Crítica genérica

Crítica à corrupção na Justiça não é ofensa pessoal a juiz

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17 de novembro de 2005, 20h40

Afirmar genericamente que há corrupção no Judiciário não ofende cada juiz individualmente. Com essa tese, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo livrou a Rede Globo de pagar indenização aos juízes Casem Mazloum, Adriana Pileggi de Soveral e Ali Mazloum em razão do que disse o comentarista Arnaldo Jabor no Jornal Nacional de 24 de março de 2000. Cada juiz pediu indenização no valor de cerca de R$ 700 mil.

O relator da matéria, desembargador Jayme Martins de Oliveira Neto, entendeu que embora os comentários de Arnaldo Jabor tivessem fortes críticas ao Poder Judiciário, nenhum dos juízes foi citado na crítica. Para Oliveira Neto, o comentarista apenas exerceu o direito de opinião.

“Uma sociedade que se pretende evoluída não pode prescindir de uma imprensa livre, sendo inaceitável que uma pessoa, órgão ou instituição queira se colocar fora do alcance dela”, afirmou. Oliveira Neto citou também decisão recente do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em questão similar: “A crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade”.

Em seu comentário, Jabor se refere a escândalos que envolvem o Judiciário e afirma: “No DNER há uma rede que começa no advogado esperto, passa por funcionários corruptos e vai até os juízes, que dão ganho de causa – todo mundo leva a grana.” E completa ao comparar Fernandinho Beira Mar, o ex-prefeito Celso Pitta de São Paulo e um esquema de corrupção no DNER: “Há uma coisa em comum nos três casos: ninguém tem medo da Justiça. Se o Congresso não votar agora uma reforma do Judiciário profunda, a democracia sempre será este país de denúncias vazias. Sem medo os criminosos, com exceção dos pobres e pretos, fogem para baixo da camisola “da mamãe” Justiça. Sem lei parece democracia, mas não é. É terra de alibabá e os seus milhares de ladrões impunes.”

De acordo com o relator do recurso, “o papel do comentarista Arnaldo Jabor é exatamente o de exercer a crítica, prática extremamente necessária e saudável em uma sociedade livre na medida em que, dentre outras finalidades, chama a atenção da comunidade para certos atos ou fatos tidos por importantes, choca, cria controvérsias, polemiza, gera conflitos e dos conflitos nascem idéias, propostas, soluções”.

Representou a defesa da emissora o advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, do escritório Camargo Aranha Advogados Associados.

Leia a íntegra da decisão

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO nº 218.584-4/3-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que são apelantes e reciprocamente apelados CASEM MAZLOUM e OUTROS e TV GLOBO LTDA.:

ACORDAM, em Nona Câmara “A” de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão “REJEITARAM A PRELIMINAR E DERAM PROVIMENTO AO RECURSO DA RÉ E JULGARAM PREJUDICADO O RECURSO DOS AUTORES, V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores ANTONIO VILENILSON (Presidente, sem voto), HERTHA HELENA ROLLEMBERG PADILHA PALERMO e DURVAL AUGUSTO REZENDE FILHO.

São Paulo, 27 de setembro de 2005.

JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO

Relator

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

9ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO “A”

Apelação Cível c/ revisão n. 218.58.4/3-00

Apelantes e reciprocamente apelados: Casem Mazloum, Adriana Pileggi de Soveral e Ali Mazloum (autores) e TV Globo Ltda (ré).

Voto nº 194

NOTIFICAÇÃO PRÉVIA – Preliminar argüindo ausência de notificação prévia e requerendo a extinção do processo sem apreciação do mérito – Dispensabilidade – Preliminar rejeitada.

ILEGITIMIDADE ATIVA – Tese no sentido de que os autores não têm legitimidade ativa porque não representam a associação de magistrados – Autores que sustentam dano moral próprio e não coletivo – Legitimidade reconhecida – Preliminar afastada.

DANO MORAL – Alegação de ofensa à honra em razão de comentário do jornalista Arnaldo Jabor, levado ao ar pelo Jornal Nacional, ofensivo ao Poder Judiciário e seus integrantes – Inexistência de Dano moral da hipótese – Críticas próprias do exercício da liberdade de imprensa ou mesmo da comunidade – Recurso da ré provido para julgar improcedente a demanda, prejudicado o recurso dos autores.

1. Trata-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença que julgou procedente pedido de dano moral e condenou a ré a pagar indenização no equivalente a quinhentos salários mínimos para cada um dos autores.


Recorrem os autores visando a majoração da indenização, para que corresponda a cinqüenta vezes o salário de cada um.

A ré, por sua vez, também recorre insistindo nas duas preliminares argüidas, quais sejam, ilegitimidade ativa e ausência de notificação prévia. No mais, argumenta com inexistência de dano moral porque o jornalista exerceu o direito de liberdade de imprensa, tecendo comentários a fatos jornalísticos.

Os recursos foram regularmente processados, preparados e respondidos.

É o relatório.

2. Rejeita-se a primeira preliminar, relativa à ausência de notificação prévia como fundamento para extinção do processo sem exame do mérito. Isso é assim porque a notificação não é condição indispensável ao exercício do direito de ação e tampouco as gravações originais são essenciais à demonstração dos danos que, por evidente, podem ser demonstrados por outros meios de prova.

Nessa linha decidiu o Min. Aldir Passarinho Júnior no julgamento do RESP 331.882/PB, publicado na RSTJ 175/437, cuja ementa é a seguinte:

“A notificação prevista nos arts. 57 c/c 58, parágrafo 3º, da Lei de Imprensa, para obrigar a empresa produtora do programa radiofônico considerado lesivo à honra do autor, a guardar as gravações originais para servir de prova de dano moral perpetrado, não constitui elemento indispensável à propositura da ação, podendo o ato ilícito ser demonstrado por outros meios previstos na lei processual civil.”

No mesmo sentido: RESP 37170/SP e RESP 547.710/SP.

3. Afasta-se, também, a alegada ilegitimidade de parte dos autores, já que não estão pleiteando indenização por suposto dano causado à associação dos magistrados e tampouco à classe, mas sim a eles próprios, já que, conforme alegam, sentiram-se atingidos com a matéria divulgada pela ré. Se tal matéria foi de fato ofensiva é questão de mérito e passa a ser analisada.

4. No mérito, transcreve-se por oportuno, o texto indicado pelos autores a fl. 14, pronunciado por Arnaldo Jabor no Jornal Nacional do dia 24/03/2000.

“O que existe em comum entre essas três notícias: PittaGate, DNER e Fernandinho Beira-Mar? No caso do Pitta não adianta empichá-lo sem investigar o sistema que o criou; a conexão ‘esfiha’, com filiais pelo Brasil todo. Ali estão os maiores escândalos. Pitta é só criado dos senhores brancos. No DNER há uma rede que começa no advogado esperto, passa por funcionários corruptos e vai até os juízes, que dão ganho de causa – todo mundo leva a grana. E o Beira-Mar diz que o sistema o protege. Há uma coisa em comum nos três casos: ninguém tem medo da Justiça. Se o Congresso não votar agora uma reforma do Judiciário profunda, a democracia sempre será este país de denúncias vazias. Sem medo os criminosos, com exceção dos pobres e pretos, fogem para baixo da camisola “da mamãe” Justiça. Sem lei parece democracia, mas não é. É terra de alibabá e os seus milhares de ladrões impunes.”

Lendo-se o texto que o Jornal Nacional levou ao ar nos comentários de Arnaldo Jabor, com fortes críticas ao Poder Judiciário, nota-se que o comentarista exerceu pura e simplesmente o direito de opinião.

Sem embargo de se concordar ou não com o conteúdo da crítica — e com ela não se concorda — a verdade é que a fala se circunscreve ao direito de opinião do jornalista. Realmente, não importa se concordamos ou não com o conteúdo da matéria, da opinião ou da crítica; mas apenas que ela exista, porquanto da essência da democracia.

A democracia, aliás, não é regime fácil. Exige muitas qualidades de cada um de seus membros e também do conjunto social. Dentre as dificuldades da democracia encontra-se a de conviver com a crítica, especialmente quanto aos agentes de poder e aos servidores públicos em geral. Como servidores do povo sofrem um especial controle social e todo aquele que opta pelo exercício de uma função pública deve estar preparado para a crítica, por mais dura que seja.

É intuitivo que a sabedoria não se encontra na unanimidade; ao contrário, é a pluralidade que fomenta o progresso, movimenta as instituições e capacita a desejada ordem social como propulsora do progresso. Os totalitários, por buscarem a unidade que lhes convém não aceitam a crítica negativa e não admitem possam estar errados. Os democratas, ao contrário, sujeitam-se a ela e a utilizam como forma de repensar suas posturas, suas instituições e o próprio caminhar coletivo. Daí por que uma sociedade que se pretende evoluída não pode prescindir de uma imprensa livre, sendo inaceitável que uma pessoa, órgão ou instituição queira se colocar fora do alcance dela.

Indisputavelmente muitas serão as opiniões distorcidas, as críticas injustas e os ataques agressivos. Não poucas vezes a crítica será movida por interesses outros que não o puro jornalismo ou o desejo de aperfeiçoar instituições. Tudo isso é possível, mas é melhor conviver com tais defeitos do que suprimir as liberdades e o próprio regime que as sustentam.


Outrossim, não se pode negar o crescente controle do juiz sobre a sociedade desde o advento da Constituição Federal de 1988, o que também ocorre no âmbito internacional, a ponto de P. Raynaud afirmar que o controle crescente da justiça sobre a vida coletiva constituiu um dos maiores fatos políticos do final do século XX1.

Aliás, Antoine Garapon2 ao demonstrar que o juiz assumiu um papel de guardião de promessas, um recurso contra a implosão das sociedades democráticas, controlando a vida privada e também a pública, revela a importância do Judiciário no terceiro milênio.

Nesse diapasão, como o papel do juiz tem se transformado, abandonando-se a clássica compreensão de que ele está sujeito à lei para assumir a condição de porta-voz do Direito3, isto é, deixando de ser escravo da lei4 para dizer o direito, assumindo o papel jurisdicional em todas as suas dimensões, inegavelmente as críticas tendem a aumentar, porque maior é sua participação e sua interferência no contexto social.

Ao se defender a liberdade de imprensa e admitir que a matéria objeto da ação se circunscreve aos limites desse direito de opinar, de criticar, não se deixa de reconhecer os aspectos perniciosos freqüentemente utilizados pela mídia para atacar pessoas ou instituições.

Igualmente, compreende-se a frustração dos autores com agressões injustas ao Poder Judiciário. A imensa maioria dos magistrados brasileiros sente profundamente tais injustiças, percebe o intuito delas, sabe onde pretendem chegar os detratores.

Aborrece-se porque muitos jornalistas e órgãos de imprensa desconhecem a faina diária dos magistrados, seus sofrimentos, seus conflitos, suas dificuldades para solucionar problemas humanos, dramas individuais de um povo que clama por Justiça. Ignoram ainda a batalha silenciosa dos magistrados para mudarem a própria Instituição, sem com isso destruí-la, porque reconhecem a importância dela.

Não sabem, na generalidade dos casos, que os juízes são considerados aptos a eleger o presidente da República, mas inaptos a eleger os dirigentes de seus próprios Tribunais. Vendo, pois, no Judiciário apenas o aspecto poder, simplesmente esquecem a gama de deveres correlatos impostos aos juízes e jogando pedras mal direcionadas na Instituição, procuram derribá-la sem a consciência dos próprios atos, consciência esta que pode ser sintetizada nesta frase do Diálogo das carmelitas: “Não é a regra que nos protege, minha filha, somos nós que protegemos a regra.”5.

Nada obstante, não há falar em dano moral.

Recentemente, o Min. CELSO DE MELLO, ao despachar a petição n. 3.486-4, destacou que “a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade”.

Na mesma ocasião, em outra passagem, advertiu:

“Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembléia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático. A livre expressão e manifestação de ideais, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado.”

Aliás, o papel do comentarista Arnaldo Jabor é exatamente o de exercer a crítica, prática extremamente necessária e saudável em uma sociedade livre na medida em que, dentre outras finalidades, chama a atenção da comunidade para certos atos ou fatos tidos por importantes, choca, cria controvérsias, polemiza, gera conflitos e dos conflitos nascem idéias, propostas, soluções.

Em suma, não se identificando excesso ou abuso, mas mero exercício de crítica, no âmbito do direito de liberdade de imprensa, de rigor a improcedência da demanda.

5. Diante do exposto, afastam-se as preliminares e dá-se provimento ao recurso da ré para julgar improcedente a demanda, prejudicando o recurso dos autores. Em face da sucumbência, arcarão os autores com as custas processuais e os honorários advocatícios que fixo em 15% (quinze por cento) sobre o valor atualizado da causa.

JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO

Relator

Notas de rodapé

(1) Cf. Antoine Garapon, “O Juiz e a Democracia – o guardião das promessas”, Ed. Revan, trad. Maria Luiza de Carvalho, 1996, p. 24.

(2) Idem, p. 28.

(3) Idem, p. 51.

(4) Dalmo de Abreu Dallari, com razão, afirma: “Um juiz não pode ser escravo de ninguém nem de nada, nem mesmo da lei.” (“O Poder dos Juízes”, Saraiva, 1996, p. 80.

(5) Cf. Antoine Garapon, op. Cit, p. 180.

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