Vale o faturamento

STF considera inconstitucional base de cálculo de PIS/Cofins

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9 de novembro de 2005, 18h43

Vitória do setor produtivo e derrota do governo no Supremo Tribunal Federal hoje. Por maioria, os ministros consideraram inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98. A lei alterou a legislação tributaria e, no dispositivo derrubado pelo STF, definiu que as contribuições PIS/Pasep e Cofins incidiriam sobre a receita bruta das empresas, entendendo por receita bruta “a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas”.

Ocorre que o texto da lei equiparava faturamento a receita bruta não operacional. Ou seja: as contribuições passaram a incidir não apenas sobre bens e serviços, mas também sobre outras receitas, como indenizações, royalties e ganhos em bolsas de valores.

O dispositivo foi derrubado após longo debate sobre a possibilidade de convalidação da lei. Isso porque a 9.718/98 foi publicada antes da Emenda Constitucional 20. A maioria dos ministros entendeu que, em tese, a norma não estaria de acordo com a redação original do artigo 195, inciso I, da Constituição Federal, apesar de sua constitucionalidade não ter sido atacada. Só que há um detalhe — o texto da EC 20, ao criar a hipótese de incidência sobre “a receita ou o faturamento”, acabaria por “constitucionalizar” a norma. E essa foi a tese defendida pelo ministro Eros Grau, que acabou vencida.

Assim, entenderam os ministros do Supremo que uma emenda constitucional não teria o poder de transformar em constitucional uma lei que, antes da entrada em vigor dessa emenda, feria o texto da Constituição.

“A Constituição porta uma dignidade. Uma emenda não pode ser comparada a ela”, disse o ministro Carlos Britto ao seguir o voto-condutor, do ministro Marco Aurélio. “Emendas existem para conversar com a Carta da República, mas não se põem como fundamentos de validade, de convalidação das leis”, disse.

O procurador da Fazenda Fabrício Sollera afirmou que, com a decisão do Supremo, caso os impostos tivessem sido recolhidos na totalidade, entre 1998 e 2002/2003, o governo devolveria os contribuintes valores próximos a R$ 29 bilhões. Ressaltou, todavia, que não há como calcular o desembolso a ser feito pela receita, já que uma grande quantidade de contribuintes obteve liminar para não pagar as contribuições.

O cálculo com base no período 1998-2002/2003 se deve ao fato de terem sido editadas leis relativas à não cumulatividade do PIS/Pasep (2002) e Cofins (2003). Segundo a Fazenda, essas leis estariam de acordo com o entendimento do Supremo e não deverão ser afetadas pela decisão de hoje.

Conseqüências

Ao comemorar a decisão, o advogado Marco Aurélio Carvalho, do escritório Barroso, Muzzi e Oliveira, fez um alerta. Para ele, o governo não pode falar em prejuízo. Isso porque teria arrecadado a receita com base em uma lei inconstitucional. “É uma lei que não existe no mundo jurídico”, afirmou.

Carvalho ainda lembrou que o governo deverá, apesar da inconstitucionalidade, lucrar com a edição da lei. Como os contribuintes só podem questionar na justiça valores referentes aos últimos cincos, e, entre a lei e o julgamento há um período superior, quem pagou as contribuições terá seu direito prescrito, sem chance de ajuizar uma ação de repetição de indébito, para reaver o que lhe deve o Estado.

Mas, mesmo os que têm a receber, podem amargar longa espera. Isso porque o precatório deverá ser a via pela qual o governo devolverá o que deve. Salvo em casos nos quais será viável a contribuição.

O procurador da Fazenda Nacional, porém, não acredita que, na prática, muitos contribuintes sofram prejuízos. “Quase todos ajuizaram ações. Poucos estavam pagando as contribuições”, avalia.

Leia a íntegra do voto do ministro Eros Grau

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 357.950-9 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S) : COMPANHIA RIOGRANDENSE DE PARTICIPAÇÕES -CRP

ADVOGADO(A/S) : LARISSA DIEFENBACH LEUCK DE NARDI

ADVOGADO(A/S) : RODRIGO LEPORACE FARRET E OUTRO(A/S)

RECORRIDO(A/S) : UNIÃO

ADVOGADO(A/S) : PFN – RICARDO PY GOMES DA SILVEIRA

V O T O

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: O eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA tendo anteriormente votado nos autos do RE n. 346.084, supusera eu não viesse a me manifestar a respeito da matéria, ao menos de imediato, na Sessão plenária do dia 18 de maio passado. Daí porque, vindo a julgamento outros recursos, pedi vista dos autos.

Exercício de prudência, apenas. Estivesse eu tão bem preparado como os colegas que anteciparam seus votos após o meu pedido de vista — mero exercício de prudência, repito — teria prontamente votado.

02. O tratamento do tema reclama alguns esclarecimentos a respeito dos conceitos jurídicos. Não se os pode tratar como se incluídos em uma só categoria, qual também não convém admitirmos — e isso foi dito na tribuna — que nesta ou naquela Faculdade de Direito se ensine ou se tenha ensinado que qualquer significado possa ser atribuída a qualquer vocábulo. Se há quem entenda assim, é porque não compreendeu nada, absolutamente nada.


03. Distinguimos, a partir de ASCARELLI1, cumprindo diferentes funções na linguagem jurídica, [i] os conceitos jurídicos meramente formais, [ii] as regulae júris e [iii] os conceitos tipológicos [fattispecie].

Os conceitos meramente formais [v.g., ônus, sujeito jurídico, direito, obrigação] estão ancorados no terreno formal; o estudo de suas características específicas permite o desenvolvimento de uma quase topologia, indicativa de uma série de posições lógicas.

Os conceitos meramente formais não possuem realidade histórica própria.

As “regulae júris” consubstanciam expressões que sintetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, sem que lhes corresponda um significado próprio. Exprimem, condensadamente, um sistema normativo, a modo — diz FÁBIO KONDER COMPARATO — de autêntica estenografia legal. Tome-se como exemplo dessa espécie de conceito o de propriedade, que apenas assume alguma significação na medida em que tenhamos sob consideração a função que ele cumpre no discurso do direito, de resumir toda disciplina normativa atinente ao modo de aquisição e aos poderes, faculdades e deveres decorrentes da aquisição de uma posição jurídica subjetiva em relação a um bem.

A utilidade do conceito de propriedade — e isso o torna na prática insubstituível — está na enorme economia de tempo e de energia que o seu uso permite a quem pretenda expor o conteúdo do subsistema normativo aplicável à propriedade. Às “regulae júris” é que se refere ALF ROSS em seu conhecido opúsculo.

Os conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie], são expressões da história e indicam os ideais dos indivíduos e grupos, povos e países; ligam-se a esquemas e elaborações de caráter, bem como a preocupações e hábitos econômicos e a fés religiosas; à história do Estado e à estrutura econômica; a orientações filosóficas e a concepções do mundo. Referem-se a fatos típicos da realidade. Aí encontramos conceitos cujos termos são, v.g., boa-fé, bom pai de família, coisa, bem, causa, dolo, culpa, erro. Atribuir significado a esses termos equivale à identificação das espécies de fato alcançadas por um texto normativo. Os conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie], também ditos indeterminados, em verdade não são conceitos, mas noções.

04. Faturamento é termo de um desses conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie]. Vale dizer, termo de uma noção. Não desejo cansar a Corte, mas me permito lembrar que elas — as fattispecie ou “conceitos tipológicos” — não são conceitos [não podem ser entendidos como conceitos] porque os conceitos são atemporais e ahistóricos e elas — os fattispecie ou “conceitos tipológicos” — são notável e peculiarmente homogêneos ao desenvolvimento das coisas, isto é, caracterizadamente históricos e temporais2.

05. Prossigo em meu raciocínio. A cada conceito corresponde um termo. Este — o termo — é o signo lingüístico do conceito. Assim, o conceito, expressado no seu termo, é coisa (signo) que representa outra coisa (seu objeto). Faturamento é o termo do conceito [= noção, em rigor] de faturamento.

Aqui corremos o risco de cair em uma cilada. É que as linguagens consubstanciam sistemas ou conjuntos de símbolos convencionais3. Isso significa, como observa CARRIÓ, que não há nenhuma relação necessária entre as palavras (de um lado) e os objetos, circunstâncias, fatos ou acontecimentos (de outro) em relação aos quais as palavras cumprem suas múltiplas funções.

As palavras — diz HOSPERS — são como rótulos que colocamos nas coisas, para que possamos falar sobre elas: “Qualquer rótulo é conveniente na medida em que nos ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira conseqüente. A garrafa conterá exatamente a mesma substância, ainda que coloquemos nela um rótulo distinto, assim como a coisa seria a mesma ainda que usássemos uma palavra diferente para designá-la”. De outra forma dissera-o já SHAKESPEARE, na voz poética de JULIETA “What’s in a name? That wich we call a rose / by any other name would smell as sweet”.

Podemos, com HOSPERS, apor rótulos convencionais sobre determinadas garrafas ou fazê-lo de modo arbitrário. Optando pela segunda alternativa, da sua adoção não resultará nenhuma alteração no conteúdo do continente arbitrariamente rotulado. Apenas, se o nosso propósito não for o de instalar, no mínimo, a confusão, cumpre-nos deixar bem esclarecido aos seus potenciais usuários quais conteúdos encontrarão em cada uma delas. Assim com as palavras. Se não as tomarmos com a significação usual, cumpre nos informar aos nossos ouvintes ou leitores os sentidos que lhes atribuímos. Ainda segundo HOSPERS, “qualquer um pode usar o ruído que quiser para se referir a qualquer coisa, contanto que esclareça o que designa o ruído em questão”.


06. No caso, faturamento terá sido tomado como termo de uma das várias noções que existem — as noções de faturamento — na e com uma de suas significações usuais atualmente. Sabemos de antemão que já não se a toma como atinente ao fato de “emitir faturas”. Nós a tomamos, hoje, em regra, como o resultado econômico das operações empresarias do agente econômico, como “receita bruta das vendas de mercadorias e mercadorias e serviços, de qualquer natureza” [art. 22 do decreto-lei n. 2.397/87]. Esse entendimento foi consagrado no RE 150.764, Relator o Ministro ILMAR GALVÃO, e na ADC n. 1, Relator o Ministro MOREIRA ALVES.

07. Daí porque tudo parece bem claro: em um primeiro momento diremos que faturamento é outro nome dado à receita bruta das vendas e serviços do agente econômico. Essa é uma das significações usuais do vocábulo [i.é., a noção da qual o vocábulo é termo é precisamente esta — faturamento é receita bruta das vendas e serviços do agente econômico]. A análise dos precedentes aponta, no entanto — e isso é proficientemente indicado em parecer de HUMBERTO ÁVILA — no sentido de inversão dos termos: a lei tributária chamou de receita bruta, para efeitos do FINSOCIAL, o que é faturamento; o conceito de receita bruta [= receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços], na lei, é que coincide com a noção de faturamento, na Constituição.

08. Ora, o artigo 3º da Lei n. 9.718/98 não diz mais do que isso. Seu § 1º é que vai além, para afirmar que ali — e ali não se cogita de faturamento, mas de receita bruta — se trata da totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas. Voltando a HOSPERS: a lei esclareceu o sentido que atribuiu ao termo “receita bruta” — “qualquer um pode usar o ruído que quiser para se referir a qualquer coisa, contanto que esclareça o que designa o ruído em questão”.

09. Esse § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 veicula uma definição jurídica. Os conceitos jurídicos, vimos, são expressados através de termos: o termo é o signo do conceito. Ora, porque esses termos são colhidos na linguagem natural, que é virtualmente ambígua e imprecisa, inúmeras vezes textos normativos operam a enunciação estipulativa de conceitos, ou seja, definem os seus respectivos termos. O que se tem referido por “conceito estipulativo ou legal” corresponde, em regra, a uma definição, que o texto normativo contempla visando superar a ambigüidade ou imprecisão do termo de certo conceito. A definição jurídica, pois — “Para os efeitos desta lei entende se por…” — é a explicitação do termo do conceito e não deve ser confundida com o conceito jurídico. Este é o signo de uma significação, expressado pela mediação do termo. A definição jurídica está referida ao termo e não diretamente ao conceito; consubstancia — repita se — uma explicitação do termo do conceito.

10. Não fora virtualmente ambígua e imprecisa a linguagem jurídica, bastar nos iam os conceitos jurídicos, sendo prescindíveis as definições ou “conceitos estipulativos ou legais”4 . Mas não é bem e apenas assim, contudo. Muitas vezes o ordenamento jurídico alberga conceitos que, embora diversos, são designados por um mesmo termo.

Nesta hipótese, sob o mesmo termo conceitual — o que torna ainda mais complexo e desafiador, para o intérprete, o problema da ambigüidade dos termos e expressões jurídicas — sob o mesmo termo conceitual, dizia eu, repousam, plasmados pelo ordenamento, distintos conceitos jurídicos. A distinção entre tais conceitos é evidente, visto que, embora destacados de um núcleo conceitual comum, as coisas, estados ou situações a que são aplicados sujeitam-se a diversos regimes jurídicos ou a diversas normas jurídicas (v.g., servidor público, sociedade de economia mista). Refiro-me especialmente às definições legislativas do tipo que NATALINO IRTI menciona como “definizione-descrizione degli elementi della fattispecie”, que descreve, com palavras da língua comum ou do léxico jurídico, modalidade e elementos da fattispecie, ou seja, da hipótese da norma.

Eis o que aí se tem, nesse § 1º do artigo 3º da Lei n.9.718/98, uma definição jurídica de receita bruta: a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.

11. Cumpre então indagarmos se a lei poderia ter afirmado essa definição de receita bruta.

A Constituição dizia, anteriormente à EC 20/98, que a seguridade social seria financiada, entre outros, mediante recursos provenientes de contribuição social “dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros” (art. 195, I).


A EC 20/98 alterou o preceito, para afirmar que essa mesma contribuição incidirá sobre a folha de salários e outros rendimentos do trabalho, sobre “a receita ou o faturamento” e sobre o lucro.

A lei é anterior à EC 20/98, ao tempo em que o artigo 195, I da Constituição afirmava que a contribuição incidiria “sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros”.

12. A alteração no texto da Constituição aparentemente, mas não necessariamente, indica alteração do campo de incidência da contribuição. A emenda, ao referir “a receita ou o faturamento”, poderia estar a tomar receita como sinônimo de faturamento e faturamento como sinônimo de receita…

Anteriormente à EC 20/98 ela incidia a sobre receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços [= receita bruta], o que coincidia, qual afirmou esta Corte, com a noção de faturamento.

Após a EC 20/98 ela incide sobre “a receita ou o faturamento”.

Ora, se receita bruta [= receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços] coincide, qual afirmou esta Corte, com a noção de faturamento, a inserção do termo de um outro conceito — “receita” — no texto constitucional há de estar referindo outro conceito, que não o que coincide com a noção de faturamento. Para exemplificar, sem qualquer comprometimento com a conclusão: receita como totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevante para a determinação dessa totalidade o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.

Temos aí receita bruta, termo de um conceito, e receita bruta, termo de outro conceito. No primeiro caso, receita bruta que é enquadrada na noção de faturamento, receita bruta das vendas e serviços do agente econômico, isto é, proveniente das operações do seu objeto social. No segundo, receita bruta que envolve, além da receita bruta das vendas e serviços do agente econômico — isto é, das operações do seu objeto social — aquela decorrente de operações estranhas a esse objeto.

Impõe-se então distinguirmos: de um lado teremos receita bruta/faturamento; de outro, a receita bruta que excede a noção de faturamento, introduzida pela EC 20/98, para a determinação de cuja totalidade são irrelevantes o tipo de atividade que dá lugar a sua percepção e a classificação contábil adotada.

13. Dir-se-á que a Constituição, ao não definir faturamento, incorporou noção que dele se tinha à época. Na verdade incorporou uma das noções que dele à época se tinha. A Constituição poderia, mais do que incorporar, poderia ter contemplado uma definição jurídica de faturamento. Não o tendo feito, prevaleceu um dos entendimentos possíveis, aquele nos termos do qual receita bruta coincide com a noção de faturamento enquanto receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços. Poderia ter prevalecido outro.

O momento é propício para a afirmação de que, em verdade, a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último intérprete, diz que ela diz. E assim é porque as normas resultam da interpretação e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto5, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. Por isso MICHEL TROPER sustenta — e nisso estamos de acordo — que a norma constitucional é criada pela autoridade que a aplica, no momento em que a aplica mediante a prática da interpretação. As palavras escritas no texto normativo nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando — através e mediante a interpretação — são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada — elas, como observam ALÍCIA RUIZ e CARLOS CÁRCOVA, elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem.

Insisto em que o sentido de suas normas é construído por esta Corte. Poderíamos ter incorporado outro entendimento, qual, por exemplo, o desdobrado do ato de “emitir faturas”. A Corte, no entanto, decidiu de outro modo, de sorte que desde essa decisão aquele, e não outro, ficou sendo o sentido atribuído a faturamento.

14. Daí se extrai algumas conclusões, a primeira das quais indica que o § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 excedeu a noção de faturamento adotada por esta Corte ao tempo em que o artigo 195, I da Constituição do Brasil afirmava que a contribuição incidiria “sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros”.

Sucede que a EC 20/98, como vimos, alterou a redação do inciso I do artigo 195 da Constituição, para afirmar que a contribuição incidirá sobre a folha de salários e outros rendimentos do trabalho, sobre “a receita ou o faturamento” e sobre o lucro. E — vimos — nisso e com isso admitiu sua incidência sobre receita bruta que excede a noção de faturamento, para a determinação de cuja totalidade são irrelevantes o tipo de atividade que dá lugar a sua percepção e a classificação contábil adotada.


15. Uma segunda conclusão é construída a partir da verificação de que a regulação jurídica é sempre provisória e está sujeita a ser atropelada pela violência dos fatos. Não me refiro, neste ponto à violência de todos os delitos. Nem à circunstância de o direito afirmar-se precisamente quando violado, quando suas regras e princípios sejam desacatados — o Poder Judiciário se ocupa exclusivamente das leis que tenham sido violadas. Desejo fazer alusão à circunstância de a realidade não parar quieta, ela sim derrubando bibliotecas e preceitos que já não sejam com ela coerentes. Por isso mesmo afirmo que o direito é um organismo vivo que não envelhece, nem permanece jovem, na medida em que, em virtude da sua interpretação/aplicação, é [= deve ser] contemporâneo à realidade. Tenho reiteradamente insistido em que a interpretação do direito é compreensão não apenas dos textos, mas também — repitome — da realidade. Alterada a realidade social, a norma que se extrai de um mesmo texto será diversa daquela que dele seria extraída anteriormente à mudança da realidade.

Daí a distinção entre inconstitucionalidade originária e inconstitucionalidade superveniente. No primeiro caso o texto porta em si, desde o seu momento inicial, a marca da inconstitucionalidade. No segundo, nasce são, mas no correr do tempo, outra sendo a realidade, torna-se supervenientemente inconstitucional. Alguns, entre nós, afirmam, ao eventualmente alterar posição diante de um determinado texto normativo, que “evoluíram”. Mudanças nas pessoas certamente ocorrem, mas o que se dá de modo mais freqüente é a mudança na própria realidade, determinando a convolação do que era constitucional em inconstitucional; e mesmo o contrário — convolação do que era inconstitucional em constitucional — poderá, em tese, vir a ocorrer.

16. Precisamente isso se dá no caso. O § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, cuja inconstitucionalidade não foi declarada antes da vigência da EC 20/98 — logo gozava, até então, da presunção de constitucionalidade — foi recebido por essa emenda constitucional.

A inconstitucionalidade pretérita não declarada resultou superada pelo recebimento do preceito pela EC 20/98.

17. Lembro precedente antológico da Corte, a ADI n. 2, oportunidade em que o Ministro PAULO BROSSARD, Relator, sustentou que:

“A teoria da inconstitucionalidade supõe, sempre e necessariamente, que a legislação, sobre cuja constitucionalidade se questiona, seja posterior à Constituição. Porque tudo estará em saber se o legislador ordinário agiu dentro de sua esfera de competência ou fora dela, se era competente ou incompetente para editar a lei que tenha editado.

Quando se trata de antagonismo existente entre Constituição e lei a ela anterior, a questão é de distinta natureza; obviamente não é de hierarquia de leis; não é, nem pode ser exatamente porque a lei maior é posterior à lei menor e, por conseguinte, não poderia limitar a competência do Poder Legislativo, que a editou. Num caso o problema será de direito constitucional, noutro de direito intertemporal. Se a lei anterior é contrariada pela lei posterior, tratar-se-á de revogação, pouco importando que a lei posterior seja ordinária, complementar ou constitucional.

Em síntese, a lei posterior à Constituição, se a contrariar, será inconstitucional; a lei anterior à Constituição se a contrariar será por ela revogada, como aconteceria com qualquer lei que a sucedesse. Como ficou dito e vale ser repetido, num caso, o problema é de direito constitucional, noutro é de direito intertemporal”.

O acórdão oriundo desse célebre julgamento está assim ementado:

“CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE.

1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária.

2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária.

3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido.”

Ficou então assentado não caber a ação direta quando o texto normativo for anterior à Constituição, já que, se for com ela incompatível, é tido como revogado, e, caso contrário, como recebido.


18. O mesmo raciocínio há de ser aplicado em relação às emendas constitucionais, que passam a integrar a ordem jurídica com o mesmo status dos preceitos originários. Vale dizer, todo ato legislativo que contenha disposição incompatível com a ordem instaurada pela emenda à Constituição deve ser considerado revogado.

Nesse sentido, a observação do Ministro CELSO DE MELLO:

“Torna-se necessário enfatizar, no entanto, que a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal — tratando-se de fiscalização abstrata de constitucionalidade — apenas admite como objeto idôneo de controle concentrado as leis e os atos normativos, que, emanados da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal, tenham sido editados sob a égide de texto constitucional ainda vigente” [ADI n. 2971, Relator o Ministro CELSO DE MELLO; DJ de 18/05/2004].

Por isso mesmo esta Corte tem decidido que, nos casos em que o texto da Constituição do Brasil foi substancialmente modificado em decorrência de emenda superveniente, a ação direta de inconstitucionalidade fica prejudicada, visto que o controle concentrado de constitucionalidade é feito com base no texto constitucional em vigor e não do que vigorava anteriormente (ADI n. 1.717/MC, Relator o Ministro SYDNEY SANCHES, DJ de 25.02.00; ADI n. 2.197, Relator o Ministro MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 02.04.2004; ADI n. 2.531/AgR, Relator o Ministro CARLOS VELLOSO, DJ de 12.09.2003; ADI n. 1.691, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ de 04.04.2003; ADI n. 1.143, Relator o Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 06.09.2001 e ADI n. 799, Relator o Ministro GILMAR MENDES, DJ de 17.09.2002).

Aliás, em situação análoga — e justamente se tratando da lei imediatamente anterior à de número 9.718/98, decidiu-se que “tendo a Lei n. 9.717, de 27 de novembro de 1998, sido publicada anteriormente à entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 20/98, e tendo esta também de ser levada em consideração no exame da constitucionalidade da referida Lei, dada a causa de pedir em ação direta de inconstitucionalidade ser aberta, não é de ser conhecida a presente ação porque se estará no âmbito da revogação, o que não dá margem ao cabimento da ação direta de inconstitucionalidade” (ADI n. 2055, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ de 09.05.2003).

19. Ora, a Lei n. 9.718 foi publicada no dia 28 de novembro de 1.998, vinte dias antes da vigência da EC 20/98. Sua eficácia foi protraída para o dia 1o de fevereiro de 1.999, mercê da anterioridade nonagesimal. Não produziu nenhum efeito anteriormente à vigência da nova emenda constitucional, até então gozando de presunção de constitucionalidade, tendo sido por ela recebida. A inconstitucionalidade pretérita não declarada resultou superada pelo recebimento do preceito veiculado no § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 pela EC 20/98.

20. São por certo ponderáveis as razões do voto do eminente Ministro CEZAR PELUSO, sempre brilhantes e fundamentadas. Concebido porém o ordenamento como expressão de uma ordem concreta, histórica e cultural e admitido que a força normativa da Constituição que cumpre privilegiar é a afirmada pelo texto mais atual — e aqui é necessário pensarmos essa ordem como uma continuidade que se reproduz no tempo, permanecendo diuturnamente contemporânea à realidade — teremos, ao nos afastarmos do puro normativismo, que o recebimento do preceito de que se cuida pela EC 20/98 supera qualquer vício cuja consistência dependeria do confronto com a redação anterior do texto constitucional, que já não produz nenhuma conseqüência jurídica. Esta Corte já se manifestou nesse sentido ao apreciar o AgR-AI n. 113.353/SP, Relator o Ministro SIDNEY SANCHES, e o AgR-AI n. 114.375/RJ, Relator o Ministro OCTÁVIO GALLOTTI.

Digo-o com todas as vênias: o pensamento que conduz à declaração, agora, de inconstitucionalidade do § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, de modo a negar o seu recebimento pela Constituição emendada é expressivo de puro normativismo formal: tanto é que, para ele, a simples republicação da lei vinte dias após seria suficiente para torná-la constitucional… É certo que o vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Mas não é disso que aqui se trata, senão do recebimento, pela emenda constitucional, de lei publicada anteriormente a sua vigência, que não fora ou ainda não fora declarada inconstitucional. De fato — e aqui lanço mão de trechos do voto do Ministro PAULO BROSSARD na ADI n. 2 (Revista Trimestral de Jurisprudência nº 169/774) — a lei em questão não poderia ter sido feita pelo Congresso, “não estava em sua competência, porque escapava de suas atribuições, competência fixada pela Constituição, atribuições por ela demarcadas. E porque fez a lei que não podia fazer, agiu ultra vires, além dos seus poderes, fora de suas atribuições, ao arrepio de sua competência”.


Tudo isso é verdadeiro. O fenômeno da recepção, no entanto, conduz à superação de tudo isso. Pois o § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 não tendo sido ainda, no advento da emenda constitucional, retirado do ordenamento jurídico e sendo adequado a ela, continua a ter existência de modo [re]novado, visto que novo é o seu fundamento derradeiro de validade: a EC 20/98. É o fenômeno da recepção6, que consubstancia um procedimento abreviado de criação do direito7. Em breve artigo publicado logo após a promulgação da Constituição de 1.988, GERALDO ATALIBA compôs uma das mais belas páginas já desenvolvidas sobre o assunto8:

“No dia da promulgação da nova Constituição nasceu o estado brasileiro atual. Surgiu assim, por obra da nova Constituição, um novo Estado. O antigo — baseado na Carta de 67/69 — desapareceu. Juridicamente, tudo é novo: a ordem jurídica inteira instaura-se; as instituições inauguram-se, no momento da promulgação da Constituição. A ordem jurídica nova é rigorosamente virgem, intocada, inovadora e novidadeira. Toda a ordenação jurídica, que emana do Estado, surge nesse momento. O novo Estado, do ponto de vista jurídico, nasce do ato constituinte, com a promulgação da Constituição. É verdade que esta entidade jurídica apóia-se, superpõe-se a uma sociedade política já existente; comunidade complexa que, sob perspectiva sociológica, continua; tem a sua continuidade. Daí dizer-se que a Nação continua e o estado morre, para dar lugar a outro estado. Entretanto, juridicamente, tudo passa a ser inovador. As leis antigas ficam no passado. A legislação velha toda, a ordem jurídica antiga, integral, desaparece, sucumbe com a emergência da nova Constituição. Fica perempta. As normas jurídicas antigas ficam na história. Por isso, igualamse, num só plano histórico, todas as leis, todas as normas, toda a ordenação passada; seja a da semana passada, seja a dos séculos passados. Tudo fica igualmente histórico. Todas ficam no mesmo plano, como páginas viradas, igualmente, identicamente. Lado a lado, ficam as Ordenações Manuelinas, as Filipinas, a Constituição de 1824 e a Carta Constitucional de 1967/69.

O novo Estado, evidentemente, emerge com novos órgãos, novo Poder Legislativo, novo Poder Executivo, novo Poder Judiciário; todas as instituições que a Constituição de 1988 cria e plasma são novas. A ordem jurídica é igualmente nova.

Alguns afirmam que são revogadas as leis existentes, no que colidem com a letra ou o espírito da nova Constituição. Acreditamos que o fenômeno da revogação não é explicação cabal. O que se dá é mais, muito mais radical: o desaparecimento, a total, a absoluta e irremissível perempção da legislação ainda vigente no dia anterior, exatamente porque o seu fundamento jurídico estava numa Constituição que desapareceu [esta sim, revogada categoricamente]. Na verdade, o que se observa é que todas as normas infraconstitucionais que não sejam incompatíveis com a nova Constituição são — na medida do estabelecido pela própria Constituição — ‘recebidas’, para integrar a nova ordenação, e assim, nascem, por ela acolhidas. As incompatíveis desaparecem, caducam com a velha Constituição; e desaparecem porque seu fundamento, sua base é banida do universo jurídico.

A nova ordem jurídica recepciona as normas infraconstitucionais não incompatíveis com a Constituição. Ninguém poderá dizer que esta nova lei tem por fundamento a Constituição anterior. Não, estas leis — que são novas por força de terem sido recebidas — têm o espírito e tomam por base a nova Constituição. Há aí novação. Imediatamente, automaticamente a ela submetem-se”.

O fato é que o advento de uma Constituição ou de uma emenda constitucional nova não paralisa o movimento da ordem jurídica infraconstitucional, pois o direito, instância da realidade social, é movimento, e não linguagem congelada. A exposição do saudoso ATALIBA é cristalina: todos os enunciados normativos que guardem compatibilidade com o novo texto constitucional são por ele recebidos, nele se nutrindo de vigor. Aqui tudo se passa como se a porção da legislação infraconstitucional que mantenha adequação à nova Constituição ou à nova emenda fosse em um átimo [re]feita; é desnecessário o cumprimento de todos os passos do processo legislativo para que se dê a inovação, através dessa porção legislativa, da nova ordem jurídica.

A admissão da existência de um hiato no ordenamento, que teria sido preenchido apenas entre 2.002 e 2.003, respectivamente, com o advento da Medida Provisória n. 135/03, convertida na Lei n. 10.833/03 para a COFINS, e Medida Provisória n. 66/02, convertida na Lei n. 10.637, de 31 de dezembro, para o PIS, a admissão da existência desse hiato é incompatível com a concepção do ordenamento como expressão de uma ordem concreta, projetada de modo contínuo no tempo. A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como ela é um dinamismo9, é contemporânea à realidade10 — repito: o direito, instância da realidade social, é movimento, e não linguagem congelada. Quem escreveu o texto da Constituição não é o mesmo que o interpreta/aplica, que o concretiza11. Por isso podemos dizer que em verdade não existe a Constituição, do Brasil, de 1.988. Pois o que realmente hoje existe, aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, está sendo interpretada/aplicada.

Nego provimento aos recursos extraordinários.

Notas de rodapé

1 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 3ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.005, págs. 226 e ss.

2 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., pág. 236.

3 Idem, págs. 215 e ss.

4 Idem, págs. 230-231.

5 Idem, págs. 80-82.

6 Vide MARCELO CERQUEIRA, A Constituição e o direito anterior — o fenômeno da recepção, Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, Brasília, 1.995, págs. 63-83.

7 Cf. KELSEN, Teoria generale del Diritto e dello Stato, trad. italiana, Milano, Ed. Comunità, 1.952, pág. 119.

8 “Efeitos da nova Constituição”, in Boletim AASP n. 1562, Suplemento, 23.11.88, pág. 3.

9 Vide meu A ordem econômica na Constituição de 1.988, 9ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2.004, pág. 152.

10 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 3ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2.005, págs. 54-55.

11 Diz PONTES DE MIRANDA (Sistema de ciência positiva do direito, tomo II, Bookseller, Campinas, 2.000, págs. 151-152): “A regra jurídica não é dada pela maioria, nem tampouco pela totalidade. Pode ser obra de muitos ou de alguns, de minorias ínfimas, ou de um só. Mas já vimos que não há que separar a aplicação e a iniciação da lei, a realização e a proposta. A expressão efetiva pode não ser a do indivíduo, nem a de alguns, nem a de muitos, nem a da maioria, nem a da totalidade; porque a totalidade que desse não seria a que aplicasse, e sim outra, porque entre elas há a mesma diferença que entre dois momentos: o momento a de elaboração e o momento b de aplicação concreta. No costume é que teríamos a simultaneidade, a confusão, a coincidência ou como quer que a isso se chame; mas no próprio costume a regra é traçada, não por um ato, e sim por muitos, de modo que resulta de membros de totalidades distintas”.

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