Fúria arrecadatória

Ecad não perdoa trilha de filme nem festa de casamento

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15 de novembro de 2005, 6h00

É legítima a cobrança de direitos autorais das músicas executadas na programação da TV por assinatura, incluindo a trilha sonora de filmes. O entendimento é da juíza Patrícia Bueno, da 1º Vara Cível de Indaiatuba (SP), que condenou a Net da cidade ao pagamento dos direitos autorais devidos ao Ecad a partir de janeiro de 2004.

A juíza também determinou a suspensão da veiculação de obras musicais na programação diária da TV e o pagamento dos direitos autorais pendentes na base de R$ 0,88 por assinante, acrescido de uma multa de 20 vezes esse valor. Caso as obras musicais não sejam suspensas, a Net deve pagar multa diária de 50 mil UFirs.

O Ecad — Escritório Central de Arrecadação e Distribuição moveu ação de cobrança alegando que, como todas as TVs por assinatura, a Net está sujeita ao pagamento de direitos autorais pelas obras musicais que são difundidas na programação diária, inclusive as executadas em filmes.

A Net alegou que tem autorização dos titulares das obras audiovisuais e que por isso pode divulgar integralmente a obra, já que a trilha sonora que acompanha o filme já foi paga aos autores das obras musicais que já autorizaram previamente a veiculação da música.

O Ecad alegou que manteve contrato com a Net entre o início de 2001 e o final de 2003, em que o canal de TV pagou pelo uso das obras musicais. Mas depois do término do contrato não houve consenso entre as partes para a renovação e o acordo foi extinto. Por isso, o órgão pediu que a Net fosse condenada a pagar o que é devido desse período que utilizou as obras sem o pagamento.

De acordo com a juíza, a empresa violou os direitos autorais previstos no artigo 68, da Lei 9.610/98. “Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas”.

Trilhas sonoras

De acordo com Samuel Fahel, gerente jurídico do Ecad, a Net, deixou de pagar os direitos autorais desde janeiro de 2004 em praticamente todos os lugares do país onde atua. Segundo o advogado, estão saindo as primeiras condenações, todas a favor do órgão.

Para Fahel, o artigo 86 da lei 9.610/98 é bastante claro com relação às emissoras de televisão e, conseqüentemente, com relação às TVs a cabo: “Os direitos autorais de execução musical relativos a obras musicais, lítero-musicais e fonogramas incluídos em obras audiovisuais serão devidos aos seus titulares pelos responsáveis dos locais ou estabelecimentos a que alude o parágrafo 3º do artigo 68 desta Lei, que as exibirem, ou pelas emissoras de televisão que as transmitirem”.

Para o advogado Nehemias Gueiros, especialista em Direito Autoral, Show Business e Direito da Internet, a cobrança sobre trilhas sonoras de cinema seria absurda, já que a produção do filme já paga ao produtor fonográfico e ao editor musical pela sincronização da música. “Porque os exibidores ainda têm que pagar por uma obra fechada e que já incluiu os direitos autorais em seu orçamento?”, questiona.

O gerente jurídico do Ecad alega que não é uma cobrança dupla, já que há a autorização para inclusão da obra musical no audiviovisual e o pagamento pela execução pública da obra. Por isso, no caso de cinema e de emissoras de TV há o pagamento por utilizar publicamente as músicas veiculadas na programação. Para Fahel, “tanto é claro que as emissoras de TV pagam regularmente ao Ecad e as TVs a cabo também pagavam até janeiro de 2004, mas depois resolveram rescindir o contrato”.

Limites da cobrança

O Ecad é um órgão privado criado para centralizar a arrecadação e a distribuição de direitos autorais de execução pública de obras musicais e de fonogramas, nacionais e estrangeiros, no Brasil.

Além dos direitos autorais cobrados de emissoras de TV aberta e por assinatura, salas de cinema e rádios, o Ecad também tem entrado na Justiça para cobrar eventos em geral como shows, festas públicas, festas de carnaval, festas juninas e até festas de casamento. Também estão na sua mira hotéis, motéis, supermercados, shoppings centers e clínicas que tocam música ambiente. A fúria arrecadatória do órgão chega até ao boteco que esquece a televisão ligada depois do futebol e, inadvertidamente, brinda seus freqüentadores com a execução de uma obra musical.

De acordo com o Ecad, 18% da quantia arrecadada fica com o próprio órgão para sua administração. O restante é repassado para as associações de intérpretes e autores que ficam com 7% e redistribuem 75% aos respectivos associados.

A arrecadação aumentou consideravelmente nos últimos anos. Em 2000, o Ecad arrecadou R$ 112 milhões e distribuiu para as associações R$ 84 milhões. Em 2004, a arrecadação aumentou para R$ 227 milhões e R$ 187 milhões foram distribuídos.

Para o advogado Nehemias Gueiros, a jurisprudência com relação à cobrança dos direitos autorais não é pacífica como gosta de fazer crer o departamento jurídico do Ecad. “Há várias decisões contrárias à cobrança, por exemplo, em festas juninas, blocos de carnaval, eventos públicos sem fins lucrativos”, afirma.

O advogado acredita que o Ecad “efetivamente extrapola os limites de cobrança dos direitos autorais”. E essa situação se deve, na opinião de Nehemias, à legislação autoral brasileira (Lei 9.610/98) que é muito vaga e genérica, por não ter sido regulamentada ainda. “O artigo 111 que trata da prescrição, por exemplo, foi vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e assim está até hoje”, diz.

Com relação aos direitos de execução pública, o advogado afirma que se trata “de um verdadeiro pântano de confusão”, já que a lei diz apenas que devem ser pagos os direitos autorais sobre execuções musicais ao vivo ou mecânicas tocadas em “locais de freqüência coletiva”. A lei não detalha se nesses locais são cobrados ingressos, se há finalidade lucrativa ou meramente beneficente, didática e educativa.

O gerente jurídico do Ecad afirma que essas decisões que foram desfavoráveis ao pagamento dos direitos autorais devem ser fruto de algum tribunal com entendimento discrepante. Para ele, o pagamento a cobrança pela execução de música em festas com fins lucrativos consta da antiga lei de direitos autorais (lei 5.988). Mas, na sua opinião, a lei 9.610 afastou a necessidade de comprovação de lucro para que os direitos autorais sejam cobrados.

Os tribunais ainda têm utilizado o critério de fins lucrativos para decidir se há ou não pagamento de direitos autorais. Em decisão de outubro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar Recurso Especial do Ecad contra o município de Vitória, entendeu que prefeituras que fazem festas de carnaval sem cobrança de ingresso e sem finalidade de lucro não precisam pagar direitos autorais.

O pagamento de direitos autorais ao Ecad deve acontecer, na opinião de Fahel, em todo evento que houver música interpretada por um cantor ou músicas tocadas pelo rádio, independentemente se a festa ter fins lucrativos ou não. Por isso, cabe, para a ele, a cobrança dos direitos autorais até em festas de casamento. “Mesmo em festas sem fins lucrativos, os funcionários da festa e os intérpretes recebem para fazer o show e por isso deve haver o pagamento aos verdadeiros autores das músicas”.

Nos casos em que há nítido fim lucrativo, o advogado Nehemias Gueiros concorda com a cobrança, já que a música é um “atrativo para o consumidor”. E em alguns eventos gratuitos, como grandes espetáculos públicos na praia ou em parques, o advogado também acredita que seja devido o pagamento ao Ecad, por causa das próprias dimensões do evento. Salvo essas exceções, a cobrança de direitos autorais, em festas públicas sem fins lucrativos é considerada abusiva para o advogado.

Para Gueiros o primeiro passo para evitar o abuso é a regulamentação da Lei dos Direitos Autorais (9.610/98), em todos os seus aspectos pendentes. “Além disso falta uma verdadeira ‘faxina’ no Ecad, estabelecendo parâmetros de cobrança, criando as figuras dos micro, pequenos, médios, grandes e macro-usuários”. Na sua opinião, há como se chegar a um consenso.

“O boteco ou a lojinha da esquina não se incomodaria de pagar R$ 25 ou R$ 30 por mês ao Ecad e assim todos ficariam satisfeitos. Aliás, nem todos, pois o repasse dos direitos autorais às sociedades arrecadadoras e, por conseguinte, aos autores, é outra novela sem fim próximo,” defende Nehemias. Sem esta verdadeira reformulação, na opinião do advogado, o Ecad continuará a ser “‘o vilão da vez’, odiado pelo comércio, pelo mercado e, especialmente, pelos autores e criadores das obras musicais”.

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