulares e policiais é quase o mesmo. Mas a atribuição da segurança privada ainda é pequena. O que acontece é que as pessoas contratam PMs para fazer a segurança de determinado local, para fazer um bico quando estão fora do horário de trabalho na Polícia. Com isso, está se privatizando o mesmo serviço que o Estado faz. Não se contrata o PM porque ele é melhor que o vigia comum. Ele é contratado porque, sendo PM, quando ligar para a Polícia comunicando algum crime no local, a viatura chegará mais rápido. Ou seja, o atendimento da Polícia para aquele que pagar policial para ser segurança é melhor. No caso dos bancos, não são roubados aqueles que têm policias fazendo a segurança. Um vigia qualquer, armado ou não, não vai resolver nada. O banco paga policial para fazer a segurança para que o ladrão saiba que aquela agência é protegida pela Polícia Civil ou pela Polícia Militar, por exemplo. Isso é pior do que a privatização. É privatizar um serviço público, se tirar dele o status de público.

ConJur — Isso é um fator de corrupção?

Guaracy Mingardi — É. Durante o Plano Cruzado, os fiscais levavam para a Polícia as mercadorias com duas etiquetas, mostrando que o preço foi remarcado, o que era proibido por lei. O policial via aquilo, mas como fazia segurança para o supermercado, tirava a etiqueta e acabava com a prova material. No caso do jogo do bicho, um sujeito que faz segurança para um bicheiro pode até não participar do jogo, mas está vendo o que acontece. Se ele é PM, vê aquilo e não faz nada, isso não é corrupção? É sim, porque ele recebe.

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