Transparência amiga

Jobim prega igualdade nos acordos entre países do Mercosul

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21 de novembro de 2005, 18h52

Em seu discurso de abertura do 3ª Encontro de Cortes Supremas do Mercosul, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, chamou a atenção para a necessidade de transparência nas relações internacionais. Sem ela, não há como promover uma integração entre os países latino-americanos.

O ministro Jobim lembrou que, por uma questão histórica, o Brasil nunca se interessou pela América Hispânica. Para ele, no entanto, esse quadro está mudando, mas ainda é necessário que os acordos entre os países do Mercosul sejam firmados com mais igualdade. Para que isso seja possível, deve haver um consenso entre os poderes Executivo e Legislativo.

“Colocando-me ao lado dos argentinos, eu não vejo com muita sinceridade qualquer discurso integratório se os acordos internacionais que o Brasil venha a fazer obrigam os argentinos e seu Congresso Nacional e não obrigam o Congresso Nacional brasileiro”, disse Jobim.

Leia a íntegra do discurso do ministro Nelson Jobim

Minhas senhoras, meus senhores,

Damos hoje início a esse encontro de Cortes Supremas dos Estados partes do Mercosul e Associados. Creio que nas reuniões preparatórias, em especial a reunião em Assunção, houve manifestação objetiva do eminente presidente da Corte Suprema de Justiça da Argentina, dr. Enrique Petracchi, que era exatamente a necessidade de caminharmos para soluções objetivas e começarmos com transparência, coragem, no sentido de avançarmos nesse processo de integração e examinarmos as razões pelas quais temos imensas dificuldades para tanto. Evidente que não cabe a mim, não cabe a nós examinar as questões de política-econômica e as questões de política propriamente envolvidas no processo e que, pelo sistema legal e constitucional brasileiro, dizem respeito ao Poder Executivo, aos chefes da nação. Mas cabe aos tribunais examinar exatamente os problemas que decorrem dessas opções políticas, na perspectiva de os tribunais poderem proceder à efetiva integração dos sistemas jurídicos.

Vivemos uma questão fundamental no Brasil, ou seja, ainda não temos, senhor presidente do Senado,  uma opção no sentido da prevalência do Direito Comunitário. O Direito Comunitário no Brasil, o Direito dos tratados, como os senhores sabem, é um Direito idêntico, absolutamente idêntico, à lei ordinária, tanto que um tratado firmado pelo Brasil de qualquer natureza, seja bilateral, seja multilateral, pelo nosso sistema constitucional, é suscetível de derrogação, ou mesmo de revogação, por simples lei ordinária votada no Congresso Nacional, mesmo de iniciativa de parlamentar.

É claro, senhor embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, sabemos que além das questões propriamente políticas que envolvem essa decisão, há também um aspecto que precisa ser superado na análise dessas questões — é exatamente a relação entre a formulação das políticas internas brasileiras e o Congresso Nacional. A questão básica, e falo isso não por um exercício de conhecimento acadêmico, mas por um exercício de memória, que uma das razões pelas quais o Congresso reage fortemente a essa tentativa ou necessidade de que as decisões dos tratados sejam superiores à lei ordinária está exatamente na fraca participação do Congresso Nacional na formulação das políticas.

Os tratados internacionais são formulados no seio do Poder Executivo, com a mínima participação do Congresso Nacional. Quando chega o tratado internacional para a homologação e análise do Congresso Nacional brasileiro, chegam com as seguintes possibilidades: aprova-se ou rejeita-se. Se o tratado autoriza reservas, discutem-se as reservas e este problema faz com que o Congresso não pretenda abrir mão da possibilidade de reformar as legislações decorrentes dos tratados, exatamente porque há baixos níveis de participação.

Em 1993, na condição de então relator na Revisão Constitucional Brasileira, tentei no Congresso Nacional possibilitar a introdução de regras constitucionais que dessem, no caso específico, o mínimo de superioridade aos tratados com relação à legislação interna. Ou seja, tentei pela perspectiva do Mercosul, no caso específico sugerido, provocado, instigado, pelo então extraordinário senador Franco Montoro, tentamos introduzir nessa revisão constitucional a possibilidade de que os atos e tratados do Mercosul pudessem ter um nível de superioridade à lei interna.


Houve uma objeção muito grande por parte do Congresso, principalmente pela esquerda brasileira. Lembra-se o senador Renan Calheiros das discussões e debates que foram travados. Lembro-me também da participação nesse debate do então e já falecido embaixador Paulo Nogueira Baptista nessa temática. Creia o senhor embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, na perspectiva política brasileira, a questão do monismo e do dualismo só se resolverá no momento em que se resolver a participação, mínima que seja, do Congresso Nacional na discussão da política externa.

Eu me recordo que uma das razões pelas quais os partidos políticos, a Comissão de Relações Exteriores do Senado e a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados objetivavam a essa possibilidade, exatamente porque os espaços de discussão no Congresso nessas formulações eram mínimos. E, diga-se de passagem, com clareza, havia aqui um debate de poder. Como disse no início, nós devemos examinar as nossas questões com transparência, senhor presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, eminente político do Partido Justicialista Argentino, doutor Duhalde, é importante termos transparência nisso.

E as disputas que se deram sempre no Brasil em relação às próprias posturas do Itamaraty quanto às relações com o Congresso têm que ser necessariamente revistas. Se isso não for revisto, não creio que o Brasil possa, que o Congresso Nacional possa abrir mão da possibilidade de revogar políticas externas pela pura e simples aprovação de leis ordinárias. Se isto não acontecer — nós não estamos num campo meramente acadêmico da perspectiva da leitura acadêmica, estamos num campo político importante — e evidente que, sendo assim, estão os tribunais sujeitos às decisões do Congresso Nacional, que podem ser de mera alteração dos tratados.

Mas fora isto, fora essa questão que precisamos tornar absolutamente clara, porque o tratamento que nós sempre demos nesses debates é um tratamento da justificação adjetiva, e não do enfrentamento substantivo da questão. Ou queremos ou não queremos, e vamos botar o jogo como deve ser jogado. Ou seja, as regras do jogo com clareza, para que não tenhamos aquilo que tivemos ontem para o júbilo do dr. Cezar Peluso, em relação a um famoso esquadrão do sul do Brasil. Ou seja, nós temos que apitar o jogo com transparência. Doutor Peluso entendeu, foi o único que afirmou que não havia acontecido nada. Pois bem, eu creio que fechado o parênteses da mera brincadeira, eu creio que este é um tema que nós brasileiros temos que examinar com transparência. Ou fazemos o acerto interno das nossas políticas para possibilitar um diálogo transparente com os Estados Nacionais do Mercosul.

Lembrem-se os senhores de que temos um problema histórico. O Brasil, por razões de política de unidade nacional, principalmente a partir do Império, sempre voltou suas costas à América Hispânica. Observem que a América Hispânica, no que diz respeito à memória brasileira, foi sufocada no período do Império como no período da Primeira República, porque se entendia que a permeabilidade com a América Hispânica poderia conduzir a uma desunião da América Portuguesa. Era portanto condição para a manutenção do território nacional e da unidade da América Portuguesa um certo “ouvido” em relação à América Hispânica.

Não havia no Brasil nenhum estudo sobre a história da América Hispânica, mas o que havia eram as disputas do Brasil, via Rio Grande do Sul, com a Argentina e com o Uruguai. E o discurso sempre era de que tínhamos a possibilidade de que os argentinos e os castelhanos da banda oriental pudessem entrar no Rio Grande. E essa história cravou na cabeça de todos nós e cravou de uma forma absolutamente radical. E hoje, somente a partir da segunda metade do século XX, é que o Brasil começou a voltar os olhos para a América Hispânica.

Para nós era muito mais importante termos um estudo da Europa, do que estudos com a Argentina. As questões na Argentina para nós eram completamente estranhas e absolutamente desinteressantes. Olhávamos a banda oriental com um certo desprezo, como se aquilo tivesse sido uma construção histórica inglesa, para tentar obstruir as pretensões do Império brasileiro. Creio que esse tempo passou, mas não obstante ter passado, ainda há resquícios epidérmicos de conduta que têm que ser superados. E essa superação passa exatamente pela congregação, mas a congregação transparente, como propôs Petracchi em Assunção. Não os discursos meramente e as leituras adjetivadas, mas fundamentalmente o reconhecimento do nosso problema.


Senhor embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos nossos primeiros problemas é saber com transparência se o Congresso Nacional, eminente senador Renan Calheiros, e o Poder Executivo, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, irão fazer um entendimento a respeito desse assunto.

Porque o entendimento entre esses dois poderes no sentido de viabilizar, de que a política externa brasileira, os acordos internacionais possam ter supremacia sobre a lei ordinária, e esse é um caminho necessário para uma integração sem desconfianças. Porque, evidentemente, colocando-me ao lado dos argentinos, eu não vejo com muita sinceridade qualquer discurso integratório se os acordos internacionais que o Brasil venha a fazer obrigam os argentinos e seu Congresso Nacional e não obrigam o Congresso Nacional brasileiro.

E vamos deixar bem claro que sentar à mesa, sem quem tenha poder definido de acordos, nós sabemos perfeitamente, se senta-se à mesa quem não tem autoridade definitiva para assegurar o processo decisório, o entendimento é completamente vazio. Lembro as negociações políticas dentro do Congresso, toda vez que sentava à mesa um representante do Poder Executivo sem poder decisório, a conversa não andava e era somente adjetivada. O embaixador Sérgio Amaral lembra muito bem esse tipo de problema e se passa muito no sistema judiciário brasileiro, no sistema colegiado brasileiro. Portanto, meus caros senador e embaixador, perdoem-me a transparência dessa linguagem, mas se não formos transparentes, não vamos avançar. Não adianta nós nos ocultarmos. E eu creio que pela experiência que tive no Congresso, uma das condições pelas quais essa regra pode ser alterada é exatamente uma redefinição da participação das comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado no que diz respeito às discussões substantivas da política externa brasileira. O Congresso Nacional não abrirá mão da possibilidade de revogar esses tratados se não tiver neles uma participação mais real que meramente afirmativa ou negativa no final desse processo.

Por outro lado, superado que seja isso e enfrentado que seja isso nas áreas competentes, precisamos pensar nós, os juízes, presidentes das Cortes, exatamente o que estamos fazendo com o Direito Comunitário na aplicação das questões internas. É fundamental, portanto, um levantamento competente que possamos fazer todos nós — o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai — de como está a nossa magistratura local, aplicando a lei comunitária.

Lembrem-se claramente que a segurança jurídica é condição sine qua non para avanços substantivos, para que possa com a segurança jurídica ter-se com imensa correção a possibilidade de que as regras, principalmente as regras de natureza comercial, que é onde começa efetivamente a integração, possam ser asseguradas.

Se um dos investidores ou comerciantes ou empresários brasileiros, nos vários ciclos dos Estados que integram o Mercosul, se qualquer empresário das áreas do Mercosul não tiver nenhuma segurança de que o seu comportamento na Argentina tem o mesmo tratamento que o seu comportamento no Brasil, no Paraguai ou no Uruguai, ele saberá o que fazer para maximizar os seus resultados financeiros.

Aproveitar-se-á, seguramente, dessas divergências para a alocação de recursos e fatores da produção. Enquanto isso, nós ficamos nos arvorando meramente no discurso de que somos irmãos há muitos anos. Passou o tempo dessa linguagem. Ou seja, os blocos de integração internacional e a necessidade de desenvolvimento chama também o Judiciário para a sua responsabilidade, no sentido de que nós temos responsabilidade também para assegurar o processo de integração e desenvolvimento. Não no mero discurso, mas sim na verificação da eficácia das normas internacionais.

Eu percebo, meus caros colegas, nitidamente, uma espécie de ranço regionalista por parte de alguns setores da magistratura, no sentido de que normas de natureza internacional sempre vão a lesar aquilo que eu chamaria de nacionalismo tardio e inconseqüente de determinados setores da magistratura. Parece que há um orgulho em se dizer que não se aplica norma internacional por que ela não pode superar a norma interna, sem saber o que está acontecendo, o que significa aquilo, sem saber realmente qual é o quadro que está posto. E é isso que nós precisamos criticamente fazer análise — o que nós estamos fazendo no sistema judiciário nacional, nos vários sistemas judiciários nacionais, no sentido de empurrar para frente o processo integratório.


E aí nós podemos responder historicamente se os nossos compromissos são com a integração ou são meramente com essas reuniões, que nos dão a fraternidade, mas não aquilo que em português se diria a irmandade real do avanço.

Meus amigos, nós precisamos fazer exatamente isso: saber onde estamos errando. Nós temos grande facilidade em afirmarmos em alto e bom som onde acertamos, e temos um medo terrível de procurar onde erramos. E precisamos saber onde estamos errando. É nosso dever superar os nossos erros e, para tanto, precisamos identificá-los. Onde estão os erros da doutrina nacional brasileira? Onde estão os erros das condutas do sistema judiciário brasileiro, nesse processo de integração? A forma de atuação do sistema judiciário leva claramente a equívocos e problemas. Nós temos uma tradição que vem de muitos anos de laborarmos no caso individual e concreto, no conflito de interesses concreto, sem nenhuma perspectiva, sem nenhum compromisso na verificação de que aquilo pode ser a tradução de uma norma generalizadamente empírica para efeitos de condutas de outrem.

Equivocadamente e geralmente pensamos que estamos resolvendo o caso concreto, quando na verdade além de resolver o caso concreto, que é a função inicial, estamos definindo condutas futuras para outrem, sem saber o que isso significa no macro processo integratório latino-americano.Salvo se essa integração não for pra valer. E isso temos que ter com absoluta clareza.

Creio que encontros dessa natureza — senhores presidentes de cortes européias e africanas, que nos dão a honra da sua presença —, mostram a pressa que temos, mas não a pressa intelectual, é uma pressa da absoluta necessidade de a América Latina não perder o vão do futuro e conseguir dar ao cidadão latino-americano condições de vida, ganhos, renda, empregos de que possamos nos orgulhar. E observem bem que se isso não acontecer a culpa é nossa, não temos mais ninguém a culpar. Tanto a Argentina como o Brasil, para os seus equívocos, nós tínhamos os militares a culpar, hoje não temos mais. Os únicos culpados somos nós mesmos, seja pela nossa incompetência, inconsciência, seja pela não-perspectiva histórica das nossas funções.

Temos uma extraordinária capacidade de nos lamentarmos. Era muito bom, meu caro senador Renan Calheiros, quando do velho MDB nós éramos oposição. Era ótimo criticarmos, acusarmos os governos, e não tínhamos nenhuma responsabilidade, era extraordinário. Agora não temos mais nada a culpar. A única culpa pode ser do processo democrático, mas isso não podemos deixar culpar porque senão surgirão no horizonte forças autoritárias, seja da esquerda seja da direita, das antigas esquerdas e direitas, que poderão congelar o processo libertário como todos nós vivemos.

Eu encerro, já fui muito longe. Perdoem-me para dizer uma coisa fundamental que ouvi do dr. Ulysses Guimarães. Temos que ter clareza, compreensão, nitidez, porque uma coisa é certa: “el diablo sabe por diablo, pero mas sabe por viejo. Seamos viejos”.

Gracias

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