Direitos do condenado

Ao soltar presos, juiz fez opção pela dignidade humana

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25 de novembro de 2005, 11h42

A decisão do juiz Livingsthon José Machado, da Vara de Execuções Penais de Contagem em Minas Gerais, determinando a soltura de dezenas de condenados que cumprem pena nos Distritos Policiais daquela cidade, não só foi a certada, como também muito corajosa, além é claro de ter observado e atendido os princípios fundamentais, direitos e garantias da nossa Constituição Federal.

Certamente, poucos magistrados, ou nenhum, gostariam de estar à frente de uma das Varas de Execuções Penais existentes no país, notadamente àquela da comarca de Contagem, pois como é do conhecimento da comunidade jurídica, em especial, a situação do nosso sistema prisional, há muito, já “passou do fundo do poço” e os agentes do Estado continuam inertes.

Ao decidir pela suspensão da execução da pena dos condenados e, consequentemente, pela soltura deles, o juiz fez uma dura opção: reconhecer os direitos dos condenados em detrimento da segurança pública, já que eles cumprem pena por terem praticado crimes graves (roubo qualificado, roubo seguido de morte, tráfico ilícito de entorpecentes, homicídios, etc.).

Optou o magistrado, numa atitude que foge à regra, por reconhecer os direitos dos condenados (contidos no artigo 10 e seguintes da Lei 7.210/84), consoante frisamos, e ao agir assim atraiu para si a fúria injusta e política dos desembargadores do Conselho Superior do Tribunal de Justiça e do poder Executivo do estado Minas Gerais, sem nos esquecermos do manifesto inconformismo da maioria da sociedade mineira.

Destarte, no momento atual em que impera a insegurança pública e se iniciam os preparos para pleito eleitoral de 2006, o que menos querem os agentes do Estado é falar nos elevados números da violência e em construção de presídios para o surgimento de mais vagas; de modo que recai sobre os ombros do juiz das Execuções Penais a responsabilidade de decidir sobre a remoção de presos provisórios e condenados para outros locais, assim como sobre a interdição das carceragens dos distritos policiais — onde não deveriam estar por lei — ou de estabelecimentos penitenciários que não atendam os preceitos estabelecidos pela Lei de Execução Penal.

Depois de, reiteradamente, alertar e mobilizar os órgãos estatais responsáveis para que pusessem fim à situação vergonhosa e humilhante irrogadas aos presos com a superlotação, sobremaneira aos já condenados que cumpre pena nos distritos policiais, o juiz cansou-se e determinou a soltura de dezenas deles com os devidos fundamentos legais e jurídicos.

Antes de se censurar ou reprimir o magistrado, e até mesmo instaurar procedimento administrativo para apurar eventual infração disciplinar por ter ele descumprido determinação do tribunal, deveriam os desembargadores e os procuradores que representam o interesse do estado de Minas atentarem para o fato de o ato judicial praticado atender os ditames das leis.

Ora, são princípios fundamentais encartados na Carta da República: (i) a dignidade da pessoa humana (inciso III, do artigo 1.º da CF); (ii) erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III, artigo 3.º da CF); prevalência dos direitos humanos (inciso II, do artigo 4.º da CF).

Não obstante, também são direitos e garantias constitucionais: (i) ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (inciso III, do artigo 5.º da CF); (ii) a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII, do artigo 5.º da CF); (iii) é assegurado aos presos à integridade física e moral (inciso XLIX, do artigo 5.º da CF).

Existem, ainda, outros dispositivos legais (em convenção, declaração, pacto, tratados) que poderiam ser invocados para amparar a aludida decisão, já recheada de fundamentados.

Entretanto, infelizmente, a questão não navega sobre o mar da estrita legalidade, a teor do artigo 37, caput, da sobredita Constituição, senão sobre o tormentoso e poluído oceano da política regional e nacional, o que dificulta em muito a adoção ou materialização das medidas — necessárias e emergenciais — impostas pela Lei.

O amplo manancial normativo favorável aos presos e condenados não se materializa, sucumbindo a outros interesses, sobremaneira os políticos, conforme assinalamos anteriormente; de maneira que isso coloca em risco o próprio sistema legal. Lembremos, então, Rudolf Von Lhering A luta pelo direito. Tradução de João Vasconcelos. 17ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1999. pagina 53), para quem o direito existe para se realizar, pois a sua realização é a vida e a verdade do direito.

Analisando o tema sobre outro enfoque, temos que o juiz prestou na realidade um relevante serviço ao governo de Minas, haja vista o risco iminente de uma rebelião, de desmoronamento do prédio ou incêndio que poderia e pode ocorrer em decorrência da superlotação dos distritos policiais, os quais abrigam ilegalmente pessoas já condenados.

A medida adotada evita, ainda, o pagamento de indenizações por responsabilidade civil do estado, além do mais fez com que a Secretaria de Segurança Pública acordasse e reforçasse o patrulhamento nas principais vias do município de Contagem, como já está ocorrendo, e dos municípios vizinhos.

Através das imagens veiculadas nos jornais televisivos, nota-se que a situação dos presos é aterrorizante e humilhante ao extremo, a ponto de muitos dormirem em pé e amarrados às grades do cárcere – como se fossem morcegos. A visão que se tem era de um “depósito de ser humanos” para não dizermos “campo de concentração”.

Naquelas condições carcerárias desumanas, ofende-se a dignidade da pessoa humana, revolta e marginaliza ainda mais os presos, atenta contra a sua integridade física e moral por que pode contrair diversas doenças, além de ser lhe dado um tratamento que não se dispensa ao animal mais selvagem. Enfim, crema-se ou sepulta-se qualquer possibilidade de reintegração à sociedade ou de ressocialização dos presos, uma das principais finalidades da pena (artigo 1.º da Lei de Execução Penal).

Caso a decisão do magistrado de Contagem fosse adotada por outros juízes das Varas de Execuções Penais, ainda que ficasse somente na ameaça de suspender o cumprimento da pena, liberando alguns condenados, talvez a política penitenciária do país estaria recebendo menos críticas, uma vez que o estado não teria alternativa senão, de forma emergencial, investir em segurança e na criação de vagas no sistema prisional.

Do outro lado, nos parece que o Ministério Público mineiro não vem exercendo também a função de fiscal da lei, exigindo do poder estatal providências emergenciais, sob pena de incorrer em crimes de responsabilidade, nos termos do artigo 74, da Lei 1.079/50.

Oportuno enfatizar, que a não utilização das políticas criminais adequadas, como, por exemplo, a efetiva aplicação de penas alternativas, prisão provisória e o cumprimento de pena em regime fechado como exceções, é que tem gerado todo esse caos. A prisão, especialmente depois da edição da Lei dos Crimes Hediondos, tornou-se regra, mantendo-se no cárcere pessoas acusadas de pequenos furtos, de receptação, etc.

A prisão provisória de uma pessoa maior de idade ou a internação de um menor só deve ocorrer se restar comprovado ser o acusado ou representado pessoa que demonstre perigosidade (perigo) ou periculosidade (insano) em liberdade, como, verbi gratia, um assassino em série, um traficante de entorpecentes reincidente, um estuprador contumaz, um incendiário.

Atualmente já se discute no Congresso Nacional a revisão da Lei 8.072/90, justamente por que demonstrou-se não ser o encarceramento provisório, o cumprimento integral da pena em regime fechado (vedando-se a progressão de regime), o endurecimento das penas, as melhores formas de se reprimir a crescente criminalidade.

Apesar de, sob a nossa ótica, ter o juiz Livingsthon acertado ao determinar a suspensão do cumprimento da pena e soltura dos condenados palas razões acima expendidas, existem opiniões no sentido de que ele deveria ter optado pela preservação da segurança pública, deixando encarcerados os condenados que mandou soltar.

Esse argumento não prevalece. Ele é retrógrado e subjetivo. Presumir que as pessoas que ganharam a liberdade pela suspensão da execução de suas penas não poderiam ser soltas, por que iram novamente delinqüir (voltar a furtar, roubar, traficar entorpecente, cometer homicídios) ou aterrorizar a sociedade local, é atentar contra a lei, é discriminar uma pessoa condenada que mais cedo ou mais tarde retornará ao convívio social, é, em suma, soterrar qualquer possibilidade de recuperação.

Ao se sustentar que os condenados soltos pelo citado magistrado deveriam permanecer sobre as inacreditáveis condições carcerárias, por que livres ameaçam os munícipes de Contagem ou todos os mineiros, admite-se ou se aceita a morte deles, seja pelo motivo de que vão contrair enfermidades incuráveis, seja em rebeliões, seja por que a morte de alguns é a única forma de se manter vivo os demais.

Oportuno enfatizar, nesse contexto, que, segundo as regras internas da prisão, quando o cárcere encontra-se transbordando de presos, ou seja, com o número excessivo de pessoas no mesmo espaço e sob condições que chocam o mais insensível cristão, escolhe-se um deles para ser executado, o que chama a atenção da direção da unidade e, às vezes, faz cessar a colocação de outros no mesmo ambiente.

Portanto, ao ter optado por reconhecer e atender os princípios fundamentais, direitos e garantias constitucionais dos condenados, dado que o Estado executor das penas foi omisso e assim continuava, não só deu um brilhante exemplo de humanismo e respeito ao próximo, como demonstrou conhecer muito bem a norma posta e saber honrar a toga.

Quanto ao seu afastamento do cargo do juízo da Vara de Execuções Penais de Contagem, revelou que o Poder Judiciário daquele estado padece da política governamental, pois, do contrário, não teria permitido que a situação chegasse a tal ponto.

Poderia o Tribunal de Justiça de Minas, que sabe dos acontecimentos ocorridos no âmbito de sua competência, através das constantes informações prestadas pelos juízes à Corregedoria Geral de Justiça, ter exigido que o governo estadual providenciasse a retirada imediata dos presos provisórios e condenados das delegacias de polícia, como já fez e anunciou recentemente o governo de São Paulo. Todavia, parece que nada exigiu, ou se o fez, o estado não deu à mínima, isso por que a questão em exame já perdura há vários anos e sem solução, se não àquela adotada pelo então juiz da Vara das Execuções, Livingsthon José Machado.

A atitude do magistrado Livingsthon, sem sombra de dúvidas, merece a admiração e respeito dos profissionais do direito, sobremodo dos humanistas e de seus colegas, que já saíram em sua defesa.

Nesse momento, os órgãos de classe dos magistrados, os quais estão freqüentemente na mídia defendo os seus interesses, inclusive a OAB, devem integrar a discussão em prol do juiz Livingsthon e exigir que o estado de Minas resolva a situação degradante e vergonhosa, fazendo-se cumprir apenas a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal.

A escolha do magistrado foi feliz e dentro da lei, além de ficar registrada no universo jurídico; porém, não era essa a opção que queriam os seus superiores e os demais agentes do Estado.

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